insegurança
Revista online | Fome cai na boca de presidenciáveis e grita na barriga dos mais pobres
“Aqui em casa a mistura só é arroz e farinha. De manhã, meus meninos comem pão seco com água. Não tenho dinheiro para comprar leite”. O desabafo é da dona de casa Graziela dos Santos Pereira, de 27 anos, mãe solo de quatro meninos, de 11, 10, 8 e 6 anos, respectivamente. “Não consigo tomar nem remédio, porque dói com a barriga vazia”.
Moradora do Sol Nascente, favela no Distrito Federal e uma das maiores no Brasil, Graziela vive de “fazer bico de diarista”, como ela mesma conta, mas apenas quando consegue deixar as crianças aos cuidados de algum parente ou vizinho. “Não sobra para comer. A gente vive da compaixão das pessoas”, afirma. Ela se mudou do Maranhão para o DF, no ano passado, em busca de melhores condições de vida.
Sentada em uma cadeira de madeira de um barraco de lona, onde mora com os filhos, ela diz receber R$ 600 de auxílio do governo federal. Ela diz que “quebrar o jejum com pão de manhã”, “engolir a mistura no almoço” e repetir “arroz com farinha” na janta tem sido a realidade da família dela. “De vez em quando, a gente recebe ovo. Aqui não tem jeito de nem de guardar carne porque falta geladeira”, diz.
O retrato da miséria se estende a outras famílias brasileiras. Estudo da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar (Penssan), divulgado neste mês, mostra que três em cada dez famílias enfrentam insegurança alimentar moderada ou grave no país.
No total, em todo o país, 33 milhões de brasileiros sofrem com algum nível de insegurança alimentar, que tem três gradações: leve, moderada e grave. Famílias em insegurança alimentar grave passam fome, assunto regular nos discursos dos candidatos à Presidência da República e que mostra a gravidade do cenário brasileiro.
Negacionismo
No Brasil, a fome também é um dos assuntos que mais fazem os adversários cobrar explicações do presidente Jair Bolsonaro nos debates. Ele, porém, vai na linha do ministro da Economia, Paulo Guedes, que diz ser impossível ter 33 milhões de brasileiros passando fome no país.
Além disso, no mês de agosto, Bolsonaro vetou o reajuste de verbas para a merenda escolar aprovado pelo Congresso. Por isso, hoje o repasse para a compra de alimento para cada estudante do ensino fundamental e médio é de apenas R$ 0,36.
Se levar em conta a insegurança leve, de acordo com a pesquisa, o problema fica muito maior. No país, existem 125,2 milhões de pessoas com preocupação sobre a disponibilidade de alimentos, com algum grau de indisponibilidade deles ou passando fome. Equivale a seis em cada dez famílias brasileiras.
De acordo com o levantamento, as populações das regiões Norte e Nordeste são as que mais sofrem, em termos proporcionais, com a insegurança alimentar grave. No Maranhão, estado onde nasceu Graziela, por exemplo, quase dois terços (63,3%) das residências com crianças até dez anos apresentam insegurança alimentar moderada ou grave.
Em seguida, segundo a pesquisa, aparecem Amapá (60,1%), Alagoas (59,9%), Sergipe (54,6%), Amazonas (54,4%), Pará (53,4%), Ceará (51,6%) e Roraima (49,3%). As famílias com renda inferior a meio salário-mínimo por pessoa estão mais sujeitas à insegurança alimentar moderada e grave.
"Os resultados refletem as desigualdades regionais e evidenciam diferenças substanciais entre os estados de cada macrorregião do país. Não são espaços homogêneos do ponto de vista das condições de vida. Há diferenças socioeconômicas nas regiões que pedem políticas públicas direcionadas para cada estado que as compõem", diz Renato Maluf, coordenador da Rede Penssan.
Grave retrocesso
O ano de 2022 será lembrado como o marco de um grave retrocesso da segurança alimentar no Brasil com uma quantidade de pessoas passando fome ainda maior do que o registrado 30 anos atrás. O governo, porém, nega.
Se hoje 33 milhões de brasileiros passam fome no país, em 1993, eram 32 milhões de pessoas nessa situação, de acordo com levantamento semelhante do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). A população brasileira era 27% menor que a de hoje.
O governo alega que o consumo dos mais pobres está garantido com os programas de transferência de renda cujos valores aumentaram no último ano. O negacionismo do governo do presidente Jair Bolsonaro sobre a fome se comprova, inclusive, na falta de programa efetivo de combate ao problema ou de orientação da população relacionada ao consumo adequado de alimentos.
A Organização das Nações Unidas (ONU) orienta que reduzir desperdício de alimentos é a saída para combater a fome e a insegurança alimentar. O órgão estima que 17% de toda a produção global de comida é desperdiçada, a maior parte dentro das casas. Locais que servem comida, como restaurantes, totalizam 5% desse desperdício, e os varejos de alimentar, 2%.
O problema, que atinge principalmente quem vive em favelas ou outras áreas mais pobres do país, tem chamado atenção de líderes mundiais, que vem pedindo esforços contra a crescente insegurança alimentar, agravada pela convergência de crises, pela invasão russa e falta de fertilizantes.
Em declaração conjunta, publicada ao final de uma reunião ministerial à margem da Assembleia Geral da ONU, em Nova York, neste mês, Estados Unidos, União Europeia, União Africana, Colômbia, Nigéria e Indonésia afirmaram seu "compromisso de agir de forma urgente, global e concertada para responder às extraordinárias necessidades alimentares de centenas de milhões de pessoas em todo o mundo".
Graziela, que olhava seus filhos brincarem no terreno de chão batido onde fica seu barracão, diz não ter perspectiva de melhoria. “Está todo mundo falando disso agora como se estivesse preocupado porque é época de eleição, mas viver assim já é algo banalizado. Todo dia a gente ouve o estômago ‘roncar’ de fome em algum momento”, afirma.
“Fome tem solução”
O diretor do Centro de Excelência contra a Fome do Programa Mundial de Alimentos no Brasil, Daniel Balaban, diz que o principal desafio no combate à fome no mundo é mobilizar países a criarem medidas que os façam parar de pedir ajuda externa. “Para isso, eles têm que investir em políticas públicas”, afirmou.
O diretor ressalta que a continuidade de políticas públicas possibilitará à população acesso a direitos básicos, como alimentação nutritiva e saudável. “A fome tem solução, e, para isso, temos que ter vontade política de resolver o problema. Sem esse investimento contínuo, há risco de os países continuarem a enfrentar cenários de insegurança alimentar e desigualdade social”, alertou.
Confira, a seguir, galeria de fotos:
Segundo Balaban, boas práticas de combate à fome devem ser ancoradas em quatro pilares principais: ajuda humanitária, investimento em educação, políticas de auxílio a pequenos produtores rurais e investimento em ciência e tecnologia. A orientação serve, sobretudo, para países que tiveram a situação da fome agravada pela pandemia da covid-19.
Assistente social e mestre em políticas públicas pela Universidade Federal do Maranhão (UFMA), Andreia Lauande ressaltou que a fome não é um problema que surgiu com a pandemia do coronavírus. “Infelizmente, não é só a pandemia responsável por esse processo. Nós passamos por uma crise extremamente complexa que se acentuou com a pandemia”, disse ela.
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Carolina Ricardo e Beatriz Graeff: Supremo precisa decidir sobre as armas
Enquanto ações aguardam julgamento, essa boiada também está passando
Carolina Ricardo e Beatriz Graeff / Folha de S. Paulo
Em consonância com sua agenda eleitoral e em diálogo direto com o grupo de apoiadores para quem o acesso às armas é visto como direito absoluto à liberdade de se armar, o governo Bolsonaro vem alterando normas que, entre outros impactos, aumentam o número de equipamentos que podem ser adquiridos por cada cidadão, autorizam a obtenção de exemplares que antes eram de uso exclusivo das forças de segurança e possibilitam a fabricação de munição sem nenhum tipo de controle por parte dos órgãos competentes.
Como resultado, desde 2019 verifica-se um crescimento exponencial no número de armas em circulação, tendo o ano de 2020 registrado um aumento de 65% —ou seja, mais de um milhão de novas armas nas mãos de civis ante 2018 e sem nenhuma ação correspondente para fortalecer os mecanismos de fiscalização e controle desse arsenal.
Em ações judiciais movidas contra os decretos de flexibilização do acesso a armas, os ministros Rosa Weber e Edson Fachin, do Supremo Tribunal Federal, já registraram seus votos apontando a inconstitucionalidade dessas medidas, que violam os princípios constitucionais do direito à vida e à segurança pública e usurpam a competência exclusiva do Congresso Nacional ao afrontar mecanismos de controle definidos em lei.
Em decisão liminar, a ministra Rosa Weber suspendeu a eficácia de alguns dispositivos dos decretos editados na véspera do Carnaval de 2021. Embora a decisão tenha sustado provisoriamente parte das medidas de desmantelamento da política de controle de armas, muitos outros dispositivos permanecem vigentes, desde os decretos de 2019. A estratégia de fracionamento das normas adotada pelo governo, editando alterações sobre alterações, promove um ambiente de alta insegurança jurídica, deixando até mesmo os operadores que lidam cotidianamente com esse regramento em dúvida quanto ao que está ou não vigente.
É urgente que o ministro Alexandre de Moraes dê andamento às ações diretas de inconstitucionalidade que tramitam no STF, dando a oportunidade para que os outros ministros se manifestem sobre o desmonte da política de controle de armas. Enquanto as ações aguardam julgamento, a boiada das armas, infelizmente, segue passando. A estimativa é de que a cada dia cerca de 378 novas armas sejam registradas no sistema da Polícia Federal. Desde o pedido de vista das ações, mais de 45 mil novas armas já entraram em circulação.
Além disso, as mortes violentas voltaram a subir em 2020, tendo aumentado para 78% a proporção das cometidas com uso de armas de fogo. Paralelamente, arroubos antidemocráticos continuam se fortalecendo com o ingrediente das armas de fogo, e o crime organizado segue abastecendo seus arsenais.
O julgamento definitivo desse conjunto de ações é fundamental para barrar a explosão na circulação de armas. E, mais do que isso, a manifestação do Supremo a respeito dos decretos de descontrole das armas, à luz do direito à vida e à segurança pública, representará também um importante marco de proteção ao Estatuto do Desarmamento contra os constantes ataques que ameaçam os mecanismos de controle responsável de armas de fogo que ele consolida.
*Carolina Ricardo, advogada e socióloga, é diretora executiva do Instituto Sou da Paz
**Beatriz Graeff é antropóloga e pesquisadora na área de segurança pública e sistema de Justiça criminal
Fonte: Folha de S. Paulo
https://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2021/08/supremo-precisa-decidir-sobre-as-armas.shtml
Raul Jungmann: Por quem os sinos dobram
Hoje, no Rio de Janeiro, as milícias e o tráfico dominam 57% do território da cidade e 33% da população
“As polícias do Rio de Janeiro são hoje elementos de contaminação de todas as polícias brasileiras. Pela alta visibilidade e pelo ethos guerreiro, fixam um paradigma cultural de instituições totais de enfrentamento bélico, horrivelmente desconstitutiva dos mandamentos constitucionais atribuídos aos policiais.” (Ricardo Balestreri).
Pesquisas e estudos constatam que o método de combate das polícias cariocas ao crime organizado, como na comunidade do Jacarezinho, não leva à redução da violência, do tráfico de drogas, e nem das mortes violentas.
Mas produz efeitos colaterais, como a morte de inocentes, e favorecem disputas de uma facção sobre outra no domínio do tráfico e controle de uma comunidade. Ainda assim, boa parte da população as apoia. Qual a razão?
Creio que são três as principais. Em primeiro lugar, a violência endêmica, potencialmente universal, que a todos torna inseguros e potenciais vítimas. Em segundo, a incapacidade do Estado, via segurança pública, de assegurar a vida e o patrimônio da população, os mais pobres à frente, abrindo espaço para organizações criminosas o substituírem nesse papel. Por último, a incapacidade, lentidão e/ou parcialidade atribuída ao sistema de justiça em punir culpados e dirimir conflitos.
No conjunto, estas causas operam uma regressão em princípios e valores civilizatórios e humanitários da sociedade, que despe os que são estigmatizados como bandidos, criminosos ou suspeitos – usualmente o negro, o favelado, e o pobre -, da sua integral humanidade.
Instala-se uma lógica da vingança, do olho por olho, dente por dente. Hoje, o Brasil é o país que mais lincha no mundo, segundo o sociólogo José de Souza Martins. Essa lógica, do combate e guerra contra o crime, nos tem levado no sentido contrário de uma maior segurança.
Hoje, no Rio de Janeiro, as milícias e o tráfico dominam 57% do território da cidade e 33% da população, que vivem sem direitos e garantias constitucionais.
Milícias, que continuam avançando, em que pese os recorrentes massacres de “suspeitos” ou bandidos; milícias, que possuem uma porta giratória pela qual passa parte dos efetivos policiais e vice-versa.
Portanto, quando um novo combate se travar e mortos às dezenas, inclusos inocentes e/ou crianças, forem recolhidos nas ruas das favelas, não pergunte por quem os sinos dobram, eles dobram por você e por todos nós.
*Raul Jungmann foi Ministro da Defesa e Ministro Extraordinário da Segurança Pública do governo Michel Temer.
Fonte:
Capital Político
https://capitalpolitico.com/por-quem-os-sinos-dobram/
Raul Jungmann: Por quem os sinos dobram
“As polícias do Rio de Janeiro são hoje elementos de contaminação de todas as polícias brasileiras. Pela alta visibilidade e pelo ethos guerreiro, fixam um paradigma cultural de instituições totais de enfrentamento bélico, horrivelmente desconstitutiva dos mandamentos constitucionais atribuídos aos policiais.” (Ricardo Balestreri).
Pesquisas e estudos constatam que o método de combate das polícias cariocas ao crime organizado, como na comunidade do Jacarezinho, não leva à redução da violência, do tráfico de drogas, e nem das mortes violentas.
Mas produz efeitos colaterais, como a morte de inocentes, e favorecem disputas de uma facção sobre outra no domínio do tráfico e controle de uma comunidade. Ainda assim, boa parte da população as apoia. Qual a razão?
Creio que são três as principais. Em primeiro lugar, a violência endêmica, potencialmente universal, que a todos torna inseguros e potenciais vítimas. Em segundo, a incapacidade do Estado, via segurança pública, de assegurar a vida e o patrimônio da população, os mais pobres à frente, abrindo espaço para organizações criminosas o substituírem nesse papel. Por último, a incapacidade, lentidão e/ou parcialidade atribuída ao sistema de justiça em punir culpados e dirimir conflitos.
No conjunto, estas causas operam uma regressão em princípios e valores civilizatórios e humanitários da sociedade, que despe os que são estigmatizados como bandidos, criminosos ou suspeitos – usualmente o negro, o favelado, e o pobre -, da sua integral humanidade.
Instala-se uma lógica da vingança, do olho por olho, dente por dente. Hoje, o Brasil é o país que mais lincha no mundo, segundo o sociólogo José de Souza Martins. Essa lógica, do combate e guerra contra o crime, nos tem levado no sentido contrário de uma maior segurança.
Hoje, no Rio de Janeiro, as milícias e o tráfico dominam 57% do território da cidade e 33% da população, que vivem sem direitos e garantias constitucionais.
Milícias, que continuam avançando, em que pese os recorrentes massacres de “suspeitos” ou bandidos; milícias, que possuem uma porta giratória pela qual passa parte dos efetivos policiais e vice-versa.
Portanto, quando um novo combate se travar e mortos às dezenas, inclusos inocentes e/ou crianças, forem recolhidos nas ruas das favelas, não pergunte por quem os sinos dobram, eles dobram por você e por todos nós.
*Raul Jungmann foi Ministro da Defesa e Ministro Extraordinário da Segurança Pública do governo Michel Temer.
Fonte:
Capital Político
https://capitalpolitico.com/por-quem-os-sinos-dobram/
El País: Decretos para aumento de venda de armas elevam insegurança com Bolsonaro. Tema pode chegar ao STF
Presidente assinou medidas na sexta, 12, para facilitar comércio de armas e afrouxar fiscalização. Entidades e lideranças políticas reagem para o que já é considerado um risco democrático, especialmente depois da invasão do Capitólio, que não foi condenada pelo mandatário brasileiro
Carla Jiménez e Regiane Oliveira, El País
O presidente Jair Bolsonaro aproveitou a sexta-feira, véspera de um quase Carnaval no Brasil, para assinar quatro decretos que facilitam ainda mais a venda de armas e reduzem a fiscalização pelos órgãos competentes. É o trigésimo ato normativo publicado nos últimos dois anos por Bolsonaro, dentro de uma política que ajudou a aumentar as armas em circulação no Brasil. O anúncio, feito pelo twitter do mandatário, gerou reações imediatas entre entidades ligadas a direitos humanos e lideranças políticas. “O populismo armamentista de Bolsonaro, além de agravar o problema [de violência], é uma cortina de fumaça para suas aspirações golpistas”, escreveu Marcelo Freixo, deputado do PSOL no Rio. Freixo anunciou um projeto para anular os últimos decretos de Bolsonaro e protocolou uma Ação Direta de Inconstitucionalidade no Supremo Tribunal. “O presidente não pode legislar sobre armas via decreto”, reclamou o deputado.
MAIS INFORMAÇÕES
Um levantamento do jornal O Globo mostra que só a posse de armas nas mãos de civis deu um salto de 65% no país desde dezembro de 2018, pouco antes de Bolsonaro assumir o poder no dia 1 de janeiro. No final de janeiro eram mais de 1,1 milhão de armas nas mãos de cidadãos, número que deve subir facilmente caso os decretos do presidente não forem derrubados na Justiça, como esperam os especialistas em segurança pública. Dentre as normas previstas pelo Governo, estão o aumento de limite de compra de armas para cidadão, que passam de 4 para 6 armas. O número pode chegar a 8 para membros da magistratura, do Ministério Público e os integrantes de polícia e agentes e guardas prisionais.
Outras medidas preveem a redução de controle e rastreamento de armas e munições, um risco que coloca os armamentos mais próximos do crime organizado. Há facilidade para que atiradores e caçadores, por exemplo, comprem entre 30 e 60 armas, sem necessidade de autorização expressa do Exército. Projeteis e máquinas para recarga de munições e carregadores também deixam de ser controlados pelo Exército. Facilitação de acesso armas mais restritas, que interessam às milícias. “O aumento da venda de armas de maior potencial circulando inevitavelmente acaba inevitavelmente abastecendo o crime”, diz Carolina Ricardo, diretora do Instituto Sou da Paz. “Uma arma de um acervo de um atirador ou caçador pode ser roubada ou desviada e abastecer o mercado ilegal”, alerta ela, lembrando que a inexistência de rastreamento dificulta a investigação de crimes. No ano passado, uma portaria do Exército revogou regras sobre rastreamento de armas e munições, dispositivos de segurança e marcação de armas de fogo e munição no Brasil.
A política ostensiva de liberação de armas do Governo Bolsonaro tem gerado insegurança na sociedade, especialmente depois da invasão do Capitólio nos Estados Unidos, no dia 6 de janeiro. O presidente ultradireitista não condenou até hoje a invasão dos eleitores de Trump que não aceitaram o resultado da eleição. Bolsonaro também não perde uma oportunidade para reforçar o discurso de desconfiança sobre as urnas eletrônicas – sem evidências para tal — e de dizer que quer ver a população armada, antecipando uma crise que ele pode abrir no ano que vem, caso não seja reeleito nas presidenciais.
Em nota, o Instituto Igarapé, think tank que estuda a segurança pública, afirmou que o pacote de decretos “não só tem efeitos letais para o país que mais mata com armas de fogo no mundo, como reforça possíveis ameaças à democracia e à segurança da coletividade”. Segundo Michele dos Ramos, assessora especial Igarapé, “há muitas perguntas a serem respondidas pelas autoridades federais sobre as motivações políticas do descontrole de armas no país, uma vez que não há qualquer justificativa ou conhecimento técnico que embase as perigosas mudanças”.
Após divulgar a nota técnica, Ilona Szabó, cofundadora e presidente do Instituto Igarapé, foi bloqueada pelo presidente no Twitter. “Impressionante ver como a máquina do ódio é eficiente e está aparelhada para bloquear qualquer contestação à narrativa oficial. Isso só acontece em ditaduras. Já vivemos tempos de exceção”, disse.
O vice-presidente da Câmara dos Deputados Marcelo Ramos (PL-AM), aliado de Bolsonaro, criticou as novas medidas. “Mais grave que o conteúdo dos decretos relacionados a armas editados pelo presidente é o fato de ele exacerbar do seu poder regulamentar e adentrar numa competência que é exclusiva do Poder Legislativo. O presidente pode discutir sua pretensão, mas encaminhando PL a Câmara”, escreveu no Twitter.
Bolsonaro ignorou as críticas e ironizou que “o povo está vibrando” com as novas medidas. Ele publicou um vídeo em que comenta os decretos com um pequeno grupo de pessoas no sul do país. O deputado federal Rodrigo Maia (DEM-RJ), ex-presidente da Câmara, reagiu “Bolsonaro considera a parte pelo todo. Acha que seu mundo extremo representa o país. O povo não está vibrando. O povo não quer armas. A população anseia pelas vacinas”.
A crise de saúde pública da pandemia do coronavírus parece ter criado um cenário propício para o desmonte da política pública de combate às armas, uma promessa eleitoral que Bolsonaro tem se empenhado em cumprir com sua política de decretos pró-armamentista, que já conseguiu desconfigurar o Estatuto do Desarmamento, conjunto de leis voltadas ao controle de armas e responsável por salvar mais de 160.000 vidas, segundo estudos.
O Governo chegou até mesmo a zerar a alíquota de importação de armas com argumento de que isso iria estimular o comércio. O caso foi parar no Supremo, após um pedido do PSB, e o ministro Edson Fachin suspendeu a decisão. Ele considerou que, embora o presidente da República tenha prerrogativa para conceder isenção tributária, a opção de fomento à aquisição de armas por meio de incentivos fiscais colide com o direito à vida e à segurança, que são garantidos constitucionalmente.
A política armamentista de Bolsonaro vai na contramão da política pública que será adotada nos Estados Unidos no Governo de Joe Biden. O presidente norte-americano pediu neste domingo (14) que o Congresso aja “imediatamente” para limitar a circulação de armas de fogo em um comunicado que marca os três anos do ataque a escola de ensino médio em Parkland, Flórida, onde 14 estudantes e três professores morreram. “Este Governo não vai esperar pelo próximo tiroteio em massa para ouvir os apelos à ação”, afirmou Biden no comunicado.
Raul Jungmann: O inferno da (in) segurança
A morte volta a triunfar sobre a vida e o seu sucesso se mede pelo número de óbitos, segundo o Anuário da Segurança Pública de 2020. Isto é, as mortes violentas, que vinham caindo desde 2018, voltaram a crescer no primeiro semestre do ano, 7.1%.
No mesmo dia em que o anuário registrava a estatística mórbida, a pesquisa “Mapa dos Grupos Armados do Rio” constatava que 57% do território da cidade do Rio de Janeiro e quase um terço da sua população (dois milhões de habitantes), vive sob o domínio da milícia. Ainda nesse dia aziago, a Polícia Federal informava que os registros de armas cresceram 120% em 2020.
Das trevas do nosso sistema prisional emergia a informação de que 75% dos 862 mil apenados, dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) são negros e pobres. Eis, num único dia, a síntese do inferno da (in)segurança no Brasil e da ausência de uma política nacional pública de segurança sob o atual governo.
A pandemia veio agravar o desemprego crescente, na casa dos 14%, sem contar outros 10 milhões que deixaram de procurar trabalho – talvez pendurados no auxílio emergencial de difícil continuidade, elevando as tensões sociais.
Diante disso, o que faz o governo? Afrouxa os controles sobre a venda de armas, já responsáveis por 77% das mortes violentas. O Susp – Sistema Único de Segurança Pública – e a Política Nacional de Segurança, heranças do extinto Ministério da Segurança, foi enterrado sem cerimônia; a letalidade policial aumentou 6% e a morte de policiais 16.6% no semestre. Enquanto o feminicídio subiu 7.1%, no mesmo período.
Em paralelo, o orçamento do governo federal para a segurança, equivalente a 11% % do gasto total, caiu 3.8%%! A política de combate às drogas, reconhecidamente falida, segue levando milhares de jovens negros, pobres, de baixa renda e precária educação, para as garras das 70 facções de base e origem prisional. Estas, dominam quase 80% das 1.500 unidades prisionais do país e de lá de dentro controlam o tráfico e a violência nas ruas.
Esses jovens, os 11 milhões de “sem-sem” – sem escola e sem trabalho -, não são alcançados por nenhum programa nacional que reduza as suas vulnerabilidades ao chamado do crime, o que os faz 55% da terceira maior população prisional do mundo. Pior: cresce 8% ao ano, num sistema prisional superlotado, com o dobro de presos para as vagas disponíveis.
Conclusão: sem uma política nacional de segurança, que contemple a reforma do sistema prisional, um programa nacional para a juventude vulnerável, nova política de drogas e a reforma das nossas polícias, dias piores virão.
*Raul Jungmann - ex-deputado federal, foi Ministro do Desenvolvimento Agrário e Ministro Extraordinário de Política Fundiária do governo FHC, Ministro da Defesa e Ministro Extraordinário da Segurança Pública do governo Michel Temer.
El País: Registro de novas armas no Brasil explode em 2020 em meio à alta de homicídios
Alta na emissão de documentos pela PF para posse de novos armamentos foi de 205% no primeiro semestre, reflexo das novas regras sob Bolsonaro. No DF, aumento foi de mais de 1.400%
Gil Alessi, El País
O número de registros de novas armas de fogo concedidos pela Polícia Federal explodiu em todo o país. A chamada posse de arma é um documento emitido pelas autoridades e permite que, caso cumpram alguns requisitos legais, as pessoas possam ter em suas casas pistolas e revólveres. Quando comparado o primeiro semestre de 2020 com o mesmo período do ano passado, houve um aumento de 205% no total de novos registros emitidos pela PF: foram 24.236 em 2019 ante 73.996 agora. Este crescimento se deve, de acordo com pesquisadores, às portarias e decretos assinados pelo presidente Jair Bolsonaro, que tinha como uma de suas principais promessas de campanha flexibilizar o acesso às armas de fogo. Na prática o mandatário desfigurou o Estatuto do Desarmamento, conjunto de leis voltadas ao controle de armas e responsável por salvar mais de 160.000 vidas, segundo estudos.
Junto com o aumento no número de registros, também ocorreu um aumento na violência letal. Os números preocupam: de acordo com levantamento do Monitor da Violência, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública em parceria com o Núcleo de Estudos da Violência da USP e com o portal G1, houve um aumento de 7% nos homicídios no país nos cinco primeiros meses do ano, puxada principalmente pelos Estados do Nordeste. A pesquisa sobre os homicídios, que utiliza dados oficiais das Secretarias de Segurança Estaduais e do DF, é a mais recente com abrangência nacional. As mortes violentas passaram de 18.120 para 19.382 no período de janeiro a maio. Chama a atenção o fato de que este aumento das mortes em 2020 ocorreu após queda histórica dos homicídios em 2019 (o menor número registrado desde 2007, quando o fórum começou a coletar os dados), que chegou a ser comemorada pelo então ministro da Justiça Sérgio Moro.
- Bolsonaro insistiu em reduzir controle de armas quatro vezes na pandemia para “armar população”
- Consulta pública do Exército de apenas seis dias pode flexibilizar controle de armas sem apoio social
- Como era o Brasil quando as armas eram vendidas em shoppings e munição nas lojas de ferragem
A relação entre aumento de armas e aumento da violência não é estranha para quem estuda segurança pública. “De um ponto de vista amplo, pesquisas apontam que a cada 1% a mais de armas na população temos um aumento de 2% dos homicídios, segundo levantamento do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada”, afirma Isabel Seixas de Figueiredo, consultora do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. “Mas não é possível cravar nesse caso que existe uma relação entre o aumento no número de armas registradas e homicídios, porque é um fenômeno ainda recente, e o homicídio é um fenômeno multicausal”, diz. Ela alerta ainda para o fato de que estas armas compradas e registradas legalmente podem acabar indo para as mãos do crime organizado: “Entre 30% e 40% das armas apreendidas pela polícia com criminosos foram compradas originalmente por pessoas sem ligação com o crime, e que depois venderam este armamento ou foram roubadas”.
Gabriel Sampaio, coordenador do Programa de Enfrentamento à Violência Institucional da Conectas, concorda com Figueiredo. “Pesquisadores e a sociedade civil organizada sempre falaram que com a flexibilização do Estatuto havia potencial para o aumento de mortes violentas. Isso era dito baseado em dados. Essa relação entre armas e violência já era conhecida há muitos anos, antes das políticas públicas do Governo Bolsonaro para o setor”, afirma . Ele destaca, no entanto, que os dados são novos e ainda precisam ser analisados com mais profundidade. Mas segundo Sampaio, existe um “indicativo” de que o aumento dos homicídios no primeiro semestre de 2020 pode estar ligado ao maior acesso às armas.
O aumento vertiginoso no número de novas armas de fogo registradas em tão pouco tempo também acende um alerta amarelo. “A celeridade administrativa na concessão da posse de armas deixa dúvidas se a avaliação do perfil de quem pede o registro está sendo feita com o devido critério. Esse crescimento mostra ou que estão alocando muitos recursos humanos para analisar estes pedidos, ou então a análise não está sendo feita de forma criteriosa”, diz Sampaio. Antes das mudanças feitas pelo Governo, quem solicitava a posse de arma precisava comprovar a “efetiva necessidade” para tanto, e a decisão final sobre concessão ou não do registro cabia ao delegado da PF. O presidente sempre criticou este ponto, uma vez que no seu entendimento deixava a questão à critério da “subjetividade” da polícia. Este ponto foi alterado via decretos e portarias para facilitar a comprovação da necessidade sem grandes percalços.
Registro de armas cresce em todos os Estados
Todos os Estados brasileiros e o Distrito Federal registraram alta no número de registros de novas armas. No DF o crescimento foi o maior registrado: variação de 1.429% no número de documentos concedidos pelas autoridades. De 235 no primeiro semestre de 2019 para 3.595 no mesmo período deste ano. Apesar do grande aumento de armas, os homicídios tiveram queda no distrito que abriga Brasília. O Rio de Janeiro ficou em segundo lugar no crescimento da concessão de posse de armas, com um aumento de 860%, de 653 para 6.275. O Estado também registrou redução dos homicídios no período. A Bahia vem logo atrás, com variação de 620% nos registros: de 835 para 6.015, e alta dos homicídios. O único Estado com crescimento de apenas um dígito foi a Paraíba: 9%. De 976 para 1.064.
O número de novos registros de armas de fogo, no entanto, pode ser ainda maior tendo em vista que existe uma categoria de posse específica para colecionadores, atiradores esportivos e caçadores (denominada CACs). A autorização para eles é concedida pelo Exército, e não entra nos dados da PF. “Isso é relevante, porque os CACs foram uma das categorias mais beneficiadas pelo Governo Bolsonaro com ampliação no número de armas permitidas por pessoa, bem como a ampliação dos calibres permitidos”, diz Felippe Angeli, gerente do Instituto Sou Paz. Sobre o aumento dos homicídios, ele faz coro com Sampaio e Figueiredo: “É um fenômeno multifatorial. Mas quando se fala de segurança pública, o que se vive hoje é o que você vê no retrovisor, e o que visualizamos é o começo do Governo Bolsonaro, com a desregulamentação do controle de armas”.
Além de afrouxar as regras para facilitar o acesso às armas, o Governo Bolsonaro também tem enfraquecido a regulamentação para rastrear a circulação de armas e munições. Em abril, Bolsonaro anunciou, via Twitter, a revogação de três portarias do Exército com regras para marcação, controle e rastreamento de armas e munições, outro passo amplamente criticado por especialistas. A oposição questionou o Supremo Tribunal Federal a respeito, e ainda espera um pronunciamento do tribunal. Em outro movimento que acendeu alarme, na semana passada, o ministro da Justiça e Segurança Pública, André Mendonça, revogou trechos de uma portaria de sua pasta que obrigava que determinados armamentos de porte dos agentes da Força Nacional tivessem elementos de identificação sigilosa, um passo a mais para o rastreio, caso os dados mais básicos fossem violados.
A reportagem entrou em contato com o Planalto pedindo um comentário sobre o aumento no número dos homicídios e no número de novas armas registradas pela PF, mas não obteve resposta até o momento. A PF informou que “embora tenha havido um aumento na demanda de registros nos anos de 2019 e 2020, o efetivo da Polícia Federal tem conseguido atuar a contento nos processos relacionados ao controle de armas de fogo”. Quanto à declaração de “efetiva necessidade” por parte do solicitante, o órgão informou que cumpre o determinado na lei (alterada por Bolsonaro) onde consta que “presume-se a veracidade dos fatos e das circunstâncias afirmadas na declaração de efetiva necessidade”.
José Serra: Armas e investimentos
Redução da insegurança pública implica ampliar o sistema carcerário e endurecer as leis penais
O Decreto 9.685, assinado pelo presidente Jair Bolsonaro, facilitou a posse de armas no País, tornando mais simples o processo para ter um equipamento desses em casa ou em estabelecimento comercial. Como já escrevi em artigo neste espaço, a medida pode representar, não obstante suas intenções, uma espécie de tiro no pé. Ao invés de aumentar a segurança das pessoas, poderá inadvertidamente promover mais violência e mais mortes. Aliás, como reconheceram setores do próprio governo, ela não visa tanto a melhorar a segurança pública, mas a cumprir uma promessa de campanha.
Teria sido uma boa oportunidade para o presidente Bolsonaro se inspirar em Juscelino Kubitschek num dos seus melhores momentos: “Costumo voltar atrás, sim; não tenho compromisso com o erro”. Infelizmente, não foi o que aconteceu. Mesmo diante de evidências que recomendavam o contrário, o chefe do Executivo assinou o decreto facilitando a posse de armas. A meu ver, isso poderá aumentar a criminalidade, em vez de reduzi-la, ao contrário do que deseja o presidente. Para reduzir a violência no País precisamos de polícias mais bem equipadas e, sobretudo, de uma atuação concertada entre os Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, nos três níveis da Federação.
Com o novo decreto, bastará ter residência em área rural ou urbana localizada em Estado com índice superior a 10 homicídios por 100 mil habitantes durante o ano de 2016 para se comprovar a efetiva necessidade de possuir quatro armas de fogo em casa. Como não há unidade da Federação com índice de criminalidade inferior a dez, pode-se dizer que um comprovante de residência – conta de luz ou água – passou a ser o critério para dispor de um pequeno arsenal em casa.
Vale lembrar que o novo decreto manteve critérios previstos em normas anteriores para o pleno direito de posse de arma. Além de ter uma residência – própria ou alugada –, a pessoa deve ser aprovada em teste de habilidade e de psicologia, ter no mínimo 25 anos e uma ficha limpa de processos criminais.
O governo defende a medida projetando uma desejada (por todos) redução da criminalidade no País. Argumenta que, estando armadas, as pessoas podem se defender de assaltos e outras formas de violência sacando a arma em legítima defesa. Tudo se parece com os filmes de ação, em que o mocinho vence o bandido com rapidez, habilidade e autocontrole.
Deixando de lado as telas do cinema e encarando a vida real, tomemos alguns números do Anuário do Fórum Brasileiro de Segurança Pública de 2018. Em 2017 foram mortos 371 policiais no Brasil – 290 no horário de folga. Se um policial com porte de arma não consegue reagir de forma efetiva a um ataque, o que acontecerá com um cidadão não treinado para enfrentar um assalto? Infelizmente, o efeito surpresa está do lado dos bandidos, não do cidadão de bem.
A partir de agora, mais armas estarão nas mãos de criminosos. De acordo com a Secretaria da Segurança Pública de São Paulo, mais da metade das armas roubadas no Estado são levadas de casas e comércios. Haverá, assim, aumento do mercado ilegal, em que as roubadas serão vendidas a outros criminosos. Sem contar que transgressores em início de carreira, ainda não processados, serão usados pelo crime organizado para adquirir novo armamento.
Os esforços para reduzir a insegurança pública deveriam centrar-se na ampliação do número de vagas do sistema carcerário brasileiro, juntamente com o endurecimento da legislação penal. O aumento do encarceramento é a forma mais direta – embora insuficiente – de neutralizar o risco de crimes. Ninguém assalta diretamente da cadeia.
Em 2014 a população prisional era de 622 mil pessoas, para 372 mil vagas disponíveis, segundo dados do Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias. Isso representa uma taxa de ocupação de 167%! O País apresentou um crescimento da taxa de encarceramento de 126% desde 2001. E o aprisionamento no Brasil tende a se manter nos próximos anos.
Não nos podemos iludir com as famosas soluções fáceis e erradas, contra as quais alertava Henry Mencken. A facilitação do porte de armas é dessas medidas que seduzem o leigo e deixam apavorados os conhecedores da matéria. Não por menos, são frequentes as manifestações de preocupação de policiais, civis e militares, com a expansão do número de armas em circulação.
A discussão mais difícil e realista é sobre como endurecer as leis penais, aplicá-las sem condescendência, desbaratar o crime organizado e construir, ampliar e reformar os presídios. Segundo recente estudo do Tribunal de Contas da União, o custo para acabar com a superlotação dos presídios nos próximos 18 anos é de R$ 19,8 bilhões, para construção de mais penitenciárias. Além disso, serão necessários R$ 95,8 bilhões para manter o sistema durante o mesmo período, incluindo a aquisição de equipamentos de segurança, como bloqueadores de celulares.
É forçoso admitir que a crise fiscal compromete os investimentos no sistema carcerário. Hoje as unidades prisionais estaduais apresentam graves deficiências decorrentes da falta de recursos. Com isso as transferências financeiras do governo federal se tornam essenciais para a expansão do sistema prisional. Os Estados, de modo geral, não têm no momento capacidade para financiar a ampliação de vagas e a compra de equipamentos de segurança nos presídios.
Ampliar a abrangência da posse de armas, em vez de reduzir os índices de criminalidade, causará um aumento da violência. Precisamo-nos concentrar em ações que verdadeiramente enfrentem os problemas da segurança pública, como, por exemplo, o elevadíssimo déficit de vagas nos presídios brasileiros. Para isso não precisamos de mais armas à disposição da sociedade, mas de mais investimentos no sistema prisional brasileiro.
*José Serra é senador (PSDB-SP)
Arnaldo Jordy: Viva Marielle e sua luta
O brutal assassinado da vereadora Marielle Franco é mais um a comprovar o clima de insegurança que atormenta todos os brasileiros. Nosso país tem por ano mais de 60 mil insuportáveis homicídios. A diferença é que, a exemplo do que já havia acontecido em 1988, quando da morte de Chico Mendes no Acre, houve uma comoção nacional e internacional, pela covardia, brutalidade e objetivo político desta execução, que, não tenho dúvidas, teve como finalidade tentar desmoralizar a intervenção federal na segurança do Rio de Janeiro e evitar que seja levantado o véu que cobre as relações entre o crime organizado e o poder político naquele Estado. Não há como a atividade criminosa progredir abrigando os interesses bilionários de narcotraficantes sem a cumplicidade das instituições e estruturas de poderes administrativos, a exemplo do que revelou o filme “Tropa de Elite 2”.
O Rio de Janeiro, por exemplo, teve três de seus ex-governadores presos recentemente e um deles, Sérgio Cabral, condenado a mais de 100 anos de prisão, depois de escândalos como os das obras superfaturadas para a Copa e as Olimpíadas; assim como quatro conselheiros do Tribunal de Contas, incluindo seu ex-presidente, e boa parte da elite política do Estado, incluindo o ex-presidente da Câmara Eduardo Cunha. É um Estado apodrecido em suas estruturas políticas e também econômicas, haja vista as prisões de alguns dos seus mais fortes e simbólicos empresários, como o Rei do Ônibus, Jacob Barata, e Eike Batista, o maior representante da política dos “campeões” nacionais da era Lula e Dilma, robustecidos com dinheiro do BNDES. A Petrobras, outro símbolo do Rio, também foi saqueada pela corrupção. Com os cofres pilhados, o Estado não tem condições sequer de saldar suas dívidas com o funcionalismo público e tem grande parte de seu território controlado por traficantes ou milícias armadas. É impossível que não tenha sua estrutura de poder e comando contaminada pelo crime organizado, cuja capacidade financeira sobra para corromper agentes públicos.
É nesse clima de terra arrasada que viceja o banditismo e o dinheiro do tráfico corrompe setores da polícia. Para estes que querem que tudo fique como está, nada melhor que provocar o caos, matando alguém que simboliza a luta pelos direitos humanos. A ONU anunciou que monitora de perto a evolução do caso Marielle e aponta que o crime é sintoma de uma situação sombria, que já vem de longo tempo.
Dentro desse quadro caótico, ganham terrenos os radicalismos, sejam de direita, com pessoas tentando desqualificar a militância de Marielle, inventando ou espalhando mentiras sobre sua vida pessoal; seja de outras forças que tentam usar sua morte como bandeira para se opor à intervenção federal na segurança do Rio de Janeiro. Certamente, são bandidos que querem manter o status quo do tráfico e da corrupção que lucram com a morte de Marielle.
A resposta que deve ser dada a essa situação é a apuração rápida e séria desse crime, para que os culpados sejam identificados e punidos, e que a intervenção federal na segurança do Rio seja levada adiante dentro dos princípios constitucionais que permitem esse tipo de ação emergencial, que está dentro da ordem democrática. Está claro que algo precisa ser feito no Rio de Janeiro contra o narcotráfico, um negócio multibilionário que envolve interesses inconfessáveis nos mais diferentes setores, da política ao sistema financeiro.
Evidentemente que a intervenção federal não é a solução estrutural para o problema da violência que passa, isto sim, pelo reforço da educação e pelo resgate da pobreza, da exclusão e do abandono em que vivem tantas pessoas no Rio de Janeiro e em todo o Brasil, pessoas pelas quais também lutava a vereadora Marielle. Precisamos mais de lápis do que de armas, mas as crianças do Rio de Janeiro já não conseguem mais frequentar a escola com medo de tiroteios e essa situação precisa acabar.
* Arnaldo Jordy é deputado federal pelo PPS-PA
Fernando Gabeira: No coração das trevas
Uma querida amiga disse que leu um artigo meu três vezes para entender bem. Prometi que na próxima, reescreverei três vezes. Italo Calvino disse que o texto do século XXI teria de ser leve. Mas como são pesados os temas do Brasil de hoje. ministro da Justiça, Torquato Jardim, disse que os comandantes da PM estão ligados ao crime e que o governo não controla sua polícia. Não ficou aí, nessa sinistra generalização. Disse que a esperança de mudar só viria mesmo após as eleições de 2018. Estamos em novembro de 2017. Quantos tiroteios, quantas balas perdidas, quantas mortes nos esperam até lá? Se o quadro é esse mesmo que o ministro pintou, o governo federal deveria fazer algo para transformá-lo.
O ministro da Defesa, Raul Jungmann, afirmou há algum tempo que havia relação entre políticos e o crime organizado. Eles precisam de voto, o crime organizado controla mais de 800 pontos apenas no Rio. Quem vai à Baixada, viaja a cidades como Campos e Macaé ou cruza a Baía de Guanabara, vai até Niterói, constata que o número de territórios ocupados é muito maior.
Jungmann propôs uma força-tarefa para desvendar os vínculos entre crime e política no Rio. Raquel Dodge concordou. Até aí, tudo bem.
Uma revelação bombástica antes mesmo da força-tarefa começar o seu trabalho é inadequada. Acaba complicando a vida das pessoas já amedrontadas no seu cotidiano. O ministro Jardim nem mata a cobra nem mostra o pau. É como se dissesse: “Xi, a segurança está na mão de bandidos mas isso pode mudar depois de 2018.”
Felizmente não é bem assim. Ouvi alguns amigos da PM e eles garantem que há bons e honestos comandantes.
O Rio foi abalado por um governo que era, na verdade, uma organização criminosa. Todas as estruturas do poder foram de alguma forma contaminadas. Certamente será necessário um paciente e árduo trabalho com ajuda federal para desfazer todas as teias, os nichos da corrupção.
Quando o Exército veio pela primeira vez nessa crise, defendi a ideia de que deveria estabelecer um contato maior com a sociedade, oferecer um trabalho comum. Com as formas de comunicação de hoje seria possível criar um sistema de defesa muito mais poderoso. A própria sociedade se mexe. O aplicativo OTT (Onde Tem Tiroteio) é um um dos exemplos disso.
Nas primeiras investidas, a operação fez inúmeros cercos, apreendeu poucas armas. Era uma indicação de que o trabalho de inteligência precisava melhorar. Da soma que o governo federal destinou, foram usados apenas 22% para enfrentar a crise de segurança pública no Rio. E os cercos são a tática mais cara com menores resultados.
No meio do áspero caminho, uma crise no relacionamento entre os governos. Parecia haver algo no ar entre o ministro Jungmann e as autoridades estaduais de segurança. Ao invés da possibilidade de uma cooperação em grande escala, incluindo as pessoas que vivem aqui, o que nos ofereceram foram crises de relação, desconfiança mútua.
É preciso formar um bloco bem intencionado entre as forças de segurança. E pedir a ajuda da sociedade. Não temos armas. Mas o conhecimento coletivo é um instrumento que potencializa o trabalho armado, em certas ocasiões, pode até dispensá-las.
De uma certa forma, a luta contra o terrorismo na Europa e nos Estados Unidos, os esforços emergenciais após uma catástrofe natural — todos esses grandes embates demandam um vínculo através da rede. Nas inundações do Texas foi impressionante acompanhar o mapa das pessoas ilhadas; bastava clicar no ponto que aparecia a mensagem: falta comida, dificuldade de respirar, rompeu a bolsa d’água. Um terrorista procurado na Europa pode ter seu retrato passado para todos os smartphones de uma extensa área onde opera.
O potencial de descobrir os caminhos para programas que reforcem a segurança no Rio não está em governos combalidos, mas na própria sociedade. Como acionar esse poder sem ter o mínimo de credibilidade? O que os que ainda sobrevivem nos governos poderiam pelo menos tentar. E tentar com uma visão clara do que distingue propaganda de resultado real.
O grande problema não é só que os bandidos furam facilmente os cercos. O difícil é furar os cercos mentais que às vezes dominam as cabeças no governo. Quase todas têm medo de falar com pessoas reais. Preferem fazê-lo através das grandes máquinas de propaganda que filtram as críticas ou enfatizam as pequenas vitórias.
Sem que os sobreviventes no governo peçam socorro e a sociedade lhes dê mão, não vai prosperar uma defesa real diante da crise de segurança. De outra forma, voltamos aquela história de esperar 2018. É muito tempo, sobretudo para os que perdem a vida em segundos nas ruas do Rio.
É tudo tão grave, certamente não é uma dessas dores estranhas que simplesmente passam se ficamos em repouso. Nossas chances dependem também da percepção do abismo: quanto mais rápida, melhor.
Roberto Freire: Guerra não declarada
Em qualquer pesquisa que se faça sobre as maiores preocupações dos brasileiros em relação à vida cotidiana, a sensação de insegurança e a impotência em relação à violência aparecem, invariavelmente, no topo da lista. Como se não bastassem as enormes dificuldades ainda enfrentadas pela população em função da maior recessão econômica da história do país – que agora, enfim, começa a ser deixada para trás –, não há uma família sequer que se sinta plenamente segura ao andar pelas ruas, seja nas metrópoles ou nos pequenos e médios municípios. A chaga da violência atingiu tal nível de desmantelo no Brasil que, lamentavelmente, quase já se vive em um cenário típico de guerra.
Segundo os dados divulgados pelo 11º Anuário Estatístico da Violência, elaborado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, o país registrou em 2016 o aterrorizante número de 61.619 mortes violentas, o que corresponde a um aumento de 3,8% em relação ao ano anterior. Nesse novo e inaceitável patamar, a taxa nacional de assassinatos por 100 mil habitantes chegou a absurdos 29,9, uma das mais elevadas do mundo.
Para que se tenha a dimensão da tragédia nacional, esses números representam 7,4 vezes o que se mata nos Estados Unidos; 42,8 vezes o índice da Alemanha; e impressionantes 99,6 vezes a mais do que no Japão (onde as armas portáteis são terminantemente proibidas, inclusive as chamadas “armas brancas”, permitindo-se unicamente a posse de armas de ar comprimido e de caça).
O mais chocante, no entanto, é compararmos a situação brasileira com a Síria, um país que completou seis anos de uma bárbara e sanguinária guerra civil. Até março de 2017, 321.358 pessoas foram mortas por lá durante todo esse período, das quais cerca de 91 mil civis (uma média de 53.559 homicídios dolosos a cada ano, inferior aos números brasileiros). Se a comparação for feita apenas com os civis, o que é mais adequado, cerca de 15 mil pessoas são mortas por ano na Síria, praticamente um quarto do que se mata no Brasil.
Apesar de tamanho descalabro, é possível alimentar alguma esperança de que nosso país encontre um caminho para amenizar um dos problemas mais dramáticos que enfrenta. Quando se observa detalhadamente os dados referentes ao estado de São Paulo, por exemplo, o que se nota é uma enorme disparidade em relação ao caos vivenciado no resto do Brasil. No território paulista, o número de mortes violentas é de 11 por 100 mil habitantes (em Sergipe, chega a 64 por 100 mil). No caso dos latrocínios (roubo seguido de morte), São Paulo registra 0,8 por 100 mil (no Pará, esse índice é de 2,3 por 100 mil, o triplo).
O Atlas da Violência, estudo desenvolvido pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e pelo mesmo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, divulgado em junho deste ano, reforça que o enfrentamento à violência tem sido bem sucedido em São Paulo em comparação com o restante do Brasil. Além do menor índice e da maior redução na taxa de homicídios por 100 mil habitantes, o estado está representado por 19 cidades entre as 30 consideradas mais pacíficas de todo o país.
Entre 2005 e 2015, de acordo com este levantamento, houve uma significativa redução de 44,3% na taxa de homicídios no estado. Fazendo um cruzamento com os dados do Anuário da Violência já citados anteriormente, se o índice verificado em todo o Brasil fosse igual ao de São Paulo, teríamos 22.503 mortos (e mais de 38 mil brasileiros seriam poupados a cada ano). Tudo isso apenas corrobora a tese de que é necessário, uma vez mais, olhar com atenção e analisar com responsabilidade o exemplo exitoso de São Paulo, que pode servir como modelo a ser replicado nos outros estados.
Outro caso emblemático, este pelo aspecto negativo, é o do Rio de Janeiro, que vem sofrendo com a ação do crime organizado e a dificuldade das forças de segurança em neutralizá-la. É importante destacarmos o papel que as Forças Armadas cumpriram recentemente na cidade, sob acompanhamento do ministro da Defesa, Raul Jungmann, que faz um notável trabalho à frente da pasta. Mas é evidente que esse tipo de atuação é uma consequência direta do total descalabro da área de segurança pública não só no Rio, mas em diversas regiões do país. A segurança é responsabilidade constitucional dos estados, por meio da ação de suas polícias, e a transferência dessas atribuições aos militares é um atestado de incompetência, algo inaceitável, além de um desvirtuamento da ordem constitucional.
Os números de guerra servem para nos levar à constatação de que se chegou a um ponto insustentável. A sociedade não suporta mais conviver com níveis de violência que há muito ultrapassaram todos os limites e tomaram conta do país. O Brasil clama por paz e civilidade contra a barbárie. A população está assustada, e não sem motivo. Por outro lado, há exemplos virtuosos que indicam o caminho a ser seguido no combate ao crime. Temos de reagir. É possível vencer.