Inglaterra
Nas entrelinhas: O custo-benefício do funeral de Elizabeth II para Bolsonaro
Luiz Carlos Azedo | Nas entrelinhas | Correio Braziliense
As pesquisas irão dizer se valeu a pena a participação do presidente Jair Bolsonaro (PL) e da primeira-dama Michele no funeral da rainha Elizabeth II, que ganhou conotação de ação eleitoral oportunista. A rigor, seria um gesto de grande cortesia, ainda mais porque é um rito de passagem no qual o rei Charles III, simultaneamente, foi consagrado como seu sucessor.
Mas haveria a desculpa da campanha eleitoral para não ir, que seria perfeitamente aceitável. O brasileiro não é uma estrela ascendente da política internacional, principalmente no Ocidente, nem foi um convidado de honra da família.
A morte de Elizabeth II era uma notícia previsível, mas foi inesperada. Ela parecia eterna, principalmente depois de milhares de memes nas redes sociais exaltando sua longevidade. Entretanto, a morte sempre é um fato com grande poder de irradiação e repercussão, apesar da sua previsibilidade, porque só se morre uma vez.
O falecimento concentra e realça todos os acontecimentos de uma vida, emoldurado ainda mais pela longa duração dos funerais, acompanhado em tempo real pela mídia internacional durante 10 dias. Elizabeth II reinou por 70 anos, encabeçando uma monarquia que soube administrar a decadência do Império Britânico e, aliada aos Estados Unidos, manteve sua influência internacional após a descolonização.
A vida de Elizabeth II serve de paradigma para as cortes europeias, com as quais mantinha fortes laços familiares, e atravessou todas as crises internacionais do pós-II Guerra Mundial. Não havia a menor dúvida de que seu funeral seria um grande evento midiático, quando nada porque resgatou um ritual fúnebre sofisticado, que não se via desde a morte de seu pai, o rei George VI, em 1952, reiterando o fascínio exercido pela aristocracia junto ao povo britânico.
Entretanto, Bolsonaro pisou na bola ao se manifestar a apoiadores da sacada da embaixada do Brasil em Londres. Seria apenas mais um chefe de Estado a prestigiar o funeral, cujo cerimonial deu muito mais importância à família real britânica e à realeza europeia do que aos políticos representantes dos regimes republicanos, fantasmas que rondam o rei Charles III e seus descendentes.
A repercussão negativa do encontro de Bolsonaro com seus apoiadores junto à mídia internacional reverberou no Brasil. O efeito é exatamente o contrário do que o presidente esperava ao viajar para o Reino Unido.
Questionado pela imprensa, como de hábito Bolsonaro reagiu irritado: “Você acha que eu vim aqui fazer política? Pelo amor de Deus, não vou te responder. Não tem uma pergunta decente? Compara o Brasil com o resto do mundo”, disse.
Mas misturou a morte de Elizabeth II com a política e as eleições no Brasil: “Todo mundo vai ter um julgamento final. O julgamento vai ser pelas suas ações e omissões. Todo aquele que trabalhou contra o próximo ou que se omitiu, na hora em que poderia ajudar, segundo as escrituras, para quem acredita, vai ter o seu veredito. E lá não tem gente — como alguns do Supremo, já vão falar que eu estou criticando o Supremo — para ‘descondenar’ uma pessoa e torná-la elegível”, acrescentou.
Espírito da coisa
Antes, ao conversar com apoiadores, Bolsonaro também havia atacado o petista Luiz Inácio Lula da Silva, seu principal adversário, que lidera as pesquisas de intenções de voto: “Como está a Europa perto do Brasil? Existe ameaça de fome aqui? Prateleira vazia, aumento de preço… Por que a insistência em querer botar um ladrão de volta na Presidência? Alguém acha que é uma maravilha ser presidente? Botar um ladrão, com aquela quadrilha toda, na Presidência”.
Numa crônica intitulada Semiótica dos Ritos Fúnebres, publicada no livro Banalogias (Objetiva), o filósofo carioca Francisco Bosco tece considerações muito interessantes sobre a morte e os velórios. Segundo ele, qualquer cadáver encerra em si toda a dinâmica do sublime: não é “ser” nem “ente”, nem “sujeito” nem “objeto”. Bosco explica: “O cadáver já não é vida, mas tampouco é a morte em sua condição de certeza encoberta ou fatalidade abstrata. O cadáver é a morte viva. Ora, a morte viva, diante de nós vivos, é precisamente a experiência do sublime”.
O velório seria uma experiência do sublime. A fila dos pêsames, uma espécie de rito de compensação coletiva pela perda. “Oferece-se, em primeiro lugar, a própria dor, como para fazer surgir uma fraternidade, a comunidade dos irmanados pela perda. Chorar a perda do morto é também homenageá-lo: elogio que se dirige aos imediatamente próximos do morto como uma compensação”, explica Bosco. Parece que Bolsonaro não entendeu o espírito da coisa no funeral de Elizabeth II.
Politicamente, o pior não é isso. Bolsonaro tem uma relação esquisita com a morte. Já deu inúmeras provas disso. Durante a pandemia de covid-19, que ontem registrou 685 mil mortos, não demonstrou a menor empatia com os familiares das vítimas, nem mesmo durante a crise nos hospitais de Manaus, quando dezenas de pessoas morreram por falta de oxigênio e foram enterradas em cova rasa. Daí a dúvida sobre o custo-benefício eleitoral de sua ida aos funerais de Elizabeth II..
Nas entrelinhas: A Rainha Elizabeth II deu sobrevida ao império
Luiz Carlos Azedo | Nas entrelinhas | Correio Braziliense
“Chegou no porto um canhão/ De repente matou tudo, tudo, tudo/ Capitão senta na mesa/ Com sua fome e tristeza, esa, esa/ Deus salve sua rainha/ Deus salve a bandeira inglesa”. Sul da Bahia, década de 1930, um aventureiro sem nome nem passado, sete vezes baleado, sorridente, trovador e feroz, intromete-se na luta dos grandes coronéis pela posse da terra e do cacau. Está disposto a acirrar a guerra de interesses econômicos e tomar o lugar do coronel Santana, sua mulher e seu dinheiro. Precipita um banho de sangue, no qual sucumbem sertanejos simples e os próprios usineiros. O homem parece conseguir o seu intento, mas seu destino também está assinalado pelos deuses.
O enredo do filme Os Deuses e os Mortos, de Ruy Guerra, com trilha sonora de Milton Nascimento, autor da descrição acima, tem como pano de fundo o colonialismo britânico, daí a exaltação à rainha. Lançado em 1970, o filme era uma alegoria do regime militar e da atuação dos Estados Unidos, que haviam substituído o império britânico como força hegemônica no mundo após a II Guerra Mundial. O filme foi saudado pelo The New York Times como um “western tropical”, que misturava o japonês Akira Kurosawa com o italiano Sérgio Leone, tendo a temática do cacau na saga descrita por Jorge Amado.
Moçambicano naturalizado brasileiro, Guerra fez uma abordagem barroca e tropicalista da violência no campo e do monopólio da política pelas oligarquias. Vencedor do festival de Brasília de 1970, o filme foi realizado num momento em que vivíamos entre dois delírios: o “Brasil, ame ou deixe-o”, do general fascista Garrastazu Médici, e o “Quem samba fica, quem não samba vai embora”, do líder comunista Carlos Marighela. Othon Bastos (“O Homem”), Norma Bengell (“Soledade”), Rui Polanah (“Urbano”), Ítala Nandi (“Sereno”), Dina Sfat (“A Louca”), Nelson Xavier (“Valu”) e Milton Nascimento (“Dim Dum”), entre outros, brilhavam nas telas.
Na década de 1970, o império britânico nem de longe representava a potência mundial que parecia mover os cordéis das lutas do Sul da Bahia na Primeira República, mas a rainha Elizabeth II, a grande homenageada na trilha sonora do filme, lhe dera uma sobrevida com sua sabedoria e dedicação à manutenção da Comunidade Britânica, que somente agora será posta em xeque, com a ascensão ao trono do rei Charles III, depois de um chá de cadeira sem precedentes. Austrália e Canadá continuam reconhecendo o monarca britânico como chefe de Estado, representado por um governador-geral e usam a palavra Commonwealth como título do seu Estado, assim como Antígua e Barbuda, Bahamas, Belize, Granada, Jamaica, Nova Zelândia, Papua-Nova Guiné, Reino Unido, São Cristóvão e Névis, Santa Lúcia, São Vicente e Granadinas, Ilhas Salomão e Tuvalu.
Mares do Sul
Da independência da Índia, em 1947, e à devolução de Hong Kong à China, em 1997, o declínio do império britânico foi inequívoco. Mesmo assim, o Reino Unido arreganhou os dentes no Atlântico Sul, em 1982, quando os argentinos ocuparam as Ilhas Malvinas (em inglês Falklands), Geórgia do Sul e Sandwich do Sul, arquipélagos austrais dominados pelos ingleses a partir de 1833. O saldo final da guerra foi a recuperação do arquipélago e a morte de 649 soldados argentinos, 255 britânicos e três civis das ilhas. Na Argentina, a derrota no conflito fortaleceu a queda da junta militar que governava o país.
Quem quiser que se iluda: ainda hoje, os ingleses é que mandam nos mares do Atlântico Sul. A saída da União Europeia, com o Brexit, e o papel que desempenha na guerra da Ucrânia, contra a Rússia, mostram que a Inglaterra, em aliança com os Estados Unidos, continua sendo uma potência militar que não pode ser ignorada por ninguém, embora já não tenha a supremacia comercial e financeira dos séculos XVII e XVIII, nem a industrial do século XIX.
No século XX, de grande credor o Reino Unido se tornou devedor e inverteu o fluxo migratório que levou seus missionários a disseminarem a ética protestante do trabalho e o liberalismo econômico pelo mundo, passando a receber imigrantes das ex-colônias britânicas. Em 1920, o império britânico dominava cerca de 458 milhões de pessoas, um quarto da população do mundo na época e abrangeu mais de 35.500.000 km2, quase 24% da área total da Terra.
Charles III ao trono — “A rainha morreu, viva o rei” —, depois de 70 anos de reinado de Elizabeth II, não tem o mesmo prestígio popular da mãe, seja na própria Inglaterra, seja no exterior. Sua capacidade de liderar a Commonwealth será posta à prova. O Brexit não está dando os resultados esperados e a guerra da Ucrânia tende a agravar a situação econômica e energética do país. A estabilidade política interna do Reino Unido é vital para a manutenção da comunidade britânica sob a liderança de Charles III.
A carreira de controvérsias de Boris Johnson
Brasil de Fato*
Boris Johnson abusou da sorte ao longo de sua carreira, driblando uma sucessão de contratempos e escândalos que facilmente teriam afundado políticos menos perspicazes. Mas a sorte de um homem que chegou a ser comparado a um "porquinho azeitado", por sua capacidade de escapar de controvérsias, finalmente acabou, após uma série de ministros e secretários de Estado terem renunciado em protesto pelos seguidos escândalos.
A saída de nomes importantes do gabinete na terça-feira, como os chefes das pastas das Finanças, Rishi Sunak, e da Saúde, Sajid Javid, enfraqueceu ainda mais o premiê no momento em que ele mais precisava de aliados.
A renúncia nesta quinta-feira ocorre apenas três anos depois que ele sucedeu Theresa May em uma disputa interna da liderança conservadora e após meses de escândalos, que inclusive levaram Johnson a ser multado pela polícia e criticado por permitir festas na sede do governo durante a pandemia.
Há um mês, ele havia superado uma moção de desconfiança em seu partido, mas saiu com o poder enfraquecido da votação, que mostrou insatisfação de 41% dos parlamentares conservadores com sua gestão.
Sob pressão, Johnson exortou seu partido e o país a "seguirem em frente" e se concentrarem na economia em dificuldades do Reino Unido e na guerra da Rússia na Ucrânia. Mas as alegações de má conduta sexual contra um alto funcionário do partido selou o destino de um político que demonstrava grande resiliência.
Maioria recorde desde Thatcher
Nas eleições gerais antecipadas em dezembro de 2019, Johnson conquistou a maior maioria parlamentar conservadora desde o apogeu de Margaret Thatcher na década de 1980. Isso permitiu que ele desbloqueasse anos de paralisia política após a votação do Brexit em 2016, para tirar o Reino Unido da União Europeia em janeiro de 2020.
Johnson vinha enfrentando críticas desde então, desde as sua gestão da pandemia de coronavírus até alegações de corrupção e clientelismo. Alguns traçam paralelos entre seu estilo de governo e sua caótica vida privada de três casamentos, pelo menos sete filhos e rumores de uma série de casos.
Sonia Purnell, ex-colega de Johnson do tempo em que ele trabalhava para o Daily Telegraph, sugeriu que Sunak e Javid podem ter percebido o que ela e outros perceberam antes deles. "Quanto mais perto você chega dele, menos você gosta dele e menos você pode confiar nele", disse ela à emissora Sky News. "Ele realmente decepciona todo mundo, em todos os momentos ele realmente engana você."
"Regras são para os outros"
Alexander Boris de Pfeffel Johnson teve uma ascensão convencional ao poder para um político conservador: primeiro o colégio de elite Eton College, depois a Universidade de Oxford.
Em Eton, seus professores lamentavam sua "atitude arrogante" em relação aos estudos e a sensação que ele dava de que deveria ser tratado como "uma exceção".
A aparente atitude de Johnson de que as regras foram feitas para os outros foi amplamente demonstrada em 2006, quando ele inexplicavelmente derrubou o jogador adversário usando um golpe de rugby durante um jogo de futebol beneficente.
Sua relação elástica com a verdade foi forjada em Oxford, onde foi presidente da Oxford Union, uma sociedade de debates fundada na retórica e na réplica, e não no domínio de fatos frios e duros. Seu grupo privilegiado no covil da política estudantil forneceu muitos integrantes do movimento que levou ao Brexit.
Logo depois de Oxford, ele se casou com sua primeira esposa – sua colega de faculdade Allegra Mostyn-Owen – apesar das dúvidas da mãe dela. "Não gostava do fato de ele estar à direita", disse a ex-sogra Gaia Servadio, que morreu no ano passado, segundo o biógrafo de Johnson, Tom Bower. "Mas acima de tudo, não gostava do caráter dele. Para ele, a verdade não existe."
Após a universidade, ele foi demitido do jornal The Times depois de inventar uma citação, e em seguida juntou-se ao Telegraph como correspondente do jornal em Bruxelas.
Johnson em uma das festas que teriam contrariado as regras da pandemia / UK Cabinet Office
Euroceticismo
A partir daí, ele alimentou o crescente euroceticismo conservador da década de 1990 com "euromitos" regulares sobre supostos planos da UE para um megaestado que ameaçava a soberania britânica. Seus rivais descreviam alguns de seus artigos como "bobagens completas".
Johnson foi se tornando conhecido desde Bruxelas, com aparições satíricas em programas de perguntas e respostas na televisão, colunas de jornais e revistas.
Desde então, muito de seu jornalismo foi amplamente citado, particularmente suas visões sobre questões de mães solteiras, passando por homossexualidade ao colonialismo britânico.
Ele tornou-se deputado em 2004, e o líder conservador na época, Michael Howard, o demitiu de seu gabinete paralelo por mentir sobre um caso extraconjugal.
De 2008 a 2016, foi prefeito de Londres por dois mandatos, promovendo-se como liberal pró-UE, postura que abandonou assim que o referendo do Brexit foi lançado.
Figura de proa do Brexit
Johnson tornou-se figura de proa da campanha pelo Brexit, capitalizando sua imagem como um personagem não convencional mas simpático como o caminho mais rápido para o poder.
Seu ex-editor do Telegraph, Max Hastings, descreveu-o como alguém que só se importa "com sua própria fama". Na quarta-feira, enquanto os pedidos de saída de Johnson aumentavam, Hastings escreveu no The Times que o primeiro-ministro "quebrou todas as regras de decência e não fez nenhuma tentativa de buscar uma agenda política coerente além do Brexit".
Mas ressaltou que ele continuava "o mesmo falido moral de quando o partido conservador o escolheu, tão caótico em sua conduta do cargo quanto na gestão de sua vida". "Agora precisamos de um primeiro-ministro que restaure a dignidade e o respeito próprio ao país e à sua governança", afirmou.
Hamid Dabashi: O príncipe Philip foi um racista ferrenho
Nesta sexta-feira (9), dia em que morreu aos 99 anos o príncipe Philip, o DCM reproduz um artigo sobre o principal legado que o marido da rainha Elizabeth deixa para a família real britânica: o racismo.
Publicada em 2017 no site do canal de notícias Al Jazeera e escrito por Hamid Dabashi, Professor de Estudos Iranianos e Literatura Comparada na Universidade de Columbia, a reportagem traz uma montanha de declarações preconceituosas do duque de Edimburgo.
“O príncipe Philip realiza seu último compromisso oficial”, informou a BBC ao mundo em 2 de agosto de 2017. “O duque de Edimburgo conheceu a Royal Marines em seu último compromisso público solo antes de se aposentar dos deveres reais.
Há um ar de solenidade histórica no tom da BBC. “O homem de 96 anos anunciou sua aposentadoria em maio, depois de décadas apoiando a Rainha e participando de eventos para suas próprias instituições de caridade e organizações. O príncipe Philip completou 22.219 compromissos desde 1952.”
Em 1952 eu tinha um ano de idade. No ano seguinte, o MI6, o órgão de inteligência militar do governo do duque de Edimburgo, ajudou a CIA a dar um golpe em minha terra natal. A BBC não quis dizer qual dos 22.219 deveres reais coincidiu com aquela ocasião.
Naquela ocasião, em vez disso, a BBC fez o que faz de melhor: apontou para uma verdade, mas camuflou-a com uma série de eufemismos que distorcem completamente o que ela parece marcar. O príncipe Philip – como podemos dizer com delicadeza aqui – é um racista ferrenho. Seu racismo é segredo público. Todo mundo sabe disso. O próprio príncipe habitualmente o encena. Portanto, a BBC precisa relatá-lo, embora de uma forma típica da BBC – tornando-o frívolo e inócuo.
“As gafes do príncipe Philip em décadas no dever real”, é a manchete da BBC. Portanto, as declarações surpreendentes do bom príncipe não são o que são, sintomáticas de uma mente profundamente racista. São apenas “gafes” – comentários não intencionais e infelizes que causam constrangimento, coisas que ele não deveria ter dito e não queria realmente dizer, mas infelizmente disse. É por isso que são “gafes”.
“Ainda arremessam lanças?”
A BBC então se move para colorir essas declarações racistas vintage com pincéis ainda mais grossos como “frases memoráveis que podem fazer algumas pessoas rir e outras se encolher”. Isso tem o objetivo de cancelar o “estremecimento” com uma “risada” e resultar em uma tosse neutralizante. O resto é inteiramente o conhecimento padrão da BBC esculpindo fatos brutais com ginástica etimológica: “O Príncipe Philip é conhecido por falar o que pensa – muitas vezes explicado como sua tentativa de aliviar o clima – e essa natureza franca às vezes levou à controvérsia, com algumas dessas observações oscilando à beira de ser ofensivo.”
Essas frases clássicas da BBC deveriam ser estudadas na Columbia School of Journalism e em outros lugares respeitáveis, como o exercício de puro charlatanismo. “Falar o que pensa” é adorável, não é? “Iluminar o clima” ele faz – não é? Fabuloso mesmo! Nosso adorável Príncipe é “franco” – não é tão corajoso! Cada frase é bem trabalhada para adoçar uma verdade amarga.
Agora vamos dar uma olhada em algumas dessas “tentativas de aliviar o clima”:
“Mulheres britânicas não sabem cozinhar”
“Todo mundo dizia que devemos ter mais lazer. Agora eles reclamam que estão desempregados ”(durante a recessão de 1981).
“Você é mulher, não é?” (no Quênia, depois de aceitar um presente de uma mulher local).
“Se vocês ficarem aqui por muito mais tempo, ficarão com os olhos arregalados” (para um grupo de estudantes britânicos durante uma visita real à China).
“Você não pode estar aqui há tanto tempo, você não tem barriga” (para um britânico que conheceu na Hungria).
“A maioria de vocês não descende de piratas?” (para um ilhéu rico das Ilhas Cayman).
“Como você mantém os nativos longe da bebida por tempo suficiente para passar no teste?” (para um instrutor de direção escocês).
“Parece que foi instalado por um indiano” (referindo-se a uma caixa de fusíveis antiquada em uma fábrica perto de Edimburgo).
“Vocês ainda jogam lanças?” (pergunta feita a um australiano aborígine durante uma visita).
“A sua família está muito presente esta noite” (depois de olhar para o crachá do empresário Atul Patel em uma recepção no palácio para índios britânicos).
“Como você mantém os nativos longe da bebida por tempo suficiente para passar no teste” (para um instrutor de direção escocês).
“Parece que foi instalado por um indiano” (referindo-se a uma caixa de fusíveis antiquada em uma fábrica perto de Edimburgo).
“Ainda jogando lanças?” (pergunta feita a um australiano aborígine durante uma visita).
Existem outras pérolas ainda mais notáveis que a BBC obviamente não listou. Mas isso deve bastar.
Racismo inestimável
Apesar da tentativa transparente da BBC de branquear, o racismo do príncipe Philip não tem preço, porque é muito natural para ele. Ele não está fingindo. Ele não está tentando ofender ninguém. Ele é ofensivo. Ele é assim – e a longa panóplia de seus preconceitos racistas, sexistas, elitistas, misóginos, privilegiados de classe e desequilibrados é um museu móvel do fanatismo europeu em exibição.
O duque de Edimburgo prestou ao mundo um serviço extraordinário por ser quem ele é, por encenar porções generosas de sua disposição fanática e está se aposentando feliz por ter catalogado todo ou pelo menos a maior parte de seu inventário inestimável para a posteridade ler e aprender.
Nosso amado duque de Edimburgo está felizmente velho. Ele viveu uma vida longa, rica e gratificante – e que viva o resto de seus dias de racismo com a dignidade e a postura que negou aos outros. Seu fanatismo xenofóbico é puro, seu senso de direito de classe não diluído, desimpedido, sem censura, livre de qualquer indício de inibições burguesas. Ele não pretende ser ofensivo. Ele simplesmente é. Ele é uma personificação ambulante de todas as camadas de lava do racismo europeu resumidas dentro de uma cabeça real.
Hoje, as pessoas da classe privilegiada aprenderam a camuflar seu racismo em códigos variados e eufemismo burguês complicado. O tipo de intolerância que o príncipe Philip exala e encena agora é considerado rude e vulgar, antiquado e antiquado, considerado classista e direcionado às camadas sociais mais baixas. A preciosa vantagem do príncipe Philip é que ele é um membro da realeza do coração da aristocracia britânica (e europeia). Ele conta a história como achar melhor.
O Príncipe é o repositório de todo o passado colonial e de todos os privilégios de classe do presente. Seus comentários racistas não devem ser pintados de branco ou camuflados. Eles precisam ser apropriadamente, precisamente e literalmente catalogados na Biblioteca Britânica e disponibilizados para futuras gerações de estudiosos e pensadores críticos, antropólogos do primeiro plano racista do imperialismo europeu para uma análise cuidadosa e detalhada. Eles são a insígnia de toda uma semiologia do racismo colonial em dicção aristocrática desenvolvida. Do racismo desenfreado agora dominante em Israel à perniciosa xenofobia evidente na América de Trump, está tudo lá: enraizado nesses palavrões desequilibrados no inglês britânico polido e aristocrático.
As expressões do racismo do Príncipe Philip não são “gafes”, como a BBC e outros veículos britânicos envergonhados por sua vulgaridade as classificam – embora se possa ver por que a BBC está se apressando em denominá-las como tal e varrê-las rapidamente para baixo do tapete proverbial. Para o mundo em geral, no entanto, no extremo receptor do colonialismo racista britânico e europeu, essas “gafes” são, na verdade, relíquias inestimáveis de uma época agora profundamente camuflada sob eufemismos liberais e de aparência adorável. Como resultado, precisamos tratá-los como os arqueólogos tratam qualquer outra relíquia e fragmento que encontrem. Com base em tais vestígios, eles reconstroem épocas passadas e as verdades esquecidas que revelam e ocultam ao mesmo tempo.
A consciência culpada de um império decadente
O tipo de racismo que o príncipe Philip exala lembra o próprio espírito do imperialismo britânico e de outros imperialismos europeus em seu apogeu. Foi assim que os britânicos pensaram quando governaram a Índia, os franceses quando governaram a Argélia, os italianos quando conquistaram a Líbia, os belgas quando possuíam o Congo.
O Príncipe Philip é uma peça de museu – um sujeito vivo, respirando, móvel, alegre, bom, sorridente, bonito, charmoso bisavô que caminha alegremente, profere obscenidades enquanto sua comitiva tenta encobrir suas “indiscrições”. Mas essas não são “indiscrições” ou “gafes”. Ele significa o que ele diz e ele diz o que ele quer dizer. Ele é a memória viva de toda uma história de arrogância imperial agora sendo ativamente reprimida para oferecer um caráter mais liberal, tolerante e cosmopolita aos britânicos e, por extensão, “ao europeu”.
O príncipe Philip para a aristocracia europeia é o que Donald Trump representa para a democracia liberal americana: uma vergonha – os homens que exibem a verdade feia sob o verniz fino de sua etiqueta burguesa. O provincianismo racista do Príncipe Philip e de Donald Trump é irresistivelmente charmoso para seus admiradores e embaraçoso para seus detratores, mas identicamente revelador para o mundo em geral. Seu racismo é tão contrário à “tolerância” liberal recentemente fabricada que eles não sabem onde escondê-lo.
Pense na palavra, no conceito, na própria ideia de “tolerância” de que a democracia liberal tanto se orgulha. O que significa ser “tolerante?”
De ‘Carta sobre a Tolerância’ de John Locke (1689) ao ‘Tratado de Tolerância’ de Voltaire (1763), dois importantes filósofos europeus argumentaram contra o fanatismo e o fanatismo religioso ou político. Mas hoje a “tolerância” liberal equivale a uma convicção fanática sobre as próprias crenças mal disfarçadas sob o verniz de “tolerar”, ou seja, tolerar as crenças e práticas equivocadas de outras pessoas.
Ser tolerante hoje significa que estamos convencidos da superioridade de nossas próprias crenças, mas pela generosidade de nosso espírito e bondade de nosso coração e pela superioridade de nossa civilização que toleramos você, pois não temos escolha. Tanto a superioridade da crença quanto a virtude da tolerância são, portanto, atribuídas à cultura tolerante, em vez de negadas à barbárie assim tolerada.
Até que cheguemos a um ponto em que não “toleramos” uns aos outros, mas de fato vemos a verdade e a beleza do mundo da perspectiva um do outro, Príncipe Philip, abençoe sua alma esplendidamente racista, expõe a hipocrisia da “tolerância liberal” ”. Eu o amo por isso. Ele grita em voz alta o que outros racistas como ele aprenderam a esconder e camuflar o que pensam e projetam como uma atitude civilizada – enquanto carregam seus aviões de combate com bombas para jogarem em pessoas morenas e negras para enviá-los “de volta à Idade da Pedra ”.
Há uma bela barbárie de verdade no racismo do Príncipe Philip, expondo a horrível hipocrisia na própria fundação da “civilização ocidental”.
O Globo: Eleição britânica e avanço do Brexit confirmam fim de uma era de comércio global
Decisões políticas recentes indicam que sistema comercial global está entrando em um estado no qual interesses nacionais têm prioridade sobre preocupações coletivas
Peter S. Goodman, do New York Times
LONDRES — Durante mais de sete décadas, as potências globais atuaram a partir do princípio de que uma maior integração econômica equivale a progresso histórico. Mas essa era chegou ao fim, como eleitores britânicos deixaram claro.
A maioria decisiva assegurada pelo primeiro-ministro Boris Johnson e seu Partido Conservador quase garante que o país irá seguir com seus planos de deixar a União Europeia.
Outra complexa fase do enrolado processo de divórcio está à frente — negociações sobre os termos da futura relação econômica do Reino Unido com a Europa. Mas, de uma forma ou de outra, o mantra de “entregar o Brexit” prometido por Johnson marca uma profunda mudança no sistema comercial do mundo.
Leia mais: Entenda o que a vitória de Johnson significa para os planos do Brexit
Depois da Segunda Guerra Mundial, os Aliados vitoriosos promoveram uma ordem internacional construída a partir do entendimento de que, quando países trocam bens, eles se tornam menos inclinados à artilharia.
A saída do Reino Unido da União Europeia é a mais clara manifestação de que este princípio não tem mais um apelo decisivo. Ainda assim, a decisão está longe de ser o único sinal de que o sistema comercial global está entrando em um estado no qual os interesses nacionais têm prioridade sobre preocupações coletivas.
Ainda que a guerra comercial entre Estados Unidos e China tenha chegado a uma trégua na sexta-feira, os dois países chegaram a um estado de tanta rivalidade que possivelmente irão continuar buscando alternativas à troca de bens e investimentos. As empresas que produzem bens na China irão enfrentar pressão para explorar outros países, o que apresenta uma ruptura na cadeia global de suprimentos.
O meio tradicional de arbitragem em disputas comerciais internacionais, a Organização Mundial do Comércio, se aproxima da irrelevância, à medida que países passam por cima de seus canais para impor tarifas.
O desgaste dos acordos comerciais internacionais tem sido impulsionado pela crescente irritação pública em muitos países com o aumento da desigualdade econômica e a percepção de que o comércio tem sido generoso com os executivos, enquanto deixa o povo comum para trás.
No Reino Unido, comunidades em dificuldades usaram o referendo de junho de 2016 que deu início ao Brexit como um voto de protesto contra os banqueiros de Londres que haviam desencadeado uma catastrófica crise financeira, e depois forçaram a população a absorver os custos através de uma rígida austeridade fiscal.
Nos Estados Unidos, a base política do presidente Donald Trump se uniu à sua guerra comercial, inclinada a vê-la como um corretivo necessário para a destruição da economia industrial americana por fábricas chinesas.
Da Itália à França e Alemanha, movimentos populares furiosos miraram no comércio como uma ameaça aos meios de subsistência dos trabalhadores, enquanto ao mesmo tempo abraçam respostas nacionalistas e nativistas que prometem cessar a globalização.
— A era dos mercados livres e do liberalismo está acabando — disse Meredith Crowley, especialista em comércio internacional da Universidade de Cambridge, na Inglaterra. — As pessoas sentem que aqueles que ditam as políticas estão, de alguma maneira, fora de seu alcance.
Incertezas
O Reino Unido envia quase metade de suas exportações para a União Europeia, um fluxo de bens possivelmente em perigo por conta do Brexit. A saída do Reino Unido do mercado comum europeu pode mudar a história do país como sede de diversas multinacionais.
Análise:Eleição dá a Johnson legitimidade que muitos diziam não ter
Desde que o Reino Unido chocou o mundo ao votar para deixar o bloco, suas instituições políticas tentam decidir o que fazer com o nebuloso mandato de saída. Algumas empresas pararam de contratar e de investir, esperando os detalhes dos futuros termos de comércio.
Embora a eleição de quinta-feira tenha dado clareza sobre o Brexit, variáveis significativas ainda permanecem. Assumindo que o plano de Johnson para o Brexit seja aprovado pelo Parlamento, o Reino Unido precisa negociar os novos termos da relação com a Europa antes do fim de um período de transição que vai até o final de 2020 — uma tarefa colossal.
Johnson descartou uma extensão do prazo final, renovando a perspectiva de que o Reino Unido pode novamente flertar com a ideia de deixar o bloco europeu sem um acordo. Esta ameaça pode fazer novamente que empresas armazenem bens e implementem complicados planos de contingenciamento.
Segundo alguns analistas, porém a eleição aumentou a possibilidade de Johnson seguir uma forma mais flexível de Brexit, que mantenha o Reino Unido mais perto do mercado europeu. Sua maioria no Parlamento também é confortável o suficiente para que ele não tenha que se preocupar com a linha-dura conservadora, que defende uma ruptura total com a Europa.
Mas há mudanças à frente. Se a incerteza do Brexit tem sido prejudicial, o que a substitui é a quase certeza de um crescimento econômico mais fraco e da queda nos padrões de vida. O mandato dado a Boris Johnson para "retomar o controle do país" terá custos.