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El País: Por que a guerra de Bolsonaro contra a mídia prejudica a imagem do Brasil no mundo
O capitão reformado chegou à chefia de Estado com uma imagem internacional negativa, e isso não o ajuda a ampliar relações políticas e comerciais
Alguém deveria explicar ao presidente Jair Bolsonaro que sua guerra inútil contra os meios tradicionais de comunicação acabará prejudicando gravemente a imagem do Brasil no mundo. Acreditar que alguém em uma democracia pode governar só com as redes sociais é um erro pelo qual os políticos pagarão caro. Nenhum presidente nem chefe de Governo se manteria no poder contra os jornais e redes de televisão nacionais. Até os ditadores que silenciaram ou censuraram os meios de comunicação que os criticavam mimaram os que lhes eram fiéis.
O Brasil já viveu, no primeiro Governo de Luiz Inácio Lula da Silva, um confronto com o então correspondente do The New York Times no Brasil, Larry Rohter. Depois que o jornalista denunciou os excessos etílicos do popular presidente, Lula quis expulsá-lo do país. O então ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, um dos personagens mais inteligentes de seu Governo, aconselhou Lula a não expulsar o jornalista norte-americano. Mesmo assim, a notícia correu o mundo, criando a primeira sombra sobre o caráter democrático do Governo progressista brasileiro.
Sem negar os méritos do ex-presidente sindicalista, que foram muitos, ele nunca teria tido a imagem positiva que teve internacionalmente sem a ajuda dos meios tradicionais de informação, que são os que criam a imagem de um país fora de suas fronteiras. Bolsonaro deve saber que sua política como candidato, centrada nas redes sociais, não poderá ser a mesma no Planalto, onde sua imagem tem projeção no mundo.
O capitão reformado chegou à chefia de Estado com uma imagem internacional negativa. Foi apresentado ao mundo como um ultradireitista autoritário com saudade da ditadura, cercado de generais e com tentações teocráticas, colocando, em um país laico como o Brasil, Deus como guia de seus passos. Essa imagem não o ajuda a ampliar relações políticas e comerciais com as grandes democracias mundiais.
Não adianta citar como exemplo o presidente norte-americano, Donald Trump, que também tenta governar com as redes sociais, em luta contra os meios tradicionais de informação. O presidente norte-americano não é Bolsonaro, e os Estados Unidos não são o Brasil. No caso dos EUA, estamos falando da maior potência mundial e de uma democracia com instituições fortes, capazes de desafiar as piores loucuras de seus presidentes.
O Brasil, apesar de ser um país continental, não deixa de ser um país periférico no planeta que precisa estabelecer relações positivas com os países que hoje contam no mundo. E para isso Bolsonaro vai precisar desfazer a imagem negativa com a qual chegou ao Planalto. Não conseguirá isso, no entanto, em guerra contra os meios de comunicação. Não se pode esquecer que o declino tanto de Lula como do PT começou com a tentação do fatídico “controle social” da mídia, um eufemismo para tentar impor a censura. Chegou-se a planejar até uma cartilha com pontos positivos e negativos dados a cada jornalista por um conselho criado pelo Governo. Foi Dilma Rousseff, quando chegou ao Planalto, quem abandonou aquele projeto, depois de afirmar em seu discurso de posse que ela não só não iria impor nenhum controle sobre a mídia, como preferia “o barulho da imprensa livre ao silêncio das ditaduras”.
O barulho da imprensa, ou seja, o controle crítico dos governantes, sempre incomoda um Governo, mas também o faz crescer. O que o leva à morte é o silêncio provocado pelo medo da transparência, um dever sagrado em relação àqueles que o elegeram para governar à luz do sol e não na escuridão dos esgotos da prevaricação e até da mentira. Bolsonaro e seu novo Governo ainda estão a tempo de evitar esse perigoso desafio aos meios de comunicação governando sem medo do escrutínio público de seus atos.
Folha de S. Paulo: 'É preciso mapear as redes que estão espalhando fake news', diz jornalista filipina premiada
Maria Ressa foi uma das eleitas Pessoa do Ano pela revista Time
Ana Estela de Sousa Pinto e Patrícia Campos Mello
SÃO PAULO e DOHA
Na mesma terça-feira (11) em que era anunciada pela revista Time como uma das Pessoas do Ano 2018, a filipina Maria Ressa, depositava uma fiança de 60 mil pesos (cerca de R$ 4.500) para evitar ser presa.
Desde julho, a jornalista e o Rappler, site de notícias que ela fundou e preside, têm sido acusados de fraude fiscal pelo governo, que já tentou sem sucesso cassar a licença de funcionamento da empresa.
“Querem deixar claro que vão dificultar muito nossa vida. Já entendemos, mas vamos continuar fazendo nosso trabalho”, disse Maria, 55, em entrevista à Folha.
Criado em 2012, o Rappler, como outros meios de comunicação, entrou na mira do presidente Rodrigo Duterte pela cobertura crítica da guerra às drogas —que, segundo entidades de direitos humanos, já deixou mais de 12 mil mortos desde 2016.
O site e Maria viraram alvo preferencial do governo filipino, após série de reportagens sobre como Duterte e seus aliados usaram contas falsas em mídias sociais e pagaram trolls para disparar mensagens em massa e manipular a opinião pública.
Maria chegou a receber 90 mensagens de ódio por hora em sua conta do Facebook, incluindo ameaças de morte e estupro. A Presidência filipina também cassou a credencial do site e tem impedido seus jornalistas de participar de coberturas oficiais.
Não se calar e reforçar os valores jornalísticos é, segundo Maria, a única forma de resistir ao que chama de 3 Cs: corrupção, coerção e cooptação. “É preciso aumentar a luz. Se você fizer acordos nebulosos e não chamar a atenção para as tentativas de intimidação, você é parte do problema.”
Maria atribui os problemas atuais não só ao presidente mas também às empresas de tecnologia, especialmente o Facebook, cuja rede social é usada por 97% dos filipinos.
As quatros capas da Time com os exemplos de personalidade do ano, que homenageia a luta pela liberdade de imprensa /Moises Saman/Divulgação Time/AFP
“O grande problema é deixar que as mentiras circulem livremente nas redes sociais. É preciso mapear as redes que estão espalhando fake news, rastrear as fontes. É possível e é necessário fazer isso”, disse ela em Doha, no Catar, onde participou de debate sobre “Como combater a demonização da imprensa”.
Segundo ela, as redes sociais terão que “drenar o lodo tóxico” se quiserem sobreviver. Neste ano, o Rappler estabeleceu uma parceria com o Facebook para a checagem de fatos.
“Precisamos fazer com que todos os veículos de mídia trabalhem juntos, porque todos serão atacados, mais cedo ou mais tarde”, disse ela.
A sra. ganhou vários prêmios jornalísticos neste ano. Infelizmente, eles expõem um momento muito difícil para meu país e o jornalismo. Mostram que há uma batalha concreta, com custos reais e perigo para a democracia.
Em discurso recente, atribuiu as dificuldades à ação do presidente Duterte e às redes sociais. Como essas últimas prejudicam o jornalismo? Essas empresas são hoje o maior distribuidor de notícias do mundo, e viraram todo o sistema de cabeça baixo. Além de terem capturado o faturamento dos grupos tradicionais, não assumiram a responsabilidade, na esfera pública, de proteger as informações. Seus algoritmos tratam mentiras e fatos da mesma forma, o que põe em perigo democracias no mundo todo. Achamos que é possível limpar esse lodo tóxico e usar a ferramenta para construir instituições de baixo para cima.
Há como responsabilizá-los? Já é possível ver uma ação forte nos Estados Unidos, com as audiências no Senado, que expuseram claramente como as mídias sociais foram transformadas em armas. É importante expor como as redes sociais estão sendo usadas para controlar a narrativa política, e como grupos como a Cambridge Analytica têm atuado em eleições em vários países.
As gigantes de tecnologia terão que mudar, terão que limpar as redes sociais. Não acho que tenham escolha, se quiserem sobreviver.
O presidente Rodrigo Duterte também usou redes sociais para encorajar ataques contra jornalistas. Encorajar não é a palavra correta. Foi um uso bastante sistemático. Assim como em outras partes do mundo, a guerra da informação começa nas redes sociais, se fortalece no mundo virtual e depois evolui para ataques concretos. No começo, eles atacaram qualquer um que questionasse as execuções extrajudiciais. Num segundo momento, passaram a atacar jornalistas de forma bastante sistemática.
Depois de criar esse ambiente contra os jornalistas e o jornalismo, começaram a sufocar as empresas jornalísticas.
Duterte foi eficiente em sua tentativa de desacreditar a imprensa tradicional? Muito. Com os chamados “trolls patrióticos”, que disseminam ódio online patrocinado pelo Estado, eles conseguiram mutilar o jornalismo, fazer com que o público deixasse de acreditar nos jornalistas. Assassinato de reputação era muito comum —usaram todos os animais possíveis para me xingar, zombavam da minha aparência, da minha voz. E diziam que os jornalistas críticos eram corruptos. Se você diz um milhão de vezes que alguém é corrupto, as pessoas acreditam. Nosso país deixou de ser uma democracia e passou a ser uma ditadura por meio do ódio online. Usavam a viralidade do Facebook para espalhar mentiras sobre os jornalistas. O resultado foi claro. Em janeiro de 2018, uma pesquisa do Pew Global Attitudes com o mundo real mostrava que 86% das pessoas diziam acreditar que a mídia tradicional era justa e correta. Uma pesquisa da Edelman feita com usuários de mídias sociais mostrava que 83% não confiavam na mídia tradicional.
Que tipo de medida é eficiente para se contrapor à desinformação? O grande problema é deixar que as mentiras circulem livremente nas redes sociais. É preciso mapear as redes que estão espalhando fake news, rastrear as fontes. É possível e é necessário fazer isso. E precisamos fazer com que todos os veículos de mídia trabalhem juntos, porque todos serão atacados, mais cedo ou mais tarde. No começo, as TVs não ligavam muito para os ataques, não acreditavam que pudessem ser ameaçadas. Quando começaram a ser atacadas, se juntaram aos outros veículos e hoje nós colaboramos no combate à desinformação. Mas não basta mostrar que algo é falso, é preciso fazer reportagens mostrando de onde vêm essas fake news, mostrar às pessoas que elas estão sendo manipuladas e como isso está sendo feito. Nas Filipinas, finalmente o Facebook começou a banir perfis, porque se deu conta de que estava perdendo usuários e anunciantes. O uso das redes sociais como arma é apenas o fertilizante para que esses ataques cresçam e passem para o mundo real, com leis arbitrárias, por exemplo.
Houve casos antes do Rappler, contra o jornal “Inquirer”. Sim. O maior jornal filipino publicou em sua capa a foto de uma mulher segurando o marido morto na guerra às drogas, e Duterte se voltou contra eles. Sob pressão, os donos do jornal foram forçados a vender o controle para um aliado do presidente.
Em seguida ele passou a ameaçar a maior cadeia de TV do país, a ABS-CBN, dizendo que não renovaria sua licença em 2020. E depois disso, o Rappler. Tentaram cassar nossa licença e deslancharam as ações tributárias.
Houve um gatilho para isso? Nós não somos apoiadores nem opositores de Rodrigo Duterte. Vamos continuar mostrando ao público que o presidente está abusando do poder para atacar seus críticos, usando a lei e instituições como a Procuradoria da Receita para intimidar os que considera seus inimigos. É uma paranoia perigosa, pois ele está mobilizando muito poder.
O objetivo é cercear o jornalismo do Rappler? Eles querem deixar claro que vão dificultar muito nossa vida. Já entendemos, mas vamos continuar fazendo nosso trabalho. Talvez essa seja uma mensagem para o Brasil. Precisamos definir qual é a linha demarcatória, a linha que define o que é democracia e o que é ditadura ou autocracia, e trabalhar para impedir que ela seja ultrapassada.
Foram surpreendidos pela escalada de pressão? Duterte sempre foi muito claro sobre o que pretendia, mesmo antes de virar candidato. O que as pessoas não viram foi que pulamos da frigideira para o fogo. Elegemos um presidente muito forte, que abusa do poder, e não temos instituições necessárias para contê-lo. Essa é uma grande diferença entre Filipinas e os Estados Unidos, onde o Congresso e outras instituições podem colocar Trump de volta na rota quando ele se excede.
Nas Filipinas as instituições de freios e contrapesos não conseguem atuar? Não há freios e contrapesos nas Filipinas. O governo tem usado 3 “Cs” para tentar controlar qualquer um que questione seus meios de ação.
Quais são os 3 “Cs”? Corromper, coagir ou cooptar. Ele toma decisões unilaterais e as impõe. Duterte tem apoio popular, é o mais poderoso presidente que tivemos em décadas, mais até que Ferdinando Marcos (ditador de 1965 a 1986), porque controla o Executivo e o Legislativo e, até o fim de seu mandato, terá apontado 13 dos 15 juízes da Suprema Corte.
Nesse ambiente, as companhias também são pressionadas a seguir as determinações do presidente.
O governo pressionou os anunciantes para boicotarem vocês? Na medida em que o governo nos ataca, os anunciantes têm medo de se associar a nós. Nos bastidores, dizem que nos apoiam 100 %, mas apoiam só de longe (risos).
Com a companhia sendo estrangulada, alguma vez chegou a pensar em recuar? Nossa resposta tem sido reforçar ainda mais nossos valores. As jornalistas que criamos o Rappler o fizemos porque queríamos ser independentes. Nós tínhamos valores fortes e sabíamos que, se quiséssemos continuar trabalhando de acordo com eles, teríamos que nos preparar para isso. Fui correspondente de guerra e nós quatro sabíamos que antes de mais nada precisávamos nos preparar, planejar os movimentos. Antecipar os piores cenários, e nos antecipar nas possíveis saídas. O segundo passo é que você precisa saber quem é, porque nesse ambiente haverá tentativas de corrupção, coerção e cooptação. Antes que eles viessem, sabíamos que manter o jornalismo independente era ruim para os negócios. Mas, como o maior grupo na direção é formado por jornalistas, fomos capazes de mostrar aos homens de negócios como funciona nosso mundo e convencê-los de que a melhor saída era continuar fazendo jornalismo como fazíamos.
E eles concordaram em assumir riscos que geralmente homens de negócios não assumem. Por fim, aprendi que a melhor forma de lidar com isso é aumentar a luz. Se você fizer acordos nebulosos e não chamar a atenção para as tentativas de intimidação, você é parte do problema. Quando eles tentaram tirar nossa licença, nós reagimos claramente mostrando que era politicamente motivado, e isso nos manteve em funcionamento.
Como os negócios estão sendo afetados? Fomos os primeiros nas Filipinas a fazer publicidade nativa, em 2012, e a partir daí mudamos nosso modelo de negócios algumas vezes. Quando estamos sob ataque do governo, os anunciantes ficam nervosos. Vimos isso e tentamos dar a eles o que precisam, usando dados estruturados das mídias sociais para prestar serviços a eles. Estamos estudando como criar um modelo de associação (membership), que seja sustentável num momento em que toda a publicidade digital está indo para Google, Facebook e Amazon. Não acho que o modelo de assinaturas seja o melhor num país em que a maioria da população é muito pobre para arcar com isso.
A senhora vê similaridades entre Bolsonaro e Duterte? Eu entrevistei Duterte antes da eleição e ele afirmou que se transformaria em um ditador se fosse eleito e prometeu matar usuários de drogas. Ele cumpriu todas as suas promessas. Portanto, tenham cuidado com Bolsonaro e suas promessas. Dependendo da força das instituições, o mundo de vocês vai virar de cabeça para baixo, como o nosso.
Sérgio Augusto: A volta do ‘Pasquim’
Catarse coletiva de norte ao sul do País, fenômeno igual nunca se viu na imprensa brasileira
Pouco antes das eleições, o presidente eleito revelou que um dos objetivos de seu governo seria fazer o Brasil semelhante ao de 50 anos atrás. Fiz as contas, deu 1969.
Vivíamos em 1969 sob uma ditadura militar, que o ex-capitão e seu vice general negam com a mesma convicção dos que contestam o Holocausto, o aquecimento global, a esfericidade da Terra e a inexistência de Papai Noel.
Muita mais gente do que se imagina sente nostalgia por um tempo que não viveu. Tenho amigos que, a exemplo do protagonista daquela comédia de Woody Allen, lamentam não terem vivido na Paris dos anos 1920, quando os pais de alguns deles ou ainda eram bebês ou nem haviam nascido. Tal não é o caso do presidente eleito, que já era vivo em 1969. Mas tinha apenas 14 anos quando tudo aquilo aconteceu, sem ele se dar conta.
Desde dezembro do ano anterior enfrentávamos o tacão do AI-5 (epa! 50 anos redondos na próxima quinta-feira) e já testemunháramos a invasão do Teatro Ruth Escobar, na capital paulista, pelo Comando de Caça aos Comunistas, que depredou o cenário e espancou o elenco do musical Roda Viva, de Chico Buarque (pois é, já naquela época Chico incomodava os boçais).
Em vez de punir exemplarmente os celerados do CCC, o que fez a ditadura? Proibiu o espetáculo, “degradante e subversivo”, na tacanha avaliação do censor Mário F. Russomano.
Antes de saltar para 1969, outra deplorável lembrança: domingo passado também fez 50 anos que o Teatro Opinião, no Rio, sofreu um atentado à bomba, executado pelos mesmos espiroquetas do CCC. Se 1968 terminou nesse clima, como esperar um refresco no ano seguinte?
No último dia de agosto de 1969, uma junta militar provisória foi empossada no lugar do general Costa e Silva, que sucumbira a um derrame. Por que não empossaram o vice-presidente Pedro Aleixo? Justamente porque vivíamos numa ditadura e ele era um civil, um vice apenas pro forma, decorativo. Quatro dias depois, houve o sequestro do embaixador norte-americano, e uma nova Lei de Segurança Nacional foi promulgada antes de setembro chegar ao fim. Até que nos enfiaram goela abaixo outro general – o pior de todos: Emílio Garrastazu Médici.
Por tudo isso, a hipótese de voltar 50 anos atrás me soa, na mais complacente das estimativas, sinistríssima, um disparate de quem ignora história ou hibernou mentalmente naquele período. Ou sofreu uma lavagem cerebral oceânica (de Oceânia, a distopia de 1984).
Se forçado a voltar àqueles idos, talvez me sentisse meio obrigado a ajudar a recriar o irreverente semanário Pasquim – ou O Pasquim, como chegou às bancas, em 26 de junho de 1969, mantendo o artigo definido até trocar o desenho do logo no número 289 – e isso daria um trabalho dos diabos.
Primeiro, porque de seus fundadores apenas três ainda vivem, sendo que nenhum dos dois plenamente funcionais (Jaguar e Claudius) toparia encarar o desafio de ressuscitar, na atual conjuntura, o mais afamado baluarte impresso contra a ditadura militar. Segundo, porque estamos no século 21, o País mudou, o mundo mudou, nós mudamos ou fomos a isso constrangidos pelo politicamente correto; e porque talvez não faça mais sentido imprimir jornais e distribuí-los analogicamentes.
Mas se o presidente eleito insistir em voltar ao passado em vez de pensar o presente e o futuro, alguém, motivado pela Terceira Lei de Newton, poderá sentir a necessidade de lançar um sucedâneo eletrônico do Pasquim.
Não seria eu, contudo, a pessoa mais indicada para a tarefa, embora seja um dos poucos brancaleones sobreviventes. À exceção de Jaguar, Ziraldo e Claudius, os verdadeiros esteios do jornal (Millôr, Ivan Lessa, Paulo Francis, Henfil) e seu idealizador (Tarso de Castro) não habitam mais este mundo.
Dos citados, apenas três merecem ser considerados fundadores do jornal. Vez por outra, incluem Ziraldo, Henfil, Francis e até Ivan Lessa entre os criadores do Pasquim. Ledo engano. Tarso, Jaguar, Sérgio Cabral, Carlos Prósperi (designer), Claudius e Luiz Carlos Maciel – este foi o grupo que bolou e pôs nas ruas o jornaleco. Ziraldo apenas colaborou no primeiro número, com um de seus já conhecidos Zeróis. Henfil estreou no segundo número, Francis no sexto e Ivan no vigésimo sétimo.
Quando em suas páginas debutei, O Pasquim já estava no número 9. Sucesso instantâneo, começara com uma tiragem de 20.000 exemplares semanais, logo esgotados, chegaria aos 80.000 no número 16, alcançando espetaculares 200.000, dois meses depois. Catarse coletiva de norte ao sul do País, fenômeno igual nunca se viu na imprensa brasileira.
Revivê-lo, numa redação ou como leitor, seria a maior compensação que poderíamos ter à regressão prometida pelo presidente eleito. Que, receio, seria completa. Ou seja, com o mesmo repertório repressor de 50 anos atrás: censura prévia, apreensões em bancas, atentados à bomba (sorte nossa que a programada para explodir a sede do jornal, na madrugada de 12 de março de 1970, pifou) e prisões sem base legal (como a que trancafiou 70% dos seus integrantes na Vila Militar, durante dois meses).
A despeito das negações já feitas e vindouras, isso foi o que eu vi, ouvi e vivi. E ainda que desmintam também a existência do Pasquim – que, aliás, durou mais que a ditadura – não haverá como corroborar esse wishful thinking quando, daqui a poucos meses, a coleção completa do histórico hedbomadário estiver todinha digitalizada e disponível na internet, com um dispositivo de busca completo, por edição, assunto, autores e até palavras.
Moral da história: não precisamos voltar a 1969 para termos de volta o passado – no caso, o melhor do passado, e ao alcance do dedo.
O Estado de S.Paulo: Entidades condenam ameaça de Bolsonaro de retaliar jornais
Presidente eleito falou em cortar verba pública de veículos de imprensa que se ‘comportarem de maneira indigna’
Luiz Raatz, de O Estado de S.Paulo
A Associação Nacional de Jornais (ANJ) e a Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji) criticaram nesta terça-feira, 30, as declarações dadas pelo presidente eleito, Jair Bolsonaro, do PSL, sobre o jornal Folha de S. Paulo. Em entrevista ao Jornal Nacional, da TV Globo, na segunda-feira, Bolsonaro ameaçou retirar verbas públicas dos veículos de imprensa que se comportarem de maneira "indigna", e citou a Folha como um desses casos. Ele acusa o jornal de propagar notícias falsas a seu respeito.
“É preocupante que o presidente eleito tenha manifestado a intenção de usar verbas publicitárias oficiais como forma de punição a um jornal por discordar de seu noticiário", disse o presidente da ANJ, Marcelo Rech. "Os investimentos do governo em publicidade, como qualquer outra verba pública, devem seguir sempre critérios técnicos, e não políticos ou partidários”.
Já a Abraji disse receber com apreensão as declarações dadas por Bolsonaro a respeito da imprensa nos últimos dois dias. "O respeito à Constituição - à qual o presidente fará um juramento solene de obediência no dia 1º de janeiro de 2019 - não é pleno quando a imprensa se converte em objeto de ataques e de ameaças", afirmou a entidade em nota.
O texto afirmou ainda que “fiscalizar o poder público – e, em particular, as ações do presidente da República – sempre foi e seguirá sendo uma função inerente ao jornalismo, exercida em nome do interesse público”. “Zelar por essa função é missão primordial da Abraji, assim como deve ser objeto de zelo de todo governo democrático.”
Na entrevista dada ao Jornal Nacional, Bolsonaro prometeu respeitar a liberdade de imprensa, mas disse que o repasse de verbas da União seria uma coisa diferente. “Sou totalmente favorável à liberdade de imprensa, mas temos a questão da propaganda oficial de governo, que é outra coisa”, disse Bolsonaro. “Não quero que (a Folha) acabe. Mas, no que depender de mim, imprensa que se comportar dessa maneira indigna não terá recursos do governo federal. Por si só, esse jornal se acabou”, afirmou o presidente eleito.
Em sua conta no Twitter, o jornal respondeu ao presidente eleito. “Jair Bolsonaro, mesmo após eleito presidente, não deixa de ameaçar a Folha. Ainda não entendeu o papel da imprensa nem a Constituição que promete obedecer.”
Em outra iniciativa, a Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj) chamou a atenção para mensagem distribuída por assessor da própria campanha de Bolsonaro com ataques a jornalistas.
A Procuradoria da República no Distrito Federal abriu investigação por improbidade administrativa para apurar a contratação pelo gabinete de Bolsonaro na Câmara da ex-funcionária Walderice Santos da Conceição.
Conduzida sob sigilo desde setembro pelo procurador João Gabriel Queiroz, a investigação busca saber se a mulher, ex-secretária parlamentar de Bolsonaro, recebia salário da Câmara e trabalhava em uma loja de açaí na Vila Histórica de Mambucaba, em Angra dos Reis (RJ), onde Bolsonaro tem uma casa de veraneio. A informação foi publicada pela Folha, e é base das críticas que o presidente eleito tem feito contra o jornal.
Walderice era funcionária no gabinete de Bolsonaro desde 2003 e recebia R$ 1.416,33 antes de pedir demissão, após a publicação. Bolsonaro exonerou a secretária parlamentar, mas contestou a reportagem durante a campanha e após eleito. Ele nega que Walderice tenha sido funcionária fantasma e diz que ela trabalhava atendendo demandas da região.
Leia a nota da ANJ na íntegra
A Associação Nacional de Jornais (ANJ) rejeita com veemência os termos e o teor das declarações do presidente eleito Jair Bolsonaro ao reiterar ataques ao jornal Folha de S. Paulo, um dos diários fundadores desta entidade, criada há quase 40 anos na defesa da liberdade de expressão.
Eventuais inconformismos com noticiário de veículos de comunicação não podem ser confundidos com inaceitáveis retaliações a jornais por meio de uso de verbas publicitárias oficiais. Investimentos em publicidade por governos, como as demais verbas públicas, devem seguir expressamente critérios técnicos, e nunca políticos ou partidários.
A ANJ espera que o princípio da liberdade de imprensa, saudavelmente afirmado pelo presidente eleito em seu discurso após a vitória nas urnas, se manifeste na prática, o que inclui o respeito a opiniões divergentes e à independência editorial, fundamentos da pluralidade de visões e da democracia.
Marcelo Rech
Presidente da AN
Hélio Schwartsman: Bolsonaro e a imprensa
Presidente eleito precisa resignar-se à ideia de que vivemos num Estado liberal
Jair Bolsonaro não gosta da Folha. É um direito dele. Mas, se opresidente eleito pretende cumprir sua promessa de obedecer à Constituição, precisa resignar-se à ideia de que vivemos num Estado liberal no qual vige a liberdade de imprensa.
Mais do que uma cereja decorativa no bolo da democracia, a liberdade de imprensa, ao lado das liberdades de expressão e de pensamento, são importantes porque ajudam a manter sob controle tanto o poder do Estado como o de maiorias circunstanciais.
O filósofo John Stuart Mill (1806-1873) já disse quase tudo o que é preciso dizer sobre o assunto. Não é só o soberano que pode cometer injustiças contra o indivíduo. As “opiniões e sentimentos prevalecentes”, que Mill chama de “tirania da maioria”, podem ser igualmente opressivas, se não mais.
Assegurar que ideias diferentes daquelas defendidas pelos poderosos e pelos numerosos possam circular é um passo necessário para que as teses oficiais e majoritárias sejam contestadas e, se estiverem erradas, como frequentemente estão, sejam abandonadas. Mill, como bom iluminista, aposta que, no longo prazo, as melhores ideias triunfam sobre as piores.
A liberdade de imprensa especificamente (separada da liberdade de expressão e de pensamento) adquire especial importância no atual momento, em que fake news ganham ampla circulação nas redes sociais. Não é que o jornalismo profissional vá resolver esse problema, mas a imprensa facilita um pouco a vida do cidadão ao oferecer-lhe uma primeira filtragem, levando-lhe notícias que passaram por um processo de verificação, ainda que imperfeito.
O jornalismo não tem respostas definitivas para os grandes problemas do país, mas pode dar sua contribuição para o debate público, quando amplia o leque das ideias em circulação, zela pelos fatos e, de vez em quando, consegue revelar aquilo que poderosos gostariam de manter escondido.