Índice de Confiança Social
Cezar Vasquez: A Lava-Jato e o neolítico moral
A questão moral tem comandado o debate público brasileiro. A corrupção, que envolve políticos de todos os níveis e esferas de poder, paira como a causa de todos os males nacionais. Crise na saúde, falência dos Estados, desemprego, violência, quase tudo direta ou indiretamente parece estar relacionado com a decadência moral da classe política.
Desconfiança e baixa credibilidade da “classe política” não são fenômenos nacionais e muito menos novidades. Se tomarmos como referência o Índice de Confiança Social do Ibope, desde 2009 que o Congresso Nacional e os partidos políticos aparecem como as instituições com os menores índices de confiança entre as avaliadas. Há uma mudança no patamar da avaliação em 2013, anos das manifestações que, para muitos analistas políticos, são consideradas um marco de inflexão do modelo político brasileiro.
A baixa credibilidade por si só não explica a ascensão da questão moral como um dos elementos primordiais do debate público, muito embora tenha facilitado a utilização política do tema e servido como solo fértil para esse tipo de pregação. Certo mal-estar já havia se consolidado na percepção da opinião pública sobre as relações envolvendo classe política e recursos provenientes de corrupção. Poucos anos antes ocorrera a crise do mensalão, que revelou de forma clara certos meandros das relações entre financiamento de campanhas, agências de publicidade, partidos políticos e grandes empresas. Ao longo do processo de reconstrução democrática foram inúmeras as crises políticas com fortes bases de natureza moral. Impeachment do Presidente Collor, Anões do Orçamento, Crise do Painel do Senado e várias outras.
O novo e decisivo elemento no atual contexto foi a Lava-Jato. A operação começou em 2009 numa investigação sobre o crime de lavagem de recursos envolvendo o ex-deputado José Janene e doleiros. A partir de 2013, por meio de interceptações de conversas telefônicas é identificado um esquema de corrupção e lavagem de dinheiro envolvendo diretores da Petrobras. Em março de 2014 é deflagrada a primeira grande operação com prisões, ações de busca e apreensão e conduções coercitivas para tomada de depoimentos. É nesse momento, em função do uso de uma rede de postos de gasolina e lava jatos para movimentar recursos ilícitos por parte dos investigados que a operação é batizada com esse nome.
A discussão aqui não tem relação com os meandros técnicos da operação, com seus erros e acertos, ou com a culpa dos investigados e condenados. A ideia é discutir e avaliar discurso e estratégia política armada pelos próprios procuradores e o juiz Sérgio Moro em defesa da operação. Desta forma, estimar consequências para o futuro das instituições políticas e a vinculação de certas afirmações com determinadas visões de reformadores morais.
É impossível determinar se, no início das investigações, tinha-se noção do impacto que as mesmas teriam sobre a atividade política do país. A narrativa oficial é de que a partir de uma pista, a venda de um automóvel feita por um doleiro para um diretor da Petrobras, se puxou um fio, que trouxe um novelo. No entanto, a inspiração na Operação Mãos Limpas, da Itália, reiterada pelo próprio juiz Sérgio Moro, bem como a própria experiência pregressa do mesmo no processo do Banestado e do Mensalão, indicam que o alvo inicial das investigações não era apenas a lavagem de dinheiro por um grupo de doleiros.
Em entrevista, em 20 de dezembro de 2016, ao jornalista Wilson Tosta, do jornal O Estado de São Paulo, o cientista político Luiz Werneck Vianna atacou a cultura das corporações do ministério público e de certos setores do judiciário, classificando-os como sendo uma espécie de “Tenentismo Togado”.
Perguntado sobre a extensão da crise política após a revelação das delações premiadas da Odebrecht, ele respondeu: “Essas coisas não estão acontecendo naturalmente. Não são processos espontâneos. A essa altura, a meu ver, não há dúvida de que há uma inteligência organizando essa balbúrdia. Essa balbúrdia é provocada e manipulada com perícia”.
Mas para além da denúncia da luta dessas corporações para aumentar seus poderes e privilégios, o que realmente interessa é o sentido autoatribuído de certos personagens nesse processo. Perguntado se faltam controles, na Constituição, sobre essas instituições, Werneck Vianna oferece a seguinte resposta: “Em princípio, não. O problema é que as instituições tem que ser “vestidas” pelos personagens. E, a partir de certo momento, os personagens começaram a ter comportamentos bizarros. E que têm essa visão iluminada que os tenentes tiveram, nos anos 20. Só que os tenentes tinham um programa econômico e social para o país. E esses tenentes de toga não têm. São portadores apenas de uma reforma moral”.
As perguntas seguintes do jornalista levam o cientista político para o tema que nos interessa aqui: 1) “Mas o combate a corrupção não é importante?” 2) “E a atuação dessas corporações fortalece a negação da política?” E as respostas de Werneck Vianna abrem o caminho para a segunda parte desse artigo: 1) “Sem dúvida. Agora, política é política. Esse judiciário que está aí ignora a existência de Maquiavel. Ele se comporta apenas com um ímpeto virtuoso. Com um ímpeto de missão.” 2) “Sim. Elas só existem desse jeito destravado, sem freios, porque as instituições republicanas recuaram. E o presidencialismo de coalizão teve responsabilidade nisso. Porque rebaixou os partidos. Fez dos partidos balcões de negócios.”
O Neolítico moral
A referência a Maquiavel nos remete à discussão sobre a tese do Neolítico Moral, exposta no capítulo um do livro “Vícios Privados e Benefícios Públicos”. É interessante como a referência cifrada de Werneck Vianna coincide com uma passagem do texto de Eduardo Giannetti sobre a posição de Maquiavel. “Ao contrário de Lucrécio e Platão, tanto Hobbes como Maquiavel não embarcam num projeto de realçar com tintas fortes a realidade de um suposto hiato moral entre o que é e o que deve ser. Eles não se apresentam como portadores de valores puros e superiores aos do homem comum, ou como reformadores morais da sociedade”. (1)
A tese do Neolítico Moral baseia-se no conceito de que há um hiato entre o progresso material da sociedade humana, do conhecimento e da ciência e o progresso moral da humanidade. Há a ideia de que o progresso moral não acompanha o progresso material e as visões que colocam no próprio avanço da civilização a causa da degeneração moral. No texto de Giannetti o ponto de partida é a desilusão que a Primeira Guerra Mundial trouxe na crença quanto a certa infalibilidade do progresso humano. Entre a segunda metade do século XIX e o início da guerra, a civilização europeia vivia sob certa crença na inevitabilidade e infalibilidade do progresso. Em 1919, o filósofo inglês L.P.Jacks formula a ideia de que apesar de todo o avanço material conquistado “do ponto de vista moral, nós vivemos ainda na era neolítica...”
A noção de um descompasso entre o progresso da civilização e o progresso moral está presente, segundo Giannetti, desde o próprio surgimento da filosofia moral, no Iluminismo grego, no século V a.C. “O início da reflexão crítica sobre a conduta humana marcou também o início de expectativas mais elevadas sobre as capacidades e o potencial humano”. Se em Sócrates isso é um projeto de filosofia moral, em Platão ele se transforma em um projeto social, de construção de instituições capazes de reformar a conduta humana. Em Platão surge, segundo Giannetti, pela primeira vez a noção de degeneração moral em decorrência do progresso material.
Essa ideia teve em Lucrécio, expoente da filosofia epicurista, o grande defensor no mundo latino. A diferença para Platão é que ele não propunha um programa institucional, tampouco acreditava que o progresso fosse ruim em si. Mas apostava na moderação como elemento para uma mudança no modo de vida como o melhor caminho para o homem conviver com as “tentações” advindas do progresso.
Os temas da crítica moral da antiguidade são retomados pela filosofia moderna. Hobbes e Maquiavel têm uma visão pouco otimista sobre o comportamento humano. A diferença é que, como foi ressaltado acima, não se propõem a estabelecer um padrão ideal, mas passam a admitir “o comportamento irrefletido e inconstante da maioria dos cidadãos na sua relação com as leis e o poder público ” como um dado da realidade.
Mas o relativismo de Hobbes e Maquiavel não foi a atitude representativa da filosofia moderna. A postura normativa foi a tônica predominante e, a partir de meados do século XVIII, a tese do Neolítico Moral passa a ser um lugar comum. O melhor e mais influente representante desta posição seria Rousseau.
“Mais do que qualquer outro, Rousseau defendeu de maneira intransigente a ideia de que a civilização provocou o atraso moral do homem”. “Com a mesma intensidade com que denigre a situação existente Rousseau vai enaltecer o futuro sonhado e afirmar o potencial de mudança. Parte da receita é o estabelecimento de um novo (e genuínuo) “contrato social”, que, por meio de um drástico rearranjo jurídico e institucional, transforme a ordem opressiva e injusta como ela é na ordem democrática e igualitária como ela deve ser.” “Mas o principal ingrediente da mudança viria não de fora, mas de dentro do próprio homem. É a crença na “perfectibilidade humana” que vai alimentar a visão rousseauniana da possibilidade de uma completa regeneração da ordem política e social, isto é, da criação de uma sociedade justa na qual o homem – remodelado e apaziguado – deixou de ser o vaidoso e insaciável para se tornar o cidadão virtuoso e dedicado de uma democracia igualitária.”
No texto de Giannetti é apresentada uma resenha bastante completa sobre a evolução histórica das ideias. Evolui até a utilização do Neolítico Moral na discussão ambiental o seu uso por neurocientistas. A tese é contestável. Não é possível propor uma métrica de evolução histórica. E muito menos para a moral. No entanto, o descontentamento moral é positivo em si. O problema é quando a tentação à normatização descamba para o messianismo. E aqui retornamos à Lava-Jato.
Certos aspectos complexos da estratégia e do discurso
Quando analisamos as palestras e entrevistas do juiz Sérgio Moro, é possível notar que boa parte das explicações oferecidas é ancorada na posição institucional do poder judiciário. Uma profunda convicção, ou um discurso muito elaborado, retira qualquer possibilidade de atribuir intenção ou caráter político à operação Lava-Jato. É tudo dever de ofício. Ao mesmo tempo, no desenvolvimento do discurso, alguns conceitos começam a ser apresentados. Eles surgem como resultados ocasionais, descobertas das investigações. O primeiro deles é o conceito de corrupção sistêmica.
No evento “Vamos conversar sobre ética”, da Universidade Positivo, em 18 de agosto de 2016, o juiz Sérgio Moro falou por pouco mais de uma hora. Partindo do que teria sido uma impressão colhida numa confissão, em que o réu assumia com naturalidade a prática de corrupção e alegava ser isso uma praxe de mercado, parte para a conclusão de que mais do que um delito haviam se deparado com uma realidade de “corrupção sistêmica.” Na segunda parte da palestra, o juiz enaltece os aspectos positivos da operação para o país. E, além das punições, do desbaratamento das quadrilhas e da recuperação de recursos ele aponta para um benefício futuro. Historiando importantes conquistas da democracia brasileira, ele ressalta o fim da hiperinflação e a redução das desigualdades, de certa forma fazendo uma alusão indireta aos governos FHC, Plano Real e governo do PT. Em seguida, propõe que o fim da corrupção sistêmica poderia ocupar o mesmo papel na construção da democracia brasileira. Em outro momento chega a sugerir que a agenda anticorrupção era o único elemento de unidade nas grandes manifestações de massas de 2013.
Interessante também é analisar certos aspectos da estratégia de comunicação. O jovem procurador Daltan Dallagnol é considerado uma das estrelas desse processo e assim tem se comportado. Transcrevo abaixo dois trechos de artigos seus, publicados na mídia e postados no site da própria Lava-Jato do MPF.
“Além disso, a gravidade do tráfico não supera a da corrupção. Os desvios bilionários da corrupção corroem a saúde pela ausência de saneamento básico. Matam pela ausência de hospitais, aparelhos e medicamentos para atendimento. Fortalecem organizações criminosas pela educação e segurança deficientes, propiciando o aumento da violência e da marginalização. Geram um Estado paralelo, que governa para interesses privados. Para além do tráfico, a corrupção mina perigosamente a confiança da população nas instituições e no regime democrático”. (2)
“As características da corrupção, que pode ser praticada por meio de mensagens de telefone ou internet, impedem solução diversa. Não por outra razão, as custódias foram e são mantidas por três tribunais totalmente independentes em mais de trinta decisões. Solução dura e excepcional semelhante é aplicada no caso de traficantes de drogas que praticam reiteradamente o crime, ainda que o tráfico, como a corrupção, cause violência e milhões de mortes apenas indiretamente. Não há razão para distinguir, nessas circunstâncias, corrupção e tráfico”. (3)
A insistência em comparar a corrupção com o tráfico de drogas parece mais uma estratégia de comunicação política do que uma defesa jurídica. Primeiro pelo tráfico ser uma atividade ilícita fortemente controversa do ponto de vista moral. Segundo, por tentar reforçar a desigualdade entre “delinquentes pobres” e “delinquentes ricos”. Por fim, por articular a ideia de que ambas as atividades matam indiretamente, em suas consequências. Ora, o tráfico é letal na sua operação, não no consumo. Nesse caso o problema é o vício, um problema de saúde. A corrupção não é obrigatoriamente letal na operação (embora possa ocorrer ajustes de contas) e a letalidade como consequência é uma ilação tão descabida como atribuir aos privilégios dos procuradores da República a falta de remédios nas farmácias populares.
Ainda associado a esse último aspecto existe uma tentativa de responsabilizar, perante a opinião pública, a corrupção pela crise fiscal do país e dos estados. Como se a crise fiscal não tivesse relação com a própria crise econômica e fosse resultado exclusivo de um processo moral. É interessante notar que durante muitos anos houve resistência corporativa contra a reforma do Estado e da Previdência baseada num discurso semelhante. A ideia de que, se fossem fechados os ralos da corrupção, sobrariam recursos.
O problema é que o país está convivendo com duas agendas. Uma imposta pela crise econômica, de ajustes macroeconômicos e de reformas do estado e política. E outra pautada no combate à corrupção sistêmica, que está sendo imposta pelos “tenentes de toga”. Baseada no arcabouço legal, não resta dúvidas. Com ações justificadas. Especialmente pela transformação da política nacional em um grande balcão de negócios nas últimas décadas. Mas que se move sem um projeto para o país e se baseia exclusivamente numa perspectiva de reforma moral.
A suspeita de que por trás da Lava-Jato haja de fato um projeto corporativo e moral para o país pode ter consequências funestas. Talvez nem tanto pelo “empoderamento” dos paladinos da justiça da Lava-Jato, mas pelo imponderável que possa seguir. Nesse sentido, cabe uma última citação de Giannetti a título de encerramento.
“Para o bem ou para o mal, a rica experiência política e econômica do século XX, com suas guerras, ondas de fanatismo e o espantoso débâcle do comunismo soviético mostrou de forma contundente que a psicologia moral dos homens está longe de ser tão plástica ou maleável quanto os iluministas exaltados e seus seguidores fariam crer”.
“A mente humana é ainda pouco conhecida, mas seguramente ela não é uma “página em branco” da qual se pode erradicar, por qualquer método conhecido, as paixões não-racionais que os filósofos morais condenam há mais de dois mil anos. O que é certo, contudo, é que, quanto mais os moralistas e reformadores sociais bem-intencionados ignoram as realidades recalcitrantes da natureza humana, mais a natureza humana, por sua vez, os ignora.”
Não faltaram candidatos para ocupar o espaço!
* Cezar Vasquez é engenheiro.