inflação
Alon Feuerwerker: Segunda, terceira
Depois da segunda onda vem a terceira? Isso aconteceu, por exemplo, na Gripe Espanhola. E ali a mais mortífera foi a segunda. Agora, a Europa parece às voltas com o recrudescimento das infecções pelo SARS-CoV-2, uma terceira onda que preocupa as autoridades sanitárias (leia).
Também porque o ritmo da vacinação no Velho Continente deu uma engasgada, por causa das dúvidas sobre a vacina de preferência deles, a Oxford/AstraZeneca. Houve relatos de complicações após a administração, ela foi interrompida em diversos países mas agora parece que vai ser retomada.
Lá, como cá, a disputa se dá em torno de apertar e estender, ou não, as medidas de isolamento social. Mas ali preservou-se um grau bom de coordenação entre governos e países. Se acertarem, a chance de todos acertarem juntos é grande. Igualmente se errarem.
Por aqui, a turbulência federativa vai firme. Um exemplo insólito é a divergência entre o governador de São Paulo e o prefeito da capital, aliados e ambos do mesmo partido, sobre o feriado prolongado que a prefeitura determinou (leia). E assim caminha o Brasil. Tomara que a vacinação acelere logo.
*Alon Feuerwerker é jornalista e analista político/FSB Comunicação
Rogério Werneck: Quatro ministros
Como o presidente continua incorrigível, o novo ministro deverá penar. Terá ele condições de reverter o aparelhamento feito por Pazuello?
Pandemia fora de controle, indignação com o caos da vacinação e popularidade em queda já vinham sendo razões de sobra para dar ao Planalto o que pensar. Não bastasse tudo isso, ainda havia aceleração da inflação, sobretudo de alimentos, atraso na retomada da economia e perspectiva de persistência de desemprego em massa até o fim do mandato. Por mais fixado que já estivesse em sua reeleição, Bolsonaro já dera sinais de ter percebido que desse jeito, aos trancos e barrancos, não teria como chegar lá.
Pois, na semana passada, a insegurança do Planalto com a precariedade da sua situação foi subitamente redobrada, quando o Supremo Tribunal Federal (STF) – sempre ele – se permitiu remexer o caldeirão em que vem sendo preparado o complexo jogo eleitoral de 2022, fazendo com que viesse à tona quem parecia ter ficado definitivamente no fundo. O repentino ressurgimento de Lula como candidato a presidente, num momento tão difícil para o governo, deixou Bolsonaro visivelmente desconcertado.
Como não poderia deixar de ser, na sua reentrada em cena, o ex-presidente voltou a exibir seu velho e irrefreável lado mistificador. Apressou-se a se dizer inocentado pelo STF, rotulou a Lava Jato de “maior mentira jurídica em 500 anos”, comportou-se como se nada tivesse a ver com Dilma Rousseff e permitiu-se até destacar quão bem gerida era a Petrobrás, com a qual, de resto, esclareceu, nunca teria chegado a se envolver.
O mais danoso para o Planalto, contudo, foi o discurso suprapartidário adotado por Lula para denunciar os desmandos do governo no combate à pandemia. Batendo na tecla certa e fazendo bom uso da atenção que sua volta à disputa presidencial despertara, o ex-presidente insistiu no que qualquer pessoa de bom senso, não importa como se posicione no espectro ideológico, hoje espera ouvir, em meio ao grave recrudescimento da pandemia que enfrenta o País. Use máscara, evite aglomerações, não siga recomendações estapafúrdias do governo federal e, por favor, não deixe de se vacinar.
O Planalto sentiu o golpe. E passou recibo. Bolsonaro apareceu de máscara em evento público, seus filhos passaram a defender a vacinação e a tentar reescrever às pressas a história, dando como inverídicas as notórias manifestações negacionistas e obscurantistas do pai.
O mais importante, contudo, é que a sobrevida de Eduardo Pazuello como ministro da Saúde se tornou insustentável. O general caiu em menos de uma semana. E, no melhor estilo bolsonarista, sua substituição foi muito mais ruidosa e desgastante do que poderia ter sido.
Cotada de início para o cargo, a cardiologista Ludhmila Hajjar se dispôs a ir ao Planalto discutir que condições de trabalho teria caso viesse a assumir o Ministério. Mas, não tendo vislumbrado a possibilidade de chegar a uma visão “convergente” sobre o que precisa ser feito, declinou o convite, queixando-se de ter sido vilmente atacada nas redes sociais e se livrado por pouco de tentativas de invasão do hotel em que estava hospedada em Brasília.
A escolha, afinal recaiu sobre outro cardiologista, Marcelo Queiroga, que parece ter tido menos dificuldade para se acertar com Bolsonaro. Mas que achou mais seguro deixar registrado, logo de saída, que “a política é do governo Bolsonaro, não do ministro da Saúde”. Uma constatação, agora óbvia, da qual o País, a duras penas, se deu conta nos últimos meses. Tendo nomeado seu quarto ministro da Saúde desde a eclosão da pandemia, já não há mais dúvida de que o descalabro sanitário que hoje se vê deve ser integralmente debitado a Jair Bolsonaro.
Como o presidente continua incorrigível, o novo ministro deverá penar. Terá ele condições de reverter o aparelhamento que Pazuello se permitiu fazer na área da Saúde? Ou será obrigado a preservar a desastrosa ocupação do Ministério por militares? Baterá de frente com Bolsonaro, como Luiz Mandetta? Pedirá as contas em menos de um mês, como Nelson Teich? Ou se conformará em ser não mais que um Pazuello. É o que em poucos dias saberemos, em meio ao macabro turbilhão da pandemia.
*Economista, Doutor pela Universidade Harvard, é professor titular do departamento de economia da PUC-Rio
Adriana Fernandes: Negociação pelo Refis é a mais nova batalha da equipe econômica
Se no auxílio pesava o lado dos pobres na balança, agora no Refis, é o peso empresarial que vai mostrar a sua força
A negociação do novo parcelamento de débitos tributários é a mais nova batalha no campo econômico em Brasília após a votação da PEC do auxílio emergencial em conjunto a um grupo de medidas fiscais.
A aprovação de um projeto de parcelamento de dívidas tributárias já estava devidamente contratada no Congresso desde 2020, mas o Ministério da Economia vinha segurando o seu avanço para não perder o controle e abrir uma brecha para uma renegociação ampla.
O problema para Guedes é que a pandemia piorou e a pressão ganhou um reforço de peso do presidente do Senado, Rodrigo Pacheco.
A hora chegou.
Logo depois da sua eleição, no início de fevereiro, Pacheco já havia pedido o Refis ao ministro. Guedes respondeu que seria melhor esperar a reforma tributária e começou a discutir uma ampliação do programa aberto de transação tributária, que prevê negociação direta com os contribuintes com base na capacidade de pagamento.
Não resolveu. Com a PEC aprovada, não está dando mais para segurar a pressão pelo Refis que sempre aparece pelo menos a cada três anos nas últimas duas décadas.
A reforma tributária não vai andar como se fala oficialmente (muitos parlamentares nem acreditam nela até 2022) e o Refis é hoje considerado mais importante para o cenário atual de pandemia e queda do PIB, como aconteceu com o auxílio emergencial, que não pode esperar a ampliação prometida do programa Bolsa Família.
Fernando Bezerra, líder do governo no Senado, foi escalado por Pacheco para ser o relator e o diálogo foi aberto nessa semana. De partida, Guedes quer limitar o Refis a débitos de 2020 e à lista de setores mais afetados.
Botou seus limites para iniciar as negociações. O posicionamento do ministro é uma tentativa de freio de arrumação muito semelhante às contrapartidas fiscais buscadas na PEC, mas, quando a discussão no Congresso esquentar, o negócio é outro com o Centrão em peso querendo o Refis. O Senado quer uma tramitação rápida para votação direta no plenário.
A questão é que tipo de Refis vai sair do Congresso? A dificuldade maior no Brasil é que foram tantos os programas especiais de parcelamento de débito (levantamento da Receita Federal aponta um total de 40 desde 2000) que se acabou criando por aqui o fenômeno do contribuinte “devedor contumaz”, aquele que deixa de pagar os tributos sempre à espreita do próximo.
Para a Receita, que tem que arrecadar e financiar as despesas, esse é o pior dos mundos. Os Refis constantes também desestimulam o contribuinte que paga em dia. A publicação pelo Estadão nesta sexta-feira de reportagem sobre as negociações em curso para o Refis gerou esperança para muitos empresários, que estão esperando o programa, mas também críticas de que o Congresso está penalizado os que pagaram os tributos em dia, em prol de “caloteiros”, reforçando uma concorrência desleal.
Esse tipo de posicionamento mostra o tanto que os sucessivos Refis foram nocivos para o País e quanto o assunto é sensível. Agora, que a crise maltrata o setor produtivo e as pessoas físicas que perderam renda, argumentos desse tipo não fazem muito sentido.
É por essa razão que mais do nunca é importante impor limites que impeçam que o novo programa abarque o parcelamento de dívidas passadas que nada tem a ver com a pandemia permitindo mais “boiadas” na área tributária, como foi a confirmação pelo Congresso esta semana do perdão da dívida das igrejas ao isentá-las do pagamento da CSLL. Uma renúncia de R$ 1,4 bilhão com aval do presidente Jair Bolsonaro.
O dilema mais uma vez é a situação de fragilidade das contas públicas. Com a movimentação, que antecipa mais uma queda de braço entre o mundo político e a equipe econômica, o novo Refis já entrou ontem no radar do mercado financeiro como mais um risco fiscal a ser monitorado. Se no auxílio, o outro lado da balança era o mais fraco, os pobres, agora no Refis, é o peso empresarial que vai mostrar a sua força.
Não por acaso o assunto de ponta entre os especialistas em contas públicas, que estão pensando na fase pós-covid-19, é justamente a necessidade de aumento dos impostos - tema hoje travado no debate nacional. Na Webinar do Estadão e do Ibre-FGV desta semana, a avaliação dos economistas é que ele vai voltar mais cedo ou mais tarde. Vale muito conferir o debate.
Claudia Safatle: Sob o risco de estagflação
Quadro desafiador combina inflação alta e baixo crescimento
A inflação preocupa, mas não se trata de um processo de estagflação (estagnação econômica com inflação), pois há crescimento, avalia o secretário de Política Econômica do Ministério da Economia, Adolfo Sachsida. O fato de ter um carregamento estatístico de 3,6% da atividade do ano passado para este ano e diante da perspectiva de um PIB de apenas 3,2% não caracteriza “nem estagnação nem recessão”, diz. Ele alerta: a reedição do auxílio emergencial, embora em menor valor, e o desequilíbrio fiscal pressionarão mais os preços. O que fazer?
O Comitê de Política Monetária (Copom) aumentou os juros de 2% para 2,75%, com a taxa Selic deixando para trás quase seis anos de queda. E, na pasta da Economia, “tivemos a super quarta”, um dia de boas notícias vindas do Congresso, que aprovou a nova lei do gás e manteve os vetos ao marco legal do saneamento, além de o governo imprimir uma nova rodada de redução tarifária, com um corte de 10% no imposto de importação de quase 1.500 itens fora do acordo do Mercosul. Para ele, “esse é o caminho” - reformas pró-mercado, abertura da economia e consolidação fiscal - e “cada um no seu quadrado”, evitando, assim, comentários sobre a decisão do Copom, que elevou a meta da taxa Selic em 75 pontos-base e já indicou mais um aumento de igual magnitude para a próxima reunião do comitê, em maio.
O Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA), medida oficial da inflação para efeito do regime de metas, acumulou 5,20% em 12 meses até fevereiro, praticamente encostando no teto da meta de 3,75% com intervalo de tolerância de 1,5% para mais ou para menos. Sachsida prevê inflação de 4,42% neste ano, segundo o Boletim MacroFiscal editado pela secretaria e divulgado na quarta-feira.
Os juros estavam em seu patamar mínimo - 2% ao ano - desde agosto do ano passado, fruto de uma política monetária que pretendia injetar ânimo na economia. O país foi, no entanto, atropelado pela segunda onda da pandemia da covid-19, que poderá comprometer os dois primeiros trimestres deste ano com taxas negativas para o nível de atividade.
“Se tivermos PIB negativo nos primeiros dois trimestres deste ano, aí será recessão”, salienta o secretário. Mas isso vai depender da velocidade da vacinação. Na área econômica do governo alimenta-se a expectativa de chegar no fim do primeiro semestre com uma taxa de imunização relevante, que permita o retorno da atividade econômica a um padrão de normalidade. Se isso ocorrer, o segundo semestre será o tempo da recuperação, acreditam assessores oficiais.
Em janeiro e fevereiro a atividade estava indo bem - os indicadores de arrecadação tributária eram animadores. Mas veio o repique da pandemia e os governos estaduais tiveram que aumentar as restrições ao funcionamento das cidades. Até fevereiro, segundo os indicadores coincidentes e de alta frequência, estava se mantendo um certo ritmo de crescimento, mesmo com o fim do auxílio emergencial.
A projeção para o PIB do primeiro trimestre de 2021, em relação ao mesmo trimestre do ano anterior, é de uma contração de 0,35%, ante a estimativa de analistas de mercado, coletada pela pesquisa Focus, de uma contração de 0,80%, segundo o boletim MacroFiscal.
“Acredito que conseguiremos recuperar a atividade no segundo trimestre”, diz Sachsida, mantendo uma certa dose de otimismo. Se isso se efetivar, não haverá recessão.
Dados do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), divulgados na Carta de Conjuntura desta semana, mostram que a inflação percebida pelos mais pobres é superior à taxa acumulada em 12 meses até fevereiro (5,20%), chegando a 6,75% - praticamente o dobro da inflação sentida pelos mais ricos, de 3,43%.
O indicador de Inflação por Faixa de Renda do Ipea considera seis faixas de renda familiar, sendo a menor de até R$ 1.650,50 por mês, no caso da faixa com renda muito baixa, até uma renda mensal familiar acima de R$ 16.509,66, no caso da renda mais alta.
O aumento dos combustíveis afetou mais os mais ricos, em fevereiro, mas a inflação acumulada em 12 meses ainda é muito mais elevada entre os mais pobres.
Banco Central
Segundo a lei que conferiu independência ao Banco Central, até 90 dias após a sua promulgação a atual diretoria do BC deverá ser reconduzida a seus postos. Ou seja, até 25 de maio deverão ser nomeados o presidente e oito diretores do BC cujos mandatos vão obedecer a uma escala, dispensando a aprovação pelo Senado para os indicados que já estão no exercício do cargo.
Dessa forma, o atual presidente do BC, Roberto Campos, e dois diretores (a serem definidos) terão mandato até 31 de dezembro de 2024. Outros dois diretores terão mandato até dezembro de 2023; dois ficarão com mandato até 28 de fevereiro de 2023 e outros dois até 31 de dezembro deste ano. Será admitida uma recondução ao cargo para o presidente e para os diretores do BC.
Ontem o BC comunicou a saída da diretora Fernanda Nechio, por razões pessoais. Para a vaga na diretoria de Assuntos Internacionais e Riscos Corporativos foi indicada Fernanda Magalhães Guardado, economista-chefe do Banco Bocom BBM. Guardado será sabatinada pelo Senado e ingressará no BC já sob a égide da lei que estabelece mandato fixo.
Celso Ming: Vacina e economia
Uns entendem que o presidente Jair Bolsonaro não tem estratégia na sua política econômica. Outros, que não tem rumo. Outros, ainda, que ele não sabe o que quer.
É bom começar por discordar desses últimos. Bolsonaro sabe o que quer. Mais que tudo, ele quer se reeleger em 2022. Porém, a partir daí, fica tudo muito confuso, especialmente desde segunda-feira, quando inesperadamente o Supremo limpou a ficha do ex-presidente Lula e o tornou elegível.
Para garantir sua chance de se reeleger, Bolsonaro sabe que tem de mostrar serviço na economia. Não poderá pretender sucesso nas eleições se o desemprego continuar atingindo 13,5% da população ativa, se a renda continuar despencando, se continuar o ritmo de falência de milhares de empresas, se tantas e tradicionais fábricas começam a ser fechadas, como aconteceu com a Ford em Santo André, com a Mercedes Benz em Iracemápolis, com a 3M em São José do Rio Preto e com a Sony em Manaus.
A razão pela qual Bolsonaro se rebelou contra as medidas de distanciamento social para enfrentar a covid-19 e se rebelou nesta quinta-feira diante da nova “fase emergencial” decretada pelo governo do Estado de São Paulo é o fato de que elas derrubam o consumo, o faturamento do comércio e da indústria, produzem desemprego. É uma atitude imediatista e contraproducente, porque a melhor forma de conter o contágio e de retomar a atividade e o emprego é isolar temporariamente a população.
Bolsonaro recomendou remédios sem eficácia contra a covid-19, como a cloroquina, e desprezou qualquer coordenação do contra-ataque ao vírus. Até mesmo na sua especialidade, a logística, o atual ministro da Saúde, o general intendente Eduardo Pazuello, teve atuação desastrada. Faltou UTI, faltou oxigênio, faltaram seringas, falta vacina, faltou tudo, sobrou incompetência.
Se admira a política sanitária de Israel, como afirma, Bolsonaro teria feito o que Israel vem fazendo: depois de ter isolado a população, acelerou a vacinação. Hoje Israel apresenta o maior índice de vacinação do mundo: 104,81 doses ministradas por 100 habitantes.
A maneira mais eficaz de combater o coronavírus e de reerguer a economia é a vacina. O ministro da Economia tem lançado todos os dias advertências nesse sentido. Mas também nesse ponto, Bolsonaro teve atitude desastrosa. Boicotou as vacinas e impediu a importação de suprimentos enquanto estiveram disponíveis.
Nas últimas semanas parou de meter medo na população e parece ter mudado em alguma coisa sua atitude. Parece ter entendido que devesse adotar uma espécie de plano vacina, tomou a iniciativa de reunir-se com representante da Pfizer e encomendou um lote de 14 milhões de doses ao Brasil até junho. Nesta quarta-feira, sancionou projeto de lei aprovado pelo Congresso que autoriza o setor privado a comprar vacinas.
Ainda é pouco e muito tarde. E sabe-se lá se essa repentina conversão é para valer. O País se aproxima das 300 mil mortes pela covid-19. Apesar da forte recuperação mundial, a atividade econômica interna ainda não encontrou sustentação, a renda vai se desmilinguindo, o desânimo se espalha. E não fica claro como essa nova postura de Bolsonaro em relação à vacina pode ajudar a dar coerência à política econômica.
Vinicius Torres Freire: Maior onda de alta do preço da comida em 18 anos não vai ter refresco tão cedo
Coincidência rara de dólar e commodities em alta pressiona inflação: entenda os motivos
O preço da comida passa pela maior onda de alta em 18 anos no Brasil. Tem sido assim desde o último trimestre do ano passado. Nos 12 meses contados até fevereiro, o custo da comida que se leva para casa aumentou 19,4%.
A carestia dos alimentos pode andar mais devagar neste 2021, com alta de uns 6%. Ainda que seja assim, nos dois anos de epidemia o preço da comida terá subido 25%. O rendimento mediano do trabalho terá crescido nada.
Há uma rara coincidência de preços de commodities em alta com dólar caro. Commodities: petróleo, ferro, cobre, grãos como soja e milho etc. Quando sobem os preços dessas mercadorias que o Brasil vende para o mundo, o dólar fica mais barato, ou costumava ficar —agora, não ficou.
Os motivos dessa situação mais rara são controversos e ficam para outro dia. Importa mais lembrar que a matéria prima de combustíveis e alimentos está em alta forte, multiplicada ainda pelo dólar caro, e a coisa vai continuar assim até meados do ano, na hipótese bem otimista.
Por que as commodities estão em alta? Porque parte da economia mundial se recuperou (China e entorno) ou vai se recuperar (Estados Unidos). Porque também as duas maiores economias do mundo mais lançaram pacotes de estímulos gigantes.
O clima frustrou a produção de alguns grãos e até mesmo de minério de ferro. Os chineses recuperam rebanhos perdidos (porcos perdidos para a peste) ou os alimentam com rações melhores, o que consome mais grãos.
Países seguram estoques de comida na epidemia, seguram exportações, ou facilitam importações. Em tempos de horror sanitário, desemprego e tensão social latente, a ideia é manter os preços da comida baixos o quanto possível.
Há ainda especulação financeira com certas commodities. Com dinheiro sobrando no planeta, taxas de juros a zero no mundo rico e alguma hipótese de inflação, investe-se em commodities a fim de cobrir o risco de alta de preços e de manter alguma rentabilidade.
O petróleo sobe porque os países petroleiros mantêm a produção em nível relativamente baixo e a economia mundial se recupera. A “virada verde” das economias e o uso intensivo de internet eleva o consumo de cobre.
Para quase cada commodity há uma história altista. Neste ano, o Goldman Sachs prevê altas na casa de 20% para energia e metais industriais, em torno de 5% para produtos agrícolas e nada para carnes. No máximo, haveria um refresco na comida, pois: pararia de aumentar muito.
A alta dos preços dos produtos brasileiros de exportação, como se dizia, tende a ser boa coisa, de costume (quando o dólar se valorizava, nesse processo). Nesses tempos de melhoria de “termos de troca”, a renda dos exportadores cresce, claro, e costuma haver alta de investimento em novas construções, máquinas, equipamentos (em capital, pois).
Dada a desordem da epidemia, não sabemos bem o que será do investimento (embora no ano passado a queda tenha sido surpreendentemente pequena). O efeito combinado de matérias primas e dólar em alta, porém, persistirá. A inflação média (IPCA) deve chegar a mais de 7% ao ano lá por junho e julho.
Sim, parte da alta do dólar se deve à desordem e à falta de perspectiva econômicas do Brasil. O grosso da desvalorização do real, porém, tem motivo externo desde o início da epidemia. Não há o que fazer a não ser melhorar emprego e renda, mas não há governo.
Não há sinal de descontrole da inflação, que deve voltar à casa dos 3,9% no final do ano. Mas haverá alta de juros, o que vai dificultar ainda mais o controle da dívida pública.
Comida cara costuma talhar a popularidade de governos no Brasil, o que até agora não ocorreu de modo notável com Jair Bolsonaro, talvez por causa da massa de auxílio emergencial de 2020. Neste ano, não haverá tanto auxílio.
Rogério Baptistini: A vítima é a democracia de 1988
As evidências da perseguição política movida contra o ex-presidente Lula pelo juiz Sérgio Moro e os procuradores da Lava-Jato ganham volume. A instrumentalização do Direito como ferramenta de disputa política e arma de guerra contra os inimigos já não pode ser ignorada. A partir da chamada “República de Curitiba”, práticas de lawfare desestabilizaram o sistema político, confundiram a opinião pública e produziram resultados eleitorais.
Em que pese o uso das leis e dos procedimentos legais como instrumentos de uma batalha política, os petistas não estão na condição de vítimas inocentes de um golpe contra a democracia (2016), nem de vítimas dos eleitores (2018). O PT contribuiu fortemente para o estado de coisas que transformou o magistrado em justiceiro e os políticos em bandidos.
O discurso de deslegitimação da política e dos políticos, no Brasil, é obra da UDN e foi repetido à exaustão contra Getúlio Vargas e os seus herdeiros, levando às duas mortes do getulismo, em 1954 e 1964. No regime de 1946, os udenistas não fizeram outra coisa senão denunciar, quando derrotados, o sistema eleitoral e o governo de turno, sempre a partir de uma posição moralista. Na Nova República, o PT fez disso a sua profissão de fé.
Em 1985, durante a transição democrática, o PT boicotou o colégio eleitoral que encerrou o ciclo dos presidentes militares. Não bastasse, expulsou três deputados que votaram em Tancredo Neves contra o candidato da ditadura. No ano seguinte, a candidatura ao governo de São Paulo foi apresentada sob a alegação de ser “diferente de tudo o que está aí”, ou seja, dos partidos e dos políticos que costuraram a transição e estavam conduzindo o processo de redemocratização. Na mesma década, em 1988, após ter elegido Lula como o deputado constituinte mais bem votado do país, o partido votou contra a aprovação da Carta Constitucional, assinando somente depois fora do Plenário. O período se conclui com o insulto ao Congresso, que seria composto “por picaretas com anel de doutor”.
Em uma sociedade com uma democracia jovem, em construção, a pedagogia petista radicalizou a mística populista, cuja lógica é o binarismo: povo contra elite perversa. A inclusão do terceiro, do herói, completou a explicação e conferiu sentido ao desprezo pela política como produtora de consensos progressivos. A aposta na narrativa da “esperança contra o medo”, do nós contra eles, fez sentido estratégico com os mandatos presidenciais consecutivos, mas produziu consequências desastrosas para a cultura pública.
Como o Brasil moderno é uma sociedade complexa e o PT opera no sistema político formal, uma vez no poder não pôde entregar o céu na terra. A própria alteração discursiva tardia e eleitoreira, voltada para acalmar o mercado – a Carta aos Brasileiros (2002) – foi um reconhecimento dessa verdade, referendada pelo mensalão do primeiro governo Lula e pela captura do Centrão. No lugar da política, que sempre demonizou, o partido optou pela compra e submissão dos adversários, ao custo do aparelhamento e do loteamento do Estado. Em sua viagem redonda, como afirmou Luiz Werneck Vianna, o diferente se encontrou com o velho patrimonialismo político.
A partir do primeiro grande escândalo, da queda de Zé Dirceu e de outras lideranças históricas, Lula e os petistas operaram de negação em negação, tornaram-se mais do mesmo. A cidadania traída entregou-se a um juiz e a um grupo de procuradores obscuros. O engodo destroçou o sistema partidário e vitimou a democracia de 1988, obra da política e do possível.
Benito Salomão: Desafio brasileiro
Dados recentes da PNAD-IBGE mostram que o país iniciou a década de 2021 – 30 com uma dura realidade, em 2020 cerca de 13,5 milhões de pessoas foram vítimas do desemprego, outras 5,5 milhões de desalento, os dados mostram ainda um total de 31,2 milhões de trabalhadores estão subocupados e 33,5 milhões seguem na informalidade. Estes números dão pistas acerca da quantidade de pessoas que no curtíssimo prazo demandam algum tipo de socorro do Tesouro Nacional, que por sua vez viu sua Dívida Pública Bruta crescer em janeiro para 89,7% do PIB.
Conciliar uma situação de legítima pressão por mais gastos públicos na forma de políticas sociais e transferências diretas de renda, com um alto endividamento público é o maior desafio brasileiro de curto prazo. O país, que segue sem Lei Orçamentária Anual (LOA) para 2021, têm um déficit primário previsto na Lei de Diretrizes Orçamentária (LDO) de R$247 bilhões, estimado omitindo novas parcelas do auxílio emergencial. É evidente que novas parcelas do socorro vão dilatar em muito o déficit previsto para 2021 e a dívida pública no curto prazo. O governo promete atenuar esta expansão fiscal com privatizações como Eletrobrás e Correios. Este é um outro problema, considerar a agenda de privatizações com um olhar puramente fiscal, não garantindo que, por exemplo, as condições de investimento no setor de energia elétrica possam resolver um gargalo histórico da economia brasileira com diversificação da matriz e ampliação da oferta.
Mas, privatizações à parte, voltemos aos vulneráveis, o Brasil está planejando uma nova rodada do auxílio emergencial. Na minha opinião, atrasado! Pois já se sabia em novembro de 2020 que uma segunda onda do Coronavírus seria inevitável e que as condições de recuperação da economia brasileira seriam, novamente, postergadas. O governo mais uma vez cruzou os braços e apostou em uma solução via mercado. Como de praxe, alimentou o incêndio para em seguida tentar apaga-lo quando parte do estrago já está em curso, o auxílio é prometido para março, mas nada impede que seja disponibilizado apenas em abril. Até lá centenas de pessoas já terão morrido de fome, de COVID-19, ou de qualquer outro efeito colateral típica deste contexto.
O governo se perde buscando vincular o auxílio a medidas que ainda não estão prontas para serem votadas como as PEC emergencial e reforma administrativa. Flerta com imposto novo, ao invés de fazer o óbvio, pagar o auxílio de forma célere, vinculando a medidas profiláticas contra a doença como uso de máscaras, distanciamento social e acomodar o choque fiscal no curto prazo na elevação da dívida pública. Embora alta, três características suportam um aumento do endividamento no curto prazo: 1° as dívidas públicas de todos os países importantes estão crescendo, portanto, a posição relativa do Brasil no mundo, não tende a se alterar tanto. 2° um crescimento da dívida de curto prazo não tende a ser um problema muito grave se houver coordenação e liderança no processo, capaz de sinalizar que no longo prazo, ela será estabilizada. Para isto, normas como o Teto de Gastos devem ser preservadas e novas medidas de fortalecimento da austeridade devem ser prensadas. 3° No momento de proposição do auxílio, por 4 ou 6 meses, o governo deve apresentar um plano para o day after.
Tudo indica que no curto prazo o comportamento de agregados como desemprego, desalento e subemprego devem continuar elevados e, talvez, em trajetória crescente. Neste sentido, o governo deve ter um plano de recuperação do investimento e do emprego para o pós auxílio. Se o governo se compromete, por vias de reformas em várias frentes, com uma agenda de sustentação do investimento e do emprego, isto será entendido pelos financiadores da dívida pública que o auxílio emergencial será substituído no longo prazo no orçamento destas famílias por salários advindos de trabalho com carteira assinada.
Diante disso, o impacto fiscal seria limitado ao curto prazo e, no longo prazo, a solvência do Estado brasileiro estaria garantida, seja porque as regras fiscais que hoje garantem uma trajetória sustentável do país seriam mantidas, ou ainda, seja porque com estímulos ao investimento e ao emprego, a retomada do crescimento pode estabilizar a relação dívida/PIB. Mas para tanto, será necessário coordenação, planejamento, liderança e credibilidade, tudo que não se viu até agora.
*Benito Salomão é doutorando em Economia pela Universidade Federal de Uberlândia e Vencedor do Prêmio Brasil de Economia 2020.
Elio Gaspari: Flávio Bolsonaro desconsiderou Tancredo
Senador descumpriu uma norma, explicitada por Neves em 1963: “É norma ética consabida que o governante não compra nem vende nada”
Flávio Bolsonaro comprou uma casa de R$ 5,9 milhões, com R$ 3,1 milhões financiados pelo Banco de Brasília, cujo maior acionista é o governo do Distrito Federal. Com uma renda familiar declarada de R$ 37 mil mensais brutos, deverá aguentar uma mensalidade de R$ 18 mil. Poderá viver sem pedir auxílio emergencial.
O doutor ganhou fama de empreendedor com uma casa de chocolates da Kopenhagen e, em 16 anos, fez 20 transações imobiliárias, muitas delas quitando parte dos pagamentos em dinheiro vivo. Filho do capitão Jair Bolsonaro, elegeu-se deputado estadual no Rio em 2002, aos 21 anos, e senador em 2018.
Flávio Bolsonaro descumpriu uma norma, explicitada por Tancredo Neves em 1963:
“É norma ética consabida que o governante não compra nem vende nada.”
Era pura sabedoria. Lula deu-se mal porque usufruiu o sítio de Atibaia e discutiu a compra de um apartamento no Guarujá. Juscelino Kubitschek foi muito mais longe, adquirindo um apartamento na avenida Vieira Souto.
Na “nova política” dos Bolsonaro, faltam os pilares da cultura histórica de Tancredo. Nela, abunda aquilo que o presidente americano Joe Biden acaba de chamar de “pensamento de Neandertal”. Rachadinhas podem ser coisas da Idade da Pedra.
A repórter Malu Gaspar mostrou que na “nova política” acontecem também golpes da modernidade, como a utilização de informações vindas do coração do governo para se ganhar um dinheirinho fácil no mundo do papelório.
Às 17h15m de quinta-feira, dia 18 de fevereiro, terminou uma reunião no Palácio do Planalto. Delas participaram o presidente Bolsonaro e, por ordem alfabética, os ministros Augusto Heleno, Bento Albuquerque, Braga Netto, Luiz Eduardo Ramos, Paulo Guedes e Tarcísio Freitas. Nela, o capitão manifestou seu desconforto com o presidente da Petrobras.
Às 17h35m, uma mão invisível do mercado operou uma aposta de R$ 2,6 milhões na baixa nas ações da Petrobras. Passados nove minutos, outra, de R$ 1,4 milhão. Nunca haviam acontecido operações desse tamanho em tão pouco tempo. Às 19h (85 minutos depois da primeira aposta), Bolsonaro anunciou que “alguma coisa” aconteceria na Petrobras.
Malu Gaspar mostrou que até as 17h15m, quando terminou a reunião do Planalto, aconteceram 41 transações, com algo mais de 2 mil apostas. Depois que a reunião terminou, em apenas 39 minutos, foram negociadas 2,5 milhões de apostas.
Quem conhece o mercado estima que o dono, ou os donos, da mão invisível embolsaram algo como R$ 18 milhões com a queda do valor da ação da Petrobras no dia seguinte.
À primeira vista, os órgãos de controle do governo poderão desvendar essa salada de números. Contudo, durante o governo Bolsonaro, o Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE) soltou um edital prevendo a compra de R$ 3 bilhões de equipamentos para a rede pública de ensino.
A Controladoria-Geral da União (CGU), órgão de controle do governo, sentiu cheiro de queimado. Afora os indícios de direcionamento, 355 colégios receberiam mais de um laptop por aluno, 46 ganhariam mais de dois, e um deles, em Itabirito (MG), teria direito a 30 mil, 118 para cada aluno.
A CGU funcionou. O edital foi suspenso e logo depois cancelado, mas até hoje ninguém explicou como e por quem foi produzido o jabuti. Nem em pizza deu, deu em nada.
Recordar é viver
Em 1969, um comando da Vanguarda Armada Revolucionária roubou um cofre guardado na casa da namorada do ex-governador paulista Adhemar de Barros. Quando o arrombaram, encontraram cerca de US$ 2,5 milhões de dólares (algo como US$ 18 milhões de hoje). Parte do ervanário ainda estava com as cintas de papel de um banco suíço.
A poderosa máquina da ditadura identificou quinze pessoas envolvidas no assalto. Quatro foram mortos e sete foram presos nos meses seguintes. Um deles morreu sob tortura num quartel. Sua autópsia, feita no Hospital Central do Exército, apontou dez costelas quebradas e pelo menos 53 marcas de pancadas.
Imenso foi o esforço para se descobrir o que foi feito com o dinheiro. Nula foi a curiosidade para saber como ele foi parar no cofre. Adhemar era conhecido por ter uma “caixinha” e apreciava o slogan “rouba, mas faz”.
Com a ajuda de um amigo militar, a dona da casa sustentou que o cofre estava vazio. Nem em pizza o cofre do Adhemar deu. Deu em nada.
A ditadura negava que torturasse presos e orgulhava-se de ter uma Comissão Geral de Investigações para caçar corruptos. À época, era presidida por generais.
Tarcísio está noutra
Tarcísio Freitas, ministro da Infraestrutura, só convive com as moscas de padaria. Não é candidato a nada e não quer ser. Até porque já decidiu: quando sair do governo, irá para a iniciativa privada.
Guedes e Maritza Izaguirre
Outro dia, o ministro Paulo Guedes disparou uma urucubaca:
“Para virar a Argentina, seis meses; para virar Venezuela, um ano e meio.”
Misturou cloroquina com cloro de piscina. A Argentina teve projetos liberais mal conduzidos e fracassados. Na Venezuela, isso nunca aconteceu. O projeto de demagogia miliciana de Hugo Chávez era político.
Em 1999, quando o coronel Chávez assumiu, o tal de “mercado” torceu para que a manutenção de Maritza Izaguirre no Ministério da Fazenda garantisse alguma racionalidade. Um ano depois, Izaguirre foi substituída e voltou para o Banco Interamericano de Desenvolvimento.
Chávez chegou prometendo “mercado até onde for possível e Estado apenas onde for necessário”. Era lorota.
Sonham acordados
Quando o governador João Doria anunciou que em janeiro começaria a vacinação em São Paulo, o secretário executivo do Ministério da Saúde, coronel da reserva Élcio Franco (aquele que usa brochinho de crânio atravessado por uma faca), disse o seguinte:
— Senhor João Doria, não brinque com a esperança de milhares de brasileiros, não venda sonhos que não possa cumprir, prometendo uma imunização com um produto que sequer possui registro nem autorização para uso emergencial.
No dia 17 de janeiro, foi vacinada no Hospital das Clínicas a enfermeira Mônica Calazans.
Jogo jogado
Na quinta-feira, a repórter Paula Ferreira mostrou que Franco encaminhou ao Senado uma planilha informando que neste mês o ministério distribuirá 38 milhões de vacinas.
No dia 17 de fevereiro, o general Eduardo Pazuello anunciou que entregaria 46 milhões de imunizantes. Onze dias depois, a previsão baixou para 39,1 milhões.
Em duas semanas, evaporaram-se 7,9 milhões de vacinas.
O doutor deveria entrar na sala do general Pazuello admitindo:
— Chefe, estamos brincando com a esperança de milhares de brasileiros, vendendo sonhos que não podemos cumprir.
(O Ministério da Saúde levou em conta 8 milhões de doses de um laboratório que ainda não deu entrada ao pedido de autorização da Anvisa, mas deixa pra lá.)
José Roberto Mendonça de Barros: Totalmente sem rumo
A ausência, por quase 3 meses, dos pagamentos do auxílio amplia a fraqueza da demanda
Estamos perdidos no meio de uma tempestade. Antes de tudo, pelo que aconteceu no ano passado. Desde que a pandemia mostrou sua força, mergulhamos numa crise humanitária, com elevado sofrimento e número de mortos, que nos jogou numa forte recessão.
Pior que tudo, o negacionismo do presidente da República e a explosiva mistura de arrogância e incompetência de seu terceiro ministro da Saúde tornaram as coisas mais difíceis, com apelo a poções mágicas e negligência na compra de vacinas, a única forma de combater o coronavírus nos dias de hoje.
Além disso, pego de surpresa, o ministro da Economia começou uma longa corrida atrás dos fatos, desde que declarou que “com R$ 5 bi nós matamos o bicho”. Foi o Congresso que desenhou todas as regras e a estrutura do auxílio emergencial (depois apropriado pelo Executivo), que, a partir de junho, elevou a demanda de consumo e resultou numa melhora da atividade no segundo semestre.
Nesta semana, soubemos que a queda do PIB foi de “apenas” 4,1%, e não os 6% a 8% que se anteviam por volta de junho.
Nesse resultado, merece menção que, do lado da oferta, cresceram apenas o setor financeiro, a agropecuária, os serviços imobiliários e a extrativa mineral.
Do lado da demanda, a queda foi universal, destacando-se o consumo das famílias.
O pior é que não se projeta continuidade da recuperação rumo a um crescimento mais sustentável, como mostra a precariedade da taxa de investimento (que ficou abaixo de 16%, quando se corrige o impacto das importações fictas de plataforma de petróleo), a queda abrupta das expectativas de todos os agentes econômicos neste início de ano e as consequências da desastrada intervenção na Petrobrás.
Ao contrário, até o governo já reconhece que não haverá crescimento no primeiro semestre. Para a MB, o PIB, na margem, será negativo em 0,8% no primeiro trimestre e 0,3% no segundo trimestre, configurando uma recessão técnica. E a recuperação era para ter sido em “V”!
Nada é mais distante da realidade do que declarou o ministro à Veja (23/12/20): “Estamos disparando uma onda de investimentos. O grande desafio de 2021 será exatamente esse. O Brasil será a maior fronteira de investimentos do mundo”.
O conjunto de vetores aponta para um período ainda muito difícil adiante.
Antes de mais nada, a virulência da segunda onda do vírus está produzindo um colapso em muitos Estados, que piora o ambiente e implica restrições à atividade em muitos lugares. O mercado de trabalho continua extremamente fraco e os dados mostram que a população sacou uma quantia apreciável de suas cadernetas de poupança para cobrir seus compromissos.
A ausência, por quase três meses, dos pagamentos do auxílio emergencial amplia a fraqueza da demanda.
Estamos assistindo a uma piora significativa na inflação, que continua puxada pelo custo de alimentação e outras pressões no setor industrial. Isso levará o Banco Central a iniciar uma elevação de juros a partir de março, pressionando a recuperação da atividade através do custo do crédito, já prejudicado pelo avanço da tributação no sistema bancário.
Uma coisa positiva foi a aprovação da PEC emergencial no Senado, por trazer de volta a ajuda às famílias mais pobres. Entretanto, as contrapartes aprovadas contêm apenas promessas futuras de avanços no equilíbrio das contas públicas, que ainda terão muita dificuldade em se materializar.
Finalmente, vemos uma diminuição do peso da equipe e a ausência de uma proposta consistente e convincente de política econômica para enfrentar o momento.
Fica cada vez mais difícil crer que uma aliança do Centrão com o Palácio do Planalto vá resultar em reformas e ajuste fiscal. Mais fácil acreditar em duendes.
Com o País aflito e desarvorado, podemos bater no muro em futuro relativamente próximo.
Celso Ming: Razões de governo e direito ao luto
Quando afirma que a comoção provocada pelas mortes em decorrência da covid-19 não passa de “frescura e mimimi”, Bolsonaro renega o direito ao luto e incorre em impiedade e desrespeito à humanidade
O presidente Jair Bolsonaro pode ter lá suas razões de governo para julgar “frescura e mimimi” a prostração dos brasileiros pelos mais de 260 mil mortos pela covid-19. Mas, em assim agindo e em assim se manifestando, contraria leis multimilenares, que existem desde que o homem é homem.
A mais representada das tragédias gregas em todos os tempos é a sempre atual Antígona, de Sófocles, encenada pela primeira vez em 441 antes de Cristo. Trata do conflito entre razões de governo e direitos de família.
Creonte, o então todo-poderoso de Tebas, decretou que Polinices, filho de Édipo, não poderia ser sepultado na cidade, por considerá-lo traidor. Seu cadáver teria de ser exposto às intempéries e à ação dos cães e das aves carniceiras. Antígona, irmã de Polinices, se rebelou contra essa determinação “desumana e contrária aos deuses”. Em segredo, recobriu o cadáver do irmão com a veste dos mortos, fez as abluções devidas e o sepultou de acordo com os rituais sagrados. “As tuas determinações não têm força” – justificou-se depois diante de Creonte – “para impor aos mortais até a obrigação de transgredir normas divinas, não escritas, inevitáveis.”
Por sua insubordinação foi condenada à morte. Mas as consequências vieram a galope. Creonte e sua família foram castigados pelos deuses. “Cedo ou tarde, o mal parecerá um bem àquele que os deuses resolveram desgraçar” – canta o coro da peça.
O direito ao luto e a reverência aos mortos são registrados pela literatura clássica e pelos que vieram depois. Na Ilíada, de Homero, Agamenon, o comandante da coligação grega, se submete a sacrificar sua filha Ifigênia para obter ventos favoráveis para a frota paralisada nas areias de Aulis.
Esta é mais uma situação em que razões de governo se sobrepujaram aos direitos de família. Os castigos se sucederam. De volta vitorioso a Micenas e em vingança pelo assassinato de Ifigênia, Agamenon foi decapitado a machado por sua mulher Clitemnestra. Anos depois, o filho de ambos, Orestes, vinga a morte do pai e elimina a mãe.
Nas cenas finais da Ilíada, o rei de Troia, Príamo, arrisca sua vida, transpõe o acampamento dos gregos, ajoelha-se diante de Aquiles, que matou seu filho Heitor em luta diante das muralhas de Troia, e implora a devolução do cadáver para que possa ser pranteado e, depois, cremado. O “animal Aquiles” – na expressão de Christa Wolf, em sua obra “Cassandra” – se comove com a coragem do rei inimigo, devolve o cadáver de Heitor e determina trégua na guerra, até que se completem os funerais.
Quem viveu tempos não muito distantes deve lembrar-se. A morte de alguém envolvia a família, a rua, o bairro, a aldeia inteira. As lojas baixavam as portas em sinal de luto, os sinos dobravam a finados, as bandeiras eram hasteadas a meio pau. Nas solenidades e antes de eventos esportivos, guarda-se um minuto de silêncio em memória do falecido.
Quando afirma que a comoção provocada pelas mortes em decorrência da covid-19 não passa de “frescura e mimimi”, Bolsonaro renega essa herança cultural e incorre em impiedade e desrespeito à humanidade. Como visto pela literatura, coisas assim têm consequências.
Míriam Leitão: Velhos temores que nos rondam
A inflação ronda a economia. O temor até dentro do governo é que ela não caia depois de chegar a 7% em junho. Bolsonaro piora tudo. Ele produz incerteza, isso pressiona o dólar que, num círculo vicioso, atinge os preços. A inflação de alimentos fechou em 11% no ano passado e alguns produtos industriais estão em falta, como papelão e aço. Há outros fantasmas. A dívida é alta e ficará mais cara. Os juros futuros e o risco-país aumentaram e a Selic terá que subir. A equipe finge acreditar que há ajuste fiscal na PEC aprovada no Senado. Ela nada economiza a curto prazo, cria mais rigidez, fragiliza a Receita Federal e propõe a médio prazo o que não conseguirá fazer.
Bolsonaro é a crueldade ostentação. O “vai chorar até quando?” ou o “vai comprar vacina na casa da mãe” foram lançados no rosto de um país que enterra quase dois mil mortos por dia. Ele gostaria de desviar a atenção posta sobre a mansão do filho. O mundo vê, registra e quer distância de nós. Esta semana, dois grandes jornais, um americano e um britânico, fizeram editoriais dizendo que somos fator de risco sanitário global.
Na economia, há uma mistura pesada. Recessão, inflação, desemprego e piora fiscal. A alta dos juros começará ao longo do primeiro semestre apesar da atividade fraca. O mercado financeiro comemorou a aprovação da PEC Emergencial porque acha que ela evitou o pior. O Bolsa Família fora do teto abriria mais espaço no orçamento para despesas populistas. O ganho foi, portanto, evitar o bode voador que apareceu na última hora. No resto, o ajuste é um saco vazio. Ele proíbe o proibido. O salário do servidor civil já não seria reajustado este ano, portanto esse ponto da PEC é inócuo. Ela permite a alta dos salários dos militares e ainda carimbou despesas das Forças Armadas. Ao fim, a emenda engessou mais o orçamento. A única desvinculação afeta a Receita Federal, o órgão que arrecada, combate a sonegação e a lavagem de dinheiro.
O faz de conta fiscal levou o governo a uma situação ridícula. Ele terá que decretar estado de calamidade para acionar os gatilhos, porém os gatilhos nada acionam. O governo precisa gastar mais por causa da pandemia, mas não consegue formular boas políticas de ajuste.
A parte da PEC que trata da redução de subsídios é inexequível. Felipe Salto, da IFI, mostra que ao blindar a Zona Franca de Manaus, o Simples, os fundos constitucionais e as entidades filantrópicas ficou inviável a proposta de reduzir as renúncias fiscais a 2% do PIB. Teria que zerar toda a dedução do Imposto de Renda Pessoa Física, todos os subsídios agrícolas, acabar com a lei de incentivos para a cultura, suspender estímulos à ciência e inovação tecnológica. Salões de beleza caros da Zona Sul do Rio são optantes do Simples, mas o governo ameaça tomar o dinheiro do Microempreendedor Individual (MEI).
Reduzir subsídios é necessário, mas trabalhoso. Exige olhar dentro desses gastos, para separar o justo do injusto. Bolsonaro acabou de criar R$ 3 bilhões de subsídios para o diesel. Não alivia o consumidor, porque o dólar está subindo, e o petróleo, também. Mas pesa para o Tesouro. O benefício é para o caminhoneiro autônomo. Mas também para as empresas que têm frotas de caminhões, os carrões SUV, as lanchas. Todo benefício geral é injusto num país desigual. O trigo subsidiado faz o pão do pobre e o das padarias gourmet. A cesta básica inclui filé mignon, picanha, peixes nobres como salmão e subsidiá-la custou R$ 15 bilhões em 2018. Seria melhor ter dado esse dinheiro diretamente aos mais pobres.
O que se diz até na equipe econômica é que se as expectativas de inflação ficarem sem âncora, os índices não vão cair no segundo semestre, ao contrário do previsto. E isso pode “definir o destino deste governo”. As projeções para o IGP-M já estão em 8%, depois de subirem 23% em 2020. O quadro é este: a economia está instável, a situação social é dolorosa, a pandemia mata cada vez mais e Bolsonaro escala as agressões. O objetivo dele é conhecido. Ele mente dizendo que tem plano pronto contra a pandemia, mas não executa porque o STF não deixa, e que os governadores causaram a crise econômica. Por isso ele adula as Forças Armadas. Bolsonaro é um autocrata trabalhando para uma ruptura, que, segundo o filho 03, não é uma questão de “se”, mas de “quando”. O que a família reinante parece não saber é que a economia em escombros derruba governos.