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Empresários e intelectuais lançam manifesto de apoio ao processo eleitoral

Documento diz que Brasil terá eleições e seus resultados serão respeitados; afirma ainda que sociedade não aceitará aventuras autoritárias

Sérgio Roxo/ O Globo

SÃO PAULO - Um grupo de mais de 200 empresários, economistas e intelectuais divulgará nesta quarta-feira uma manifesto de apoio ao processo eleitoral brasileiro em resposta aos ataques do presidente Jair Bolsonaro à urna eletrônica e ao presidente do Tribunal Superior Eleitoral, Luís Roberto Barroso.

O texto diz que o "Brasil terá eleições e os seus resultados serão respeitados". Afirma também que a  "sociedade brasileira é garantidora da Constituição e não aceitará aventuras autoritárias". Assinam o documento, entre outros, os empresários  Luiza Trajano (Magazine Luiza), Guilherme Leal (Natura) e Roberto Setúbal (Itaú); os economistas  Armínio Fraga, Pérsio Arida e André Lara Resende; os líderes religiosos Dom Odilo Sherer (cardeal arcebispo de São Paulo) e Monja Coen; os médicos Raul Cutait, Drauzio Varella e Margareth Dalcomo; os ex-ministros José Carlos Dias, Pedro Malan, Paulo Vanuchi e Nelson Jobim; e os professores universitários Luiz Felipe de Alencastro e Candidato Mendes de Almeida.

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"Apesar do momento difícil, acreditamos no Brasil. Nossos mais de 200 milhões de habitantes têm sonhos, aspirações e capacidades para transformar nossa sociedade e construir um futuro mais próspero e justo. Esse futuro só será possível com base na estabilidade democrática", afirma o manifesto.

O texto ainda ressalta que "o princípio chave de uma democracia saudável é a realização de eleições e a aceitação de seus resultados por todos os envolvidos". "A Justiça Eleitoral brasileira é uma das mais modernas e respeitadas do mundo. Confiamos nela e no atual sistema de votação eletrônico", afirma.

Carlos Ari Sundfeld, professor da FGV-Direito São Paulo e um dos idealizadores do manifesto, diz que o documento é uma resposta após a fala  de Bolsonaro na segunda-feira em que o presidente atacou o presidente do TSE e o acusou de prestar um desserviço ao país. Por meio de grupos de diálogo já existentes, os signatários decidiram pela elaboração do manifesto. 

— Queremos mostrar que a sociedade não considera normal o presidente atacar instituições que estão exercendo a sua função. É importante que os mais diferente setores estejam unidos na confiança na Justiça e no processo eleitoral.PUBLICIDADE

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Sundfeld destaca que o signatários possuem diferentes visões políticas e são oriundos das mais diversas atividades profissionais.  O grupo, segundo ele, reconhece um risco para a democracia e está disposto a defendê-la.

Ainda de acordo com o professor, o manifesto é apenas o primeiro passo. A expectativa é que a Congresso enterre o projeto que institui o voto impresso, mas, se isso não ocorrer, uma das possibilidades debatidas é questionar a constitucionalidade do texto.


Fonte: O Globo
https://oglobo.globo.com/brasil/apos-ataques-de-bolsonaro-empresarios-intelectuais-lancam-manifesto-de-apoio-ao-processo-eleitoral-25141289


Gelédes: Arauto de um novo tempo - A negritude revolucionária de Hamilton Cardoso

Quero ostentar minha pele negra, meu nariz chato e arrebitado com meus duros cabelos à mostra, com minha sensibilidade, à mostra. Quero escrever do meu jeito. Falar na minha língua – do meu jeito. (Hamilton Cardoso [Zulu Nguxi] – “Depoimento [AFRO-LATINO-AMÉRICA]”, 2014)

Por Christian Ribeiro, enviado ao Portal Geledés

Em tempos de convulsão e de sombras, quando as ordens vigentes parecem imutáveis e inabaláveis a figura do intelectual enquanto representação anti-sistêmica do mundo em que habita visando a superação do mesmo, para a construção de uma nova forma de sociedade, toma forma e sentido. Como que para responder as inequidades e contradições de sua realidade-mundo, o intelectual exerce sua práxis para a destruição do “já constituído” pelo advir de novos tempos, em que novas possibilidades de relações e interações sociais façam-se constituir e interagir nos processos de construções de historicidades que resultem em estruturas socialmente mais justas, democráticas e includentes.

Por uma perspectiva portanto revolucionária de sociedade, essa concepção acerca da práxis intelectual enquanto elemento anti-sistêmico, possui nos processos de rearticulação política dos movimentos negros dos anos 1970 no Brasil exemplos dessa potência transformadora que os sistemas opressores e ditatoriais gestão contra si, em que os sujeitos sociais explorados e marginalizados passam a alinhavar, a articular, suas perspectivas e tensões históricas-políticas para dessa forma tensionar, questionar e problematizar a ordem social em que se encontram inseridos, passando a atuar de maneira cada vez mais constante para o acirramento de suas contradições, visando o abalo e destruição de seus alicerces excludentes e discriminatórios.

Hamilton Bernardes Cardoso (1953 – 1999) foi aquele que em meio aos processos de redemocratização brasileira da década de 1970 e dos movimentos políticos negros que fizeram parte a esse momento histórico da nossa sociedade, encarnou a figura do intelectual revolucionário orgânico, que originário das forças temporais que circulam pelas eras torna-se a representação viva de uma geração. Uma representação encarnada dos anseios e desejos que moveram os destinos de seus semelhantes em busca pela superação de nosso racismo estrutural e alienante. Jovem, articulado, que irrompia o cenário político de então que – balizado pelo regime ditatorial do regime civil-militar (1964-1985) – negava oficialmente, enquanto política de Estado, a existência do racismo no Brasil e censurava toda e qualquer manifestação em contrário, resultando em um sistema de constância vigilância e controle em cima dos órgãos de imprensa e movimentos políticos que não seguissem tal premissa a perfeição.

De maneira consciente, Hamilton Cardoso fazia por não aceitar em reconhecer o “não lugar” destinado as populações negras e o calar imposto ante aqueles que não aceitavam a ordem social vigente. Enquanto jornalista e militante político de esquerda ocupa e constrói espaços de debates e intersecções políticas que inserem a questão racial brasileira, em especial o nosso racismo e as resistências negras seculares e contemporâneas, ao cenário político-social da sociedade brasileira. Toda uma vertente da negritude afro-brasileira construída e caracterizada enquanto fruto da juventude afrodescendente que começava a se constituir enquanto agente política no começo dos anos 1970, terá como seu porta-voz e rosto a figura de Cardoso, não no sentido de personalismo, mas de representar o melhor dessa geração.

Dono de forte personalidade e convicções, forjada em embates contra os racismos cotidianos da sociedade brasileira, passa a constituir textos e intervenções – escritas ou em oratórias – que transmitem todo desdém, no sentido explicito de desprezo e ódio ao ideário de que o Brasil era uma sociedade socialmente harmoniosa e racialmente democrática. Para ele não havia espaço, não havia diálogo em sua verve política para conivência ou convivência promulgadores desse tipo de ideário, eram tempos de revolução e por isso medidas radicais se faziam necessárias, por isso não se podia ser condescendente com o racismo e seus efeitos nefastos ante as populações afrodescendentes em especial. Por isso a sua obsessão em desmascarar e desmantelar a nossa falácia enquanto sociedade não racista, enquanto terra sem a mácula do racismo ocorrendo e maculando as nossas relações históricas e sociais. Para Cardoso, em consonância direta ao pensamento histórico-sociológico de Clóvis Moura, as inequidades sociais características da sociedade brasileira são consequências diretas de nosso modelo de sociedade construída e baseada em torno não ´só do trabalho escravo, mas das relações racistas de superioridade social entre “senhor” (branco) vs “escravo” (negro), que moldaram nossas relações humanas ao longo dos séculos, nossos imaginários sociais que sempre associam tudo aquilo que é bom ou “superior” com o “branco/europeu”, enquanto dialeticamente associam tudo que é ruim ou “inferior” com o “negro/africano”, o que enfatiza nossa característica de sociedade classista, de origem estamental, pela nossa própria gênese racista civilizatória. Nossas diferenças sociais se dão e reproduzem-se por nossa origem escravocrata, por nosso racismo de marca e não pelo contrário.

Homem negro do interior, filho de Deolinda Bernardes Cardoso e Onofre Cardoso, nascido em Catanduva no interior paulista, em meio a uma família inserida as manifestações culturais negras locais, acaba vindo para São Paulo ainda criança. Será na capital paulista, ao início dos anos 1970 que dará início ao seu processo de conscientização racial enquanto referencial político e humanista libertador e revolucionário, resultando em um desenvolvimento de radicalização, no sentido de aprofundamento, da sua militância antirracista. Jovem homem negro em reconstrução, um militante em formação, inicialmente relacionado ao mundo cultural afro-paulistano, em especial dos grupos teatrais como o do “Centro de Cultura e Arte Negra” (CECAN) – quando Hamilton participou como ator da peça de teatro “E agora falamos nós”, escrita e montada pelo sociólogo Eduardo de Oliveira e Oliveira (1926 – 2012) e pela atriz Tereza Santos (1930 – 2012) – e de todo universo cultural e político da juventude negra paulistana que começava a ser constituído em torno do “Clube Coimbra”, da “Casa da Cultura e do Progresso” (CACUPRO) do “Grupo de Trabalho de Profissionais Liberais e Universitários Negros” (GETEPLUN). Pontos de efervescência desses jovens em que Cardoso deu início a construção da sua militância política antirracista, de sua negritude de práxis revolucionária, de viés marxista – inicialmente de recorte trotskista – que estabelecerá uma nova forma de diálogo e interação entre os movimentos negros e marxismos no Brasil.

Uma atuação e circulação entre dois mundos que pareciam não dialogar e tão distantes, quando não díspares, que permeou toda a sua trajetória política, o que de certo modo acabará por influenciar ativamente na inserção das temáticas raciais e dos atores sociais negros enquanto sujeitos políticos constituintes e primordiais aos partidos políticos de esquerda que se reformulavam (PCdoB) ou se articulavam (PDT e PT) para ingressar ao cenário político institucional entre final dos anos 1970 e começo dos anos 1980, sendo participante ativo nos processos de construção do Partido dos Trabalhadores, ao qual desenvolverá sua ação política partidária em sua busca constante pela articulação entre luta antirracista/negritude com as pautas sociais universais, sempre situando que não subordinava ou atrelava a questão racial brasileira e o antirracismo a luta classista, mas sim o contrário, destacando que as diferenças sociais no país têm sua origem em sua origem escravocrata e não o contrário.

Dessa forma exercendo discurso e prática contestatória ao nosso racismo estruturante tanto a nossa vertente historiográfica conservadora e ao conjunto político hegemônico ao qual ela fazia por defender e representar, como também acabava por contestar e problematizar ao próprio campo progressista e sua incapacidade em contextualizar as contradições sociais brasileiras a partir de nossas heranças escravocratas, preferindo aplicar formulações políticas europeias sem a devida contextualização e mediação ante as características históricas locais, assim acabando por reproduzir e perpetuar as características de desigualdades a que se propõem combater e superar.

A contribuição do novo movimento negro brasileiro ao debate político nacional, em articular e problematizar a questão racial e do racismo enquanto primordiais para se teorizar e buscar compreender nossas inequidades históricas-sociais, têm nas manifestações e atuações públicas de Hamilton Cardoso um de seus momentos fundantes (BARROS FILHO, 2007; CARRANÇA, 2014). Ser humano que em meio a fúria do mundo, se moldou entre aos choques e confrontos de seus cotidianos, dos saberes e historicidades das populações afro-brasileiras, constituiu-se enquanto um intelectual de práxis, radicalmente revolucionário em sua negritude política libertária e anti-hegemônica.

Intelectual que não se via apartado das coisas populares, das expressões culturais enquanto reféns de uma primazia de fatores econômicos e políticos “superiores”. Folião assumido, carnavalesco apaixonado, tinha nas escolas de samba como exemplos de construções das populações negras no Brasil contra o racismo da sociedade brasileira, formas de supressão da ordem social vigente e de contestação do nosso discurso de democracia racial e harmonia social. Um desfile da “Vai-Vai” ou da “Nenê da Vila Matilde”, possuía um impacto e importância social, além de valoração histórica de confrontação direta e realizada de maneira publica, em meio ao centro econômico e político do regime ditatorial de então, que não era levado em conta pelas forças progressistas do país, sempre em busca de conscientizar as massas e em construir formas de culturas libertárias, potencialmente revolucionárias, quando essa já existia e se fazia presente organicamente aos cotidianos de todas as regiões geográficas da maior metrópole brasileira. Uma sofisticação intelectual e política dos novos movimentos negros no Brasil(1), em buscar exercer esse olhar crítico em relação as expressões e formas culturais de origem afro ou afro-brasileira, que sempre foram desdenhadas em meio as diferentes correntes intelectuais e tendencias políticas progressistas que mesmo ainda hoje, se encontram aquém de sua devida valoração histórica e social enquanto expressões políticas anti-sistêmicas e antirracistas da negritude afro-brasileira.

Mas tal qual um enredo de tragédia em que o personagem principal – de postura rebelde e irredutível, que não se curva ante desígnios postos, que não aceita destinos prévios que lhe são oferecidos durante a sua trajetória heroica – atribui para si e aos seus a construção de seus próprios caminhos e vivências, acaba tendo sua trajetória interrompida, ao sofrer um atropelamento em 1 de Maio de 1988, saindo de uma festa a quadra de samba da “Unidos do Peruche”, um acidente que lhe traria sequelas físicas e emocionais profundas e definitivas! Em uma época ainda tão ignorante e sem referencial algum acerca dos efeitos nefastos da depressão, Hamilton Cardoso passa a se isolar cada vez mais de seus amigos, familiares e companheiros de batalhas e caminhadas contra o racismo, ao mesmo tempo que revoltasse com sua condição física debilitada, por vezes impeditiva, mas sempre dilacerante, a seu pleno exercício pela vida! Dessa forma acabando por gerar um ódio do mundo, muitas vezes direcionando contra si, outras contra os seus círculos sociais mais próximos (CARRANÇA, 2014; PEREIRA, 2009). Cada vez mais amargurado e atormentado, aliando a esse processo autodestrutivo a sua constante preocupação aos rumos da luta antirracista e da negritude no país e com o futuro político que apontava para a sociedade brasileira em geral, com o processo de redemocratização no Brasil – em que foi um dos articuladores do “Movimento Diretas Já” – acabando por constituir uma realidade social e política em que “tudo mudou, para não mudar” com os privilégios característicos do mau uso do Estado por nossas elites mantendo-se intactos, sem perspectiva de melhora social – de plenos direitos e cidadania plena – imediata para a vida da maioria da população, em especial de suas populações afrodescendentes.

O arauto da nova era, encontrava-se como que privado de sua essência, de sua seiva vital, abatido, depressivo e curvado pelas dores do mundo, que fustigavam o seu corpo e alma. Cada vez mais isolado dos amigos, tomado por uma amargura e revolta sem fim, Hamilton Cardoso, após duas tentativas frustradas, descansa desse mundo ao jogar-se no Rio Tietê e assim morrer afogado no dia 05 de Novembro de 1999, causando um amargor e dor profunda ao seio do movimento negro brasileiro e do campo político-intelectual progressista, que sabiam ter perdido uma das maiores mentes do país, perda que de certa maneira nunca se fez superar ao debate progressista pela busca de uma sociedade mais justa, includente e radicalmente democrática no Brasil, verdadeiramente harmoniosa socialmente e livre da chaga do racismo, em especial para as esferas interseccionais que orbitam política e ideologicamente entre os referenciais de negritude, antirracismo, pan-africanismo e comunismo/socialismo.

Mas para desespero de seus detratores e inimigos, os senhores de nossa eterna casa-grande, seu passamento não foi seu fim, pois seu legado intelectual e revolucionário se manteve vivo e presente as lutas antirracistas e pró negritudes, pela radicalização de nossa Democracia por seus pares geracionais, e em especial pelos novos sujeitos políticos negros que foram constituindo-se ao longo das últimas décadas. Com o seu legado devendo ser cada vez mais divulgado, analisado e debatido, pois suas percepções e práxis intelectuais-políticas se fazem mais necessárias do que nunca, ante aos tempos sombrios de ignorância, em que ser racista e preconceituoso, virou sinônimo de rebeldia e autenticidade, padrões de sociabilidades publicamente referendadas e estimuladas por grande parte da população brasileira.

Em época de desesperança e desespero como a que hoje vivemos, que voltemos nossas atenções aos ensinamentos e exemplo de vida daquele que domou o espírito de fúria de sua época e ajudou a moldar novos tempos e rumos para o seu povo, para aqueles que optou em representar e dar voz, literalmente contra os poderes estabelecidos e, aparentemente, imutáveis da época. Pois como ele próprio tão bem vaticinou, não é – nunca foi – fácil ser negro no Brasil.

Ser negro é difícil. A gente é colocado numa caixa, é moldado. A caixa é aberta e a gente sai (ou tiram a gente de lá de dentro). Aí, todo mundo pensa que a gente nasceu dentro da caixa. Todo mundo pensa que a gente foi feito junto com a caixa.

Respirar o vento poluído de fora da caixa não é fácil. É duro. Aí a gente descobre que tem pernas, braços, cabeça, cabelo duro, tudo preto, tudo negro. A gente arranca tudo do lugar e mistura no corpo. Merda! Todo mundo olha a gente e pensa que a gente é bicho. (CARDOSO, 1977)

Que o guerreiro Zulu Nguxi(2) e seus irmãos e irmãs de tantas lutas e batalhas vencidas por nós, continuem sendo inspiração as nossas resistências cotidianas e (sobre)vivências antirracistas pró negritude, em brasileiras terras míticas e hipócritas de democracia racial.

Ontem, hoje e sempre, Hamilton Cardoso vive!

Notas referenciais:

(1) Nesse sentido, seus escritos políticos e reflexões presentes ao jornal Versus (AFRO-LATINO-AMÉRICA, 2015) são documentos referenciais para melhor conhecer e aprofundar-se ao seu ideário antirracista pan-africanista e socialista.

(2) Nome – literalmente – de guerra, adotado por Hamilton Cardoso desde meados dos anos 1970 como forma de ressaltar a sua noção de pertença e reverência a sua africanidade, ao mesmo tempo em que assinala o seu alinhamento ao ideário e causa pan-africanista.

Referências bibliográficas:

AFRO-LATINO-AMÉRICA. Edição Fac-similar. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2014. In: https://fpabramo.org.br/publicacoes/wp-content/uploads/sites/5/2017/05/versus_afro_latino_america_2015.pdf, acessado em 07/04/2021.

CARDOSO, Hamilton Bernardes. É difícil ser negro. [1977] In: https://primeirosnegros.com/e-dificil-ser-negro/, acessado em 06/04/2021.

CARRANÇA, Flávio. HAMILTON CARDOSO E SEU TEMPO. [2014]. In: http://www.omenelick2ato.com/historia-e-memoria/hamilton-cardoso-e-seu-tempo

PEREIRA, Dulce Maria. Hamilton Cardoso [2009]. In: https://www.geledes.org.br/hamilton-cardoso/, acessado em 06/04/2021.

BARROS FILHO, Omar L. Um tributo a Zulu Nguxi (1953-1999). [2007] In: http://www.observatoriodaimprensa.com.br/educacao-e-cidadania/caderno-da-cidadania/um_tributo_a_zulu_nguxi_19531999/, acessado em 06/04/2021.

Christian Ribeiro, mestre em Urbanismo, professor de Sociologia da SEDUC-SP, doutorando em Sociologia pelo IFCH-UNICAMP, pesquisador das áreas de negritudes, movimentos negros e pensamento negro no Brasil.


Augusto Santos Silva: Será que as redes sociais estão substituindo os intelectuais?

Populismo e fake news ameaçam jornais e universidades, diz chanceler português
Augusto Santos Silva, especial para a Ilustríssima, Folha de S. Paulo

 

populismo e a desinformação constituem, hoje, ameaças muito sérias às nossas democracias. Seria um erro funesto ignorá-los.

Na esteira de Jan-Werner Müller, professor do Departamento de Política da Universidade de Princeton (EUA), caracterizo o populismo por sua contestação às elites, seu desprezo pelo pluralismo e sua representação moralista e emocional do povo.

Antielitista, o populismo combate as lideranças políticas e intelectuais, a quem acusa de distância e traição em relação aos anseios e sentimentos dos "de baixo". Antipluralista, rejeita a diversidade de interesses e opiniões, desqualifica os partidos e as instituições parlamentares e nega o direito à diferença e à dissidência. Moralista, arroga-se o estatuto de representante genuíno e único de um "verdadeiro povo" que ele próprio define, dele excluindo o que lhe pareça contrário e desqualificando-o como falso ou estrangeiro.

Por seu lado, designo como desinformação (fake news) a corrente que põe em causa três distinções fundamentais do jornalismo e em seu lugar cultiva o apelo populista.

A primeira distinção separa a informação da propaganda: esta é legítima, mas não se confunde com aquela, que faz depender o que diz do que apura com o máximo de rigor, objetividade e isenção possível.

A segunda é a distinção entre a notícia e o boato ou o rumor: a notícia não é o fato cru, muito menos o alarido imediato, mas sim o fato identificado, verificado e interpretado segundo regras cognitivas, éticas e profissionais próprias.

A terceira é a separação entre fatos e opiniões: embora a separação não seja estanque, porque as interpretações são situadas e influenciadas, ela constitui uma referência de que se aproximam todos os que entendem que os cidadãos necessitam, ao mesmo tempo, de informação atualizada e criteriosa e de opiniões livres e diversas.

A desinformação abomina estas distinções porque o seu propósito é militante, o seu fim é a inculcação de preconceitos e estereótipos e as suas armas são o recurso à psicologia de massas, a relação emocional com os destinatários e a ilusão de que essa relação não precisa de mediação nem de mediadores.

Por isso mesmo, a desinformação e o populismo alimentam-se um do outro, e ambos representam enorme perigo para a vida pública democrática. Une-os, em particular, o culto do chefe (por contraposição às elites cosmopolitas e abertas), o desamor pela esfera pública e, correlativamente, o desprezo pela racionalidade comunicacional que, como mostrou o filósofo Jürgen Habermas, se funda na argumentação pública entre as partes.

Seria outro erro fatal supor que essa alimentação recíproca entre populismos e fake news seja um perigo somente para os governos, os partidos políticos e as competições eleitorais. Dois outros pilares das democracias maduras se encontram também ameaçados, e a derrocada deles terá consequências devastadoras para a nossa cidadania. Refiro-me ao campo acadêmico (ou universidade, em sentido amplo) e ao jornalismo; ou seja, refiro-me aos intelectuais e à função intelectual.

Em primeiro lugar, o crescimento da influência do populismo e da prática da desinformação deslegitima a razão crítica, entendida como exercício analítico orientado para o conhecimento e dele esperando recursos para a ação reflexiva e o bem comum. Esse crescimento significa (ao mesmo tempo como causa e como efeito) o declínio da cultura científica (como exame crítico segundo protocolos de problematização, observação e prova) e do debate público (como troca de argumentos sujeitos a validações e falsificações cruzadas).

Em segundo lugar, desqualifica o esforço de mediação, a função mediadora e a prática profissional associada a ela.

Pouco haverá de mais contrário ao que pensam e fazem jornalistas, acadêmicos e outros intelectuais do que a ilusão populista do acesso instantâneo e da relação direta entre a pessoa comum e o conhecimento das coisas, como se fosse só necessário crer para que algo existisse, como se fosse possível tomar posição sem saber os dados do problema e, sobretudo, como se essas elites profissionais intrusas da adesão emocional imediata ao chefe fossem não só dispensáveis como também inimigas.

A mediação exige análise técnica, prática profissional e competências próprias, um trabalho que se submete a protocolos de método e deontologia, que se faz em instituições específicas e que prima pela comparação e confrontação de paradigmas e teorias rivais. O populismo e as fake news oferecem a alternativa do faça-você-mesmo-de-uma-só-maneira, em suposta ligação direta com o chefe.

AUTOCRÍTICA

O populismo não nasceu hoje. No sentido preciso que Jan-Werner Müller lhe atribui, e aqui perfilho, o populismo é "a sombra da democracia representativa".

Como sempre sucede com processos sociais complexos, o incremento da sua projeção pública não se deveu apenas à força própria; elementos disfuncionais realmente existentes nas democracias (como desvios oligárquicos, controles partidários ou défice de transparência perante os cidadãos) ajudaram a impulsionar as críticas populistas às elites alegadamente todo-poderosas ou aos partidos alegadamente indiferentes ao sentir do povo.

Coisa análoga aconteceu com os intelectuais: vários desempenhos negativos desse papel justificaram o ceticismo sobre seus méritos.

Não é possível, portanto, fazer a crítica do anti-intelectualismo populista sem identificar as responsabilidades próprias dos intelectuais.

homem teclando dentro de escada
Ilustração de capa da 'Ilustríssima' - Adams Carvalho

Primeiro, a culpa da arrogância, tão típica do "intelectual legislador" moderno, tipificado pelo filósofo Zygmunt Bauman (1925-2017). A ideia de que o intelectual encarnava uma autoridade superior, superlegítima, quase transcendente, cuja razão de ser estaria numa ciência ou numa cultura inacessível às pessoas comuns, teve, como todos sabemos, consequências catastróficas nos séculos 19 e 20.

Os intelectuais que aumentaram deliberadamente o seu próprio distanciamento em relação ao povo não podem queixar-se de que o povo lhes pague em dobro.

Segundo, a culpa da traição. O nome é forte, mas o tempo não está para palavras mansas. Quando, no século passado, muitos acadêmicos, escritores e jornalistas levaram o conceito de "intelectual orgânico" a um limite que nem o próprio filósofo Antonio Gramsci (1891-1937) havia imaginado, diluíram por completo a capacidade crítica inerente ao seu trabalho. Aceitando tornar-se porta-vozes de ideologias diante das quais abdicavam de qualquer escrutínio e juízo crítico, puseram em xeque o fundamento mesmo da sua condição.

Terceiro, a culpa do descumprimento ostensivo da deontologia profissional. O que tem sido particularmente evidente e grave no jornalismo, onde todos os dias se repetem infrações descaradas a regras básicas de ética e deontologia, como a separação entre fatos e opiniões, o respeito pela intimidade e a vida privada, a obrigação do contraditório ou o dever de prova. Mas também acontece, infelizmente, no próprio meio universitário, onde se sucedem os casos de desleixo ou desprezo pelas regras de método e a confusão entre substância científica e retórica comunicacional.

Quarto, a culpa da autossatisfação. Quando a norma vira ritual e se toma ainda Versalhes por modelo de representação, cultivando pomposamente o espírito de corpo e reclamando permanentemente honrarias e privilégios, quando os jornalistas se acham o centro das notícias e os acadêmicos só falam de uns para os outros, a distância com o restante da sociedade vai-se cavando e a ligação com a cidadania (essencial ao papel do intelectual) vai-se deslaçando.

Em quinto lugar, sintetizando todos, a violência do poder simbólico, tão bem analisada pelo sociólogo Pierre Bourdieu (1930-2002). Como todos os poderes, o poder das academias e, sobretudo, o da mídia, se não limitado nem escrutinado, gera exclusão e opressão. E chega sempre um dia em que os excluídos e os oprimidos se revoltam, mesmo que sob bandeiras erradas e lideranças perversas.

O CAMINHO

Portanto, não é possível fazer a crítica do anti-intelectualismo dos populistas sem fazer a (auto)crítica do intelectualismo dos intelectuais —quando são fechados, autocentrados, arrogantes, quando esquecem suas próprias normas profissionais ou as colocam convenientemente em suspenso.

Em poucas palavras: a primeira condição necessária para enfrentar o anti-intelectualismo é ser humilde na relação com outrem e exigente na relação consigo próprio e o seu ofício.

Há ainda uma segunda condição, igualmente indispensável. É não entrar em modo de negação diante da nova realidade social e comunicacional representada pelas redes sociais. Estas existem, são poderosas e nada indica que sua presença e influência vão regredir. É preciso fazer, portanto, um esforço sério de compreensão.

Comecemos pela comunicação. No princípio, ela era ponto a ponto, quer dizer, pessoa a pessoa, em contextos marcados pela copresença física e a interação direta. Depois, passa a se dar também através de meios de comunicação a distância (como a carta escrita).

A comunicação de massas, que terá seu apogeu no século 20, com a imprensa de distribuição maciça, o rádio e a televisão, multiplicará as audiências: um ponto emissor (o jornal, o canal de rádio ou de televisão) dirige-se a massas de leitores, ouvintes e espectadores. Comunicação ponto-multiponto, pois.

Claro que haveria muitas precisões e modulações a fazer neste esquema demasiado básico; no entanto, para o que aqui nos interessa, ele basta.

O que o modo de comunicação da nova mídia faz é repor formas de interação individualizada ou por grupo, agora em contextos não de copresença física, mas sim de comunicação digital que, no limite, dispensa qualquer outro conhecimento ou contato pessoal.

Depois, as funções de emissão e recepção tornam-se muito mais mescladas, porque a tecnologia permite a multiplicação das fontes de informação e agiliza a retroação de receptores sobre emissores e mediadores.

Finalmente, tudo isso ocorre numa enorme aceleração temporal, podendo ser praticamente instantâneo o acesso a dados e emoções sobre eventos ou pessoas localizadas nos confins do mundo.

As consequências no plano específico da informação e do conhecimento são óbvias. Maior variedade de fontes de informação, multiplicação dos canais de acesso, diversificação e concorrência recíproca das várias instâncias de legitimação, controle e interpretação da informação em circulação —e maior rapidez nesta circulação, em direções cruzadas.

Não são menos importantes os efeitos sobre os padrões de conduta social. De um lado, no que importa à entrada dos "leigos" no mercado de opinião, quer dizer, das pessoas comuns, que se podem reconhecer e ser reconhecidas como produtoras e difusoras de notícias e avaliações sobre a realidade circundante. Do outro, quanto à dependência muito menor dessas pessoas, quer no acesso, quer na interpretação, em relação aos mediadores institucionais ou profissionais, tais como, precisamente, jornais e academias, jornalistas e intelectuais.

No universo comunicacional atual, cada sujeito pode dizer e muitas vezes diz: "Eu sei mais depressa o que se passa, eu próprio posso dizer aos outros o que se passa, eu comento com os outros o que se passa, verifico eu próprio o sentido do que me dizem, eu falo sobre o que se passa, eu faço acontecer o que se passa, através da internet, da Wikipedia, do Facebook, do Twitter, do WhatsApp e de tantas outras aplicações e plataformas que me vão permitindo constituir a minha tribo, os meus pares, os emissores-mediadores-receptores do meu quadro de conhecimento, informação e comunicação; portanto, ouçam-me; e, se não me ouvirem, eu procurarei quem me ouça, neste mesmo quadro, fora das elites sociais e fora das instituições políticas que teimam em ignorar-me, ou tratar-me como se ainda estivéssemos na era da comunicação de ponto a multiponto".

Faço mais uma vez minhas as palavras de Jan-Werner  Müller: é um erro dramático recusar direitos de cidadania a este mundo e a estes sujeitos das redes sociais; é preciso compreendê-los e falar, não como eles, mas certamente com eles. Não vale a pena imaginar que eles são transitórios, ou vão ficando mais fracos. É realmente o contrário que se passa.

COMBATE

Que fazer, então?

Ter consciência lúcida da complexidade e das dificuldades da situação presente. É um fato que as redes sociais e a nova mídia estão aí, e para ficar. É um fato que elas ampliam o raio de ação e de socialização de cada sujeito social, e isso é coisa positiva.

É também um fato que, pela ilusão da ligação direta entre pessoa e mundo, e entre pessoas-no-mundo, assim como pela ilusão da soberania plena do homem e da mulher comum, aparentemente investidos de um poder de fornecer e recolher informação e formar opinião de que antes não dispunham, as redes sociais constituem um caldo de cultura muito favorável à germinação e à difusão das atitudes e mobilizações populistas, antielitistas e antipluralistas.

Finalmente, é ainda um fato que as redes sociais são especialmente vulneráveis às lógicas e práticas de manipulação por desinformação e tração moralista e emocional.

A questão é, pois: como podemos assumir a existência e a força das novas redes sociais e dos seus modos de comunicação e socialização e tirar vantagem da ampliação das capacidades e poderes das pessoas, sendo ao mesmo tempo eficazes no combate à manipulação que denega a cidadania e faz perigar a democracia, sem cair nos velhos erros da arrogância intelectual?

Na minha opinião, podemos e devemos fazer tudo isto. Se há um veneno que se está espalhando pelo tecido cívico e institucional —o veneno do populismo e da desinformação—, os antídotos a que devemos recorrer são os três seguintes.

Primeiro, defender e praticar uma razão hermenêutica e comunicacional (na linha de pensadores como Jürgen Habermas e Zygmunt Bauman). Quero dizer uma racionalidade crítica (diante do mundo e de si própria), compreensiva (respeitando e conhecendo os diferentes universos de pensamento) e fundada no diálogo e na argumentação pública. Esse é o melhor antídoto contra o moralismo e o emocionalismo. Esse é o melhor método de escrutínio e verificação dos fatos e dos projetos que circulam à nossa volta.

Segundo, defender e praticar a mediação. Contra a ilusão do imediato, da transparência e da plena evidência, isto é, contra a negação da complexidade das coisas e do trabalho necessário para definir os problemas e encontrar as respostas; e contra a sugestão tipicamente populista de que a "verdade" se daria a ver a si própria sem dificuldade nem questão, só não a atingindo os de condição estrangeira aos sentimentos e identidade do povo.

A informação, que permite dispor de elementos sobre o real, e o conhecimento, que permite interpretá-los, estão certamente ao alcance de todos. Mas no sentido em que todos podem aceder aos resultados e aos instrumentos de um processo intelectual específico, que requer regras, método e labor, que implica um esforço específico de análise e crítica, que requer mediação.

A qual —terceiro antídoto fundamental— não é apenas nem sobretudo tarefa de indivíduos, por mais talentosos que sejam, mas de instituições; ou seja, de indivíduos em instituições. Da imprensa à academia, da escola ao Parlamento, da comunidade local ao Estado, da organização não governamental à entidade pública, a nossa interpretação do real e a nossa ação sobre o real fazem-se em contexto e são tanto mais fortes quanto mais forte for o contexto institucional e os recursos coletivos que ele providencia.

O ser-no-mundo exige conhecer e contatar instituições diversas e plurais; exige respeitar e praticar os meios cognitivos que acrescentam rigor, profundidade e imparcialidade à informação de que todos necessitamos.

Numa palavra: não precisamos de menos, mas de mais intelectuais. De mais acadêmicos, mais professores, mais jornalistas. De mais cultura jornalística —como escrutínio crítico e organizado de fontes diferenciadas de informação— e de mais cultura científica —como forma específica e autodirigida de produzir e circular conhecimento.

Não vejo alternativa. Se queremos combater o populismo e a desinformação, não podemos querer ignorar, muito menos lançar anátema sobre as novas plataformas, tecnologias e modelos de informação e comunicação, e nomeadamente sobre as chamadas redes sociais. Devemos, isto sim, conhecê-las, compreendê-las e frequentá-las.

Não para subordinarmos à sua lógica hegemônica a função própria dos intelectuais no espaço público, mas para mobilizar todo o enorme poder de capacitação crítica que essa função transporta, para revigorar a cidadania e preservar a democracia.

Podem os intelectuais ser substituídos pelas redes sociais? Sem dúvida. Mas só se renunciarem à sua dupla responsabilidade: de conhecer e de agir.


Augusto Santos Silva, 61, doutor em sociologia e professor da Faculdade de Economia da Universidade do Porto, é ministro dos Negócios Estrangeiros de Portugal.

Adams Carvalho, 38, é ilustrador.


Marco Aurélio Nogueira: Estamos sem ponte e sem projeto

Houve uma época, na virada dos anos 1970 para os anos 1980, que a política brasileira era pura animação e esperança. Havia crise econômica, a inflação era alta, o desemprego estava presente, a ditadura ainda mostrava seus dentes, mas se fazia política com entusiasmo e confiança. A anistia era recente, a “abertura lenta, gradual e segura” dos militares era contrastada por um processo objetivo de democratização e em boa medida era ultrapassada por ele. Era preciso lutar e os espaços de atuação ainda eram restritos. Mas cada corrente, cada grupo, cada indivíduo buscava fazer sua parte e contribuir para que se avançasse.

Partidos até então clandestinos voltavam a se projetar. Jornais alternativos davam vazão ao que se buscava construir como opção política, mais à esquerda ou menos. O Opinião havia perecido pelo caminho (1977), assim como Nós, mulheres e Mulherio (entre outros), Movimento deixaria de circular em 81, mas surgiam novos, como a Voz da Unidade. Revistas, editoras e iniciativas culturais se multiplicavam. O PMDB, com suas virtudes e seus limites, funcionava como abrigo e referência, e ajudava a fazer com que a expectativa que germinava na sociedade civil chegasse ao Congresso. Eram anos de Ulysses Guimarães, Tancredo Neves, Franco Montoro, Mario Covas, Orestes Quércia, Alberto Goldman, Leonel Brizola e Fernando Henrique Cardoso, cada qual com seu estilo e sua tribo.

Naqueles anos, fixou-se uma estratégia de democratização, que se tornou vitoriosa em 1985, e ela possibilitou a constituição de um poderoso bloco de pessoas afinadas entre si, diferenças respeitadas. Políticos, ativistas, intelectuais, sindicalistas, militantes vários, que foram isolando os extremos, costurando alianças, diluindo vetos, erguendo pontes com dissidentes do regime e abrindo caminho para o carro da democracia, que progressivamente empolgava e anunciava novos tempos.

Penso nisso ao olhar para os dias atuais. Andamos para trás. Quanto desperdiçamos de talento e energia!
Hoje, os que estiveram unidos décadas atrás se desuniram. Muitos se tornaram inimigos entre si. Amizades foram desfeitas como se nada tivessem significado, biografias foram reescritas, focos se alteraram. Os campos políticos se desorganizaram e a dissonância cresceu sem limite. Houve quem se entregou cegamente ao Estado, quem cedeu ao mercado e quem se deixou levar por promessas messiânicas e lideranças carismáticas, largando pela estrada a aposta na força das instituições democráticas e na sociedade civil. A opção foi, majoritariamente, pelo acirramento da competição e da polarização, com o que gradativamente deixou de haver lugar para a cooperação.

O bloco que se consolidou na primeira metade dos anos 1980 foi-se inviabilizando aos poucos. Já no governo FHC ele apresentava fissuras e rachaduras, impulsionadas pela competição eleitoral, pela complexificação sociocultural trazida pela globalização e pela revolução tecnológica e, sobretudo, pela avidez com que se passou a disputar o poder. A luta contra a ditadura, que unia, foi substituída pela luta contra o neoliberalismo, que desunia. Perdeu-se o que havia de estratégia de democratização, substituída em parte pelo afã de um “novo desenvolvimento” e em parte pelo assistencialismo, tudo devidamente financiado a fundo perdido pelo Estado e sem conseguir suportes claros na sociedade civil. Em vez de estratégias, passou-se a ter táticas de conquista e conservação do poder político.

Ao longo dos anos 2000 essa inflexão se cristalizou.

Os políticos foram ficando sem referências, movendo-se tão somente pelo imediato. A intelectualidade democrática e progressista de antes — na qual se incluíam combativos liberais, socialistas e comunistas de diversas famílias, reformistas, nacionalistas, trabalhistas e esquerdistas – foi-se entregando ao culto da eficiência e da “produtividade”, trancando-se nos departamentos acadêmicos, nos negócios privados, nos nichos culturais. Continuou-se a produzir ciência e cultura, mas os produtos ficaram represados, deixaram de chegar aos destinatários. Esmaeceram os intelectuais públicos. O processo se completou com o empobrecimento do debate público democrático e a desqualificação das lideranças políticas, que foram se rebaixando e perdendo o eixo. O mundo da cultura e o mundo da política se afastaram.

Foi uma verdadeira obra de demolição. Empreendida não por ditadores, nem pelo “sistema”, mas pelos próprios protagonistas, que atiraram em si mesmos.

O resultado está aí para quem quiser ver. Tornamo-nos uma sociedade sem rumo, sem consciência de si, que não sabe o que esperar do dia de amanhã, enrolado em suas próprias contradições políticas, vagando de crise em crise. Na qual a indignação e a retórica maximalista ocupam o lugar reservado para a política.

Hoje, a esperança esfarelou. Um patrimônio político, ético, cultural, associativo e intelectual foi perdido, e será preciso em boa medida começar de novo, como escreveu Luiz Sérgio Henriques no belo artigo que publicou em O Estado de S. Paulo de 18/06/2017, cuja leitura me serviu de referência para escrever estas linhas.

Está lá, nesse texto vigoroso e certeiro, a constatação de que estamos todos “atônitos”, vendo “as agonias que se acumulam, as hipóteses de saída que surgem e se desfazem como bolhas de sabão, os políticos que de uma hora para outra abandonam a ação parlamentar e passam a integrar tramas judiciárias cujo fim não parece próximo”. No tumulto dos dias, a impressão que se firma é a de “um enredo mambembe em que os personagens procuram, em vão, uma direção e um sentido para o que fazem”. A sensação, observa, “é de que os fatos caminham por si sós, assumindo aos trancos e barrancos um protagonismo além da capacidade dos atores, cujos movimentos se esgotam na busca da sobrevivência pura e simples”.

É um artigo que faz pensar: “Sabemos que o que nos trouxe até aqui não é ponte que nos conduzirá ao futuro. O PMDB já não parece ter quadros ou ser portador de ideias-força para sustentar um governo de reformas. A classe política que o viu nascer e lhe insuflou alma não existe mais. O antagonismo entre PSDB e PT, que nas quatro últimas eleições presidenciais favoreceu amplamente este último, mas assinalou afinal o fracasso histórico do petismo, não poderá mais ser a principal linha de clivagem do sistema partidário, a não ser que nossa sociedade se aniquile nas malhas da repetição neurótica”.

Henriques conclui com um alerta: “Sabemos que o presente cenário de terra arrasada é o mais favorável para aventuras extremadas. Refazer os cacos e ordenar razoavelmente a arena pública requer o emprego da arte da competição e da cooperação, da qual nos temos dissociado. Arte a ser exercida sob o império da Carta de 1988, longe dos fundamentalismos de mercado ou das utopias autoritárias do esquerdismo”.

Outro dia, FHC falou que “é preciso dar uma trégua ao Brasil”. Ele está certo. Parar um pouco para pensar, guardar o ódio e o ressentimento acumulados, buscar um foco mais interessante do que esta briga entre partidos mortos-vivos. O país está efetivamente estressado. Na política, sobretudo. Mas a vida não para e os humanos conseguem sempre sair de situações difíceis. Basta que consigam definir quais os seus grandes problemas e tenham tempo e determinação para modelar soluções e construir saídas. Com um sentimento de urgência, mas sem correria.

É muito, é custoso, é difícil, mas é o que temos.

 

Fonte: http://politica.estadao.com.br/blogs/marco-aurelio-nogueira/estamos-sem-pontes-e-sem-projeto/

 


Luiz Sérgio Henriques: Partidos, intelectuais, democracia

Na vigência do regime democrático, que facilita e promove a vida intelectual, não soubemos construir figuras de referência

Inimaginável qualquer nostalgia dos tempos duros do regime autoritário, mas é fato que, então, além de sonhar com a volta do irmão de Henfil, contávamos com referências seguríssimas que eram a garantia de uma transição sábia e prudente rumo à vida democrática. De fato, reconfortava ter ao alcance da vista personalidades laicas ou religiosas – um Barbosa Lima Sobrinho ou um dom Paulo Evaristo Arns – cuja presença, no mínimo, indicava o roteiro básico e assinalava o reencontro do Brasil consigo mesmo.

Não haveria mais exilados ou clandestinos, presos ou perseguidos políticos, fato raro em nossa História. Prestes e os comunistas, Brizola e os trabalhistas, para não falar do novo mundo sindical que se cristalizaria em torno de Lula e do PT, se fariam presentes nas ruas e nas instituições, ampliando estas últimas e dando-lhes plena legitimidade. Tempo, ainda, de elaborações sofisticadas, que, mesmo pagando o inevitável tributo às ilusões do momento, perguntavam-se, e respondiam positivamente, sobre as possibilidades da democracia em sociedades marcadas por imensas desigualdades. Ela seria – como se chegou a dizer numa fórmula de rara felicidade, trazida dos comunistas italianos – um “valor universal”, meio e fim dos processos de democratização e modernização.

No coração das trevas, as eleições de 1974 registraram o surgimento de uma elite dirigente em potencial, que, de fato, iria assegurar o governo do País dali a poucos anos. Políticos de gerações anteriores, como Ulysses, Tancredo e Montoro, misturavam-se a “jovens” de pouco mais de 30 ou 40 anos, como Itamar Franco, Pedro Simon e Marcos Freire. E nesse âmbito mais diretamente ligado à política profissional, o lugar privilegiado de gestação daquela promissora elite era, nem mais, nem menos, o velho MDB, o partido da “oposição consentida”.

Deve-se admitir que o MDB, um sucesso de público, como o comprovariam as sucessivas vitórias eleitorais, jamais teve fortuna crítica à altura. Ser “consentido” era já um estigma forte: quem estava no partido lutava só pelas “liberdades burguesas”, declinando de responsabilidades revolucionárias, tal como ensinavam a lição chinesa ou a cubana. Os fantasmas do voto nulo e da autodissolução o rondaram em conjunturas críticas. E seu sentido mais essencial – ter sido, desde sempre, o lugar de convergência de oposicionistas da primeira hora e dissidentes do regime, de liberais, comunistas do PCB e democratas em geral – talvez não haja sido apreendido pelos que viriam depois, inclusive e paradoxalmente as próprias figuras da esquerda nova.

Antes de mais nada, o PT. Construído ao longo de décadas em torno de um mito operário de “base”, o partido mostrou-se substancialmente alheio às tratativas da transição, como se sua mera existência ressignificasse toda a História e, por exemplo, o dispensasse de votar em Tancredo ou permitisse infantilidades antes de assinar a Carta de 1988. Trouxe ainda, como pecado de origem, uma cultura política que, enfatizando um “espírito de cisão” em relação à frente emedebista, excluía e separava, subordinava e impunha um mando. A afirmação “classista” inicial, que o distinguiria de “todo o resto burguês”, implicava uma das modulações clássicas do discurso populista, fundamentado na afirmação exasperada do “nós contra eles”. Uma lógica binária que marcaria as relações políticas, e não só elas, especialmente nos anos de poder incontrastado.

Houve algo de novo nas alianças partidárias a partir de 2003. Se observarmos sem indulgência, ocorreu menos uma homogeneização das práticas do partido dominante às da “velha política” do que a decapitação sistemática dos aliados do petismo e a introdução sistemática de modos agressivos de cooptação e subordinação: inicialmente, as legendas menores e, depois, o próprio PMDB. Assim, na hora de contribuir para renovar as elites, o petismo comportou-se de forma irresponsável. E se a capacidade de renovar ideias e práticas for o critério para avaliar uma força política, não há dúvida de que hoje estamos diante de um fracasso histórico de custosa reparação.

Verdade que ele teve diante de si partidos cujas direções estavam envelhecidas ou que, no caso do arqui-inimigo tucano, se dividiram entre lideranças inconciliáveis. Tais grupos, mesmo com a implantação “capilar” no território típica do PMDB ou com a orientação social-democrata (ou social-liberal) do PSDB, se comportaram de modo tradicionalíssimo e se desligaram progressivamente da vida associativa, dos centros de cultura e dos locais de trabalho. Têm votos e ganham eleições, elegem bancadas, governadores e até presidentes, mas são exércitos dispersos, sem capitães ou bandeiras capazes de gerar uma certa visão dos problemas razoavelmente difundida na sociedade.

Por isso, como diz José de Souza Martins, incorremos massivamente num tempo agônico de partidarização sem politização. Na vigência do regime democrático, que facilita e promove a vida intelectual, não soubemos construir figuras de referência. Parece não falarmos a linguagem geral que consente a divergência e a pluralidade. Perdemos – quem sabe, momentaneamente – a ideia de que deve existir, por força das coisas, um terreno comum entre os contendores, algo, em suma, que permite explicitar radicalmente as divergências e manter como âncoras valores compartilhados e princípios de lealdade mútua.

Quando partidos e classes quase se confundiam e os antagonismos respondiam a uma lógica bruta, ainda assim houve quem tivesse a consciência de que a exacerbação irracional do conflito só pode levar à ruína generalizada. Mal começou, entre nós, a pesquisa sobre as razões por que o petismo, como “ideologia” e como prática, contribuiu tão pouco para o refinamento dessa consciência, a qual, porém, é condição inescapável para dirigir a mudança social contemporânea.

*Luiz Sérgio Henriques:  Tradutor e ensaísta, é um dos organizadores das 'Obras' de Gramsci no Brasil


Fonte: http://opiniao.estadao.com.br/noticias/geral,partidos-intelectuais-democracia,10000095268