Imunidade parlamentar

Bernardo Mello Franco: Impunidade parlamentar - Lira recuou, mas não desistiu

Por duas semanas seguidas, os deputados esticaram o trabalho e se reuniram para votar numa sexta-feira. O surto de produtividade nada teve a ver com a pandemia. O objetivo era despachar o aloprado Daniel Silveira e evitar novas prisões de parlamentares.

Assim que a cabeça do bolsonarista foi entregue, a Câmara passou a discutir a chamada PEC da Imunidade. A proposta muda a Constituição para reforçar a blindagem de deputados e senadores. Com a regra atual, prender um congressista é muito difícil. Com a nova, passaria a ser uma missão impossível.

O articulador da ideia foi o novo presidente da Câmara, Arthur Lira. Em defesa da mudança, ele disse que “proteger o mandato é garantir que os parlamentares possam enfrentar interesses econômicos poderosos ou votar leis contra organizações criminosas perigosas”.

O deputado não é conhecido por contrariar empresários ou combater quadrilhas. Ele responde a duas ações no Supremo, por corrupção passiva e organização criminosa.

Discípulo de Eduardo Cunha, Lira se inspirou no mestre e tramou uma aprovação a toque de caixa. Na terça, seus aliados começaram a recolher assinaturas para apresentar a proposta; na quinta, o texto estava pronto para votação em plenário.

Pelo rito tradicional, toda PEC precisa passar pela Comissão de Constituição e Justiça e por uma comissão especial. O presidente da Câmara pulou as duas etapas, mas não conseguiu consumar o tratoraço.

Na sexta, o deputado admitiu, a contragosto, que não tinha os 308 votos necessários para mudar a Constituição. Ele se disse “muito triste e preocupado”, com as críticas à emenda. “Essa não merece ser chamada PEC da Imunidade. Deveria ser chamada PEC da Democracia”, reclamou. Lira foi generoso com a própria obra. Outros parlamentares preferiram acrescentar um P, rebatizando-a de PEC da Impunidade.

O chefe do Centrão usou um argumento fajuto para proteger os colegas na mira da polícia. A Constituição afirma que os congressistas são invioláveis por “opiniões, palavras e votos”. O texto foi redigido para defender a democracia e o livre exercício dos mandatos. Não pode ser usado como escudo para a prática de crimes.

Se a proposta de Lira já estivesse em vigor, o deputado Daniel Silveira não teria sido preso e a deputada Flordelis não teria sido afastada por ordem da Justiça. Ela é acusada de mandar matar o marido, executado com 30 tiros em Niterói.

A pastora foi denunciada por homicídio triplamente qualificado, associação criminosa, falsidade ideológica, uso de documento falso e tentativa de homicídio por envenenamento. Ela se tornou ré há seis meses, mas escapou da prisão preventiva graças à imunidade parlamentar.

O marido de Flordelis foi assassinado em junho de 2019. O Conselho de Ética da Câmara só instalou um processo disciplinar contra ela na terça passada, como parte do teatro para justificar a votação da PEC. Lira foi obrigado a recuar, mas já deixou claro que não desistiu.


Folha de S. Paulo: Sob pressão, Câmara freia votação a jato de blindagem a deputados e impõe revés a Lira

Presidente da Casa tentou acelerar tramitação da proposta, mas reação da opinião pública e desconforto no STF provocaram adiamento

Danielle Brant , Gustavo Uribe , Matheus Teixeira , Renato Machado e Daniel Carvalho, Folha de S. Paulo

Apesar da tentativa de tratorar opositores para acelerar a votação da PEC da imunidade parlamentar, o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), sofreu um revés nesta quinta-feira (25) com o adiamento da votação da proposta no plenário da Casa.

As dificuldades de costurar um acordo para diminuir a oposição ao texto fizeram com que a sessão se arrastasse por seis horas.

O tempo, no entanto, foi insuficiente para vencer a resistência dos congressistas contrários à proposta, que teve uma repercussão negativa perante a opinião pública e também desagradou a ministros do STF (Supremo Tribunal Federal).

A proposta de emenda à Constituição teve uma tramitação a jato na Câmara, o que gerou críticas de parlamentares.

A PEC foi agilizada pela Câmara como resposta à prisão em flagrante do deputado Daniel Silveira (PSL-RJ), determinada pelo ministro Alexandre de Moraes e ratificada pelos plenários do Supremo e da própria Câmara na semana passada.

A decisão da prisão teve como base a publicação de um vídeo de Silveira com ataques aos ministros da corte e defesa ao AI-5 (Ato Institucional nº 5), que deu início ao período mais autoritário da ditadura.

Em linhas gerais, o texto amplia a blindagem de deputados e senadores e reduz as possibilidade de prisão em flagrante dos parlamentares.

A proposta prevê, por exemplo, punição disciplinar no conselho de ética a deputados que fizerem discursos que possam ser considerados excessivos e impede afastamento judicial cautelar de congressistas, colocando também o parlamentar preso em flagrante por crime inafiançável sob custódia da Câmara ou do Senado, e não da Polícia Federal, como no caso de Silveira.

Lira anunciou a criação de uma comissão pluripartidária sobre a PEC na sexta-feira (19) passada, antes da sessão convocada para apreciar a prisão de Silveira.

A pressa para votar a PEC gerou reclamação de deputados, que diziam não ter tido acesso ao texto final e contestavam a tramitação acelerada da proposta e o impacto que isso geraria perante a sociedade, principalmente pela avaliação de que a proposição blinda os congressistas.

Como comparação, a PEC do Orçamento de Guerra, idealizada no ano passado para munir o Executivo de ferramentas para combater a pandemia de Covid-19 e que tinha acordo entre todos os líderes partidários, foi aprovada em dois dias.

A PEC da imunidade parlamentar está longe de ter o mesmo consenso e teria a mesma tramitação expressa —foi apresentada na terça-feira.

A admissibilidade da proposta, que avalia se o texto segue preceitos constitucionais, recebeu o aval de 304 deputados, enquanto 154 votaram contra. Por regra, uma PEC precisa de 308 votos para ser aprovada na Câmara, em votação em dois turnos, antes de seguir para o Senado.1 9

Sem conseguir apoio suficiente para avançar a proposição, coube ao presidente da sessão, deputado Marcelo Ramos (PL-AM), a decisão de adiar a votação, sob risco de derrota no plenário. Uma nova tentativa deve ser feita nesta sexta-feira (26), às 10h. ​

Lira afirmou que a regra é necessária para que o STF não tenha “que recorrer a uma lei de segurança nacional” pelo fato de o Congresso não ter esclarecido os limites da imunidade parlamentar.

“Eu respeito os ministros, respeito o Supremo. O Legislativo, da mesma forma, merece todo respeito na sua atuação primordial, que é legislar. E nesse aspecto de uma regulamentação de um artigo constitucional, eu não vejo onde o Legislativo esteja ofendendo ou agredindo outro Poder”, disse.

Para tentar diminuir a resistência dos colegas, a relatora, deputada Margarete Coelho (PP-PI), retirou do texto os dispositivos que não diziam respeito ao artigo de imunidade parlamentar, como o que tratava de ficha limpa e das competências do STF e do STJ (Superior Tribunal de Justiça).

A delimitação proposta busca regulamentar a imunidade parlamentar. O dispositivo foi idealizado para proteger os deputados, de forma que possam votar e discursar sem temor de quaisquer retaliações.

A crítica que se faz, inclusive no caso de Daniel Silveira, é que essa garantia acabou sendo usada para blindar congressistas de punição, dando a prerrogativa de praticar crimes usando a liberdade de expressão como escudo.

Em seu parecer sobre o texto, Margarete Coelho negou que a proposta amplie a imunidade material ou proteja congressistas. "Além de não modificar a jurisprudência do STF sobre a temática, a proposta não cria qualquer blindagem normativa aos congressistas”, escreveu.

Mais cedo, questionado sobre a relevância da medida, Lira se esquivou. "A minha opinião é irrelevante", disse.

Apesar disso, a proposta não teve apoio suficiente dos deputados. Ao final da primeira sessão, Margarete Coelho acenou com um acordo voltado a convencer o PT a votar a favor da proposição.

A deputada acatou uma alteração no artigo 53, para retirar o trecho que previa a punição ético-disciplinar a congressistas —há críticas de que o dispositivo restringiria a possibilidade de ingressar com processos por ofensas cometidas por parlamentares em discursos em tribuna.

A deputada Alice Portugal (PC do B-BA) defendeu a PEC e afirmou que a proposta era fundamental para proteger os parlamentares.

"Nós, do PC do B, que sabemos o que é a falta de liberdade, o que é perder uma bancada inteira por quebra do manto da imunidade. Nós que sabemos o que é a prisão, o cárcere, a morte de líderes, nós não abrimos mão desse instituto", disse.

Líder do Cidadania, Alex Manente (SP) criticou a tramitação acelerada da proposta. "Nós estamos fazendo de maneira rápida, de maneira afobada uma mudança que tem um grande impacto, especialmente diante daquilo que passamos e votamos na semana passada", afirmou.

A PEC ratifica o que já é contemplado no regimento interno da Câmara: parlamentares que quebrarem o decoro parlamentar estão sujeitos a responsabilização ético-disciplinar.

Segundo a proposta, os congressistas poderão ser presos em flagrante por crimes inafiançáveis previstos em lei —uma mudança em relação ao texto original, que previa apenas crimes inafiançáveis determinados pela Constituição.

A seguir, porém, o deputado ou senador ficaria sob responsabilidade de sua respectiva Casa, em vez de ficar sob custódia da Polícia Federal, explica Moroni Costa, sócio do Bichara Advogados.

A PEC veda o afastamento judicial do deputado ou senador. "O Congresso está delimitando a fronteira com o Judiciário", diz. "O mandato vem do povo, não do Judiciário. Agora quem vai decidir efetivamente quanto à custódia vai ser o Congresso."

A interpretação de ministros do STF, no entanto, é de que inúmeros trechos da PEC são inconstitucionais e, se forem contestados, devem ser derrubados pelo Supremo.

A aposta deles, no entanto, é que a Câmara colocou em pauta uma proposta com proteções exageradas para se ter margem de negociação e, ao final, aprovar uma emenda que preserve parte das imunidades inicialmente previstas.

Assim, mesmo que não conquistem tudo o que pretendiam, os deputados irão garantir maior proteção.

Um dos pontos de maior preocupação no STF é a previsão de que as prisões em flagrante de parlamentares só possam ser decretadas por decisão colegiada. Os ministros entendem que a medida é inviável e que praticamente inviabilizaria a detenção de congressistas.

No entendimento de ao menos dois ministros do Supremo, a norma afronta a separação de Poderes, pois afetaria a organização interna dos trabalhos da corte.

Para o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), todos devem respeitar o "senso de urgência" da Câmara em relação à PEC da Imunidade.

"Foi entendido pelo presidente Arthur Lira e pela Câmara como algo necessário, diante especialmente do episódio havido com o deputado federal Daniel Silveira", disse o presidente do Senado.

Pacheco evitou fazer previsões sobre o ritmo de tramitação da proposta no Senado.

Nesta quinta, em sua live semanal, o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) disse não ter nada a ver com a PEC e que, por se tratar de emenda à Constituição, ela é promulgada, não cabendo nem possibilidade de veto presidencial.

"Eu não tenho conhecimento dessa PEC [...] Se eu não me engano, deve ter uns 30 mil projetos, no mínimo, tramitando no Congresso Nacional. Eu não tenho como saber de tudo o que acontece lá", disse Bolsonaro.

"E, obviamente, essa PEC, uma vez tramitando, ela tem a ver com a imunidade parlamentar, não tem nada a ver comigo, como chefe do Executivo. Daí o pessoal começa já a tirar, falar que eu vou ter proveito próprio, a família vai ter proveito próprio em cima disso. São críticas que realmente deixam a gente chateado, dada a ignorância de quem critica sem saber o que está falando", disse o presidente na transmissão. ​


Conrado Hübner Mendes: Imunidade parlamentar não é passaporte para a delinquência política

A democracia deve se defender e observar 'quem' está falando

Quem pergunta se a liberdade de expressão tem limites ou está mal informado ou mal intencionado. Quem invoca essa liberdade como mantra encantatório que valida moral e juridicamente qualquer estupidez falada não entendeu nada. Ou dissimula.

Se pudesse formular uma pílula de conhecimento cívico para vacinar cidadãos contra a ignorância sobre liberdade de expressão, eu não começaria pela máxima "nenhum direito fundamental é absoluto" ou "a liberdade de expressão tem limites", lugares-comuns que deixam muito a dever. Sugeriria uma pílula alternativa: "Os limites da liberdade de expressão não se referem só a o 'quê' se fala em cada ocasião, mas a 'quem' fala". Daí começamos melhor.

Você pode cometer crime pelo "quê" fala se: caluniar, difamar, injuriar, ameaçar, fazer apologia de crime, incitar, praticar ou induzir discriminação, impedir livre exercício dos Poderes. Estão espalhadas por diversas normas (Constituição, Código Penal, Lei Caó e etc.). E a violação ainda pode gerar o dever de pagar indenização por danos morais.

Mas a vida não é simples assim. A aplicação desses verbos a casos concretos se depara com muitas pedras pelo caminho. Saber, por exemplo, se piada de humorista somente ofendeu ou se cruzou linha proibida a ponto de humilhar e incitar discriminação é das responsabilidades maiores de duas senhoras: a jurisprudência e a doutrina jurídica. Elas não oferecem fórmula matemática nem algoritmo, mas critérios que vão ganhando densidade caso após caso.

Essas senhoras cambaleantes da cultura jurídica brasileira precisam construir previsibilidade e coerência. Devem notar nuances, indicar diferenças que importam. Sem isso não podemos separar o joio do trigo. Vira um tudo ou nada, um "acho que sim, acho que não", um duelo ilusório entre liberdade e autoritarismo. É no raciocínio binário que mora a burrice jurídica.

Para complicar, importa "quem" fala. A liberdade de autoridades públicas não é a mesma de um cidadão da esquina.

Não é a mesma coisa quando: presidente diz que te odeia e vai te enviar para a ponta da praia; vice-presidente diz que índio é preguiçoso; deputado defende tortura e ditadura; juiz do STF palestra sobre cleptocracia do PT e saúda a Lava Jato (e dois anos depois a chama de "organização criminosa"); promotor classifica críticos da Lava Jato de "juristas da orcrim".

Não é a mesma coisa quando: general tuíta homenagem a Ustra, e clube de generais espalha notícia falsa; policial vira youtuber, filma operações de guerra e celebra suas "balas perdidas"; dirigente de agência reguladora como a Anvisa participa de aglomeração sem máscara ao lado do presidente.

Agentes de Estado se sujeitam a regime diverso da liberdade de expressão. É por intermédio deles que o Estado fala —do presidente ao guarda da rua, do juiz ao militar. É por meio da conduta desses agentes que instituições buscam se despersonalizar, se despolitizar e se despartidarizar.

Precisam seguir rituais de imparcialidade, liturgias e padrões de decoro. Cidadãos comuns, não. Assumem compromisso ético e performativo. Sua conduta pública educa ou deseduca pelo exemplo, encoraja ou desencoraja. Estão sujeitos, por isso, a regulações e sanções extras: crime de responsabilidade, quebra de decoro, violação da ética profissional e etc.

A imunidade parlamentar dá ao deputado liberdade de expressão qualificada, não ilimitada. Ajuda a democracia a produzir melhores debates, não o deputado a delinquir. E a condição de deputado também traz restrições qualificadas à sua liberdade de expressão: não é a mesma coisa um deputado e o fulano do bar defender a ditadura e a tortura. Parlamentar pode mais ou pode menos que um cidadão comum, conforme o caso.

Calibrar a liberdade é o feijão com arroz rotineiro dos direitos fundamentais. Isso se faz por justificativa pública e juridicamente fina, exercício liberal e republicano, não autoritário (equívoco de Catarina Rochamonte e Atila Iamarino em colunas recentes). Bem diferente de restringir a liberdade arbitrariamente, por ato irracional de força bruta. Valores, objetivos e direitos constitucionais se chocam. Nem sempre a liberdade deve triunfar sem qualquer tempero.

A democracia começa na liberdade de expressão. A democracia termina no abuso da liberdade de expressão. A democracia deve se defender desse risco e observar "quem" está falando.

*Conrado Hübner Mendes, Professor de direito constitucional da USP, é doutor em direito e ciência política e embaixador científico da Fundação Alexander von Humboldt.