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Bolsonaro se prepara para discurso | Foto: Aloisio Mauricio/Fotoarena/Sipa USA)(Sipa via AP Images)

Revista online | "Bolsonaro é um bom exemplo de degradação", diz Carlos Melo

Equipe da Revista e, como convidado especial, Luiz Sergio Henriques | (44ª edição junho/2022)

O cientista político, mestre e doutor pela Pontifícia Unidade Católica de São Paulo (PUC-SP) Carlo Melo disse que “as lideranças em vários partidos estão calcificadas”. “A crise de liderança política afeta a todos”, afirmou. Ele, que é professor de Instituto de Ensino e Pesquisa (Insper), é o entrevistado especial desta 44ª edição da revista Política Democrática online deste mês (junho de 2022).

Na avaliação de Melo, o cenário eleitoral deste ano reflete o problema apontado por ele. “O fato de a gente chegar a esta altura da disputa eleitoral diante do dilema Lula ou Bolsonaro é revelador da crise de liderança política por que estamos passando”, destacou ele, que diz ter buscado contribuir com o debate político, econômico e social do Brasil, por meio de uma análise conjuntural isenta e reflexão desapaixonada.

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Analista político, com participação ativa em vários veículos de comunicação, palestrante e consultor de empresas nacionais e estrangeiras, Melo também faz um alerta ao centro, que, segundo ele, “não se dispõe a assumir claramente um projeto, uma visão de mundo”.

Na entrevista, Melo também defende “ajuste fiscal”. “Isso é importante, fundamental, embora ainda não suficiente”. Além disso, segundo ele, “independentemente do resultado da eleição a crise haverá de continuar a partir de janeiro de 2023”. A seguir, leia os principais trechos da entrevista.

Revista Política Democrática Online (RPD): Há quase três anos, tivemos uma bela conversa em que você explorou com o brilho habitual a conjuntura política nacional. Hoje, talvez conviesse centrar-nos na grande crise institucional brasileira, que é antes de mais nada uma crise de representatividade dos partidos. Um estranhamento radical entre representantes e representados. Você concorda?

Carlos Melo (CM): Acho ótimo evitar falar de conjuntura. Nosso problema não é exatamente a conjuntura, nossos problemas são estruturais. Diria mais, nossos problemas são estruturais e não são só no Brasil. O mundo todo está passando por um momento complicadíssimo. Outro dia, participei de um evento com a grata presença do embaixador Rubens Ricupero, que disse: “O mundo me preocupa mais que o Brasil, e não é que o Brasil me preocupe pouco”.

A verdade é que estamos vivendo uma revolução, cujo início vem lá dos anos Reagan e Thatcher, quando o mundo virou de cabeça para baixo, ao perder algumas referências do pós-guerra. O Estado de bem-estar social, por exemplo. Aquela política tributária que tirava dinheiro dos ricos para distribuir para a sociedade e fazer o bem-estar morreu e começa a concentrar nos ricos. De fato, os ricos investem, geram um baita processo tecnológico. Os Estados também investem pesadamente nisso. Aos poucos, a gente vai mudando completamente. Costumo brincar com meus alunos e dizer que troquei canal de televisão no seletor. Todos nós trocamos assim os canais de televisão. E não foi de um século para o outro, parece ter sido para outro milênio, considerando o longo tempo que faz. No mundo de hoje, a reza diária, a Bíblia que uma pessoa lê, o primeiro que se pega é, de fato, o celular, onde se concentram as notícias. 

Devo registrar que troquei o canal de televisão no seletor, usei máquina de escrever, usei máquina de tirar fotografia, vi telex e, depois, muito mais à frente, vi o fax. Hoje, tudo isso está no celular. Essas mudanças afetaram terrivelmente a sociedade, em particular o mundo do trabalho, ao deslocar milhões, bilhões até de pessoas para uma situação de abandono, afetando a política.

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A política e o Estado não reagiram a esse fenômeno. Sejamos justos, porém: não seria muito fácil. Tínhamos de compreender esses processos a quente, o que me faz lembrar de anedota atribuída a um político chinês, que, perguntado sobre a Revolução Industrial, disse: “Bom, só se passaram três, quatro séculos. É, portanto, muito cedo para avaliar”.

Eu diria que as mudanças que estamos enfrentando ainda não nos deram tempo, nem distância, para serem avaliadas. Daí talvez porque a política não tenha podido oferecer respostas, dando origem ao sentimento de desamparo de muita gente em nossos dias. O que se vocaliza é a demagogia. Não vou dizer que seja o populismo, porque o populismo, com todos os seus defeitos, tem uma qualidade superior a essa demagogia em voga na fala das lideranças políticas que conhecemos. Não surpreende, assim, que, diante dessa confluência de fatores e da multiplicidade de demagogos, o sistema político esteja absolutamente perdido, sem capacidade de resposta.

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Os partidos, não só do Brasil, mas da maioria dos países democráticos, padecem desse mal. O grande historiador Tony Judt antecipou em um livrinho, cujo título O mal ronda a Terra já tudo revelava, um processo da década final do século passado, invadindo o atual, de mal-estar que já adoecia o sistema político. Ele defendia a volta de uma visão capaz de reunir as pessoas que, como ele, estivessem tão absolutamente desoladas. A morte precoce privou-o de aprofundar seu pensamento e de contribuir para, quem sabe, influir nos partidos, nos intelectuais, e dar as respostas reclamadas por esse processo extraordinário de transformação.

Há pouco tempo, um ano antes da pandemia, fui convidado a falar sobre a política brasileira. Contrapropus falar não do Brasil, mas do mundo. É o cenário por onde se aceleram esses processos tecnológicos que causam mal-estar. Foi quando um senhor da plateia me interpelou: “Mas o que tem de errado em adotar avanços tecnológicos para reduzir custos de produção?”. Respondi: “Não sei se é certo, ou se é bom, saberemos dentro de um século, mas, agora, vivemos uma transição, que é custosa”. Sérgio Abranches amplia essa discussão com particular brilho, em seu belo livro A era do imprevisto.

Essa discussão não é nova, mas segue importante. Zygmund Bauman, por exemplo, recupera o sentido do conceito de transição desenvolvido por Antonio Gramsci, chamando de “interregno” este processo. Antonio Scurati, de sua parte, escreveu M, o filho do século, sobre Mussolini e o mundo do primeiro pós-guerra, um período claramente de transição, de interregno, parecido com o mundo pós-Guerra Fria, com todo este sentido de transição. Os partidos têm perdido essa perspectiva do processo histórico. Há partidos sérios e há partidos picaretas, que não se atualizam, seguem na mesma toada, como parasitas do sistema político.

Senti necessidade de explorar essas digressões para melhor situar o debate sobre o papel dos agentes políticos na tarefa de compreender o mundo em transformação e, ao mesmo tempo, traduzi-lo no conteúdo das metas prioritárias das ações dos governos. De novo, reconheço que se trata de um desafio tão difícil transpor como fundamental enfrentar.

RPD: No rastro de decisões que o Congresso vem tomando com insistência, não se enxerga com clareza o interesse nacional; antes, interesses patrimonialistas. Limito-me a mencionar que agora se cogita de um projeto declarar estado de calamidade pública nacional, que, entre outros efeitos, liberaria o governo para fazer o que lhe aprouvesse, incluindo um estado de emergência, vale dizer um golpe de estado, sob pretexto de fazer frente à calamidade pública de turno. Isso remete ao paradoxo imaginado pelo presidente Fernando Henrique Cardoso, de que partidos fracos favoreceriam um Congresso forte. O que pensa a esse respeito?

CM: Essa tentativa de decretar uma calamidade pública justamente para tirar proveito da ocasião de fato, passa por um problema sério. Algo precisa ser feito. Levantamento da Fundação Getúlio Vargas (FGV) por esses dias revela que ultrapassamos a média mundial em relação à fome, a partir de uma pergunta simples: “Nos últimos 12 meses, você passou algum dia com fome, sem poder comer?”. As respostas afirmativas superaram 36%, acima da média mundial (35%), dado inédito na História do Brasil.

Posso estar enganado em algumas cifras, mas não muito. Na última pesquisa realizada, 31% das mulheres, hoje são 47%, responderam que sim, ao passo que os homens variaram um pouco menos: eram 27% dos homens, hoje são 26%. Essa calamidade está pesando muito mais sobre as mulheres. Renato Meireles, do Instituto Locomotiva, mostrou-me recentemente dados impressionantes. Hoje, temos 14,6 milhões de mães solo, o que significa famílias desestruturadas, mulheres tocando sozinhas a vida de seus filhos, suas próprias vidas, não raro carregando toda uma família, mãe, pai...

É uma situação calamitosa, e algo precisa ser feito. Só que não pode ser feito dentro de um espírito oportunista. Aliás, não poderíamos ter chegado a esse ponto. Alguns colegas dizem, tentando mascarar ou simplesmente evitar o debate, ou por mera insensibilidade, que a situação está, de fato, ruim, mas as instituições estão funcionando. As instituições estão funcionando porcaria nenhuma, algumas estão resistindo. Se elas estivessem realmente funcionando, não estaríamos onde estamos. Se as instituições estivessem funcionando, não teríamos o Bolsonaro. Simples assim. Existe, sim, oportunismo no sistema político brasileiro.

Além de todos os problemas comentados, não vamos esquecer de acrescentar problemas estruturais de âmbito mundial, bem conhecidos desde sempre. Tomemos como exemplo o próprio patrimonialismo. Uma coisa é passar por uma crise estrutural de mudança de paradigma num país democrático; outra bem diferente é passar pela mesma crise em um país com pouca tradição democrática e extremamente patrimonialista. Os sanguessugas, aqueles parasitas que matam o hospedeiro, correm para se aproveitar disso.

Sem dúvida, há motivos, sim, para ações emergenciais. Vários setores da sociedade, como o mercado financeiro, precisam saber que a pauta mudou. Nada pode ser feito se não tiver ajuste fiscal, se não tiver equilíbrio fiscal. Isso é importante, fundamental, embora ainda não suficiente. O equilíbrio fiscal demanda políticas públicas eficazes para resolver esse problema emergencial, mas não só se limitando a garantir que os compromissos assumidos e os contratos celebrados devam ser honrados. Não é esse o ponto. Impõe-se, na emergência, adotar políticas públicas eficazes, bem concebidas, que não desperdicem recursos públicos e se destinem a resolver, ou pelo menos mitigar, as questões estruturais, elidindo o patrimonialismo, o oportunismo e a picaretagem que há décadas assolam a trajetória das políticas públicas no Brasil. A sociedade tem de ter consciência do que está acontecendo no país e dar um basta nisso. Esse é o grande problema.

RPD: Com relação às eleições que se aproximam, temos, de um lado, um candidato buscando a reeleição, apoiado em uma corrente de opinião radical, extensa, ampla, embora minoritária, e que prescinde de siglas partidárias. De outro, como o nome mais bem posicionado nas pesquisas até este momento, um candidato ancorado em um partido estruturado, sólido, também dependente da vocalização de um único líder. Está claro que a democracia necessita mais do que isso. O que nos falta?

CM:  O fato de a gente chegar a esta altura da disputa eleitoral diante do dilema Lula ou Bolsonaro é revelador da crise de liderança política por que estamos passando. Essa crise, aliás, não atinge só o Brasil. Se compararmos a liderança política do mundo nos anos 1980, época da queda do muro de Berlim e, depois, da unificação da Europa, com a liderança que temos hoje, é desolador. É verdade que algo tem também a ver com o processo de transformação da era Reagan/Thatcher. Lembremos que Thatcher declarou que esse negócio de sociedade não existe, o que existe são os indivíduos e suas famílias. Outro dia, comentei essa opinião com o ministro Delfim Neto, que se limitou a dizer: “Foi um equívoco”. Equívoco ou não, a sociedade acreditou que ela não existia e voltou-se para um individualismo hedonista, consumista.

O enfraquecimento da liderança tornou-se evidente. Sentimos falta de um Adenauer, de um Kohl, de uma Angela Merkel, reduzidos como estamos a um Putin, figura terrível, deletéria. No Brasil, no lugar de um doutor Ulysses ou de um Nelson Jobim, gente do que se poderia chamar alto clero, ou José Genoíno, Gastone Righi e José Lourenço, temos agora gente de todos os matizes, conformando um baixíssimo clero que se tornou hegemônico. Dos remanescentes daquela época – o período da redemocratização – sobraram-nos Fernando Henrique com 93 anos de idade e Lula, com 76 anos.

Voltando ao processo como um todo, um homem não substitui um partido. Tenho dito há mais de um ano, quando me perguntam da possibilidade da candidatura do Lula, que, apesar de todos os problemas com a justiça, ele estava cercado por um estado-maior de altíssima qualidade. Pode-se gostar ou não, mas, olhando para o passado, ele podia contar com José Dirceu, Luiz Gushiken, uma pessoa extraordinária, responsável pela indicação do Palocci, Márcio Thomaz Bastos, Duda Mendonça, um staff capaz de livrá-lo de um monte de frias. Hoje isso não acontece. Enquanto conversamos, Lula terá voltado a errar em algo. Ficou, às vezes, quase irreconhecível, na comparação com aquele homem que dava regularmente provas de sapiência, de sagacidade política. Era bem aconselhado, muito bem assessorado. Diante do vazio dos partidos – PT, incluído –, as lideranças políticas decaíram em qualidade de forma estrondosa. Restou o Lula. Então, tudo bem, é com esse que a gente vai. Tem méritos? Tem méritos, mas está longe de ser aquele quadro de 2002, quando tinha um grupo.

Protestos contra Bolsonaro em Brasília (24/07/2021). Foto: Ricardo Stuckert
Protestos contra Bolsonaro em Brasília (24/07/2021). Foto: Ricardo Stuckert
Protestos contra Bolsonaro em Brasília (24/07/2021). Foto: Ricardo Stuckert
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Protestos contra Bolsonaro em Brasília (24/07/2021). Foto: Ricardo Stuckert
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Protestos contra Bolsonaro em Brasília (24/07/2021). Foto: Ricardo Stuckert
Protestos contra Bolsonaro em Brasília (24/07/2021). Foto: Ricardo Stuckert
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Protestos contra Bolsonaro em Brasília (24/07/2021). Foto: Ricardo Stuckert
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Protestos contra Bolsonaro em Brasília (24/07/2021). Foto: Ricardo Stuckert
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A crise de liderança política afeta a todos. Olhemos para a direita, temos em Bolsonaro um bom exemplo de degradação. Lembremos que a direita radical teve figuras pelo menos mais bem formadas. Do Plínio Salgado ao Carlos Lacerda, ao próprio Paulo Maluf, com todos os seus problemas, eram políticos mais bem equipados do ponto de vista intelectual, inclusive. Com o ocaso do malufismo no começo dos anos 2000, a direita debilitou-se, caiu no vazio terrível. O PSDB tentou abraçá-la, mas não conseguiu. Faltava-lhe um ingrediente, um princípio ativo ao Serra e ao Alckmin. Esse princípio ativo apareceu nesse genérico Jair Bolsonaro, que também é uma degradação no sentido da liderança mesmo de uma direita radical, extremista.

Parodiando a música do Pedro Caetano, é com esse que eu vou. É isso que a gente tem. Infelizmente é isso, com todo o respeito ao Lula, porque não cabe compará-lo a Bolsonaro. Essa é a verdade. Mas mesmo o Lula é um homem de ontem, não é um homem de amanhã. É um homem de ontem. Só que a gente está em uma situação tão complicada que talvez seja necessário recuperar o ontem para colocar os pés no presente de novo e, quem sabe, daqui a quatro  anos, poder olhar para o futuro.

RPD: A gente está lidando entre o estrutural e o conjuntural, no mundo e no Brasil. Passamos aí pela extrema truculência da direita atual e, também, pela velhice do padre eterno da esquerda. Os sintomas de envelhecimento do Lula se mostram até no vestuário. Não sei se vocês têm reparado que ele se apresenta ainda hoje, depois de 20 anos, com o mesmo terninho bolivariano nas apresentações públicas, para um público sempre exaltado. São sinais do passado, signos melancólicos. Mas talvez convenha passar a conversa para a questão central, a de examinar a série de partidos, desde a União Brasil, pela centro-direita, até o Cidadania, pela centro-esquerda, passando pelo PSD, do Kassab, PSBD, MDB, frações de um centro democrático que há décadas – não é um fenômeno recente – não consegue se articular, se coordenar, minimamente. Por que a prevalência dessas forças centrífugas no território do centro? Isso tem conserto?

CM: Gostei muito da imagem do “terninho bolivariano”. Percebi isso semanas atrás em um evento na PUC, São Paulo, mas não tinha elaborado dessa forma brilhante. É perfeito.

Quanto à questão do centro, existe uma série de questões de conceituação. Primeiro, falar de centro no Brasil é falar de muita coisa. Fala-se de um centro fisiológico ou de um centro democrático? Geraldo Alckmin, em 2018, foi vítima da crítica ao centro fisiológico. Seu maior erro foi deixar-se abraçar pelo Centrão. Aliás, o governo do Temer foi um governo de centro, o Temer sendo um primus inter pares. Durante algum tempo, não se usava o termo centrão, era “peemedebização”, referindo-se à lógica peemedebista de abandonar candidaturas majoritárias, para aderir a quem se estimava fosse ganhar a eleição e engordar suas bancadas, para beneficiar-se, assim, de um butim maior da máquina pública.

Segundo, tem também um centro democrático, que, sendo justo, inclui parcelas do MDB, de fato preocupadas com a democracia. O problema é que ambos os tipos de centro se confundem. Veja, por exemplo, o caso do PSDB. Depois de tantas idas e vindas, depois de perder sua principal característica fundadora – a ideia da social-democracia, de ser um partido de centro-esquerda –, pouco a pouco, perdeu a identidade de centro-esquerda, para se tornar um partido de centro por excelência. Ele tem setores que são centro democrático e setores que são centro fisiológico. A luta do PSDB, hoje, é para não ter um candidato à presidência da República, para ficar liberado à adesão fisiológica nos estados, à lógica do partido estadual, à lógica da federação de partidos estaduais em um só partido.

Urge separar o joio do trigo, o que é centro democrático e o que é centro fisiológico, fenômeno que contagia todos os partidos chamados de centro. Veja o União Brasil: a candidatura do Bivar é uma caricatura desse processo. O Bivar, presidente do PSL, há quatro anos deu guarida a Jair Bolsonaro. O PSL foi o partido do Bolsonaro por um bom tempo e agora se apresenta como partido de centro democrático. O primeiro problema é separar o joio do trigo e não jogar o trigo fora. É isso.

  Falemos do centro democrático. Carece, também, de renovação de lideranças. É impressionante verificar como as lideranças em vários partidos estão calcificadas. São lideranças de ontem, algumas até com mérito, é verdade, mas também é verdade que de ontem, com imensa dificuldade de olhar para o futuro. E, assim, retoma-se o problema mais conjuntural: como definir esse centro. Para além de ser centro democrático, como se define? Nem Lula nem Bolsonaro? O que qualifica o centro é estar equidistante de dois polos? Isso lá é forma de definir algo?

https://open.spotify.com/episode/3zhZ559BHgupsg3EgZSmu3?si=202fbd407f6d4dce

Isso é pouco. É o que venho defendendo, sem êxito, há algum tempo. O centro não se dispõe a assumir claramente um projeto, uma visão de mundo. Talvez um certo oportunismo: surrupiar forças da direita e da esquerda, para engordar, mas sem engrossar nem fortalecer a musculatura. Atua num espaço do nem-nem. Não conseguiu se qualificar a ponto de, aí sim, surgir como uma força de centro capaz de aglutinar os outros. Os candidatos de centro que apareceram eram todos candidatos com esse perfil indefinido. Basta a proposta do nem Lula nem Bolsonaro. Qual projeto de futuro, qual crítica ao patrimonialismo, onde está uma verdadeira visão moderna de mundo? Surgiu alguém com capacidade política, intelectual, moral, para efetivamente conduzir esse projeto?

O que aconteceu com o centro pode ser uma reedição extemporânea do jogo “resta-um”. De início, eram 11 jogadores, passou-se para 10, depois nove e, assim, sucessivamente, até chegar a dois, Ciro e Simone Tebet. E ainda pode se reduzir a um ou uma. Pena que não se enxergue que não existe mais esse negócio de nem-nem, encoberto por uma cortina de fumaça que ofusca uma aposta cega na ambiguidade de perfis, de identidade política. A expectativa – equivocada – é a de que cerca de 25% do eleitorado, que não pretendem votar nem no Lula nem no Bolsonaro, terminarão migrando, por gravidade, para o centro. Quem acredita nisso é melhor voltar para a casa.

Ou, ainda, será possível que Eduardo Leite volte a encarnar o sonho peessedebista de concorrer à eleição para presidente? Tudo no Brasil é possível, pois, como ensinava Ulysses Guimarães, a política brasileira é sempre movida por “sua excelência, o fato novo”. Por isso, ainda há tempo. Mas por que não se construiu uma identidade? Será ele, finalmente, candidato à governança do Rio Grande do Sul, depois de ter rejeitado a proposta de Kassab para concorrer nacionalmente pelo PSD, ter sido deslocado da disputa presidencial pela vitória de Doria, na prévia do PSDB, e, em seguida, pela perda de espaço junto ao MDB, de Simone Tebet? Sem esquecer que este partido está fraturado, se equilibrando entre apoiadores de Lula ou de Bolsonaro. Esse é apenas um reflexo sobre a estratégia na campanha eleitoral da ausência de projeto de governo dos candidatos alternativos. Seguimos atraídos por nomes, não por programas, menos  ainda por lideranças.

A falta de definição de segmentos do eleitorado revela a grande crise de liderança. Quando falo de liderança, não estou falando de uma liderança unipessoal. Estou falando de um grupo capaz de conduzir processos, preocupantemente ausente no universo político-partidário do país, que reúne homens de ontem que não sabem separar o joio do trigo e um centro que mescla centro democrático e centro fisiológico.

Simone Tebet: “Fantasma da fome volta a nos atormentar”

O exemplo mais eloquente disso é o PSDB. Três ou quatro facções brigam entre si, mas todas se indignaram com a declaração de Lula de que o PSDB morreu. Embora politicamente infeliz, a assertiva sobrevive a uma análise objetiva no sentido de que o partido, se não morreu, está na UTI, e precisa de alguma forma ser resgatado. Foi um partido importantíssimo. Basta lembrar o legado dos governos Fernando Henrique, que tiveram entre tantas outras realizações o Plano Real. Mas, já em 2002, na primeira campanha sem FHC, José Serra saiu-se com essa: “Continuidade sem continuísmo”. Em 2006, Geraldo Alckmin, sendo criticado pela esquerda por conta das privatizações, tirou aquela foto ridícula com um bonezinho do Banco do Brasil e a blusa da Caixa Econômica, exibindo seu afastamento do projeto do Fernando Henrique. Não vejo ninguém, hoje, do PSDB discutindo o problema da gasolina, dos combustíveis, etc. Bolsonaro cometeu essa patacoada de querer privatizar a Petrobras, e ninguém do PSDB resgatou a ideia das agências de regulação, da importância da Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP), da importância de todas essas agências, projetos vencedores do governo Fernando Henrique. Ninguém resgata isso. Quem se der ao trabalho de ler meus artigos nesses dois últimos anos verá que defendi a ideia de que o centro democrático deveria tentar a formação de uma frente ampla até mesmo com o PT de Lula. Mas isso não ocorreu, e temo dizer que, independentemente do resultado da eleição – e sabe-se lá que resultado teremos e com quais consequências –, a crise haverá de continuar a partir de janeiro de 2023.

Sobre o entrevistado

*Carlos Melo é cientista político e professor senior fellow do Insper.

** O artigo foi produzido para publicação na revista Política Democrática online de maio de 2022 (43ª edição), produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.

*** As ideias e opiniões expressas nos artigos publicados na revista Política Democrática online são de exclusiva responsabilidade dos autores. Por isso, não reflete, necessariamente, as opiniões da publicação.

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Adriana Fernandes: Governo evita falar, mas o país está sob risco de apagão

Crise hídrica no Brasil é gravíssima e o governo precisa com urgência 'dar a real' para a população sobre o cenário energético

Adriana Fernandes / O Estado de S. Paulo

A crise hídrica no Brasil é gravíssima e o governo precisa com urgência “dar a real” para a população sobre os riscos de racionamento de energia no País.

O Palácio do Planalto tem feito, no entanto, o contrário ao dar ordens para segurar a comunicação da crise para a população, seguindo o modus operandi no enfrentamento da pandemia da covid-19: o negacionismo do tamanho da encrenca. O governo atravanca a transparência necessária em um momento tão delicado para a economia, que combina alta de preços e risco de crise energética.

Há dois meses, o ministro Bento Albuquerque, de Minas e Energia, pediu, durante pronunciamento em cadeia nacional de rádio e TV, a “colaboração” da população para economizar energia e água devido à crise hídrica.

Na época, termos como racionamento e racionalização compulsória de energia foram proibidos de serem utilizados no governo depois que o Estadão/Broadcast antecipou o texto de uma minuta de medida provisória (MP) que previa a adoção desse tipo de medida.

De lá para cá, a crise se alargou. Um novo pronunciamento do ministro Bento estava marcado para a próxima segunda-feira para dar um alerta contundente à população, mas a sua fala foi cancelada.

Bento convocou na quarta-feira, 25, entrevista para anunciar um programa de redução voluntária voltado para consumidores residenciais, que começa em 1.º de setembro. O governo vai dar descontos nas contas de luz de consumidores residenciais que economizarem energia elétrica.

Mas o alerta do ministro foi contido e – por que não dizer? – reprimido no estilo “o gato subiu no telhado”. Bento falou que as perspectivas de chuvas até o fim do período seco deste ano (setembro e outubro) “não são boas no momento” e informou que os meses de julho e agosto registraram a pior quantidade de águas que chegaram aos reservatórios em toda a série histórica. A pior, a pior, a pior. Deveria ter repetido várias vezes.

Faltou contundência para mostrar a realidade. O ministro chegou a dizer que as medidas não se tratavam de racionamento. Um medo danado de falar essa palavra proibida no vocabulário do presidente Jair Bolsonaro.

Em vez disso, Bento disse, inclusive, que o governo não trabalhava com a hipótese de racionamento. Entre os técnicos, a recomendação era outra: a necessidade de maior assertividade e transparência.

A situação é bastante crítica na região Sul, que está sendo atendida com a energia acumulada do Nordeste. As perspectivas de chuva não estão se concretizando. Mas a piora se deu em todos os reservatórios.

Já não era hora de falar para a população de forma mais dura, alertando o que vem por aí? Sem rodeios.

Camuflar a gravidade pode custar caro no enfrentamento da crise que se agrava a passos largos, justamente no pior momento de alta dos preços. Os juros mais altos puxados pelo Banco Central já vão esfriar o processo de retomada do crescimento da economia brasileira. A crise hídrica piora esse futuro, porque tem um impacto grande sobre a capacidade de expansão do Produto Interno Bruto (PIB).

O resultado desse processo é a corrosão da expectativa futura de novos investimentos, como alertou o economista Fabio Terra, da Universidade Federal do ABC, em reportagem do Estadão de domingo passado sobre os riscos que fizeram os indicadores do mercado financeiro piorarem drasticamente neste mês de agosto.

Formou-se uma “tempestade perfeita” com um conjunto de fatores negativos reunidos: inflação, juros elevados, dólar elevado, riscos fiscais em alta, crise entre os Poderes e cenário externo menos favorável com a desaceleração da China.

É evidente que o governo quer evitar adotar o racionamento porque teme os seus efeitos nas eleições de 2022. Por outro lado, a energia com geração a qualquer custo tem seu preço. Muito alto ao provocar um tarifaço dos preços de energia.

Evitar falar em racionamento não garante bons resultados para ninguém. Não muda a realidade: o Brasil enfrenta a pior crise hídrica dos últimos 91 anos, com grave escassez nos reservatórios das principais usinas hidrelétricas e risco de apagão. Crise hidrelétrica sem rodeios.

Fonte: O Estado de S. Paulo
https://economia.estadao.com.br/noticias/geral,governo-evitar-falar-em-racionamento-nao-muda-o-fato-de-que-pais-esta-sob-risco-de-apagao,70003821584

*Título do texto original alterado para publicação no site da FAP


Míriam Leitão: Crise se agrava no setor elétrico brasileiro

Governo está atrasado porque é negacionista também no assunto e tem medo da queda da popularidade de Bolsonaro

Míriam Leitão / O Globo

A crise no setor de energia se agravou nos últimos dois meses, mas os especialistas já haviam alertado que isso iria acontecer. Ontem o governo convocou a imprensa para anunciar que haverá três programas para redução de consumo. Um para as grandes empresas, um para os consumidores residenciais e outro para os órgãos federais. A coletiva foi marcada pelo improviso e pela falta de informações sobre o funcionamento e os custos dessas medidas. O ministro Bento Albuquerque continua errando na comunicação, ao afirmar que não trabalha com a hipótese de racionamento. Na prática, isso já começa a acontecer para os órgãos federais. O governo está atrasado porque é negacionista também nesse assunto e tem medo da queda da popularidade do presidente Bolsonaro.

Os programas de redução de consumo só foram apresentados agora, no oitavo mês do ano. As empresas dizem que levará tempo até que haja confiança para uma adesão expressiva. Os órgãos federais que descumprirem as metas não serão punidos. E o consumidor residencial não sabe quem pagará pelo seu bônus. O risco é que seja ele mesmo, com aumento de bandeira tarifária. Ganha-se um desconto de um lado, paga-se mais via encargos de outro. Os especialistas são unânimes em afirmar que não há uma campanha de comunicação que mostre a gravidade desta crise elétrica.

O nível de água dos reservatórios das hidrelétricas do Sudeste e do Centro-Oeste está em 22,7%, o menor patamar para agosto dos últimos 20 anos, superando inclusive 2001. Essas duas regiões representam 70% da capacidade de armazenagem do sistema. A situação é crítica. Circula a informação no setor de que o presidente Bolsonaro vetou um pronunciamento que seria feito pelo ministro Albuquerque em rede nacional na última segunda-feira. Bolsonaro não quer notícia ruim às vésperas das manifestações do 7 de Setembro. Trocou-se isso por uma coletiva transmitida pelo canal oficial do ministério nas redes sociais.

As grandes indústrias dizem que é cedo para avaliar a eficácia do programa de racionamento voluntário. O consumidor cativo pagará os custos da medida sob a forma de Encargo de Serviços do Sistema. Esse é o mesmo encargo que contabiliza os gastos com as termelétricas, que continuarão operando em carga máxima. Ou seja, um custo irá se somar ao outro. As indústrias temem que o voluntário vire compulsório.

— Como o governo é pouco confiável, se você entrar nisso ele pode te obrigar depois. É o risco de o governo forçar a mão caso a situação se agrave. Ainda não houve uma postura de real conversa com a sociedade, com abertura dos dados para todos os agentes sobre esta crise. Como confiar? — diz o representante de um setor industrial.

O ex-diretor-geral da ANP David Zylbersztajn, especialista em setor elétrico, afirma que o risco de faltar energia em horários de pico no final do ano tem aumentado. No passado, houve governantes que contaram com a sorte e a chuva os salvou, mas não se deve apostar nisso.

— Bolsonaro precisa entender que há um risco de 30% de faltar energia. É um percentual muito alto. Ele está apostando nos 70%. O Lula fez isso em 2008 e deu certo. A Dilma fez isso em 2014 e empurrou a crise para 2015. Mas é papel do governo pensar no pior cenário. Se ele acontecer, será dramático para a economia — afirmou.

O consultor Luiz Augusto Barroso, da PSR, diz que o cenário piorou muito em relação às suas análises anteriores e as previsões de chuvas para o mês de setembro não estão boas. Com o baixo nível de água, o sistema elétrico já está operando no limite, o que aumenta o risco de falhas nos sistemas de geração e transmissão. Ele acha que algumas medidas do governo têm dado certo, como a flexibilização dos limites de armazenamento e vazão de água das hidrelétricas e o aumento de importação de energia de países vizinhos. Sobre o programa de redução de consumo das residências, diz que é fundamental, mas ainda faltam detalhes.

— Disseram que o dinheiro não virá do Tesouro, mas da tarifa. Ainda está pouco claro sobre como isso vai funcionar — afirmou.

Itaipu está hoje gerando 39% da sua capacidade. Se não fosse a energia dos ventos e do sol, que não havia na crise de 2001, o Brasil já poderia estar em colapso. A eólica em agosto gerou 166% mais energia do que Itaipu no Brasil, e o sol chegou a 10 GW de potência instalada.

A crise hídrica impacta a economia dramaticamente e já está afetando as famílias pela inflação da energia. O governo ao atuar do lado da oferta — e só agora ter medidas para conter a demanda — está contratando aumentos futuros e elevando os riscos do país.

Fonte: O Globo
https://blogs.oglobo.globo.com/miriam-leitao/post/crise-se-agrava-no-setor-eletrico.html


RPD || Nelson Tavares: Múltiplas razões

Depois de derrocada no Brasil, Ford aposta seu futuro nos carros elétricos. Companhia, que fabricava veículos no país desde 1919, vinha fazendo cortes de pessoal nos últimos anos e sofrendo queda de vendas superior à do mercado

Qual a montadora de veículos de maior valor internacional?

Décadas atrás, a indústria automobilística era acompanhada, em proporções razoáveis, por parte da população. As pessoas seguiam o lançamento do modelo (o “design” do carro), a potência do motor, o volume de venda nos diversos mercados. Essa atitude se traduzia na admiração que alguns cultivavam por montadora A ou uma de suas irmãs.

Sim, todas eram consideradas “irmãs”. Tal como na indústria petrolífera, em que oito empresas forneciam o petróleo do mundo e se articulavam como um cartel, oito montadoras eram responsáveis pela produção da quase totalidade dos carros montados no mundo. A articulação que havia entre elas era menor do que a existente na área do petróleo. Concorriam no “design”, na potência dos motores e no padrão de qualidade imprimido, mas atuavam conjuntamente procurando sempre trazer “benesses” para o setor.

As indústrias petrolíferas e montadoras de veículos eram consideradas um “poder” à parte, capazes de interferir em governos de diversos países e mesmo desestabilizá-los. Nas bolsas de valores, mundo afora, estavam bem sempre bem representadas entre as maiores. No caso das montadoras, tudo com uma certa admiração de parte da população.

Respondo agora à pergunta acima feita. A maior montadora do mundo, em valor na bolsa de valores americana, é a TESLA. Foi fundada em 2003 e, em 2020, ultrapassou o valor de mercado da TOYOTA. Suas ações valem US$ 208 bi. Fabricou nesse ano pouco mais de 367 mil veículos e seus demais componentes, ao passo que a TOYOTA fabricou cerca de 10 milhões. O mercado está acompanhando a TESLA e verifica que se trata de uma empresa inovadora com lugar garantido no futuro.

A indústria automobilística está perdendo seu valor e espaço nas bolsas internacionais. Desde 1990, ocorrem fusões e aquisições entre elas, a mais recente Fiat-Peugeot. Algumas delas percorrem esse caminho da desvalorização de maneira mais rápida. A Ford internacional é uma dessas. Seus carros não conseguem atender todas as faixas de mercado. Nos EUA, seu carro mais vendido é a “EXPLORER” e suas variações, mas carros de passeio, construídos para a classe média/média e média/baixa, a FORD não consegue produzir com margens de lucro razoáveis.

As grandes montadoras têm buscado inovações no mundo inteiro, para tornar seus produtos mais atraentes. Investem alto em pesquisa de digitalização de seus veículos. Procuram se unir a empresas que complementem suas linhas de produto e de inovações. Mas têm um grande desafio pela frente: mudar sua base energética e adequar a emissão de carbono aos padrões que serão/estão sendo exigidos, à luz da proibição do uso de combustíveis fósseis nas grandes cidades, de acordo com o Tratado assinado em Paris sobre a redução da emissão de gases de efeito estufa. Algumas cidades já mencionam a possibilidade de proibir os carros que utilizam combustíveis fósseis, já em 2030.

A situação é agravada quando falamos do mercado interno brasileiro. E, mais uma vez, o exemplo é a Ford. Não foi a primeira vez que a empresa tentou sair do país. Na década de 80, entregou o design de seus veículos à Volkswagen, a quem se juntou formando a “Autolatina”.

Na década de 90, já separada da “coirmã”, sofreu dois outros golpes decisivos. No início da década, o governo federal diminuiu IPI dos motores até 1000 cilindradas, exigindo o devido repasse aos preços. Estendeu o mercado consumidor em uma nova faixa, que antes não tinha condição de comprar carro. A Fiat saiu na frente, com o carro Mille. E ocupou o devido espaço no mercado. As demais montadoras tiveram de criar produtos e adaptar suas linhas a essa nova realidade, em que o carro mais vendido estaria voltado para as classes média/média e média/baixa, com margens inferiores aos que existiam. Tanto a Ford como a Volkswagen obtiveram sucesso apenas relativo neste mercado.

A outra medida foi abrir o mercado para produtos importados, estimulando a concorrência. A alíquota de importação de veículos caiu paulatinamente de 80% para 35%, em quatro anos. A abertura do mercado foi decisiva para estimular novos investimentos. A realidade é que nesse setor vigorava certo acordo entre trabalhadores e empresários, que viam nas alíquotas maiores de importação a salvaguarda de seus empregos, ao passo que os empresários não faziam qualquer esforço de modernização de suas linhas de montagem e de seus produtos.

Na segunda metade da década de 90, novamente, o governo sinaliza para as montadoras com incentivos para fábricas novas, que deveriam ser montadas em locais diferentes das anteriores. Sem entrar em consideração sobre a política de descentralização regional promovida, a FORD montou nova unidade em Camaçari/BA, para montar um novo carro, com design brasileiro, o EcoSport. E mais uma vez obteve sucesso relativo, incapaz de remunerar de maneira satisfatória o investimento feito em seu lançamento.

Enfim, atualmente a FORD tem cerca de 7% do mercado, muito pouco para uma empresa que sempre se situou em torno do patamar de 20%. Diante das mudanças no mercado internacional e, após uma “década perdida”, na economia brasileira, e das perspectivas de crescimento modesto, tanto do mercado automobilístico interno, como das exportações, a empresa decidiu retirar-se do país. E tudo indica que irá fazê-lo em ritmo acelerado.


Míriam Leitão: Crise de produção e preços em alta

Os preços estão subindo fortemente dentro da indústria e há uma crise de suprimento. Altas da ordem de 60% no aço e de 63% nas resinas para plásticos. Embalagens continuam em falta. E os chips. Resultado de uma forte desorganização produtiva. O IPA industrial subiu 30% em 12 meses, e só em janeiro chegou a 4,48%. Para os consumidores também as contas estão chegando, os planos de saúde, combustíveis e material de limpeza sobem. Os preços dos alimentos vão cair porque a safra foi boa, mas menos do que se esperava. O IPCA mensal vai ficar em níveis baixos, mas o índice anual vai subir.

Dentro da indústria, o que está acontecendo é definido pelo economista José Roberto Mendonça de Barros, da MB Associados, como “pancada de custos e falha no suprimento”.

— Quando a economia parou, aqui e no mundo, todas as grandes aciarias desligaram fornos. Foram cinco desligados. Para religar, leva 60 a 90 dias, porque se perde os refratários internos. Isso gerou um atraso que não se tirou até hoje. Quando a demanda voltou em junho não tinha como entregar. Na metalurgia, muitas plantas anteciparam a manutenção preventiva. Nas embalagens, falta caixa de papelão, assim como latas de cervejas, porque no Brasil 70% do papelão é produzido por matéria-prima dos recicladores, as carrocinhas das grandes cidades — diz José Roberto Mendonça de Barros.

Os produtores de vidro durante a crise tiveram um alto custo. Para não parar os fornos eles produziam, quebravam os vidros e retomavam a produção. Agora tem demanda, mas a barrilha é importada, o dólar subiu, e o gás teve alta de preços, explicou uma fonte do setor.

— Falta frasco de vidro, garrafas, vidro para conservas. Garrafas para cerveja, se houver aumento de demanda, não têm para entregar —diz Mendonça de Barros.

Quanto disso vai ser repassado para o consumidor? A demanda vai cair neste primeiro semestre e deve segurar parte desse repasse. O IPCA de janeiro vai ser divulgado hoje e não será alto. Deve ficar entre 0,30% e 0,35%, mas ao longo do primeiro semestre o índice baterá em 6,5% em 12 meses, explica o professor Luiz Roberto Cunha. É que no ano passado os índices foram baixos ou negativos.

— A alimentação está desacelerando gradualmente, mas tem pressão de diesel, o vestuário está em alta. Em fevereiro, deve pesar a educação e tem uma certa confusão na energia elétrica que agora está sem a bandeira vermelha, mas que durante o ano vai subir — diz Luiz Roberto Cunha, da PUC-Rio.

Em 2020, o consumo de energia caiu. Por mais estranho que pareça, consumidor vai pagar mais por isso. A distribuidora teve prejuízo com a queda da demanda, e agora a conta vai para o consumidor. As empresas explicam que, para dar garantia de fornecimento, elas compram antecipadamente a energia. Se a demanda cai, ela continua pagando por essa energia. Em resumo: o consumidor sempre paga a conta.

A economia está vivendo um período bem confuso. Recessão com choque de custos, falta de produto e dificuldade de importar.

— Quando a demanda voltou, o dólar estava em R$ 5,50 e faltava navio. No mundo inteiro, houve aumento de pedidos e faltou navio. O preço do frete subiu. O preço de transportar por contêiner multiplicou-se por quatro — diz Mendonça de Barros.

Para o consumidor, o começo do ano sempre tem vários gastos extras, mas desta vez a pressão vem em momento de queda de renda e de elevação da incerteza. Além da energia, que pode ter reajustes de dois dígitos durante o ano, os planos de saúde estão cobrando a conta e a compensação por terem reajustado menos no ano passado.

Tanto para o consumidor quanto para o produtor industrial a situação está complicada. A desorganização produtiva fez com que em muitos casos o produto esteja pronto, esperando apenas uma peça. É por isso que há 250 mil carros vendidos e não entregues e 150 mil motos. E há coisas surpreendentes.

— Falta chip no mundo inteiro. Aqui e em outros países. Todo mundo trabalhando em casa houve uma demanda extra por equipamentos de informática. E como os chips para informática são mais sofisticados do que os que vão nos carros, os fabricantes mudaram a produção e agora falta produto — diz José Roberto.

Mendonça de Barros diz que “está sempre acontecendo coisa nova ruim no Brasil”. Desta vez, contudo, há um grau exagerado de confusão.


Luiz Carlos Trabuco Cappi: Ponto de partida

É preciso corrigir distorções nas cadeias de produção, reduzir a desigualdade, promover a inclusão e enfrentar os graves problemas ambientais

O mundo enfrenta dois desafios intensos. O primeiro, mais sensível, é o controle da pandemia. E o segundo, mais incerto, é a retomada do crescimento econômico.

Confiemos na ciência. Os principais centros de pesquisas do mundo estão mobilizados para o teste e a produção de vacinas que nos protejam da doença. Já a volta ao crescimento dependerá de uma variável decisiva em tempos sombrios, a confiança.

Antes da pandemia, os principais líderes políticos e empresariais globais debatiam a necessidade de corrigir as distorções das cadeias de produção e comércio, buscar a redução da desigualdade social, promover a inclusão e enfrentar os graves problemas ambientais. Fóruns como o de Davos, polo do pensamento moderno, encaram com bastante ênfase o prenúncio dessa nova era.

O debate voltará com força, como consequência da própria pandemia. Agravou-se a má distribuição de riqueza, seja em um país, seja entre países, o que se tornou fonte de desequilíbrio geopolítico e de crises sociais, além de interromper de forma abrupta os ciclos de crescimento, cuja agenda passa a ser a da sustentabilidade e da geração de emprego.

O Brasil tem peso nessa discussão, por sermos um país em desenvolvimento, de dimensões continentais, com uma estrutura produtiva de envergadura e recursos naturais de importância global.

A sigla ESG, que foi tema de outro artigo, hoje mobiliza governos, investidores, gestores de recursos e empresas inovadoras. Projeta a criação de um mundo melhor, sem soberba e artificialismo.

“Os princípios ESG e o capitalismo de partes interessadas não são uma moda”, afirma o economista alemão Klaus Schwab, fundador do Fórum Econômico Mundial de Davos. “Não são apenas uma manifestação de líderes empresariais para mostrar sua responsabilidade social corporativa, mas sim parte integrante da gestão empresarial”.

Adotando essas práticas, as empresas espalham uma nova cultura. Os investimentos em fundos associados a esses princípios já formam patrimônio de mais de US$ 1 trilhão.

Está se construindo uma agenda de colaboração. Há iniciativas em todo o mundo que mobilizam setores econômicos, governos e personalidades influentes nos negócios, na política e na ciência. No Brasil, a pandemia gerou iniciativas unindo grandes empresas e bancos na pauta ambiental, além de fundos de solidariedade para o combate à Covid-19. Nesse cenário, o Grupo de Trabalho da Pecuária Sustentável (GTPS), fórum que reúne pecuaristas, instituições financeiras, frigoríficos e entidades da sociedade civil, esboça um novo pacto ambiental cuja ideia central é construir um modelo de rastreabilidade e monitoramento.

A grande questão é sistematizar os trabalhos e preparar politicamente essa pauta. Os acordos do clima estabelecem compromissos para redução das emissões de gases na atmosfera. Na vida prática, os governos que assinaram os acordos podem não ser os mesmos que vão aplicar as medidas dele.

É preciso segurança institucional, que começa a partir da convergência de compromissos entre empresas e sociedade, com participação da classe política, no esforço comum de provocar e buscar a adesão dos governos no enfrentamento dos problemas.

No nosso caso, a agenda ESG deveria se concentrar em quatro pontos: desigualdade social, mudanças climáticas, ética e investimento voltado ao crescimento.

O Brasil é o maior produtor e vendedor de alimentos do mundo, grande exportador de minério e player importante no mercado de óleo e gás, entre outros atributos que nos conferem relevância internacional; ao mesmo tempo, apresenta indicadores ruins na educação, na logística de transporte da safra de grãos, na infraestrutura de saneamento e no controle do desmatamento.

Que este ano dramático sirva de ponto de partida para uma virada civilizatória: olhar de outra maneira os objetivos da atividade econômica e do lucro, de modo a alinhar crescimento a resultados sociais e ambientais. Caberá à nossa geração a responsabilidade de redefinir esse jogo.

  • PRESIDENTE DO CONSELHO DE ADMINISTRAÇÃO DO BRADESCO. ESCREVE A CADA DUAS SEMANAS

Revista Política Democrática || José Luis Oreiro: Por que o crescimento da economia brasileira não decola?

Produção da indústria brasileira recuou 1,1% em 2019 na comparação com 2018, segundo informações divulgadas na primeira semana de fevereiro deste ano pelo IBGE. Os dados jogaram um balde de água fria nas expectativas de uma aceleração mais robusta do crescimento em 2020

Entre 1980 e 2014, a economia brasileira cresceu a um ritmo médio de 2,81% a.a, segundo dados do IPEADATA. A grande recessão, iniciada no segundo semestre de 2014, produziu queda acumulada de 8,3% do PIB até o último trimestre de 2016. Formalmente a economia brasileira saiu da recessão no início de 2017, ano que apresentou crescimento do PIB de 1,32%, valor 53% inferior à tendência de longo-prazo para o período 1980-2014. Em 2018, o crescimento foi de 1,31%, repetindo assim o desempenho de 2017 e ficando novamente abaixo da tendência de longo-prazo.

Os dados divulgados pelo IBGE em dezembro sobre o comportamento do PIB no terceiro trimestre do ano passado deram ensejo a um aumento (temporário) do otimismo entre os analistas econômicos, não só sobre a performance da economia em 2019. Eles também alimentaram uma narrativa de que, em 2020, o crescimento da economia brasileira iria finalmente decolar, podendo situar-se acima de 2,5%.  Em artigo que publiquei no jornal O Estado de São Paulo (3/12/2019), chamei atenção para o fato de que o crescimento observado no terceiro trimestre do ano – de 0,6% na comparação com o período imediatamente anterior – havia sido puxado, pelo lado da oferta, pela agropecuária e pela indústria extrativa. Pelo lado da demanda, as exportações haviam apresentado queda expressiva de 2,8%, ao passo que as importações apresentaram crescimento de 2,9%, sinalizando clara tendência de piora das contas externas brasileiras no médio prazo. Argumentei que a estagnação da produção da indústria de transformação, fonte dos retornos crescentes de escala, absolutamente indispensáveis para a sustentabilidade do crescimento econômico no longo prazo, combinada com a deterioração do saldo comercial e, consequentemente, com o aumento do déficit em conta corrente do balanço de pagamentos, atualmente em torno de 3% do PIB, sinaliza um retorno da general restrição externa[1], tornando insustentável qualquer aceleração mais forte do crescimento da economia brasileira no médio prazo.

Os dados divulgados na primeira semana de fevereiro deste ano jogaram um balde de água fria nas expectativas de uma aceleração mais robusta do crescimento em 2020. Com efeito, o IBGE divulgou que a produção da indústria brasileira recuou 1,1% em 2019 na comparação com 2018, interrompendo assim o movimento de tímida recuperação da produção industrial ocorrido em 2017 e 2018. Dados divulgados pelo IPEA mostram que a formação bruta de capital fixo recuou 2,7% no quarto trimestre, na comparação com o período imediatamente anterior. Diante dos dados recentemente divulgados, os analistas do mercado financeiro já começaram a reduzir suas previsões de crescimento para 2020, as quais já se encontram bem abaixo de 2,5%, com algumas até mesmo abaixo de 2%. A esse quadro nada animador deve-se somar a incerteza quanto aos efeitos da epidemia de coronavírus sobre o crescimento da China (algumas análises projetam redução do crescimento da China para 4% em 2020 e redução de 33% no ritmo de crescimento na comparação com 2019).

Nesse contexto, é possível que a economia brasileira apresente crescimento inferior a 1,5% em 2020, completando assim quatro anos de crescimento medíocre após o fim da grande recessão. Dessa forma, não há como escapar da conclusão de que a grande recessão de 2014 a 2016 produziu redução da tendência de crescimento da economia brasileira. A questão relevante é saber qual o motivo.

Na minha visão, a redução do potencial de crescimento de longo prazo é um fenômeno que vem ocorrendo desde meados da década passada, em função da desindustrialização crescente da economia brasileira; fenômeno esse que foi tardiamente percebido pelas administrações petistas e enfrentado de forma tíbia e inconsistente no primeiro mandato da presidente Dilma Rousseff. A crise de 2014-2016 piorou esse quadro, pois (i) fez com que as empresas brasileiras suspendessem seus planos de ampliação e modernização da capacidade produtiva, o que aumentou a defasagem tecnológica da indústria brasileira; e (ii) propiciou a adoção de uma agenda de consolidação fiscal baseada na contração do investimento público e das operações de crédito do BNDES, amplificando assim os efeitos da queda do investimento privado em 2014 sobre a demanda agregada, com efeitos negativos também no lado da oferta da economia. Isso em função dos efeitos de transbordamento positivos do investimento público sobre a rentabilidade das empresas do setor privado.

* Professor Associado do Departamento de Economia da Universidade de Brasília, Pesquisador Nível IB do CNPq e Pesquisador Associado do Centro de Estudos do Novo-Desenvolvimentismo da FGV-SP. E-mail: joreiro@unb.br.

[1] Analogia ao General inverno. Trata-se do papel que a restrição externa tem historicamente no Brasil de estrangular o crescimento econômico e desestabilizar o governo (Nota do autor).

 


Política Democrática || Sérgio C. Buarque: Inflexão na trajetória econômica?

Com cerca de 12 milhões de desempregados (11,2% da População Economicamente Ativa) e 4,7 milhões de desalentados, ainda não é possível comemorar a recuperação da economia, iniciada em 2017

Depois da profunda recessão que afundou a economia brasileira, 2019 foi o terceiro ano consecutivo de crescimento econômico, bem modesto, é verdade, mas confirmando a recuperação iniciada em 2017. Dá para comemorar? Não, quando se consideram os quase 12 milhões de desempregados (11,2% da População Economicamente Ativa) e 4,7 milhões de desalentados. Houve pequeno declínio do desemprego em 2019, acompanhado, contudo, da expansão da informalidade e da precarização do mercado de trabalho. Além da persistência do alto nível de desemprego, a economia brasileira terminou 2019 ainda com elevada ociosidade e baixíssima taxa de investimento, apenas 15,5% do PIB (Produto Interno Bruto).

Entretanto, nesse ano de 2019, o Brasil pôde celebrar a queda acentuada da taxa de juros de referência (Selic) ao mais baixo patamar da história e, principalmente, a aprovação da reforma da
Previdência, que alivia a grave crise fiscal do país. A combinação dos dois eventos explica parte do crescimento da economia, embora seus efeitos ainda não tenham sido relevantes neste ano.
A redução da Selic para apenas 4,5% ao ano, com inflação de 3,27% ao final de 2019, deve provocar grande mudança na movimentação das aplicações financeiras, encerrando um longo período do chamado “rentismo”, que se beneficiava de alta rentabilidade no mercado financeiro aproveitando as altas taxas de juros ancoradas em títulos da dívida pública. Além de conter a expansão da dívida pública, uma vez que os títulos públicos lastreados pela Selic representam quase 40% do total, o declínio dos juros de referência leva a uma migração da poupança nacional para ativos reais, como imóveis, títulos de crédito privado, ações e outras aplicações de maior risco, que financiam as atividades produtivas. Ou mesmo para consumo e investimento.

A reforma da Previdência foi o mais importante fato político e econômico de 2019, pelo seu impacto na contenção da escalada explosiva das despesas primárias, que ameaçava provocar o desastre fiscal do Brasil. Se a redução dos juros de referência foi decisão isolada do Banco Central (mesmo considerando as condições macroeconômicas), a reforma da Previdência demandou emendas constitucionais que exigiam aceitação por 3/5 das duas Casas do Congresso, em duas votações, enfrentando a resistência de setores poderosos da sociedade. O presidente atrapalhou como pôde e ainda forçou concessões ao estamento militar, mas a capacidade de negociação do Ministério da Economia e a liderança competente e responsável do presidente da Câmara de Deputados conseguiram vencer a oposição das corporações.

Embora a reforma da Previdência não tenha exercido efeito imediato nas finanças públicas em 2019, o déficit primário da União no ano ficou bem abaixo do esperado, graças a uma série de medidas que permitiram arrecadação extra, como os recursos do leilão de petróleo da cessão onerosa e a receita sobre ganho de capital incidente nas operações de venda de subsidiárias de estatais. O plano de privatizações e concessões públicas foi apenas iniciado em 2019 e seus resultados na expansão dos investimentos privados ainda não foram percebidos no ano.

A economia mundial não ajudou muito na recuperação econômica do Brasil. O comércio internacional, em 2019, cresceu apenas pouco mais de 1,2%, reflexo da guerra comercial entre Estados Unidos e China, e a Argentina, terceiro maior parceiro comercial do Brasil, afundou em grave recessão econômica que travou as importações de produtos brasileiros. O saldo da balança comercial no ano passado alcançou US$ 46 bilhões, o menor resultado desde 2015 (estima-se que a crise da Argentina tenha reduzido em US$ 5,2 bilhões o saldo comercial brasileiro). E o próprio governo Bolsonaro atrapalhou como pôde, com medidas e declarações descabidas e irresponsáveis, que mancharam a imagem externa e as relações diplomáticas e comerciais do Brasil.

Os resultados econômicos, em 2019, constituem inflexão na trajetória da economia brasileira? Claro que não. O crescimento recente da economia será apenas um “voo de galinha” se não forem enfrentados alguns dos graves estrangulamentos econômicos, a começar pela reforma tributária e a desestatização em áreas estratégicas, de resultado rápido na melhoria do ambiente de negócios e nos investimentos no Brasil. Mas a grande virada histórica da economia brasileira será possível apenas quando o país decidir apostar todas as suas fichas na educação, na qualificação profissional e na inovação. Nestes segmentos, cabe ao Estado papel decisivo, o que depende da recuperação das finanças públicas e de sua capacidade de investimento. Apesar dos pesares, 2019 deu alguns passos à frente.


Revista Política Democrática || Sérgio C. Buarque: Os sinais e as incertezas

Economia do país reage e apresenta sinais alentadores, com ambiente macroeconômico favorável, com inflação de 3,4% ao ano e a mais baixa taxa Selic da história recente do Brasil (5% ao ano, menos de 2% em termos reais). É só o presidente não atrapalhar e as tensões externas arrefecerem 

Os sinais da economia brasileira são alentadores. Apesar do tímido crescimento esperado para este ano e dos níveis alarmantes de desemprego, a combinação de inflação em patamares civilizados (3,4% ao ano) com a mais baixa taxa de juros de referência (Selic) da história recente do Brasil (5% ao ano, que representa menos de 2% em termos reais) cria ambiente macroeconômico muito favorável. Se o presidente da República não atrapalhar e as tensões comerciais externas arrefecerem, é provável que a economia brasileira retome ciclo de crescimento nos próximos anos. Nada espetacular e rápido, contudo, como seria desejável para a geração de renda e emprego e para ampliação da receita pública. Mesmo com a reforma da Previdência, a crise fiscal ainda vai se arrastar por alguns anos, as famílias e as empresas continuam endividadas e a economia internacional caminha a passos de tartaruga.

A queda da taxa de juros de referência deve gerar três efeitos positivos e complementares na economia. De imediato, reduz o custo da dívida pública, contendo a tendência de expansão do endividamento, que gera insegurança e instabilidade, e diminuindo o tamanho do superávit primário necessário para pagamento dos juros. Ao mesmo tempo, a redução da Selic já está empurrando para baixo os juros do crédito comercial, mesmo com a persistência de oligopólio bancário e da elevada inadimplência.

Além disso, a redução da Selic deve levar a uma redução da atratividade das aplicações financeiras em títulos da dívida pública, grande parte dos quais são remunerados pela taxa de referência. Como consequência, pode haver migração das aplicações da poupança nacional para produtos mais rentáveis, incluindo ações, e mesmo para o consumo ou o investimento. O desestimulo da “economia rentista” anima os empreendedores à procura de negócios com maior remuneração e risco mais elevado. Como a economia está operando com alto índice de ociosidade, a ampliação da utilização da capacidade instalada, acompanhada da contratação de mão de obra desocupada, complementa o ciclo virtuoso de recuperação do crescimento econômico.

Entretanto, esta conjuntura favorável convive com muitas incertezas, que assustam os agentes econômicos e podem comprometer o crescimento da economia. O primeiro fator de insegurança reside no próprio governo, na incompetência e no desequilíbrio emocional e ideológico do presidente da República, sua incontinência verbal alimentada pela paranoia reacionária, provocando quase cotidianamente o conflito e a instabilidade. A isto se agrega a recente libertação de Luís Inácio Lula da Silva com um discurso de radicalização política que deve acentuar a polarização entre lulistas e bolsonaristas, elevando a temperatura política, o que pode desfocar o debate das reformas estruturais.

É surpreendente, em todo caso, a consistência da política econômica de um governo completamente desorientado, parecendo indicar que o presidente delegou, efetivamente, ao ministro Paulo Guedes e a outros ministros da área econômica a condução das reformas que podem destravar a economia e estimular novos investimentos privados. Além das iniciativas para privatização de várias estatais e concessão de serviços públicos, o governo vem avançando em algumas reformas do Estado para flexibilizar, regular e reduzir as despesas públicas. O Ministério da Economia falha, lamentavelmente, quando se omite das negociações que levam à reforma tributária (com duas propostas tramitando no Congresso), fundamental para melhoria do ambiente de negócios, que estimula os investimentos.

Não bastassem as incertezas internas, a situação internacional emite ondas de instabilidade que podem atrapalhar muito o desempenho da economia brasileira. A disputa comercial dos Estados Unidos com a China, amenizada transitoriamente, pode gerar retração da economia global e, de imediato, atingir os dois maiores parceiros comerciais do Brasil. A União Europeia, às voltas com um nacionalismo retrógrado e com a confusão do Brexit, mostra sinais de estagnação econômica que contraem também o comércio internacional. Mais perto do Brasil, o renascimento do peronismo kirchnerista na Argentina, nosso terceiro parceiro comercial, ameaça a existência do Mercosul, base para negociação de acordos comerciais com grandes centros econômicos, especialmente o entendimento com a União Europeia, já muito abalado pelas barbaridades do presidente Jair Bolsonaro.

Mesmo com toda a reserva em relação a um presidente autoritário e reacionário em áreas importantes da vida brasileira, há motivos para otimismo quanto a uma possível retomada do crescimento da economia brasileira. Os sinais são positivos, embora as incertezas ainda sejam muito grandes.

 

 


‘Sinais da economia brasileira são alentadores’, afirma Sérgio C. Buarque na nova edição da Política Democrática online

Economista diz que país pode voltar a crescer nos próximos anos; queda de juros deve gerar efeitos positivos

Cleomar Almeida, da Ascom/FAP

Os sinais da economia brasileira são alentadores, na avaliação do economista Sérgio Cavalcanti Buarque. Em artigo publicado na 13ª edição da revista Política Democrática online, o consultor em planejamento estratégico disse que a combinação de inflação em patamares civilizados (3,4% ao ano) com a mais baixa taxa de juros de referência (Selic) da história recente do Brasil (5% ao ano que representa menos de 2% em termos reais) cria ambiente macroeconômico muito favorável.

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Todos os conteúdos da revista podem ser acessados, de graça, no site da FAP (Fundação Astrojildo Pereira), que produz a edita a publicação. A entidade é sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania. Na avaliação do economista, é possível que o Brasil volte a crescer nos próximos anos, se o presidente Jair Bolsonaro não atrapalhar e as tensões comerciais externas diminuírem. “Nada espetacular e rápido, contudo, como seria desejável para a geração de renda e emprego e para ampliação da receita pública”, afirma o autor, em artigo produzido para a revista Política Democrática online.

Mesmo com a reforma da Previdência, na avaliação de Buarque, a crise fiscal ainda vai se arrastar por alguns anos. Segundo ele, as famílias e as empresas continuam endividadas, e a economia internacional caminha a passos de tartaruga. “A queda da taxa de juros de referência deve gerar três efeitos positivos e complementares na economia”, pondera.

De imediato, conforme escreve o consultor, reduz o custo da dívida pública, contendo a tendência de expansão do endividamento, que gera insegurança e instabilidade, e diminuindo o tamanho do superávit primário necessário para pagamento dos juros. “Ao mesmo tempo, a redução da Selic já está empurrando para baixo os juros do crédito comercial, mesmo com a persistência de oligopólio bancário e a elevada inadimplência”, acentua.

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Revista Política Democrática || Sérgio C. Buarque: Os sinais e as incertezas

Economia do país reage e apresenta sinais alentadores, com ambiente macroeconômico favorável, com inflação de 3,4% ao ano e a mais baixa taxa Selic da história recente do Brasil (5% ao ano, menos de 2% em termos reais). É só o presidente não atrapalhar e as tensões externas arrefecerem 

Os sinais da economia brasileira são alentadores. Apesar do tímido crescimento esperado para este ano e dos níveis alarmantes de desemprego, a combinação de inflação em patamares civilizados (3,4% ao ano) com a mais baixa taxa de juros de referência (Selic) da história recente do Brasil (5% ao ano, que representa menos de 2% em termos reais) cria ambiente macroeconômico muito favorável. Se o presidente da República não atrapalhar e as tensões comerciais externas arrefecerem, é provável que a economia brasileira retome ciclo de crescimento nos próximos anos. Nada espetacular e rápido, contudo, como seria desejável para a geração de renda e emprego e para ampliação da receita pública. Mesmo com a reforma da Previdência, a crise fiscal ainda vai se arrastar por alguns anos, as famílias e as empresas continuam endividadas e a economia internacional caminha a passos de tartaruga.

A queda da taxa de juros de referência deve gerar três efeitos positivos e complementares na economia. De imediato, reduz o custo da dívida pública, contendo a tendência de expansão do endividamento, que gera insegurança e instabilidade, e diminuindo o tamanho do superávit primário necessário para pagamento dos juros. Ao mesmo tempo, a redução da Selic já está empurrando para baixo os juros do crédito comercial, mesmo com a persistência de oligopólio bancário e da elevada inadimplência.

Além disso, a redução da Selic deve levar a uma redução da atratividade das aplicações financeiras em títulos da dívida pública, grande parte dos quais são remunerados pela taxa de referência. Como consequência, pode haver migração das aplicações da poupança nacional para produtos mais rentáveis, incluindo ações, e mesmo para o consumo ou o investimento. O desestimulo da “economia rentista” anima os empreendedores à procura de negócios com maior remuneração e risco mais elevado. Como a economia está operando com alto índice de ociosidade, a ampliação da utilização da capacidade instalada, acompanhada da contratação de mão de obra desocupada, complementa o ciclo virtuoso de recuperação do crescimento econômico.

Entretanto, esta conjuntura favorável convive com muitas incertezas, que assustam os agentes econômicos e podem comprometer o crescimento da economia. O primeiro fator de insegurança reside no próprio governo, na incompetência e no desequilíbrio emocional e ideológico do presidente da República, sua incontinência verbal alimentada pela paranoia reacionária, provocando quase cotidianamente o conflito e a instabilidade. A isto se agrega a recente libertação de Luís Inácio Lula da Silva com um discurso de radicalização política que deve acentuar a polarização entre lulistas e bolsonaristas, elevando a temperatura política, o que pode desfocar o debate das reformas estruturais.

É surpreendente, em todo caso, a consistência da política econômica de um governo completamente desorientado, parecendo indicar que o presidente delegou, efetivamente, ao ministro Paulo Guedes e a outros ministros da área econômica a condução das reformas que podem destravar a economia e estimular novos investimentos privados. Além das iniciativas para privatização de várias estatais e concessão de serviços públicos, o governo vem avançando em algumas reformas do Estado para flexibilizar, regular e reduzir as despesas públicas. O Ministério da Economia falha, lamentavelmente, quando se omite das negociações que levam à reforma tributária (com duas propostas tramitando no Congresso), fundamental para melhoria do ambiente de negócios, que estimula os investimentos.

Não bastassem as incertezas internas, a situação internacional emite ondas de instabilidade que podem atrapalhar muito o desempenho da economia brasileira. A disputa comercial dos Estados Unidos com a China, amenizada transitoriamente, pode gerar retração da economia global e, de imediato, atingir os dois maiores parceiros comerciais do Brasil. A União Europeia, às voltas com um nacionalismo retrógrado e com a confusão do Brexit, mostra sinais de estagnação econômica que contraem também o comércio internacional. Mais perto do Brasil, o renascimento do peronismo kirchnerista na Argentina, nosso terceiro parceiro comercial, ameaça a existência do Mercosul, base para negociação de acordos comerciais com grandes centros econômicos, especialmente o entendimento com a União Europeia, já muito abalado pelas barbaridades do presidente Jair Bolsonaro.

Mesmo com toda a reserva em relação a um presidente autoritário e reacionário em áreas importantes da vida brasileira, há motivos para otimismo quanto a uma possível retomada do crescimento da economia brasileira. Os sinais são positivos, embora as incertezas ainda sejam muito grandes.

 

 


Míriam Leitão:Sinais exteriores nada animadores

Comércio externo não manda sinais animadores para a recuperação este ano. Crise na Argentina está afetando as vendas de produtos industriais

O Brasil terá um saldo forte na balança comercial, mas os números deste começo de 2019 mostram alguns dos desafios que o comércio exterior enfrenta. Exportações e importações recuaram no primeiro trimestre. Houve uma queda de 9,8% nas vendas de produtos industriais. Elas foram afetadas pela crise econômica na Argentina, pelas incertezas da guerra comercial entre EUA e China e pela desaceleração global. Cada US$ 1 bilhão a menos de exportação de manufaturas compromete cerca de 50 mil postos de trabalhos qualificados, segundo a Associação de Comércio Exterior do Brasil (AEB). A volatilidade do dólar atrapalha os investimentos via importação.

Pouco mais de US$ 2 bilhões de produtos industriais já deixaram de ser vendidos para o exterior nos três primeiros meses do ano, na comparação com o mesmo período do ano passado. O setor automobilístico — que tem uma cadeia longa de fornecedores — é o mais afetado. A exportação de veículos de carga despencou 52%, a de automóveis de passeio caiu 44%, e a venda de autopeças recuou 22%. Isso tudo é efeito da crise argentina. Nossas exportações para o país vizinho caíram quase à metade neste início de ano. A Argentina voltou à recessão e o peso se desvalorizou fortemente em relação ao dólar.

— É um cenário preocupante para a indústria, porque internamente ainda não temos uma recuperação muito forte. As famílias sofrem com o desemprego elevado, o setor público será contracionista, ou seja, vai cortar gastos, e há ociosidade nas fábricas, o que desestimula investimentos. Tudo isso prejudica a melhora que se esperava no setor —afirmou o economista Sílvio Campos Neto, da Tendências Consultoria, que acompanha o comércio externo.

Segundo balanço da Anfavea, a associação das montadores de veículos, a venda interna de automóveis cresceu 11%, e a de caminhões, 47%. Os números dão a sensação de que tudo vai bem, mas quando se olha para a produção, houve queda de 0,6% nos veículos, redução de empregos e aumento nos estoques. O início de ano não foi o que se esperava em vários setores e por isso o Departamento de Estudos Econômicos do Bradesco espera que o PIB tenha uma pequena contração no período, de 0,1%.

A indústria ajuda a entender esse quadro. Em janeiro, o mercado financeiro projetava crescimento de 2,91% para o PIB industrial de 2019. Na semana passada, o número caiu para 2,11%. A deterioração das expectativas foi muito rápida. No mesmo período, a estimativa para o PIB do país recuou de 2,5% para 1,98%.

O presidente da AEB, José Augusto de Castro, estima que a exportação de manufaturados terá uma queda de 8,4% este ano, o que significa uma perda de receita de US$ 7,2 bilhões. Se esses números se confirmarem, ele teme pelo impacto no mercado de trabalho.

— Se considerar que cada US$ 1 bilhão exportado gera na média 50 mil empregos diretos e indiretos, no atual cenário de desemprego é muito ruim. E são empregos qualificados, ligados à indústria — explicou.

A tragédia de Brumadinho afetou a indústria extrativa, porque a falta de segurança nas barragens obrigou a Vale a suspender a produção em várias de suas minas na Região Sudeste. Como o IBGE mostrou esta semana, houve um tombo recorde desse segmento no mês de fevereiro, com retração de quase 15% na produção, a maior queda da série.

O adiamento e as incertezas em relação à reforma da Previdência têm aumentado a volatilidade do mercado de câmbio. E isso prejudica tanto exportadores quanto importadores. Quem está pensando em importar máquinas e equipamentos, para repor a depreciação em suas fábricas, vê os custos dessas operações serem elevados com a alta do dólar. Quem pretende fechar contratos de exportação fica sem saber qual será a sua rentabilidade e qual é o melhor momento.

Muita gente apostou que a agenda liberal do ministro Paulo Guedes levaria o dólar para próximo de R$ 3,50. Mas o que se viu na última semana foi a cotação voltar à casa de R$ 4,00, para depois cair novamente ao patamar de R$ 3,80.

A recessão que começou em 2014 foi a mais longa da nossa história, a recuperação está sendo a mais lenta. Esse quadro de estagnação torna difícil enfrentar o rombo das contas públicas e o alto desemprego. Para o governo e para a sociedade é fundamental a retomada do crescimento. O comércio exterior não manda sinais animadores.