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Nas entrelinhas: O legado de Mitterand e o dilema de Lula
Luiz Carlos Azedo | Correio Braziliense
François-Maurice-Marie Mitterrand (1916-1996) nasceu em Jarnac e estudou direito e letras na Universidade de Paris. Durante a II Guerra Mundial, foi integrante da Resistência Francesa, movimento de oposição ao nazismo. Deputado de 1946 a 1958, no ano seguinte elegeu-se senador. Em 1965, como candidato único dos partidos de esquerda, obteve 44,8% dos votos no segundo turno das eleições presidenciais, vencida por Charles de Gaulle. Secretário do Partido Socialista desde 1971, disputou novamente a Presidência em 1974 e foi derrotado por Valéry Giscard d’Estaing. Entretanto, o derrotou nas eleições de 1981 e se tornou primeiro socialista a chegar à Presidência da França.
Mitterrand entusiasmou os eleitores oferecendo a possibilidade de rompimento com o capitalismo. Destacou-se por tomar medidas estatizantes e fazer reformas sociais, mas, em consequência da crise econômica mundial, não conseguiu reduzir o desemprego e controlar a alta dos preços. O mercado reagiu fortemente a sua política e descobriu-se, então, que o poderoso Estado nacional francês já não controlava a economia. Para evitar a fuga de capitais, Mitterand foi obrigado a recuar, combater a inflação e priorizar a integração com a Comunidade Econômica Europeia, que daria origem à União Europeia, sua grande bandeira na política externa.
Mesmo assim, dois anos depois de sua eleição, os conservadores venceram as eleições legislativas, o que obrigou Mitterrand a governar com o gaullista Jacques Chirac como primeiro-ministro. Não obstante, em 1988, foi eleito para um segundo mandato, marcado pela mudança de três primeiros-ministros e pelo crescimento da extrema-direita. Ao final de dois mandatos à frente do país, crises econômicas sucessivas, medidas de austeridade, o fracasso dos programas de nacionalização e o alinhamento da França a uma Europa liberal e de moeda única, o eleitorado popular absorveu esses acontecimentos como uma renúncia e, até mesmo, uma traição à população mais necessitada.
Mitterrand fora forçado a abandonar o programa socialista e se render ao projeto liberal de Helmut Kohl, eleito primeiro-ministro alemão em 1982. No processo de modernização que promoveu entre 1980 e 1995, os capitalistas, principalmente quem aplicou seu dinheiro em ações, se deram muito bem, obrigado. O valor médio das ações francesas atingiu em 1995 um nível sete vezes mais alto do que em 1980. Enquanto isso, o salário anual do operário francês subiu pouco mais de 5% nesse mesmo período. Houve uma quase estagnação salarial no meio operário nos 15 anos de presidência de Mitterrand.
Acerto de contas
Em contrapartida, o sistema de proteção social, a educação nacional e os transportes geridos pelo setor público francês se mantiveram e se modernizaram. Mitterrand conseguiu abolir a pena de morte; nacionalizar cinco grupos industriais e 39 bancos; estabelecer a aposentadoria aos 60 anos; descriminalizar a homossexualidade; promover o fim do monopólio estatal da radiodifusão; inaugurar o Musée d’Orsay, o Instituto do Mundo Árabe, a pirâmide do Louvre e a pedra fundamental da Biblioteca Nacional da França; reforçar a relação franco-alemã; consolidar a Comunidade Europeia; e criar a União Europeia com a assinatura do Tratado de Maastricht, em 1992.
Várias medidas sociais foram ratificadas, como a que pôs fim ao registo de homossexuais e retirou a homossexualidade da lista de perturbações mentais. O governo também introduziu a passagem da maioria sexual para 15 anos para todos, abolindo a distinção introduzida em 1942 — e confirmada em 1945 — na idade do consentimento entre relações homossexuais e heterossexuais. O estilo de vida homossexual deixou de ser uma cláusula de cancelamento de um arrendamento residencial.
O legado de Mitterand é polêmico. Motiva um acerto de contas entre a esquerda herdeira de Maio de 68, que aposta na sociedade civil, no multiculturalismo e nos mecanismos de mercado (gauche sociétale), e a esquerda estatista (gauche étatique), baseada nas doutrinas da Frente Popular (1936-1937), na intervenção estatal, no jacobinismo centralista e na aliança entre comunistas e socialistas, defendida e praticada por Mitterrand. Enquanto se digladiava, o mundo mudou e a esquerda se tornou culturalmente minoritária. Ao deslocar o debate da questão social para a questão identitária, os intelectuais de esquerda já não conseguem mais mobilizar a sociedade, enquanto os trabalhadores abandonam os sindicatos e buscam refúgio no populismo de extrema-direita.
A política norte-americana e nossos vizinhos sul-americanos — Argentina, Chile, Venezuela e Colômbia — são pontos de referência para as análises comparativas com a política brasileira, mas vale a pena um olhar em direção à experiência francesa. O primeiro mandato de Mitterrand serve de parâmetro para compreender o tamanho do dilema do presidente Luiz Inácio Lula da Silva nesse terceiro mandato. A reação do mercado ao seu discurso de quarta-feira e à indefinição sobre o futuro ministro da Fazenda não deve ser vista apenas como uma chantagem barata dos grandes grupos econômicos ou mera especulação de espertalhões que operam na Bovespa. Há muito mais coisas envolvidas. Uma delas é encontrar um meio termo entre a agenda econômica liberal e o nacional-desenvolvimentismo da esquerda, para que o novo governo enfrente o problema das desigualdades, mas não jogue a criança fora com a água da bacia.