Inpe
Risco de “milhões de pessoas em situação de insegurança alimentar"
Luciara Ferreira e João Vítor*, com edição do coordenador de Publicações da FAP, Cleomar Almeida
Um total de 13.235 km² de floresta amazônica foi desmatado e bateu recorde em 2021, de acordo com dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). No Cerrado, o desmatamento aumentou 7,9%, entre agosto de 2020 e julho de 2021, alcançando a marca de 8.531 km². A diminuição do verde e o aumento de cinzas aumentam a crise ecológica global.
Ex-presidente do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o economista Sérgio Besserman afirma que a destruição do meio ambiente é uma tragédia. O risco, conforme alerta, é de provocar impacto na população. “Centenas de milhões de pessoas em situação de insegurança alimentar”, lamenta.
Desmatamento na Amazônia nos últimos 10 anos | Reprodução: UOL
A crise ecológica global pode ter reflexos diretamente na mesa da população. De acordo com o Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil, divulgado em 2021, 116,8 milhões de brasileiros não têm pleno acesso à comida.
Besserman confirmou presença no webinar organizado pela Biblioteca Salomão Malina e Fundação Astrojildo Pereira (FAP), ambas em Brasília. A live será transmitida, na quarta-feira (1º/6), a partir das 17 horas, na página da biblioteca no Facebook, assim como no site e canal da FAP no YouTube.
Além do economista, o sociólogo e cientista socioambiental Elimar Pinheiro do Nascimento e o presidente do Conselho de Administração da Fundação Amazonas Sustentável (FAS) Benjamin Benzaquen Sicsú também confirmaram participação no evento online.
Pinheiro aponta consequências na degradação da natureza e do aquecimento global. “Uma alimenta a outra. Isso mata os seres vivos aquáticos, pois aquece a água e impacta na cadeia alimentar”, explica.
Os eventos críticos climáticos, segundo Pinheiro, provocam tempestades, seca, esfriamento e aquecimento. “São temperaturas extremas, não há meio termo”, afirma.
Pinheiro observa que essas temperaturas têm a ver também com as migrações de pessoas e animais. Segundo ele, a terra não produz mais com superaquecimento do solo, e, assim, os seres vivos precisam se deslocar. “São bilhões de dólares que nós estamos perdendo, e mortes acontecendo”, enfatiza.
O Observatório do Clima, rede que reúne 73 organizações socioambientais, por meio de documento postado no dia 19 de maio, alertou que “com Bolsonaro, não há futuro para política ambiental no Brasil”.
O economista Besserman vê que há interesses econômicos de políticos por trás da crise que impedem as transformações necessárias para ajudar o meio ambiente.
Nascimento diz que o preço vai ser alto e enxerga descaso do presidente Jair Bolsonaro (PL). “Tem déficit cognitivo e não compreende o que é impacto climático”, critica ele, que é autor do livro Um mundo de riscos e desafios e alerta que, por causa disso, os recursos vão se reduzir.
Serviço
Webinar Crise ecológica global
Dia: 1/6/2022
Horário da transmissão: 17h
Onde: Perfil da Biblioteca Salomão Malina no Facebook e no portal da FAP e redes sociais (Facebook e Youtube) da entidade
Realização: Biblioteca Salomão Malina e Fundação Astrojildo Pereira (FAP)
*Integrantes do programa de estágio da FAP, sob supervisão do jornalista, editor de conteúdo e coordenador de Publicações da FAP, Cleomar Almeida
Cerrado teve 15% mais incêndios este ano que no mesmo período de 2020
Inpe registrou 35.846 focos de fogo na região neste ano, que aumentam degradação no bioma e ameaçam vazão de rios
Cleide Carvalho / O Globo
SÃO PAULO - As queimadas no cerrado aceleram a degradação da vegetação nativa e ameaçam a vazão de alguns dos principais rios brasileiros. Neste ano, de janeiro até dia 9 de setembro, o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) registrou 35.846 focos de incêndio no bioma, 15% a mais do que no ano passado. É o maior número desde 2012. A professora Mercedes Bustamante, da Universidade de Brasília, uma das principais especialistas em cerrado no país, explica que o fogo degrada justamente as áreas preservadas, dificultando ainda mais o serviço hidrológico do ecossistema e reduzindo o volume de água dos rios.
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Os focos de incêndio se espalham por todas as regiões do país. Este ano, a maior quantidade de focos está nos estados do Tocantins (20%), Maranhão (18,6%), Mato Grosso (15%) e Minas Gerais (10,2%). Alberto Setzer, responsável pelo monitoramento de queimadas do Inpe, afirma que a situação de 2021 ainda não está dada, pois setembro é o pior mês para ocorrência de incêndios.
Dados do Mapbiomas divulgados nesta sexta-feira alertam que 87% do fogo que atingiu o cerrado desde 1985 queimou exatamente áreas de vegetação nativa. Apenas 13% ocorreram em pastos ou áreas de agricultura, que ocupam quase metade do bioma.
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Além disso, 60% das áreas queimadas pegaram fogo mais de uma vez, o que prejudica ainda mais a recuperação.
– Na Bacia do Paraná, que está em plena crise, temos apenas 21% de vegetação remanescente. Ainda que o Código Florestal permita desmatar até 80% das propriedades, é importante assinalar que a preservação de 20% não é suficiente para manter a conservação – diz Mercedes, acrescentando que outro rio abastecido pelo cerrado, o Paraguai, é o provedor de água do Pantanal.
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A cobertura de água natural no cerrado diminuiu 55% de 1985 para cá, o que significa a perda de 473 mil hectares. A queda foi compensada pela criação dos grandes reservatórios de hidrelétricas.
Para se ter uma ideia, o levantamento do MapBiomas mostra que, em 1985, 60% da cobertura de água do cerrado era natural. Em 2020, a situação inverteu: 70% da água superficial é de origem antrópica – pela ação do homem. A inversão se deve aos reservatórios criados por hidrelétricas.PUBLICIDADE
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Um estudo feito pelo hidrólogo Jorge Werneck Lima, pesquisador da Embrapa Cerrados e hoje diretor da Agência Reguladora de Águas, Energia e Saneamento Básico do Distrito Federal (Adasa), mostra que o cerrado responde por 90% da vazão do Rio São Francisco e mais de 100% da vazão dos rios Parnaíba e Paraguai, considerando as perdas durante o curso. Na Bacia Tocantins-Araguaia a contribuição atinge mais de 60%.
No total, indica Lima, as águas do cerrado abastecem oito das 12 regiões hidrográficas do país, o que justifica o título de "caixa d'água" do Brasil atribuído ao bioma.
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O Mapbiomas identificou redução na superfície de água natural em todas as bacias entre 1985 e 2020, medida em hectares. A mais atingida foi a Bacia do Paraguai, com redução de 70%. No São Francisco, de 47%. Na Bacia Atlântico Leste, de 43% – nela estão entre os mais volumosos os rios de Contas, Jequitinhonha, Mucuri e Pardo, por exemplo. No Rio Paraná, a redução foi de 35% e, no Tocantins, de 10%.
A redução na vazão ameaça a geração de energia. Segundo Lima, cerca de metade da energia hidrelétrica produzida no país utiliza águas que vertem do cerrado. A maior das hidrelétricas é Itaipu, no Rio Paraná, com 57 grandes reservatórios, que enfrenta a pior seca em 40 anos.
O relatório de 2020 da Chesf, que administra oito das hidrelétricas instaladas no Rio São Francisco, como o complexo Paulo Afonso e a UHE Luiz Gonzaga, informa que, devido à longa estiagem, verificada desde 2013 na Bacia, tem recebido sucessivas autorizações do Ibama para reduzir a vazão dos reservatórios de Sobradinho e Xingó.
– É preciso usar e saber o que preservar. Monitorar, planejar e gerir de forma racional e inteligente. É preciso integrar os setores e colocá-los na mesa de discussões para ver o que é mais inteligente e possível fazer – diz Lima.
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Bráulio Dias, ex-secretário Executivo da Convenção de Diversidade Biológica das Nações Unidas e professor da UnB, chega a dizer que, se medidas não forem tomadas, o Brasil corre o risco de passar a ter rios intermitentes no cerrado, como ocorre no semiárido.
O agrônomo Edegar Oliveira, diretor de conservação e restauração de ecossistemas da WWF-Brasil, que integra a rede MapBiomas, afirma que o cerrado é estratégico por sua capacidade de funcionar como "esponja" para garantir a água dos rios e o desmatamento está em alta. Os alertas de desmatamento em agosto, por exemplo, cresceram 136% em relação a 2020.
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– O inferno astral do cerrado está muito pior este ano – resume.
Para ele, o contexto de negacionismo em que vive o Brasil impede que seja visto o impacto no desenvolvimento do país.
– Não é mais uma questão de médio prazo. O impacto no clima já está ocorrendo e não faz mais sentindo seguir nessa linha de degradação. Estamos escolhendo ir pelo caminho errado – diz ele.
Permacultura: um caminho sustentável possível para o Cerrado
Conheça mais sobre as ideias inspiradas na própria natureza
Fabíola Sinimbu / Agência Brasil
Hoje (11) é Dia do Cerrado, em mais um ano de pandemia, que nos lembra diariamente o quanto estamos inseridos em um sistema além do ser humano e que é preciso cuidar de todos os aspectos desse sistema. A permacultura, um conceito criado ainda na década de 70, foi a ferramenta escolhida por muitos responsáveis pela preservação do que ainda resta do segundo maior bioma brasileiro.
O brasiliense Cláudio Jacinto é um deles e, há mais de 20 anos, mergulhou fundo no método criado pelos Australianos Bill Mollison e David Holmgren. Desde então, cuidar da terra, das pessoas e partilhar o que se produz de forma justa são princípios básicos na agenda do engenheiro florestal.
Ele conta que antes mesmo de entrar em contato com a permacultura já sentia uma necessidade de buscar mais igualdade social, mas não encontrava o caminho para isso. Foi na faculdade de engenharia florestal que teve contato com o conceito do que ele mesmo define como uma “metodologia científica para o planejamento de ocupações humanas sustentáveis”. Segundo ele, uma ciência baseada em conhecimentos de engenharia, ciências agrárias, arquitetura e inspirada por saberes tradicionais antigos para que seres humanos ocupem o planeta sem exaurir os recursos.
BIOMAS
Cláudio explica que essa “cultura permanente” também considera que o ser humano é parte integrante de todo esse sistema e precisa ter suas necessidades atendidas, mas não da forma como acontece atualmente.
“É construir um modo de vida que seja sustentável, sendo que o conceito de sustentável é que o que eu faço hoje para construir a minha casa, para produzir a minha comida, para gerar e consumir a minha energia, para ter água disponível e ter um destino adequado para água utilizada, minimamente essas quatro necessidades básicas; sejam feitas de um modo que a geração futura e as próximas possam continuar fazendo do mesmo jeito”, explica.
A ideia é tão viável que muitas das soluções apresentadas pela permacultura são amplamente utilizadas em diversas áreas do conhecimento e apontadas como soluções para problemas ambientais como o aquecimento global. São ações como melhor utilização dos recursos naturais e locais na construção de habitações, substituição da monocultura por agroflorestas, diversificação da matriz energética por meio das fontes renováveis e melhor utilização do ciclo da água.
Com as ideias adquiridas em um curso extracurricular na universidade, Cláudio conseguiu criar a primeira disciplina de permacultura em universidade pública do país, dentro do Departamento de Engenharia Florestal da Universidade Federal de Brasília; passou a lecionar permacultura, e hoje mantém uma Organização Não Governamental que leva iniciativas permaculturais às comunidades mais carentes, por meio dos recursos provenientes de ações socioeducativas.
Água
Um dos projetos desenvolvidos por Cláudio Jacinto, em Brasília, foi a implantação da Unidade Demonstrativa de Permacultura do Jardim Botânico de Brasília. Uma réplica de uma casa de pau-a-pique, em formato hexagonal, inspirada nas colmeias das abelhas; que tem um sistema completo de abastecimento e tratamento da água.
O educador ambiental do Jardim Botânico de Brasília Lucas Miranda explica que além de cumprir a função de explicar a permacultura ao público que participa do circuito educativo, a unidade demonstrativa é uma vitrine para mostrar que é possível pôr em prática as ideias trazidas pela filosofia permacultural. “Ela é uma casinha, ela é superlinda, ela tem a estética assim muito bonita e ela, principalmente, fecha esse ciclo da água. Então, cuidar da água, o Cerrado é o berço das águas, então a gente cuidar da água já é muito importante”, diz.
Habitação
A arquiteta Talita Maboni também teve contato com o conceito ainda na faculdade, quando decidiu aprofundar os conhecimentos sobre a bioconstrução junto à comunidade quilombola Kalunga, que vive em Goiás. Em dois anos de convivência, ela aprendeu técnicas de construção com terra e bambu e, depois de formada, fundou um coletivo feminino com as arquitetas Natália Cortes e Marina Patury.
Juntas, elas desenvolvem projetos que buscam na natureza soluções para atender às necessidades humanas da melhor forma. “A bioconstrução nada mais é do que um resgate desses saberes. Claro, que hoje em dia a gente já introduz algumas tecnologias que vão aprimorar essas técnicas, que vão deixá-las mais eficientes”, explica Talita Maboni.
Segundo Lucas Miranda, além da inspiração na natureza e também no conhecimento buscado nos povos tradicionais, a permacultura também se preocupa em não criar excedentes, evitando um processo de desperdício, que ainda pode gerar poluição no meio ambiente.
De acordo com o Ministério do Meio Ambiente, estima-se que mais de 50% dos resíduos sólidos gerados pelo conjunto das atividades humanas sejam provenientes da construção civil.
Preservação
No caso da Unidade Demonstrativa de Permacultura do Jardim Botânico, além de ter sido construída com paredes da pau-a-pique, uma técnica de construção tradicional do Brasil que utiliza a terra e o barro, elementos abundantes e que não geram poluição; a estrutura também resgatou elementos de resíduos da construção civil e integrou no sistema de tratamento sanitário. “A gente ainda intercepta esse lixo e dá um destino mais adequado do que o lixão, do que o aterro sanitário. Não deixa ele ser jogado no Cerrado de qualquer forma”, diz Miranda.
Impacto Ambiental
Para Talita Maboni, trabalhar com projetos que aplicam o conceito de permacultura por meio da bioconstrução é ir além da preservação ambiental, pois o patrimônio humano também pode durar muitos anos se as técnicas forem empregadas da forma certa. Talita diz que é preciso desmitificar a ideia de que bioconstrução é sinônimo de insalubridade ou pouca durabilidade. “É a forma mais rica que se tem pra construir. É você saber ocupar o espaço, saber olhar para ele e ver como vocês podem trabalhar em conjunto”, diz
Todas as soluções e ações propostas pela permacultura são possíveis de serem adotadas em qualquer lugar ou forma de vida escolhida pelas pessoas, segundo Cláudio Jacinto. “Eu acredito que todas as pessoas que têm a consciência ambiental podem colocar um pouquinho em prática sem precisar virar um permacultor que foi morar no mato e abandonou tudo e planta a sua própria comida”, explica e conclui “a permacultura propõe um novo jeito de fazer tudo que precisamos fazer para viver.”
Fonte: Agência Brasil
https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2021-09/permacultura-um-caminho-sustentavel-possivel-para-o-cerrado
O aquecimento global no limite: Brasil também paga caro pela devastação
Senado deve analisar, ainda em 2021, um projeto para incorporação às leis brasileiras de uma emenda ao Protocolo de Montreal
Nelson Oliveira / Agência Senado
Gás bastante utilizado em refrigeração, o hidrofluorcarbono (HFC) é um exemplo de solução que um dia se converte em problema. Aplicado em substituição a outros gases para diminuir os danos à camada de ozônio, acabou por contribuir para o efeito estufa, que impulsiona o aquecimento global e está provocando efeitos indesejáveis, como incêndios de grande proporção, derretimento de geleiras, aumento do nível dos oceanos e desertificação.
Com o objetivo de reduzir gradualmente a produção e utilização de gases não agressivos à camada de ozônio, mas causadores de efeito estufa, deverá chegar neste ano ao Senado um projeto para incorporação às leis brasileiras de uma emenda ao Protocolo de Montreal, o acordo que trata dos cuidados com a camada que nos protege da ação dos raios ultravioleta emitidos pelo sol. O PDC 1.100/2018 é uma das proposições da agenda que está sendo montada na Câmara dos Deputados para votação, antes que comece, em 31 de outubro, a 26ª Conferência do Clima, a COP 26, a ser realizada em Glasgow, na Escócia. Ali, representantes de quase 200 países vão discutir medidas mais ousadas e urgentes para manter o aquecimento global em no máximo 1,5 grau (ºC) em relação aos níveis pré-industriais. Se providências “ambiciosas” não forem adotadas, alertam os cientistas, a catástrofe climática pode se tornar irreversível e de efeitos totalmente inesperados.
Essa demanda por maior ambição e compromisso acompanhou a elaboração e divulgação do último relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), instância das Nações Unidas que subsidia as reuniões do Acordo do Clima, igualmente conhecido como Acordo de Paris.
Um dos objetivos do encontro é balancear as contribuições dos países, de modo a obter algum tipo de desenvolvimento que possa ser considerado sustentável.
DESMATAMENTO NO BRASIL
O dilema gerado pelo HFC ilustra um dos muitos que acompanham o estabelecimento dos seres humanos sobre a Terra, principalmente a partir do forte desenvolvimento industrial iniciado ainda na primeira década do século 19. A cada solução encontrada para gerar energia, agilizar os transportes, aumentar a produtividade da agropecuária e tornar mais segura e confortável a vida das pessoas, uma penca de problemas foi surgindo, sendo a poluição do ar e dos rios a primeira a ser notada. Hoje se estendem a uma miríade de sequelas, entre as quais o excesso de plástico que segue para as águas do planeta ou se acumulam nos lixões, a redução da disponibilidade de água, a extinção de espécies — úteis a elas mesmas e à pesquisa de remédios para os seres humanos — e a liberação de patógenos causadores de epidemias.
Já não há mais dúvidas de que o atual nível de aquecimento está sendo causado principalmente por dióxido de carbono (CO2), metano (CH4) e óxido nitroso (N2O) resultantes das atividades humanas. Não se trata, como chegaram a defender alguns, de um novo ciclo climático. O mundo levou três milhões de anos para atingir um aquecimento global de mais de 2,5 graus. As emissões causadas pelo homem, como a queima de combustíveis fósseis e o corte de árvores, são responsáveis pelo aquecimento recente. Do 1,1 grau de aumento da temperatura média experimentado desde a era pré-industrial, o IPCC concluiu que menos de 0,1 grau se deve a forças naturais, como vulcões ou variações do Sol.
O apelo dramático do IPCC é pela redução drástica de emissões, de modo a não esgotarmos o que os pesquisadores chamam de “orçamento de carbono”, cerca de 400 giga toneladas de CO2 equivalente, medida de equiparação com outros gases de efeito estufa. Mesmo com metas ambiciosas, o cenário projetado pelo painel inclui um pico potencial de aumento da temperatura média de 1,6 grau entre 2041 e 2060, após o qual as temperaturas cairiam abaixo de 1,5 grau até o final do século, caso as emissões cheguem a zero grau em 2050, ou seja, o planeta seja capaz de absorver tudo o que for emitido, já que não se espera que o mundo simplesmente pare.
No Senado, o conteúdo do relatório, cuja versão definitiva foi divulgada em agosto, é motivo de preocupação. Nesta sexta-feira (10), o presidente da Comissão de Meio Ambiente (CMA), Jaques Wagner (PT-BA), reuniu em debate virtual um grupo de personalidades e parlamentares para a avaliarem o diagnóstico e as recomendações lançadas pelo IPCC.
O debate foi requerido pelo próprio Jaques Wagner e subscrito por outros 15 senadores. Ao pedir a sessão temática, ele classificou o relatório firmado por mais de 200 cientistas de diversos países como o documento mais abrangente e conclusivo já feito sobre a crise climática.
“O modo de vida do ser humano está afetando todo o planeta, com efeitos que já podem durar centenas de anos, mesmo que as emissões de gases de efeito estufa sejam reduzidas a zero no dia de amanhã”, diz o senador no requerimento.
Participaram do encontro, a embaixadora da COP26, Fiona Clouder; o químico David King, líder do Conselho Consultivo de Crise Climática e ex-assessor científico do governo do Reino Unido; a ativista ambiental sueca Greta Thunberg; o arcebispo de Belo Horizonte e presidente da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), Dom Walmor Oliveira de Azevedo; a ativista ambiental, estudante de biologia e apresentadora Samela Sateré-Mawé, integrante da Associação de Mulheres Indígenas Sateré Mawé (AMISM), que tem sede em Manaus (AM); e o governador do Espírito Santo, Renato Casagrande. Este último é o articulador do movimento Governadores pelo Clima. O grupo propõe o modelo de governança Consórcio Brasil Verde, que pretende buscar recursos para financiar projetos destinados à redução das emissões e que incentivem a geração de energia renovável, de acordo com informe oficial do governo capixaba.
"O tema das mudanças climáticas é importante para o Brasil. Os estados querem ajudar o país a alcançar suas metas. A criação desse consórcio, que será gerenciado pelos estados, terá um fundo único para se apresentar de forma transparente às instituições internacionais e a outros países", declarou o governador, que participou em julho de reunião virtual com o enviado especial dos Estados Unidos para o clima, John Kerry.
Também participaram da audiência na CMA as senadoras Eliziane Gama (Cidadania-MA) e Zenaide Maia (Pros-RN) e o senador Espiridião Amin (PP-SC). O evento foi aberto pela cantora baiana Margareth Menezes, que entoou os versos da canção Matança, de Augusto Jatobá, na qual são mencionadas 39 espécies vegetais brasileiras (um cipó e 39 árvores) e dois biomas: a Amazônia e a Mata Atlântica. O compositor avisa para o perigo da derrubada inclemente da vegetação.
Confira quais são os países que mais emitem carbono
Brasil está em 6º lugar.
(Clique no gráfico para ver os números)
Fonte: Climate Watch
Uma das dificuldades em reverter o quadro atual é que o aquecimento global se retroalimenta pela ação do próprio calor que, ao facilitar ou mesmo provocar incêndios e inibir o pleno funcionamento dos ecossistemas, acaba gerando mais emissão de gases ou inviabiliza a sua absorção. A lição que se tira é que, perturbados agressivamente, os mecanismos que propiciaram o desenvolvimento da vida na Terra, num período historicamente muito curto de 200 anos adquiriram potencial para revertê-la de paraíso em inferno.
“A coalizão global para emissões líquidas zero precisa crescer exponencialmente”, disse ainda em fevereiro deste ano o secretário-geral da ONU, António Guterres, lembrando que esse é um objetivo “central” das Nações Unidas para 2021 e que, na ocasião, faltavam apenas nove meses para a COP 26, “marco crítico nos esforços para evitar uma catástrofe climática.”
Segundo ele, os países que representam 70% da economia mundial e 65% das emissões globais de dióxido de carbono já haviam assumido o compromisso com emissões liquidas zero até 2050, mas isso não era suficiente. Seria necessário que todos apresentassem contribuições mais ambiciosas, com metas claras até 2030, por meio de “planos claros e confiáveis, uma vez que palavras não são suficientes”.
Em uma economia global repleta de desequilíbrios acirrados pela pandemia, as concessões não deverão ser conseguidas muito facilmente na COP26. A liderança do processo, advertiu o secretário-geral da ONU, é das principais economias e membros do G20. Um dos caminhos é a eliminação do carvão até 2030 nos países da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), clube no qual o Brasil tenta entrar, e em todos os outros países até 2040. Os investimentos em carvão e outros combustíveis fósseis (petróleo, por exemplo) devem ser redirecionados para a transição energética. Para abrir mão de continuarem apoiando seus esforços de crescimento em modelos predatórios, os países em desenvolvimento poderão contar com um aporte de US$ 100 bilhões anuais por parte dos países desenvolvidos. Além disso, doadores e bancos multilaterais de desenvolvimento devem dedicar metade de todo o seu apoio nesta área para projetos de adaptação e resiliência aos efeitos do aquecimento.
O Brasil está na tripla condição de país em desenvolvimento, explorador de petróleo e um dos maiores emissores de carbono (6º ou 5º lugar, dependendo de como se faz a conta), principalmente em razão do desmatamento, segundo a ex-presidente do Ibama e especialista sênior em Políticas Públicas do Observatório do Clima, Suely Araujo.
— O desmatamento equivale a 44% das nossas emissões. Se somado ao que emitem as atividades agropecuárias, temos 70% das nossas emissões na categoria das Mudanças do Uso da Terra — explicou a especialista durante audiência pública na Comissão de Meio Ambiente do Senado (CMA), em 20 de agosto. A reunião foi coordenada pela senadora Eliziane Gama (Cidadania-MA), responsável por avaliar a política climática executada pelo governo Federal, com ênfase na prevenção e no controle de desmatamentos e queimadas nos biomas Amazônia, Cerrado e Pantanal, com o objetivo de identificar falhas, omissões e propor recomendações.
Suely Araujo observa que o lugar do Brasil no ranking de emissões o deixa numa posição de grande responsabilidade e na obrigação de ir além do habitual.
— Os compromissos do Brasil, como o de outros países, são insuficientes. É preciso reduzir não só o desmatamento ilegal, mas também aquele para o qual se pode obter autorização, de modo que nos aproximemos do desmatamento zero. Este ano ainda devemos desmatar dez mil quilômetros quadrados na Amazônia, o que é muito ruim, quando deveríamos desmatar no máximo três mil [quilômetros] de acordo com a política climática — afirmou.
A analista do Observatório do Clima assinala o embaraço causado pelo que se convencionou chamar de “pedalada climática”: O Brasil refez sua contabilidade de emissões no ano-base de 2005, para cima, mas não alterou os percentuais de corte propostos originalmente ao Acordo do Clima, em 2015. Resultado: abriu espaço para continuar emitindo muito CO2, inclusive por meio do desmatamento. A questão está na Justiça.
— Não adianta apenas reativar a fiscalização, mas fazê-la dentro de um planejamento amplo que envolva a retomada de planos setoriais para a Amazônia e o Cerrado e a utilização de recursos de R$ 3 bilhões do Fundo Amazônia que estão parados por implicância do governo Bolsonaro. A pressão tem de ser para o que o governo trabalhe, execute política públicas — sugeriu Suely Araujo.
A julgar pelas verbas orçamentárias planejadas e pagas, levando em conta apenas o Ministério do Meio Ambiente, a condução dessas políticas públicas tem destino incerto. Em 2021, os recursos destinada ao MMA são da ordem de R$ 2,9 bilhões, ou 0,1% do bolo destinado à área federal. Até o dia 8, haviam sido pagos R$ 1,6 bilhão, mas isso inclui restos a apagar de outros anos. A verba reservada a um fundo específico para programas relacionados à política climática é, percentualmente, ainda mais modesta: meros R$ 91,6 mil, ou 0,01% do orçamento da pasta.
Além da sentida desarticulação das áreas de fiscalização ambiental, que têm sido hostilizadas pelo atual governo, o país se ressente de estruturas e mecanismos que tornem mais dinâmico o trabalho de reduzir as emissões de carbono. Um desses instrumentos inclusive poderia carrear recursos externos ao Brasil, mas sequer está normatizado. Trata-se do Mercado Brasileiro de Redução de Emissões (MBRE), mais conhecido como mercado de créditos de carbono. Ele está previsto na lei que instituiu a Política Nacional de Mudança do Clima (lei 12.187, de 2009) e é uma recomendação do Protocolo de Quioto, tratado internacional ratificado pelo Brasil. Está, portanto, há 12 anos esperando regulamentação — que poderá vir antes da COP26 — caso seja aprovado na Câmara dos Deputados e depois, no Senado, o Projeto de Lei (PL) 528/2021.
Conforme a Agência de Notícias da Câmara, o crédito de carbono é um certificado que atesta e reconhece a redução de emissões de gases do efeito estufa (GEE). Pelo projeto, um crédito de carbono equivalerá a uma tonelada desses gases que deixarem de ser lançados na atmosfera. Quem mantiver uma floresta em pé, fizer reflorestamento ou adotar qualquer medida que ajude a tirar carbono da atmosfera, poderá vender esse crédito para quem emite carbono — indústrias, projetos agropecuários ou de urbanização, por hipótese.
“Os títulos gerados serão negociados com governos, empresas ou pessoas físicas que têm metas obrigatórias de redução de emissão de GEE, definidas por leis ou tratados internacionais”, informa a mesma agência de notícias. O projeto em análise naquela Casa foi apresentado pelo deputado Marcelo Ramos (PL-AM).
Corremos contra o relógio
Estamos a caminho de atingir 1,5 grau de aquecimento mais cedo do que o previsto anteriormente.
Nos cenários estudados pelo IPCC, há mais de 50% de chance de que a meta de 1,5 grau seja atingida ou ultrapassada entre 2021 e 2040. Em um cenário de altas emissões, o mundo atingirá o limite de 1,5 grau ainda mais rapidamente — entre 2018 e 2037.
Se os países seguirem um caminho de altas emissões de carbono, o aquecimento global poderá subir para 3,3 graus a 5,7 graus acima dos níveis pré-industriais no final do século.
Em comparação, o mundo levou 3 milhões de anos para atingir um aquecimento global de mais de 2,5 graus. As emissões causadas pelo homem, como a queima de combustíveis fósseis e o corte de árvores, são responsáveis pelo aquecimento recente. Do 1,1 grau de aquecimento que vimos desde a era pré-industrial, o IPCC concluiu que menos de 0,1 grau se deve a forças naturais, como vulcões ou variações do Sol.
A terra pode parar de absorver CO2
O relatório do IPCC alerta para a possibilidade muito alta de que os sumidouros de carbono — a própria Terra e os oceanos — correm grande risco. Atualmente, eles absorvem mais da metade do dióxido de carbono que o mundo emite, mas se tornam menos eficazes na absorção de CO2 conforme as emissões aumentam. Em alguns cenários estudados, a terra deixa de ser um sumidouro de carbono e acaba se transformando em uma fonte, emitindo CO2 em vez de sugá-lo, o que pode levar a um aquecimento descontrolado. Já estamos vendo isso na floresta amazônica, devido a uma combinação de aquecimento local e desmatamento. Além de afetar os esforços climáticos mundiais, tal fenômeno representa riscos significativos para a segurança alimentar e hídrica dos países da região e pode levar à perda irreversível da biodiversidade.
O pior poderá vir
Muitas consequências das mudanças climáticas se tornarão irreversíveis com o tempo, principalmente o derretimento das camadas de gelo, a elevação dos mares, a perda de espécies e a acidificação dos oceanos. E os impactos continuarão a aumentar e se agravar à medida que as emissões aumentem.
A chance de passarmos dos pontos de não retorno, como o aumento do nível do mar devido ao colapso das camadas de gelo ou mudanças na circulação dos oceanos, não pode ser excluída de um planejamento futuro. A 3 graus e 5 graus, respectivamente, as projeções sugerem:
- Uma eventual perda quase completa da camada de gelo da Groenlândia, que contém gelo suficiente para elevar o nível do mar em 7,2 metros.
- Perda total da camada de gelo da Antártica Ocidental, que contém gelo equivalente para elevar o nível do mar em 3,3 metros.
Isso mudaria completamente a feição dos litorais em todos os lugares do planeta.
Estamos todos no mesmo barco
O relatório do IPCC mostra que nenhuma região ficará intocada pelos impactos das mudanças climáticas, com enormes custos humanos e econômicos que superam em muito os custos da ação. O sul da África, o Mediterrâneo, a Amazônia, o oeste dos Estados Unidos e a Austrália verão um aumento de secas e incêndios, que continuarão a afetar os meios de subsistência, a agricultura, os sistemas hídricos e os ecossistemas. As mudanças na neve, gelo e inundações de rios são projetadas para impactar a infraestrutura, transporte, produção de energia e turismo na América do Norte, Ártico, Europa, Andes e diversas outras regiões. As tempestades provavelmente se tornarão mais intensas na maior parte da América do Norte, Europa e Mediterrâneo.
Mais resiliência é a resposta ao estrago feito
Já induzimos tanto aquecimento no sistema climático que, mesmo com medidas rigorosas de redução de emissões, é certo que vamos enfrentar eventos climáticos extremos mais perigosos e destrutivos do que vemos hoje.
Conforme o IPCC, o sistema climático não responderá imediatamente à remoção de carbono. Alguns impactos, como a elevação do nível do mar, não serão reversíveis por pelo menos vários séculos, mesmo após a queda das emissões.
Uma das formas de nos contrapormos a isso é investir fortemente em resiliência, ou seja, na capacidade dos ecossistemas e dos seres humanos de recuperarem o equilíbrio depois de terem sofrido perturbações e danos, mas também de resistirem a agressões. Um sistema resiliente é capaz de absorver distúrbios, choques e ainda assim manter suas funções e estruturas básicas. Para isso é preciso converter a gestão ambiental convencional, que usualmente busca controlar mudanças em uma nova, que tenha capacidade de acolher as mudanças (lentas ou rápidas) dentro dos ecossistemas.
O modelo de comando e controle deve ser substituído pela cooperação entre agentes públicos e privados afetados pelas mudanças: governos, parlamentos, Poder Judiciário, usuários locais dos recursos, cientistas e membros da comunidade com conhecimento tradicional.
É preciso ter metas ambiciosas
Limitar o aquecimento global a 1,5 grau até o final do século ainda está ao nosso alcance, mas requer mudanças transformadoras, por meio de ações rápidas e de grande envergadura.
Mesmo com metas ambiciosas, o cenário projetado pelo IPCC inclui um pico potencial de 1,6 grau entre 2041 e 2060, após o qual as temperaturas caem abaixo de 1,5 grau até o final do século.
A quantidade total de carbono (o chamado orçamento de carbono) que podemos emitir para limitar o aquecimento a 1,5 grau é de apenas 400 gigatoneladas de dióxido de carbono (GtCO2) no início de 2020. Esse volume pode variar em 220 GtCO2 ou mais, levadas em consideração as emissões de outros gases de efeito estufa, como o metano. Presumindo níveis de emissões globais recentes de 36,4 GtCO2 por ano, em cerca de 10 anos o “orçamento” estará esgotado. Um dado que nos situa quanto à capacidade de reduzir o carbono: embora as emissões globais tenham caído devido à covid-19, elas voltaram a aumentar rapidamente.
Há que mudarmos hábitos
A forma como usamos e produzimos energia, fazemos e consumimos bens e serviços e administramos nossas terras terá de ser redefinida. Limitar os efeitos perigosos da mudança climática exige que o mundo alcance emissões líquidas zero de CO2 e faça grandes cortes nos outros gases de efeito estufa, como o metano. A remoção de carbono pode ajudar a compensar as emissões mais difíceis de abater, seja por meio de abordagens naturais, como o plantio de árvores, ou de abordagens tecnológicas, como a captura e armazenamento direto de ar.
Embora seja difícil atingir a meta de 1,5 grau — e isso vai exigir um gerenciamento das compensações — também há uma grande oportunidade: a transformação pode levar a empregos de melhor qualidade, benefícios para a saúde e para a vida na Terra. Governos, empresas e outros atores estão lentamente reconhecendo esses benefícios, mas é necessário agir com mais determinação, ousadia e rapidez.
Uma questão de compromisso
A mensagem do relatório é clara: esta é a década decisiva para limitar o aumento da temperatura a 1,5 grau. Se coletivamente falharmos em reduzir as emissões na década de 2020 e zerar as emissões líquidas de CO2 por volta de 2050, limitar o aquecimento a 1,5 grau está fora de alcance. O IPCC entende que agora é hora de governos, empresas e investidores intensificarem suas ações na proporção e na escala da crise. Durante os últimos meses antes das negociações climáticas da COP26, em Glasgow, Escócia, é crucial que os países proponham metas de redução de emissões mais fortes para 2030 e se comprometam a atingir a neutralidade de carbono até a metade do século, se não antes. Esses compromissos precisam ser assumidos com as conclusões do relatório do IPCC em mente, para que haja chance de um futuro menos catastrófico.
Temos a ciência a nosso favor
Nossa compreensão do clima e da conexão dos eventos meteorológicos extremos com o aquecimento induzido pelo homem tornou-se muito sofisticada. Estão disponíveis dados observacionais, reconstruções paleoclimáticas aprimoradas, modelos de alta resolução, capacidade de simular o aquecimento recente e novas técnicas analíticas. Um estudo recente descobriu que o calor extremo (que se tornou pelo menos duas vezes mais provável como resultado da mudança climática induzida pelo homem) foi um dos principais impulsionadores dos recentes incêndios na Austrália, por exemplo. Outro estudo preliminar sugere que o recente calor extremo no noroeste do Pacífico dos EUA e Canadá seria "virtualmente impossível" sem as mudanças climáticas causadas pelo homem.
Os cientistas também descobriram que a influência humana é o principal motor de muitas mudanças na neve e no gelo, nos oceanos, na atmosfera e na terra. As ondas de calor marinhas, por exemplo, tornaram-se muito mais frequentes no século passado, e o IPCC observa que as atividades humanas contribuíram com 84% a 90% delas desde pelo menos 2006.
Todo esse arsenal de conhecimento e capacidade tecnológica de monitoramento será crucial para acompanhar a trajetória das mudanças climáticas e apontar caminhos para minorar os danos e fortalecer ecossistemas e comunidades humanas.
Mas para isso é preciso que os países garantam investimentos à continuidade e ao aumento das pesquisas, além de incentivarem o desenvolvimento de tecnologias e ouvir os cientistas na hora de formularem políticas públicas voltadas ao clima.
Uso da terra
A derrubada de cobertura vegetal mostra-se um dos aspectos mais danosos da relação do Brasil com seu meio ambiente, que acaba se refletindo historicamente em outros, como a ocorrência de incêndios, a redução da superfície das águas e a degradação dos rios por garimpos (ver matéria sobre garimpos no "Saiba mais").
Esses três temas foram abordados em relatórios amplos divulgados recentemente pela organização MapBiomas cobrindo o período de 1985 a 2020 a partir do processamento detalhado de imagens de satélites.
Nesses 36 anos, o Brasil perdeu 82 milhões de hectares de vegetação nativa, área equivalente a três vezes e meia o território do estado de São Paulo, principalmente para a agropecuária. A superfície de rios e outras fontes naturais de água foi reduzida em 7,6%, mas se observado apenas o período de 1991 a 2020, a perda dobra para 15,7%.
“O sinal mais assustador, mais preocupante, foi a perda de água nas várzeas. Essas áreas têm uma dinâmica de expansão e contração, mas nos últimos anos nós temos observado que a água não está expandindo mais”, disse o coordenador do Grupo de Trabalho de Águas do MapBiomas, Carlos Souza, durante o lançamento desse relatório específico.
“Essas pesquisas têm correspondência com os relatos de campo. Há escassez maior de água, maior intensidade do período de estiagem. Outro aspecto muito importante: a gente tem uma frequência e uma intensidade maior das queimadas em Roraima”, disse Haron Xaud, pesquisador da Embrapa naquele estado e líder do Projeto Terraamz.
A perda de água detectada pelo MapBiomas é circunstancialmente agravada, dependendo das condições metereológicas de curto prazo, o que está levando a prejuízos além do puramente ambiental, com fortes impactos na economia e na vida social. No momento, a diminuição do nível dos reservatórios de água para a abastecimento vai voltando a níveis da última grande crise hídrica. Isso porque o desmatamento na Amazônia prejudica o fluxo de umidade dos chamados rios voadores em direção ao Sudeste, conforme Pedro Luiz Cortês, professor do Programa de Pós Graduação em Ciência Ambiental na Universidade de São Paulo (USP), explicou na apresentação do relatório.
Os lagos das hidrelétricas estão do mesmo modo em níveis muito baixos, com sérios riscos ao fornecimento de energia elétrica, o que já repercute nas contas de luz. A Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) anunciou aumento no preço de cada 100 quilowatts hora de R$ 6,24, em junho, para R$ 9,49, em julho, aumento de 52,04%, mas já está previsto novo aumento de 15% em setembro. Para não causar um colapso na geração de oito usinas localizadas ao longo das bacias dos rios Tietê e Paraná, o governo determinou a retenção de água nos reservatórios das hidrelétricas, mas isso acabou levando à diminuição do volume da hidrovia Tietê-Paraná e, por conseguinte, do transporte de soja por aquele modal. Já estão previstas demissões no setor, sem contar a necessidade de desvio de parte substancial da carga das barcaças para rodovias, com aumento de custos e de poluição. Esta vai igualmente aumentar pelo uso de termoelétricas, que ainda por cima geram energia mais cara. Só no setor de transporte hídrico, estima-se prejuízo de R$ 3 bilhões, mas a seca combinada a geadas de um inverno incomum está prejudicando a própria safra de grãos, que não sairá ilesa este ano.
A crise hídrica e energética foi discutida na quarta-feira (8) em reunião da Comissão de Fiscalização Financeira e Controle da Câmara dos Deputados. Lá, o representante da Aneel informou que a capacidade geral dos reservatórios das usinas hidrelétricas pode ficar abaixo dos 19% registrados na crise de 2014. Atualmente está em 28,8%. Segundo a Agência Câmara de Notícias, especialistas presentes na audiência disseram achar que "o governo agiu tarde diante da falta de chuvas".
Cerrado perdeu quase a metade de sua cobertura natural
Amazônia perdeu 44 milhões de hectares em 36 anos
O aspecto mais dramático dos relatórios do MapBiomas é o fogo, que não dá sossego em várias regiões e provoca cenas de horror pela visão de animais selvagens e domésticos calcinados, principalmente no Pantanal Matogrossense, mas também do desespero de ribeirinhos e fazendeiros. Segundo o MapBiomas Fogo, em 36 anos o Brasil queimou 1,7 milhão de quilômetros quadrados, ou cerca de 20% do território nacional, numa escala crescente. A cada ano, uma área maior que a Inglaterra foi afetada, sendo que 61% queimou duas vezes ou mais.
Ao contrário do que se poderia pensar, o fogo não afeta apenas o Pantanal, a Amazônia, o Cerrado e até a já bastante devastada Mata Atlântica. Bioma exclusivamente nosso, no qual imaginamos uma agropecuária de convivência passiva na região do semiárido, a Caatinga é palco de queimadas, hábito cultural arraigado nos brasileiros. Associado à criação de gado e caprinos, o fogo está degradando tanto o solo em vários estados nordestinos que o risco do aparecimento de desertos é altíssimo:
— A desertificação é causada por fatores climáticos, associados à degradação ambiental, como desmatamento, sobrepastoreio [pecuária acima do limite suportável], queimadas, práticas agrícolas inadequadas, que levam à perda do solo, à erosão e, consequentemente, à degradação grave e à desertificação — explica o doutor em meteorologia Humberto Barbosa, professor da Universidade Federal de Alagoas (Ufal) e coordenador do Laboratório de Análise e Processamento de Imagens de Satélites (Lapis). (ver entrevista na íntegra mais à frente).
Na reunião da CMA do dia 20, a coordenadora do Programa Cerrado e Caatinga (ISPN), Isabel Figueiredo, chamou a atenção para a urgência de se estabelecer um sistema de alertas de incêndios nesses biomas nos mesmos moldes do que já é feito na Amazônia.
— As áreas de vegetação aberta, como as do Cerrado, podem dar a impressão de que não absorvem carbono, mas as raízes profundas são muito úteis nessa tarefa — disse a pesquisadora.
Entre as medidas sugeridas à CMA para a redução nas emissões de CO2, a coordenadora do ISPN deu ênfase à ampliação do Manejo Integrado do Fogo (MIF), um conjunto de técnicas e práticas que visam, além de reduzir os incêndios, proteger regiões e territórios que são mais sensíveis, como as veredas, as matas e também moradias e lavouras.
— Hoje o ICMBio e o Ibama já utilizam o MIF em algumas unidades de conservação e terras indígenas, mas esse uso precisa ser ampliado para todas as áreas protegidas, pelo menos no Cerrado e no Pantanal. E para as áreas privadas. As reservas legais das fazendas também têm de ser manejadas, de modo que não queimem e o fogo passe eventualmente a uma área protegida. Até porque elas são também áreas protegidas.
O manejo tem como uma de suas providências a queima preventiva de trechos escolhidos no final da estação chuvosa e início da estação seca, sob a vigilância de brigadistas e em horários específicos, de maneira que o excesso de biomassa seja eliminado, evitando incêndios de grandes proporções e criando barreiras à progressão do fogo.
— O fogo é, sim, um aliado para reduzir incêndios no caso no Cerrado, do Pantanal. Isso já está bastante estudado, já tem uma série de artigos científicos mostrando os benefícios. A redução é de até 40% a mais nas emissões de carbono do que essa se essa mesma área fosse queimada no auge da seca, em setembro, outubro.
Segundo Isabel Figueiredo, há um projeto de lei parado na Câmara sobre o assunto desde 2018, apesar de requerimento de urgência assinado por todos os líderes, inclusive o agora presidente da Casa, Arthur Lira. Entre as mudanças propostas, O PL 11.276/2018 envolve mais gente na formulação e na estratégia do manejo e profissionaliza os brigadistas.
Do ponto de vista socioambiental, a pesquisadora enfatizou a premência de se reconhecer os territórios ocupados por povos indígenas, por comunidades tradicionais e agricultores familiares, por manterem grandes áreas de vegetação nativa em meio às suas áreas produtivas, o que é chamado tecnicamente de "mosaico".
— A gente pode observar nesses locais a continuidade dos ciclos de água, a fixação e a continuidade dos ciclos de carbono, além de outros processos ecológicos, como a conservação do solo, a polinização, a dispersão, os fluxos de biodiversidade. A FAO [braço da ONU para a alimentação] publicou recentemente um relatório mostrando evidências do papel fundamental dessas comunidades e desses povos indígenas na conservação da vegetação nativa e na manutenção de estoques de carbono no planeta inteiro — disse Isabel Figueiredo.
A argumentação dela encontra apoio numa das descobertas do MapBiomas Fogo: embora ameaçadas e, muitas vezes, invadidas, as terras indígenas estão entre as áreas que menos queimaram de1985 a 2020.
A representante do ISPN pediu também que seja feito um esforço para engajar a sociedade como um todo na questão do clima e da emissão de gases de efeito estufa, visto muitas vezes como um assunto distante dos cidadãos comuns que, a despeito disso, sentem na pele o aumento da temperatura local e a falta de chuvas.
— A gente pode estar muito próximo do momento a partir do qual o colapso se deu e já não se pode voltar. Essas informações ainda são mistério para a ciência e a gente precisa se antecipar. Ainda não é, não é ainda, mas a gente está quase lá — advertiu.
Na mesma reunião, Leonardo Gomes, diretor de Relações Institucionais do Instituto SOS Pantanal, deu um exemplo do que pode ser esse ponto sem retorno, ao citar estudo coordenado por José Marengo, do Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais.
— Levando em conta o cenário da pior seca dos últimos 50 anos em 2021, quando algumas regiões do Pantanal vão chegar próximo dos 40 graus de temperatura e 10% de umidade, é possível imaginar esse cenário ainda mais intensificado até o final do século, um cenário de muita preocupação, e até de desertificação de muitas áreas do Pantanal.
Se o Pantanal passar a abrigar desertos, não será por falta de aviso.
Entrevista com Ivan Anjo Diniz, coordenador da Rede Contra o Fogo
Projetos de lei relacionados às mudanças climáticas:
- PL 11.276/2018: institui a Política Nacional de Manejo Integrado do Fogo;
- PL 528/2021: institui o Mercado Brasileiro de Redução de Emissões (MBRE), por meio do qual se dará a compra e a venda de créditos de carbono no país;
- PL 191/2020: estabelece as condições específicas para a realização da pesquisa e da lavra de recursos minerais e hidrocarbonetos e para o aproveitamento de recursos hídricos para geração de energia elétrica em terras indígenas e institui a indenização pela restrição do usufruto de terras indígenas;
- PL 490/2007: estabelece que as terras indígenas serão demarcadas através de leis e, na prática, estabelece 1988 como o marco temporal para a ocupação de terras legalizáveis por comunidades indígenas;
- PL 2.847/2021: amplia o Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros, localizado nos municípios de Alto Paraíso de Goiás, Cavalcante, Nova Roma, Teresina de Goiás e São João da Aliança, para o estado de Goiás;
- PDC 1.100/2018, com origem na MSC 308/2018: aprova o texto da Emenda de Kigali ao Protocolo de Montreal. A emenda prevê reduções graduais na produção e utilização de gases não agressivos à camada de ozônio (hidrofluorcarbonbos-HFCs), mas causadores de efeito estufa;
- PDL 406/2019, com origem na MSC 600/2018: aprova o texto do Acordo de Cooperação Antártica entre Brasil e Chile, de 2013, com repercussão na proteção ambiental da Antártida.
- Projeto de Lei (PL) 2159/2021: estabelece normas gerais para o licenciamento de atividade ou de empreendimento utilizador de recursos ambientais, efetiva ou potencialmente poluidor ou capaz de causar degradação do meio ambiente.
Normas ambientais relacionadas às mudanças climáticas
- Lei 12.187, de 2009: institui a Política Nacional sobre Mudança do Clima (PNMC)
- Lei 11.284, de 2006: dispõe sobre a gestão de florestas públicas para a produção sustentável, institui o Serviço Florestal Brasileiro (SFB) no âmbito do Ministério do Meio Ambiente e cria o Fundo Nacional de Desenvolvimento Florestal (FNDF)
- Compilado de normas ambientais federais e estaduais - Senado, 2013
Entrevista
Humberto Barbosa, pesquisador do Lapis/Ufal
“A mudança climática precisa integrar a agenda governamental”
Professor associado do Instituto de Ciências Atmosféricas da Universidade Federal de Alagoas (Ufal) e coordenador do Laboratório de Análise e Processamento de Imagens de Satélites (Lapis), Humberto Barbosa é uma das principais referências no Brasil em recepção, processamento, análise e distribuição de dados de satélites para fins metereológicos. Graduado em 1995 no curso de Meteorologia da Universidade Federal de Campina Grande (UFCG), é mestre em Sensoriamento Remoto pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), doutor em Ciência do Solo/Sensoriamento Remoto pela Universidade do Arizona (Uofa) e pós-doutor pela Fundação Cearense de Meteorologia e Recursos Hídricos (Funceme). Além de outras colaborações em projetos internacionais voltados a estudos metereológicos, participou como editor e coordenador de capítulos do último relatório do IPCC sobre as mudanças climáticas, com destaque para o que trata da degradação dos solos.
Uma de suas mais importantes pesquisas resultou no livro Um Século de Secas, que amplifica a análise de problemas ambientais complexos, como desertificação e mudança climática em municípios do Semiárido brasileiro. O resultado é a constatação, por meio de uma metodologia própria, da convergência de vulnerabilidades ecológicas, socioeconômicas e institucionais que levam à falta de resposta desses municípios aos problemas ambientais em si. “A questão passa necessariamente pela agenda das políticas e deve ser direcionada à esfera local, onde cada município enfrenta os impactos crescentes da mudança climática”, opina Barbosa, que defende ainda uma participação mais efetiva do Poder Legislativo na definição dos rumos que o país deve adotar para cumprir suas responsabilidades com a limitação do aquecimento global.
Agência Senado — O IPCC fez aquele que foi o alerta mais contundente em toda a sua história no início de agosto. O senhor acha que a repercussão na imprensa, nos meios governamentais e na sociedade está altura do conteúdo do relatório?
Humberto Barbosa — Sim. Em 2019, eu participei da elaboração do relatório especial do IPCC sobre mudança climática e degradação das terras. Desde aquela ocasião, já percebi uma cobertura mais abrangente por parte da mídia brasileira e da comunidade científica. Porém, com relação à governança, percebo que a mudança climática ainda não integra a agenda governamental, com a dimensão que deveria, na definição das políticas. E aí eu incluo a participação da sociedade civil nesse processo de governança.
Nós fizemos uma pesquisa, que resultou no livro Um Século de Secas, na qual definimos uma metodologia para analisar a governança de problemas ambientais complexos, como desertificação e mudança climática, em municípios do Semiárido brasileiro. Identificamos uma convergência de vulnerabilidades (ambiental, climática, à desertificação, institucional), que quando associadas à vulnerabilidades socioeconômicas (pobreza, baixo Índice de Desenvolvimento Humano Municipal (IDHM), insegurança hídrica e alimentar), resulta em falta de capacidade institucional desses municípios para lidar com esses problemas ambientais.
A questão passa necessariamente pela agenda das políticas e deve ser direcionada à esfera local, onde cada município enfrenta os impactos crescentes da mudança climática. Por exemplo, a perda de produtividade do solo, pois o Semiárido brasileiro já conta com 13% do seu território em processo de desertificação.
Agência Senado — Quais são, na sua opinião, as grandes novidades desse relatório? O que deveria nos deixar mais mobilizados, se é que tudo não é assustador na mesma medida?
Humberto Barbosa — Destaco dois pontos: em primeiro lugar, a parte do aumento do nível dos oceanos, que vão continuar mesmo se cumprirmos todas as metas previstas, de redução a zero nas emissões. E o processo irreversível de derretimento do gelo nas regiões polares e de derretimento do gelo nas geleiras das montanhas. Em segundo, a frequência e a intensidade dos eventos extremos, aumentando as áreas de inundações e secas, em várias regiões do globo.
Desde o último relatório de avaliação do IPCC em 2013, há evidências crescentes de que os furacões têm se tornado mais intensos e intensificados mais rapidamente do que há 40 anos.
O que deveria nos deixar mais mobilizados é o controle do desmatamento na Amazônia, pelo papel que ela exerce no clima regional e global. Vale lembrar que a Amazônia é responsável diretamente pelas chuvas na região Sudeste, que abriga, de longe, a maior parte da população, além dos principais setores econômicos.
Agência Senado — No papel de um estudioso dos processos de desertificação, como vê o avanço desse fenômeno no Brasil? O que pode ser feito para frear a marcha dos desertos?
Humberto Barbosa — O que pode ser feito é o manejo adequado dos recursos naturais, principalmente no Semiárido brasileiro e nas áreas subúmidas secas, que concentram o processo de desertificação no Brasil. A desertificação é causada por fatores climáticos, associados à degradação ambiental, como desmatamento, sobrepastoreio [pecuária acima do limite suportável], queimadas, práticas agrícolas inadequadas, que levam à perda do solo, à erosão e, consequentemente, à degradação grave e à desertificação.
Como vejo o avanço no Brasil: As áreas desertificadas, ou seja, com solos degradados de forma grave ou muito grave são um laboratório da possível expansão que pode ocorrer em outras áreas e que aumenta a fome da população que vive da agricultura de sequeiro. Então, é preciso conter os principais mecanismos dessa degradação, citados acima. Por outro lado, tem a questão ecológica, de perda da diversidade biológica, de muitas espécies que sequer foram exploradas pela ciência. É por isso que o aumento das áreas de conservação é necessário, para que possa garantir esse patrimônio biológico para as futuras gerações.
Agência Senado — Nas últimas semanas, uma série de estatísticas estarrecedoras têm sido divulgadas. É o fogo novamente no Pantanal, na Amazônia, em áreas do Cerrado e até na Mata Atlântica. Há dados também sobre a diminuição da superfície de cursos d’água e de lagoas. Dizem que “o Brasil está secando” e, no caso dos reservatórios usados para gerar eletricidade, há uma seca temporária gravíssima, até com risco de apagões. Para onde caminha o país?
Humberto Barbosa — São os chamados eventos extremos e temos chamado atenção, do ponto de vista climático, para o aumento na frequência e intensidade da seca, que influencia as próprias queimadas na Amazônia, é claro, associadaacabei de liberar e ia fazer à ação humana. Todos esses fatores estão interligados. Recentemente, publicamos um artigo, em um periódico internacional, sobre o aumento das secas extremas na Amazônia. Identificamos que, desde os anos 1970, esse fenômeno se tornou mais frequente e intenso na Amazônia. Agora, está para sair um novo artigo, no qual analisamos toda a Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco, que segue um padrão similar. Ou seja: nas últimas décadas aumentou a quantidade de secas de intensidade extrema.
Nos últimos anos, toda aquela área do Rio São Francisco vem enfrentando degradação, com a mudança no uso e ocupação do solo, que inclui a conversão de terras para a agricultura, em detrimento da vegetação nativa.
Outra característica é que tanto a Amazônia quanto a Bacia do Rio São Francisco, principalmente no oeste da região Nordeste, têm aumentado a quantidade de queimadas, em razão justamente dessas atividades antrópicas, associadas ao próprio processo de mudança ambiental.
Agência Senado — Como avalia, do ponto de vista da sustentabilidade, projetos de distintos governos como a entrega de parques nacionais à iniciativa privada, a Usina de Belo Monte e a transposição do Rio São Francisco?
Humberto Barbosa — O Brasil já deveria ter se engajado efetivamente na agenda ESG [sigla em inglês para “boas práticas ambientais, sociais e de governança”]*, ou seja, uma agenda de políticas que atenda as demandas sociais e econômicas, mas tendo a sustentabilidade ambiental como diretriz. Nessa agenda, cabe a parceria público-privada, faz parte da governança, desde que seja efetivamente participativa. Foi isso que trabalhamos na pesquisa do livro Um Século de Secas, com relação à governança participativa das águas no Brasil. E vale lembrar que não é possível atender a uma agenda ESG sem investimentos fortes em educação, ciência, tecnologia e inovação.
(*) “Environmental, Social and Governance”.
http://www.ibama.gov.br/noticias/66-2015/393-parecer-do-ibama-identifica-pendencias-que-impedem-a-emissao-da-licenca-de-operacao-para-belo-monte
Agência Senado — Assim como a maior parte dos países, o Brasil vinha tendo dificuldades de avançar com mais força e rapidez em direção a uma economia limpa e uma diminuição das emissões de CO2. Nos últimos anos, houve um rompimento desses esforços no discurso e na prática. Quais devem ser as consequências se o país quiser, em algum momento, retomar de fato seus compromissos com a desaceleração do aquecimento global?
Humberto Barbosa — Em primeiro lugar, retomar o papel de protagonismo ambiental que o Brasil sempre exerceu e cumprir as metas do Acordo de Paris. Em novembro vai acontecer a COP26, na qual haverá a negociação sobre a precificação do carbono. E isso é de grande interesse para o Brasil. O nosso maior problema com as emissões hoje, é conter o desmatamento/queimadas e boas práticas de produção agropecuária, que inclui a agricultura de baixo carbono.
Agência Senado — Individualmente ou como parte de algum grupo ou instituição, o senhor tem propostas de metas ou estratégias para cortes de emissão de carbono pelo Brasil. Em outros termos, quais as propostas de metas e estratégias a comunidade científica brasileira tem a apresentar aos governantes, lembrando que a COP26 será daqui a pouco, em novembro?
Humberto Barbosa — De forma geral, a comunidade científica tem chamado atenção para a retomada das políticas de proteção aos biomas brasileiros, principalmente Amazônia, Cerrado e Caatinga, sendo esta última a mais impactada pela mudança climática. A proteção desses biomas inclui monitoramento contínuo. A Caatinga, por exemplo, ainda não conta com um programa institucional de monitoramento de desmatamento, como o Prodes da Amazônia, que foi implantado em1988. São necessários também a fiscalização dos crimes contra o patrimônio ambiental brasileiro; o cumprimento das leis ambientais para coibir ações como desmate e queimadas; a valorização das comunidades indígenas e quilombolas, que exercem um papel importante nessa conservação e prospecção de espécies nativas desses biomas para fomentar econegócios nas comunidades, ou seja, promover a sustentabilidade com iniciativas inovadoras, que reduzam a pobreza.
Agência Senado — O relatório do IPCC fala da necessidade de se adotar metas ousadas, de se ter compromisso e efetividade na redução das emissões. Vê o Brasil com disposição e capacidade política para uma tarefa dessa envergadura?
Humberto Barbosa — O Parlamento brasileiro exerce um papel importante nesse processo, pois não só define as políticas como fiscaliza o cumprimento da legislação. Nesse sentido, com uma participação ativa dos parlamentares, é possível reverter a atual conjuntura ambiental brasileira. A capacidade política, nós já mostramos, em alguns momentos históricos, que tivemos, como a Constituição de 1988, que garantiu vários direitos socioambientais, em um momento em que ainda se falava muito pouco sobre esse assunto, em todo o mundo. A ECO-92 trouxe essa discussão da sustentabilidade para o Brasil, com os primeiros movimentos ambientalistas que contaram com a participação política. Então, temos expectativa de que a participação do Parlamento, nos próximos anos, recupere o papel histórico de protagonismo que exerceu em um passado recente.
Agência Senado — O que cabe a cada parte nessa tarefa desafiadora: setor público, setor privado empresarial e sociedade? Vale a pena pedir a pessoas que deixem de usar sacolinhas plásticas de supermercado ou isso não vai ter maiores consequências se a poluição de grandes fontes continuar acelerada e as fiscalização ambiental, desmantelada?
Humberto Barbosa — Mais uma vez, destaco a governança participativa, que envolve os três setores, para a gestão conjunta dos recursos naturais. Por exemplo, a questão da água, que requer uma adaptação de vários setores econômicos, para se ajustar a essa demanda contemporânea da mudança climática. A água se tornou uma commodity, que vai indexar as economias, sendo preciso iniciativas de conservação desse recurso natural, como um dos maiores ativos econômicos do futuro. No livro, discutimos amplamente esse processo, relacionado à mudança climática.
Agência Senado — A ciência avançou muito na detecção e no monitoramento de fenômenos climáticos e ambientais em geral, mas muita gente ainda duvida da palavra dos cientistas. E nos centros de decisão muitas vezes o apoio político e financeiro é negado à ciência. Com que forças, ela continuará a exercer seu papel?
Humberto Barbosa — O Brasil depende da ciência, para conseguir avançar em algumas áreas. Há a necessidade de ter a ciência como pauta das políticas públicas. O Brasil tem muitos problemas sociais e econômicos, de modo que a ciência, tecnologia e educação são primordiais para que o país ao menos recupere sua posição anterior.
Como autor de um relatório do IPCC, identificamos justamente essa necessidade de que países tropicais, como o Brasil e a África, pautem ações econômicas e decisões, em função do conhecimento científico que produzem. A agricultura tropical do Brasil é um exemplo de como a ciência fortaleceu essa área estratégica. Só a ciência pode ajudar nesse salto de competitividade, para superarmos as crises econômicas que enfrentamos, desde os anos 1970. É o caso da Embraer, que foi fundamental para o avanço da tecnologia espacial.
Agência Senado — A redução do aquecimento global é uma tarefa a ser compartilhada pelo conjunto das nações. O que pensa que pode ser realmente efetivo nesse concerto: ajuda financeira direta, programas de crédito de carbono, transferência de tecnologia?
Humberto Barbosa — A implementação e o cumprimento das metas do Acordo de Paris são o passo principal. Mas zerar as emissões até 2050 é o maior desafio dos países, que passa pelo investimento em uma matriz energética mais limpa, bem como na reestruturação do setor de transporte e da maneira como produzimos alimentos.
BIOMAS
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Reportagem: Nelson Oliveira Pauta, coordenação e edição: Nelson Oliveira Coordenação e edição de multimídia: Bernardo Ururahy Edição de tratamento de fotos: Ana Volpe Infografia: Cássio Costa, Cláudio Portella e Diego Jimenez Arte da capa: Bruno Bazílio Veja mais Infomatérias
Fonte: Agência Senado
https://www12.senado.leg.br/noticias/infomaterias/2021/09/o-aquecimento-global-no-limite
Vera Magalhães: O Brasil involuiu 20 anos
O isolamento brasileiro diante da histórica decisão do governo dos Estados Unidos de apoiar a suspensão temporária de patentes de vacinas para Covid-19 é especialmente emblemático porque nos permite fazer um retrato de hoje e de exatos 20 anos atrás, quando vivemos uma epopeia oposta da diplomacia brasileira e cravamos uma das nossas principais vitórias em organismos multilaterais, justamente no tema de patentes para remédios.
Foi em novembro de 2001, ainda sob os escombros do 11 de Setembro, que a mesma OMC, palco da guinada de Joe Biden, aprovou, em sua 4ª Conferência Ministerial realizada em Doha, no Qatar, uma resolução proposta inicialmente pelo Brasil prevendo que, em casos de epidemias, os países-membros da organização poderiam flexibilizar as regras de patentes previstas no Acordo de Direitos de Propriedade Intelectual Relacionadas ao Comércio e Saúde Pública (conhecido como Trips).
A resolução foi o marco final do que ficou conhecido como “guerra das patentes”, uma ofensiva do governo FHC em várias frentes (diplomática, econômica e de comunicação) para pressionar a indústria farmacêutica a baixar preços dos medicamentos que compunham o coquetel anti-Aids, fornecido gratuitamente pelo Ministério da Saúde, ameaçando com a quebra das patentes.
Corta para 2021, quando um desarvorado Itamaraty foi pego totalmente de surpresa pela mudança de posição dos Estados Unidos, que passaram a apoiar a proposta encabeçada pela Índia e pela África do Sul no fim de 2020, e apoiada por mais de 100 países, para a suspensão das patentes de vacinas contra a Covid-19 enquanto durar a pandemia.
Isso ajudaria a aumentar a produção de vacinas e a equalizar sua aplicação no mundo. Dados mostram que mais de 80% das doses aplicadas até hoje se concentram em países ricos.
O Brasil, que nem é rico nem está bem na fila da vacina, achou por bem fincar pé na posição anterior e ver a caravana global passar diante dos seus olhos, com grande possibilidade de até a União Europeia evoluir para acompanhar a posição americana.
Uma coisa era a discussão posta até o anúncio da posição dos Estados Unidos, em que o Congresso brasileiro discutia a quebra das patentes em território nacional: essa medida, isoladamente, teria pouco efeito prático, pois nossa capacidade de produção própria de vacinas, como temos visto, é pequena, ainda mais sem transferência de tecnologia. Além disso, havia setores fortes da diplomacia defendendo que isso poderia nos criar embaraço com os grandes fabricantes, atrasando ainda mais a chegada de imunizantes ao país.
Mas o cenário muda drasticamente com o apoio da Casa Branca à suspensão temporária das vacinas, ainda mais porque ele levará a uma pressão dos demais países também sobre os Estados Unidos e demais países ricos para a disponibilização imediata do excedente de vacinas que compraram, para a transferência de tecnologia a países pobres e para o fim de medidas protecionistas para a exportação de insumos destinados à produção desses imunizantes.
É desesperador que o Brasil opte por ficar falando sozinho diante de uma resolução com tamanho impacto histórico, geopolítico e econômico.
A desorientação demonstrada pela diplomacia brasileira nesse episódio é fruto e sinal do desmonte da política externa promovida pela nuvem de gafanhotos bolsonarista. É da mesma cepa dos sucessivos surtos que fazem o presidente insistir em brigar com a China neste momento grave em que dependemos dos chineses para a chegada de insumos para nossas poucas vacinas.
Vinte anos depois de brilharmos nos palcos internacionais com políticas de saúde pública e de diplomacia internacional arrojadas e inovadoras, estamos no cantinho da vergonha.
Fonte:
O Globo
https://blogs.oglobo.globo.com/vera-magalhaes/post/o-brasil-involuiu-20-anos.html
El País: Exército sabia dos pontos de maior risco de devastação da Amazônia, mas falhou no combate
Desmatamento foi recorde em junho, apesar de operação liderada por militares. Técnicos do Ibama, sob anonimato, dizem que comando erra ao usar ferramenta inédita do INPE. Defesa rebate
Gil Alessi, do El País
A operação de grandes proporções começou em maio. Sob a batuta do vice-presidente e general da reserva Hamilton Mourão, 3.815 militares, 110 veículos terrestres, 20 embarcações e 12 aeronaves foram despachados para a Amazônia. Com o objetivo de prevenir e reprimir delitos ambientais antes do grande período tradicional de queimadas, a ofensiva, batizada de Operação Verde Brasil 2, visava também ser uma resposta aos críticos que acusam o Governo Bolsonaro de negligenciar e, no limite, incentivar de maneira tácita, a destruição da selva.
Para além do contingente e dos veículos, os militares que comandavam a ação estavam munidos de dado estratégico e inédito: tinham um mapa das cinco áreas críticas que concentraram quase 45% do desmatamento total da floresta amazônica em 2020, um traçado feito com o auxílio de imagens de quatro satélites, tudo disponibilizado desde fevereiro pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). A iniciativa, elaborada em parceria com o Ibama, foi batizada de Deter-Intenso: a cada 24 horas é gerada uma imagem com definição de 10 metros quadrados mesmo com a presença de nuvens, o que permite avaliar a evolução dos focos de desmatamento e queimadas de forma sem precedentes. Uma ação efetiva de fiscalização nestes cinco pontos, cuja área representa 9% da Amazônia Legal, se traduziria em mais floresta em pé. Não foi o que ocorreu.
- Governo Bolsonaro sonha em driblar pressões ambientais
- Um quinto das exportações de soja da Amazônia e Cerrado à UE tem rastro de desmatamento ilegal
- Mesmo com presença de militares, desmatamento na Amazônia cresce em junho e é o maior em 5 anos
O desmatamento e as queimadas registraram recorde histórico em junho. Em julho, nova alta de 28%, com 6.803 focos de incêndio ante 5.318 em 2019. Além disso, houve aumento de 25% no desmatamento acumulado do semestre em comparação com o mesmo período de 2019: os alertas feitos à partir das imagens de satélite indicam devastação em 3.069,57 km², contra 2.302,1 km² no ano anterior. Para quatro fiscais do Ibama envolvidos direta ou indiretamente com a Operação Verde Brasil 2 —todos tiveram a identidade preservada para evitar retaliações, uma vez que estão subordinados ao Exército—, há razões claras para o descompasso entre a precisão da ferramenta nova e os resultados obtidos: os militares falharam no desenho e na execução das ações.
Os relatos colhidos pela reportagem apontam para a falta de efetividade dos militares na escolha dos alvos. Ainda que atuem dentro da área delimitada pelos pontos críticos (hotspots) do novo sistema de monitoramento do Inpe-Ibama, o comando está, segundo os fiscais, priorizando ações que não atacam diretamente focos de desmatamento e queimadas ativos, como por exemplo bloqueios em rodovias e apreensão de toras já derrubadas. Os garimpos ilegais, grandes vilões ambientais, também são poupados. Os servidores do Ibama apontam também para a falta de experiência do Exército na fiscalização. Criticam o foco em ações de patrulhamento e apreensões de madeira que não são efetivos para a preservação da Amazônia.
Indagado sobre o aumento no desmatamento, o Ministério da Defesa informou em nota que a operação “já contabiliza números expressivos”. “Foram realizadas 16.104 inspeções, patrulhas, vistorias e revistas, e a inutilização de 107 equipamentos como motores de garimpo, balsas, tratores, escavadeiras, veículos, entre outros (...)”, diz o texto. A nota também celebra 345 embarcações e 174 veículos apreendidos, 372 quilos de drogas e 28.000 metros cúbicos de madeira. “Foram ainda embargados 33.012 hectares e realizadas 153 prisões”, continua a pasta.
Apesar do tom otimista da nota da Defesa, o próprio vice-presidente afirma que o desmatamento da Amazônia estava “além daquilo que pode ser considerado como aceitável”. “A gente não nega que houve desmatamento além daquilo que pode ser considerado como aceitável, ou seja, dentro dos 20% de cada propriedade rural e fora das unidades de conservação e terras indígenas”, afirmou no dia 13 de junho, após a divulgação dos dados do Inpe.
Limitação das ações
Sob o comando dos militares, os fiscais do Ibama que também integram a Verde Brasil 2 reclamam que tinham pouca margem de manobra para agir, mesmo de posse das informações precisas do sistema Deter-Intenso e uma lista de hotspots. “Nós do Ibama sabíamos quais eram as áreas, os hotspots, e até fomos direcionados para alguns. Mas como a coordenação era do Exército, a gente propunha os alvos e eles que tinham que aprovar. O que observei: os garimpos ficaram de fora sempre, na hora que submetemos os alvos, todos eles foram cortados”, conta um fiscal sob condição de anonimato.
De acordo com esse fiscal, essa resistência do comando da Verde Brasil 2 a atacar focos de mineração ilegal ocorre por dois motivos: “São locais onde existe muito maquinário em locais isolados, logo teria que ser usado o procedimento de destruição. E eles deixaram claro que não queriam se ver atrelados a estas ações, ainda que amparados por lei”. Além disso, “existe a postura do presidente Jair Bolsonaro”, diz o fiscal. Ele se refere ao fato do mandatário ser crítico da repressão aos garimpos ilegais e da destruição de seus equipamentos.
Os servidores do Ibama ouvidos pela reportagem são unânimes ao avaliar que apesar de ser um grande aliado no apoio logístico de operações contra crimes ambientais, o Exército não tem vocação nem treinamento para fiscalizar. “Eles são um grande parceiro em várias operações já há alguns anos. Mas [na Verde Brasil] existe uma falta de objetivos sobre o que está sendo feito em campo, como se fiscalizar fosse manter presença, patrulhar, girar. Fiscalizar não é uma simples patrulha, não gera dissuasão no caso ambiental”, explica um fiscal. “O que gera dissuasão é ter a punição levada a cabo. Fiscalizar não é fazer uma ronda ostensiva: isso tem um efeito muito temporário e localizado. Você está em uma cidade, os criminosos ambientais vão pra outra, a patrulha acaba eles voltam”.
O critério do Ibama na escolha de alvos também era diferente dos do Exército. “Nós priorizamos sempre desmatamentos em andamento [detectados pelo Deter-Intenso]. Eles muitas vezes focam nos números. Apreensão de caminhões com tábuas ou toras de madeira, por exemplo. Só que isso, montar bloqueios nas estradas, não impede a devastação da floresta. É algo que nós fazíamos dez anos atrás”, disse o fiscal.
A reportagem também questionou o Ministério da Defesa sobre a escolha dos alvos da operação. Em nota, a pasta informou que isso “é decidido no âmbito do Grupo de Integração para proteção da Amazônia”. “Este colegiado reúne onze órgãos governamentais, entre agências ambientais e órgãos de segurança pública”, segue o texto. Ainda segundo a Defesa, dados do Deter-Intenso são utilizados, juntamente com outras informações, para subsidiar as escolhas dos alvos. De acordo com a pasta foram realizadas ações em quatro dos cinco hotspots monitorados, mas não foi informado qual o tipo de ação desenvolvido em cada um (barreira em estrada, apreensão de drogas, etc).
Evolução do monitoramento
Os dados recentes do desmatamento são decepcionantes, especialmente considerando o imenso avanço do monitoramento agora à disposição do Governo brasileiro. Para entender a dimensão, é preciso analisar a evolução dos métodos utilizados: o Deter-Intenso foi um aprimoramento do Deter, que monitora toda a região amazônica e outros biomas ameaçados com geração de imagens a cada cinco dias (ante intervalos de 24 horas da nova versão). “Para essas áreas onde há demanda maior [os hotspots] desenvolvemos essa solução. Isso é um avanço enorme na questão do monitoramento, pois permite direcionar de forma precisa o deslocamento de equipes de fiscalização. Mostramos aquilo que está crescendo, para que a fiscalização possa agir”, explica o coordenador do Programa Amazônia do Inpe, Cláudio Aparecido de Almeida.
No total o Deter-Intenso monitora cinco áreas críticas: Anapu e Novo Progresso, no Pará; Apuí no Amazonas, Candeias do Jamari (Amazonas e Rondônia) e Extrema (Acre e Rondônia), totalizando 485.000 km² (aproximadamente 9% da área da Amazônia Legal). A seleção dos locais foi feita com base em um documento do Ibama elaborado no final de 2019, e que listava dez hotspots. Indagado sobre a razão de não ter ocorrido queda no desmatamento tendo em vista o material produzido pelo Deter-Intenso somado ao efetivo da Verde Brasil 2, Cláudio de Almeida, do Inpe, afirmou que “a queda do desmatamento está associada a condução de várias políticas públicas, como por exemplo programa de valorização da floresta, a fiscalização em campo e o monitoramento. Dentre essas ações o Inpe é responsável pelo monitoramento”.
Um caso de sucesso do Ibama
Quando foi lançada em maio, os números da Verde Brasil 2 impressionaram: além do efetivo de quase 4.000 agentes e veículos, chamou atenção o custo de 60 milhões de reais, praticamente o Orçamento anual do Ibama para fiscalização. Este valor ainda pode aumentar: o Governo elaborou um projeto de lei que pede mais 410 milhões de reais para serem aplicados na Verde Brasil 2, prorrogada até novembro deste ano.
Apesar dos grandes recursos humanos, financeiros e tecnológicos a seu dispor, o grande exemplo de sucesso no combate à devastação da Amazônia este ano não foi dado pela Verde Brasil 2, e sim por uma operação do Ibama realizada entre 15 de janeiro e 30 de abril. A região escolhida foi o sul do Pará, na proximidade de Altamira, área que concentra quatro terras indígenas —Ituna, Itatá, Apyterewa e Trincheira Bacajá. A situação no local era dramática: em uma das terras os grileiros chegaram a construir uma pequena vila para atrair mais invasores, havia até mesmo um barracão com tanques para armazenar combustível de aeronaves. “Estas terras indígenas foram as mais desmatadas do Brasil em 2019, de acordo com as imagens de satélites. Lá havia vários focos de desmatamento ativos”, conta um fiscal do Ibama que participou da ação. O objetivo era ousado: zerar a devastação nos locais.
O efetivo era modesto quando comparado aos números da Verde Brasil 2: atuaram de 7 a 10 fiscais por mês, totalizando aproximadamente 40 profissionais. O baixo custo também chama a atenção: somadas as diárias do fiscais do Ibama (que são de 177 reais), chega-se a um valor de 212.400 reais. Com o custo do uso de duas aeronaves, chega-se a 1,5 milhão de reais. O resultado também diferiu do alcançado até o momento pela operação do Exército: “Nós zeramos o desmatamento na região no período em que atuamos. O impacto foi tão grande que ao eliminar a devastação naquelas áreas, derrubamos em 58% o número total de desmatamento em terras indígenas no Brasil”. Mas sem uma presença efetiva das autoridades no local após a ação de sucesso, em julho a área voltou a sofrer com desmatamento ilegal, segundo reportagem da Folha de S.Paulo.
Para este fiscal envolvido na operação nas terras indígenas, é preciso entender o que existe por trás da derrubada da floresta. “Hoje o desmatamento na maior parte da Amazônia Legal não está pulverizado. É uma questão de crime organizado, é um avanço coordenado naqueles hotspots, pois há expectativa de ocupação e regularização fundiária naquela área por parte de interesses poderosos”, conta. “Quando você atua na área crítica você vai para desarticular uma organização criminosa, você desarticula toda a estrutura do crime ambiental, da usurpação de recursos e terra pública. Não vai para multar uma pessoa só”.
Se a devastação da floresta está em alta, as multas aplicadas pelo Ibama —consideradas uma das ferramentas mais eficazes para dissuadir crimes ambientais— tiveram queda de 60% nos primeiro semestre ante o mesmo período de 2019, de acordo com a Folha de S.Paulo. É a segunda queda no Governo Bolsonaro: entre 2018 e 2019 já havia ocorrido redução de 40%.
Número de queimadas avança 361% em julho no Estado de São Paulo
Inverno seco amplia risco de incêndio; desde o início deste ano, Inpe registrou 1.702 focos, 141% a mais do que no mesmo período de 2015
O inverno com pouca chuva até agora e com temperaturas elevadas causou um aumento de 361% no número de queimadas somente em julho, em comparação com o mesmo período do ano passado. O mês teve 687 focos de incêndio no Estado de São Paulo, maior número desde 2000, segundo dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). Em 2015, foram 149 casos.
Desde o início do ano até segunda-feira, 1º, os satélites do Inpe registraram 1.702 queimadas no Estado, 141% a mais que no mesmo período do ano passado (707). Neste ano, o número de incêndios superou os 1.421 de 2014, quando o Estado viveu a mais severa estiagem dos últimos 90 anos.
Os satélites do Inpe registram queimadas com linha de fogo a partir de 30 metros de extensão por 1 metro de largura. Os incêndios afetam a qualidade do ar nas áreas urbanas e já causaram pelo menos uma morte. Um morador de rua morreu carbonizado, na noite de segunda-feira, em Sorocaba, depois que a guarita em que dormia foi atingida pelo fogo que se iniciou em um matagal. O incêndio pode ter sido causado por um curto-circuito na fiação elétrica que passa no terreno. De acordo com os bombeiros, em um único dia foram relatados 17 focos na cidade.
Em São Carlos, também no interior paulista, o fogo consumiu 20 mil metros quadrados de mata no bairro Azulville e as chamas chegaram próximas das casas, na segunda. As ruas ficaram tomadas pela fumaça. O sargento Marcos Roberto Dionísio, do Corpo de Bombeiros, relatou ter encontrado animais silvestres queimados. No domingo, uma queimada assustou moradores do Jardim Novo Horizonte, em São João da Boa Vista. Durante a manhã, parte do bairro ficou coberta pela fumaça e as casas foram invadidas por cinzas. No dia anterior, um incêndio destruiu 300 hectares de matas no município de Pirassununga. As chamas atingiram parte de um terreno da Academia da Força Aérea (AFA).
O inverno deste ano está mais seco que o de anos anteriores. De acordo com o Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet), na maior parte do Estado o índice de chuva em julho ficou em torno de 10 milímetros – a média histórica é de 35 milímetros. O aumento em queimadas às margens das rodovias levou a Agência de Transporte do Estado de São Paulo (Artesp) a iniciar uma campanha de alerta aos motoristas. Em 2015, foram registrados 4.551 focos de incêndio nos 6,4 mil quilômetros da malha gerenciada pela Artesp.
Alerta
Entre janeiro e maio deste ano, ainda fora do período da seca, aconteceram 2.662 focos, um aumento de 120% em relação ao mesmo período de 2015. “Nas rodovias, além do problema ambiental, o alastramento do fogo representa insegurança para os motoristas, uma vez que a fumaça reduz a visibilidade”, alertou a agência. Até setembro, as 267 telas eletrônicas nas rodovias vão exibir mensagens orientando o motorista a ligar gratuitamente para a concessionária em caso de incêndio à beira da estrada.
Matéria publicada no jornal O Estado de S. Paulo.
Por: José Maria Tomazela
Em 30 anos, Mata Atlântica perde 12 vezes a área de São Paulo
Levantamento feito pela Fundação SOS Mata Atlântica e pelo Inpe aponta que perda da vegetação foi de 18.433 hectares no ano passado e ainda avança em Minas Gerais e no Paraná.
Nos últimos 30 anos, a Mata Atlântica teve 1,887 milhão de hectares desmatados, o equivalente a 12,4 vezes o tamanho da cidade de São Paulo. Apesar de a maior parte (78%) dessa perda de vegetação ter ocorrido entre 1985 e o ano 2000 – e de as taxas estarem em queda desde 2005 –, a supressão de floresta continua ocorrendo no bioma mais devastado do País.
É o que mostra a nova edição do Atlas dos Remanescentes Florestais da Mata Atlântica, divulgado nesta quarta-feira, 25, pela Fundação SOS Mata Atlântica e pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). O documento, referente ao período de 2014 a 2015, traz uma análise consolidada da devastação ao longo de 30 anos de monitoramento.
O trabalho observou que no ano passado a Mata Atlântica perdeu 18.433 hectares, taxa 1% maior que a do período anterior, que foi de 18.267 ha. São valores menores que os registrados entre 2011 e 2013 – quando por dois anos consecutivos a taxa voltou a crescer depois de vários anos em queda –, mas ainda são maiores dos que os desmates ocorridos entre 2008 e 2011, as menores da história do monitoramento do bioma.
“Temos um lado positivo. Em 7 dos 17 Estados da Mata Atlântica, a taxa de perda está no nível de desmatamento zero, com menos de 1 km² – ou 100 hectares de desmatamento (1 ha é mais ou menos o tamanho de um estádio de futebol). É o caso de São Paulo e Rio de Janeiro”, afirma Marcia Hirota, diretora executiva da Fundação SOS Mata Atlântica e responsável pelo trabalho.
Matopiba
Por outro lado, diz ela, alguns dos Estados que ainda apresentam as maiores áreas de remanescentes florestais estão entre os campeões de desmatamento. Minas Gerais, que tem a maior área de floresta (2,8 milhões de hectares), voltou a liderar o ranking, com perda no ano passado de 7.702 ha (37% a mais que os 5.608 do período 2013-2014). O Estado já havia sido campeão por cinco anos consecutivos, a partir de 2008, só perdendo a posição no ano passado para o Piauí.
O desmatamento no Estado nordestino caiu 48% no ano passado, em relação ao período anterior, mas ainda foi o terceiro maior do ranking, com perda de 2.926 ha. A Bahia, segunda colocada, teve perda de 3.997 ha (14% menor que a taxa anterior). Apesar das quedas, as duas áreas ainda estão sendo bastante ameaçadas, como mostram as altas taxas, explica Marcia. “Há nessa região um reflexo da pressão que está ocorrendo sobre o Cerrado de Matopiba (Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia) pela expansão da agropecuária e vemos que isso acaba afetando a Mata Atlântica”, diz.
Evolução
A pesquisadora chama a atenção também para o Paraná, que registrou um aumento de 116% de corte no ano passado, chegando a 1.988 hectares. “Foram 1.777 hectares só na região de araucárias, um tipo de floresta que tinha sido super impactado no passado. O Paraná vinha reduzindo bastante o desmatamento. Ele foi o Estado campeão entre 85 e 90 e entre 95 e 2000. A partir daí tinha reduzido bastante, mas agora está voltando”, afirma.
Os quase 2 milhões perdidos nos últimos 30 anos são só a última etapa da história de uma devastação que começou junto com a descoberta do Brasil. Da área que originalmente era ocupada pelo bioma, hoje restam cerca de 12,5%, se considerados os fragmentos com mais de 3 ha. O desmatamento de 1985 para cá equivale a 1,44% do que havia no começo.
“A história do Brasil é a história da devastação da Mata Atlântica. Cada ciclo de desenvolvimento do País foi um ciclo de destruição da floresta. Hoje claro que a perda é muito menor, mas também porque quase não há mais Mata Atlântica, porque boa parte está na mão de privados, que preservam, e porque temos uma lei que proíbe seu corte, a não ser em caso de interesse público ou social. Mas ainda vemos cortes e precisamos começar a recuperar, a reflorestar ”, diz.
Márcia conta que o primeiro mapeamento, feito em 1990, trouxe uma luz sobre o que de fato era Mata Atlântica no Brasil. Na ocasião, com capacidade para enxergar com satélites apenas fragmentos com mais de 40 hectares, concluiu-se que havia somente 8,8% de remanescentes do País. A expectativa então era que aquilo era resultado das perdas históricas sofridas pelo bioma.
“Mas resolvemos olhar para os cinco anos anteriores e foi quando vimos que a devastação ainda era contemporânea, provocada principalmente para expansão de cidades, da agricultura e dos pólos industriais”, lembra. De 1985 a 1990 a perda foi de 536.490 hectares. O monitoramento foi feito nos cinco anos seguintes observou que mais 500.317 hectares tinham desaparecido. E ainda sumiriam outros 445.952 ha entre 1995 e 2000.
“A gente teve de brigar com muito madeireiro. A floresta era cortada na base do correntão para colocar eucalipto.Com o tempo isso foi diminuindo, hoje empresa de celulose é guardião, preserva Reserva Legal e Área de Preservação Permanente, proprietários de terra criam reservas do patrimônio particular. Ninguém mais devasta como era antes. Mas ainda enfrentamos problema como essa pressão perto do Cerrado e como esse no Paraná”, afirma.
Compromisso
Durante o Viva Mata, realizado na semana passada no Rio, secretários de meio ambiente dos 17 Estados da Mata Atlântica assinaram um compromisso de zerar o desmatamento ilegal até 2018.
POR: GIOVANA GIRARDI - O ESTADO DE S. PAULO
Matéria publicada originalmente no jornal O Estado de S. Paulo.