índios ameaçados
Revista online | Os reflexos do atraso no julgamento do marco temporal e a política anti-indígena do governo federal
Nicolas Nascimento, Paloma Gomes e Rafael Modesto, especial para a revista Política Democrática online (45ª edição: julho/2022)
O julgamento do marco temporal, Tema 1031/STF, encontra-se adiado e mais uma vez fora da pauta do Supremo Tribunal Federal (STF), ocasionando insegurança jurídica a muitas terras indígenas, independentemente se área demarcada ou não. O caso, que teve seu julgamento iniciado em 2021, põe em pauta duas teses em disputa: de um lado o marco temporal e, do outro, o indigenato.
O marco temporal incumbe aos indígenas o ônus de comprovar a posse, ou a disputa pela posse das suas terras, pelas vias de fato ou por uma ação judicial, na data da promulgação da Constituição Federal, para que possa haver a demarcação do território reivindicado, ignorando todo o histórico de invasão, violência e esbulho, muitas vezes com a contribuição direta do poder público.
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No período da ditadura militar, e na história mais recente, como se pode constatar do Relatório Figueiredo e do Relatório Nacional da Comissão Nacional da Verdade (CNV), os indígenas eram caçados vivos, mortos a metralhadora; dinamites eram jogadas nas aldeias e, quando não, lançavam açúcar misturada a estricnina nas comunidades. Quando pegos vivos, eram amarrados de ponta-cabeça e cortados vivos, à facão, do púbis à cabeça. Ainda, essa tese, além de desconsiderar a violência física, não leva em conta que os povos indígenas não podiam, até 1988, postular em juízo por conta da vigência do regime tutelar, como não podiam disputar a posse das suas terras pelas vias de fato, já que estariam expostos a toda sorte de violência.
Do outro lado, defendida pelos indígenas, a tese do indigenato sustenta o direito originário dos povos ao território tradicionalmente ocupado. Essa tese está consagrada na Constituição Federal, nos artigos 231 e 232 – o Estatuto Constitucional Indígena. Essa tese se baseia no direito originário dos indígenas e na doutrina de João Mendes Júnior, de 1912.
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Merece destaque a urgência e a importância do julgamento do Tema 1031/STF, pela Suprema Corte, para as futuras gerações. O desinteresse com que o STF trata o tema, com sucessivos adiamentos, nesse atual contexto onde está em curso uma política anti-indígena impregnada na estrutura do Estado, acaba por favorecer os ataques às populações tradicionais, suas terras e às riquezas naturais nelas existentes.
Atualmente, todos os processos de demarcação em curso estão suspensos, sob a justificativa de que o voto do Ministro Edson Fachin, no Recurso Extraordinário (RE) 1.017.365, favorável à tese do indigenato, assim teria determinado. Ao contrário, o que estão suspensos são as ações possessórias, as anulatórias de procedimentos de demarcação e o Parecer 001/2017, da Advocacia-Geral da União (AGU), que institucionalizava a tese do marco temporal. Mas nunca os processos de demarcação, muito menos o art. 231, da Carta de 1988, nem mesmo o Decreto 1775/1996, que regula o procedimento demarcatório.
Diante da inércia da Suprema Corte, quanto ao julgamento do Tema 1031/STF, os casos de violência contra indígenas continuam aumentando, a exemplo da situação dos Guarani-Kaiowá no Mato Grosso do Sul, que sofrem constantemente com invasões ao seu território, sobretudo por fazendeiros, bem como com ataques da polícia militar, sem ordem judicial. Mais recentemente, viveram cenário de guerra, inclusive com uso de helicóptero como plataforma de tiro, onde um indígena foi morto e muitos outros ficaram gravemente feridos.
Outra situação crítica, largamente difundida na mídia, é a situação dos indígenas do norte do país, sobretudo nas regiões mais isoladas e de difícil acesso, como o Vale do Javari, Terra Indígena (TI) Yanomami, (TI) Mundukuru, (TI) Apyterewa, entre outras. Nessas áreas, o tráfico de madeira, de armas, animais silvestres, drogas, biopirataria, o garimpo e outras práticas violentas assolam os povos indígenas.
O que assistimos atônitos, é a mais completa desarticulação das políticas de proteção ambiental e a precarização dos órgãos responsáveis, o que abre caminho para a atuação do crime organizado, em claro prejuízo aos povos originários.
À par disso, Projetos Legislativos tentam implementar a tese do marco temporal, a exemplo do PL 490/2007. No executivo, ademais de o parecer 001/2017, da AGU, ter sido suspenso pelo STF, a Fundação Nacional do Índio (Funai) ainda toma a tese ruralista como instrumento jurídico. Daí que cabe ao judiciário, por meio da Suprema Corte, finalizar o julgamento do Tema 1031/STF, para, ao declarar inconstitucional a tese do marco temporal, garantir mais segurança aos povos indígenas e suas terras de ocupação tradicional, contra toda e qualquer sorte de violência.
Por fim, necessário evidenciar que a reversão do atual quadro de violência contra os povos indígenas e seus defensores, de usurpação das suas terras tradicionalmente ocupadas e da destruição ambiental, não se dará tão somente com a finalização do julgamento do Tema 1031/STF e a derrocada do marco temporal. A mudança real necessitará de esforços institucionais e políticas frontalmente contrárias ao que se tem hoje instalado no Poder Executivo. É necessário fazer cumprir a Constituição Federal de 1988 e implementar a tese do indigenato.
Sobre os autores
*Nicolas Nascimento, Paloma Gomes e Rafael Modesto são advogados e compõem a Assessoria Jurídica do Conselho Indigenista Missionário (Cimi). O Cimi é um organismo vinculado à CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil) que, em sua atuação missionária, conferiu um novo sentido ao trabalho da igreja católica junto aos povos indígenas.
* Artigo produzido para publicação na Revista Política Democrática Online de julho/2022 (45ª edição), produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.
*** As ideias e opiniões expressas nos artigos publicados na Revista Política Democrática Online são de exclusiva responsabilidade dos autores, não refletindo, necessariamente, as opiniões da Revista.
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Ameaça de Belo Monte a índios é destaque da Política Democrática online de dezembro
Drama de povos tradicionais indígenas é contado em detalhes por enviados especiais a Altamira e Volta Grande do Xingu
Por Cleomar Almeida
Os impactos socioambientais da Usina Hidrelétrica de Belo Monte, que deve ser concluída totalmente no final de 2019 com custo de R$ 40 bilhões, são o principal destaque da edição de dezembro da revista Política Democrática online. Enviados especiais a Altamira e Volta Grande do Xingu detalham, em vídeo, fotos e textos, como os índios estão vivendo ameaçados por causa do empreendimento, que deve distribuir energia a 20,5 milhões de residências no país, segundo o governo federal.
Neste mês de dezembro, a revista publica a primeira das duas reportagens da série Existe vida no Xingu. Com o título “Risco de etnocídio na Volta Grande do Xingu”, a investigação jornalística revela a explosão de aldeias na região após a concessionária do empreendimento, a Norte Energia, distribuir recursos financeiros para cada nova aldeia aberta. Com isso, as populações tradicionais se desmembraram no território, levando, conforme relatam líderes indígenas, ao enfraquecimento da mobilização desse povo. A segunda reportagem vai abordar a mudança provocada pela usina na vida de ribeirinhos e na cidade de Altamira, no Sudoeste do Pará.
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A Volta Grande do Xingu fica abaixo da barragem, que foi concluída em novembro de 2015. Tem extensão de 100 quilômetros até a casa de força principal da usina, onde 18 turbinas devem ser instaladas até o final de 2019 para a geração de 11 mil megawatts de potência e atender a 20,5 milhões de residências, segundo o Ministério de Minas e Energia. Só em uma parte da área conhecida como trecho seco, moram ao menos 100 famílias em quatro aldeias que agonizam por causa da diminuição da vazão natural de até 80% na região, segundo o estudo “Xingu, o rio que pulsa em nós”.
A reportagem lembra que a Belo Monte é a maior obra em andamento do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), apesar de o estudo dela ter se iniciado ainda nos anos 1970. O empreendimento vai impactar, ao todo, diretamente, 12 territórios tradicionais na região do Médio Xingu, onde vivem cerca de 4.000 índios. Essas áreas devem ser palco de novos conflitos a partir do próximo ano, quando começará a ser implementado um esquema de reveza- mento de vazão de água em nível bem abaixo do que é registrado em período de seca.
Além disso, conforme registra a reportagem, comunidades indígenas lutam pela demarcação de seus territórios, como prevê o artigo 231 da Constituição e o Decreto 5.051, de 2004, que promulga a Convenção 169 da Organização Internacional do Traba- lho (OIT) sobre Povos Indígenas e Tribais. A Fundação Nacional do Índio (Funai) e o Instituo Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) informam que fiscalizam o empreendimento, apesar de o Ministério Público Federal (MPF) apontar omissão dos órgãos públicos e do governo federal.
Por outro lado, a reportagem especial também mostra que, em meio à guerra pela água do Xingu, índios se mobilizam em defesa do rio e das espécies. É o caso de uma índia que, diante da mortandade de peixes e tracajás, passou a criar quelônios na própria aldeia com o objetivo de preservar a espécie. Essa história é contada, em detalhes, no trabalho jornalístico.
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