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Carlos Pereira: Não consegue ou não sabe governar?

Problemas de governabilidade têm origem nas escolhas equivocadas de presidentes

O presidente Jair Bolsonaro parece ter “jogado a toalha” ao se referir às dificuldades econômicas que o Brasil tem enfrentado e afirmar, de forma peremptória: “o Brasil está quebrado... Eu não consigo fazer nada”.

Discursos de vitimização, de impotência governativa ou de transferência de responsabilidade para outros Poderes sob o argumento de que o governo estaria impedido de governar não são novidade em regimes democráticos e muito menos em sistemas presidencialistas multipartidários, como o brasileiro.

Um exemplo extremo é o do ex-presidente Getúlio Vargas que, em carta-testamento, invocou “as forças e os interesses contra o povo” para justificar seu suicídio em meio a uma grave crise política de seu governo minoritário, agravada após o atentado perpetrado contra o principal líder da oposição, o jornalista Carlos Lacerda.

De forma similar, em sua carta de renúncia à Presidência, o ex-presidente Jânio Quadros argumentou que estaria sendo impedido de governar por “forças ocultas”. Ele desprezou as regras do jogo político, não negociou com os partidos e tentou governar apesar do Legislativo. O descaso de Jânio com o Congresso Nacional era patente.

O ex-presidente José Sarney também reclamou veementemente da suposta dificuldade de se governar o Brasil ao afirmar que “a Constituição de 1988 tornou o País ingovernável”. Chegou a aconselhar o então presidente eleito Fernando Collor que “não se governa sem apoio político”. “Nós tentamos tudo, experimentamos de tudo. O que faltou foi apoio político. O problema do País não é econômico, é político”, vaticinou Sarney.

Parece que o ex-presidente Collor não deu ouvidos aos conselhos de seu antecessor. Recentemente reconheceu que o principal equívoco de seu governo “foi não ter construído uma base parlamentar de apoio que concedesse a solidariedade do Congresso ao presidente da República em um momento de necessidade”. Para Collor, “governo sem base sólida não dura”, pois considera que “o presidencialismo de coalizão traz no seu bojo a incerteza e o vírus da ingovernabilidade”.

O que há de comum em todos esses reclamos de presidentes em relação ao sistema político brasileiro?

Todos esses presidentes escolheram governar na condição de minoria ou tiveram grande dificuldade de construir e de gerenciar de forma sustentável coalizões majoritárias.

Não entenderam que no presidencialismo multipartidário o presidente é o agente central, uma espécie de CEO do jogo político. Suas escolhas acarretam consequências, a despeito das instituições. Não existe “piloto automático” para se alcançar a governabilidade. As decisões e estilo de gerência do presidente são essenciais. Sem esse CEO coordenando os partidos de sua coalizão, as maiorias legislativas, quando formadas, tornam-se instáveis e imprevisíveis, fazendo com que os custos de governabilidade aumentem ou mesmo se tornem proibitivos.

No sistema multipartidário, presidentes necessitam tomar pelo menos quatro decisões na montagem e sustentação de coalizões: 1) número de partidos que farão parte da coalizão; 2) perfil ideológico dos aliados; 3) poder e recursos compartilhados entre os parceiros; e 4) proximidade entre a preferência da coalizão e a mediana do Congresso.

A escolha do presidente por montar coalizões com muitos partidos, ideologicamente heterogêneas, que não contemplam a distribuição proporcional de poder e recursos e que são distantes da preferência do Congresso tendem a gerar menor sucesso legislativo e a ser mais caras ao longo do tempo.

Portanto, quando Bolsonaro choraminga argumentado que “não consegue fazer nada” revela, na realidade, que não sabe governar.


Ricardo Noblat: As veias abertas de um governo em agonia

A ordem é produzir fumaça para esconder o que acontece

A cada dia, aumenta a agonia do presidente Jair Bolsonaro e do seu governo com a retomada do avanço da pandemia do coronavírus. O próprio ministro da Saúde, o general Eduardo Pazuello, admitiu que ainda não se trata de uma segunda onda do mal, mas da primeira que ainda não quebrou de todo.

O Brasil é o terceiro país com o maior número de casos, atrás apenas de Estados Unidos e Índia. E o segundo em número de mortes, atrás apenas dos Estados Unidos. Foram 483 nas últimas 24 horas, de um total de 203.140, com pouco mais de 8 milhões e 100 mil infectados.

O vírus pisou no acelerador duas semanas após o início das festas de fim de ano. A tendência é que os números cresçam ainda. É por isso que os nervos do presidente e dos que o cercam estão à flor da pele. E, à falta de vacina, a ordem é produzir fumaça para desviar a atenção sobre o que acontece.

Recentemente, Bolsonaro disse a um grupo de devotos à entrada do Palácio da Alvorada que o Brasil está quebrado e que ele não pode fazer nada. Significa então: o país quebrou no colo dele. Porque antes não estava quebrado. No Congresso, ninguém o impediu de governar. Tampouco na justiça.

O que ele fez em dois anos? Nada, além de armar as pessoas como sempre defendeu, entregar a Amazônia aos cuidados dos desmatadores, a Educação a uma penca de ministros ineptos, a Cultura a quem tem horror a ela, e pôs nas Relações Exteriores um capacho, orientando-o a se curvar aos Estados Unidos.

Não fez reforma alguma – herdou de Michel Temer a da Previdência, mas não se envolveu com ela. As privatizações de empresas estatais prometidas? Nenhuma. O auxílio emergencial de 600 reais foi invenção do Congresso. Se Bolsonaro tivesse sido atendido, o auxílio chegaria, no máximo, aos 300 reais.

Atravessou a pandemia desdenhando dela e exaltando os efeitos milagrosos de drogas comprovadamente ineficazes. A aposta inicial em uma única vacina foi mais um grave erro. Para completar, seu terceiro ministro da Saúde em menos de um ano sequer conhecia o SUS antes de assumir o cargo.

Sabe que deverá substituí-lo em algum momento – mas qual? Antes, durante ou só depois da vacinação? Mas seu governo se aguenta de pé se a vacinação em massa fracassar ou demorar em excesso? Se não bastasse, sua referência no mundo está de saída do poder – e que maneira encontrou para sair…

Donald Trump cederá a cadeira a quem Bolsonaro publicamente desejou que fosse derrotado. O presidente do Brasil foi um dos últimos chefes de Estado, se não o último, a cumprimentar Joe Biden pela vitória. E o único a dar razão aos invasores do Congresso americano chamados por Biden de “terroristas”.

Convenhamos: para quem reconheceu não ter nascido para ser presidente, nunca teve um projeto para o país, não gosta de pegar no pesado e valoriza tão pouco a vida alheia, tudo isso é, e com razão, um grande tormento. Só não faz sentido ele querer se reeleger. Pode ser um sacrifício a mais que fará pelos filhos.

É bom que se frise: o Brasil não está quebrado, Bolsonaro é que não tem conserto. De todo modo, vida longa a ele para que colha o que plantou.


Miguel Reale Júnior: Lei marcial cabocla

Qual a razão de Bolsonaro pregar contra a imprensa livre para policiais militares?

Artigo de lei de 2015 que fixava a obrigatoriedade de impressão do voto foi, em liminar do plenário do STF de 2018, considerado inconstitucional. Tal decisão foi confirmada em setembro passado por unanimidade (ADI 5.889). Após as recentes eleições municipais, o ministro Barroso, presidente do TSE, declarou: “Jamais se comprovou qualquer aspecto fraudulento no sistema, que até hoje se revelou imune à fraude”.

Apesar das decisões do STF, em 29 de novembro, Bolsonaro voltou a insistir na necessidade do voto impresso como garantia de fidedignidade. Agora, nas férias de Natal, em Santa Catarina, Bolsonaro disse: “Se a gente não tiver voto impresso em 2022, pode esquecer a eleição”.

Trata-se de ameaça grave. Como esquecer a eleição de 2022 se não houver voto impresso, já tido por inconstitucional pelo STF? Qual a intenção de Bolsonaro? Prepara-se para contestar derrota em 2022, antecipando a acusação de fraude, como tentou Trump?

Se juntarmos a acusação infundada de fraude em urnas eletrônicas, sem a mínima comprovação, com a principal atividade desenvolvida por Bolsonaro, então se acende a luz amarela do perigo.

E qual é essa atividade? O presidente tem comparecido a solenidades de graus inferiores das Forças Armadas (sargentos da Marinha) e das Polícias Militares, como se deu recentemente ao ir à formatura de soldados da PM do Rio de Janeiro. Nessa solenidade de pequeno relevo, Bolsonaro disse que soldados arriscam a vida na proteção a todos, enquanto a imprensa defende canalhas. E completou: “A imprensa jamais estará do lado da verdade, da honra e da lei. Sempre estará contra vocês”.

O presidente coloca a imprensa como inimiga dos soldados, pois “está sempre contra a lei e a verdade”. Qual a razão de prestigiar cerimônias de soldados da Polícia Militar pregando contra a imprensa livre, esteio da democracia?

A História brasileira dá a resposta. Na República houve participação relevante de forças estaduais nos movimentos sediciosos. Exemplo está na Revolução de 1924, comandada pelo major da Força Pública Miguel Costa, chefe do Regimento de Cavalaria de São Paulo (Juarez Távora, Uma Vida e Muitas Lutas, pág. 140) e depois mentor da Coluna Prestes, que, conforme afirma Leôncio Basbaum, deveria ser denominada Coluna Miguel Costa/Prestes (História Sincera da República, pág. 233).

A Revolução de 1930 teve importante participação das Polícias Militares do Rio Grande do Sul e de Minas Gerais, e também da polícia de São Paulo, que, em conjunto com o Exército, assumiu provisoriamente o governo da província (Helio Silva, Os Tenentes no Poder, pág. 87). Miguel Costa ocupou então o comando geral da Força Pública paulista (Domingos Meirelles, 1930, Os Órfãos da Revolução, pág. 649).

Como ressaltam Lilian Schwarcz e Heloisa Starling, a estratégia das forças rebeldes em 1930 foi a de obter a adesão dos oficiais subalternos e sargentos, o que deu certo, e, principalmente, o apoio das “poderosas Polícias Militares estaduais, pequenos exércitos autônomos, muito bem equipados” (Brasil: Uma Biografia, pág. 359).

Na Revolução Constitucionalista de 32, a participação da Força Pública em São Paulo foi patente, mas também a resistência do governo se deu graças à Polícia Militar de Minas Gerais, que enfrentou e derrotou os paulistas no Túnel da Mantiqueira, na estrada de ferro divisa entre Cruzeiro (SP) e Passa Quatro (MG), ganhando o túnel o nome do coronel da PM de Minas Gerais Fulgêncio de Souza Santos, falecido no confronto (https://www.em. com.br/app/noticia/gerais/2018/07/30/interna_gerais,976559/tunel-na-serra-da-mantiqueira-guarda-marcas-da-revolucao-de-1932).

Em 1964 o general Olímpio Mourão Filho, comandante da 4ª. Região Militar, em Minas Gerais, resolveu caminhar em direção ao Rio de Janeiro à frente de conscritos do Exército mal equipados, mas contando com a Polícia Militar de Minas, então governada por Magalhães Pinto, sendo seus integrantes profissionais treinados. O mesmo se diga do peso da Força Pública do Estado de São Paulo em 1964.

A importância bélica das Polícias Militares, cujos integrantes são profissionais do confronto, verifica-se pela circunstância de o regime militar ter submetido de imediato essas corporações ao controle do Exército. Seu comando na ditadura foi entregue a oficiais-generais, como foi o caso do general João Figueiredo em São Paulo, depois presidente da República.

O governo federal, por intermédio do chefe da Força Nacional, apoiou a greve de soldados no Ceará e Bolsonaro insiste em ampliar a exclusão de crime no caso de violência praticada por policiais militares, revelando sua aliança com forças estaduais de segurança.

A grave menção de que, “se não houver voto impresso, esqueça-se a eleição de 2022”, somada à corte que Bolsonaro faz às Polícias Militares, instigadas contra a imprensa livre, forma um quadro preocupante diante de possível derrota do presidente, que terá preparado o terreno para uma “lei marcial”, tal qual a pensada por Trump, dando fim à democracia, jamais cultuada. E daí?

*Advogado, professor titular sênior da Faculdade de Direito da USP, membro da Academia Paulista de Letras, foi ministro da Justiça


Evandro Milet: Prefiro a imprensa às redes sociais

A frase é famosa. Thomas Jefferson, um dos pais da pátria americana, escreveu a um amigo em 1787: “Se tivesse de decidir se deveríamos ter um governo sem jornais ou jornais sem governo, não hesitaria em preferir a última opção”.

Nos embates das redes sociais, alguns alegam que a grande imprensa teria perdido a relevância por não ser mais fonte de informações confiáveis. Campanhas para cancelar assinaturas de jornais e revistas se espalharam por grupos ideológicos, insatisfeitos com a cobertura feita de temas políticos e principalmente com os colunistas de opinião. Alguns costumam repetir que determinados assuntos de interesse do governo Bolsonaro não são publicados na grande imprensa ou questionam porque ela não publicava nada contra Lula. Fico pensando como as pessoas se informaram sobre mensalão, petrolão ou lava-jato. Onde aprenderam sobre condução coercitiva, delação premiada ou prisão em segunda instância. Onde souberam da prisão de Lula, Marcelo Odebrecht ou Eduardo Cunha. 

É uma ilusão achar que as pessoas têm mais informações pelas redes sociais que pela imprensa. As redes repercutem as notícias dadas em primeira mão pela grande imprensa com seus repórteres e colunistas de opinião ou pelos blogs de jornalistas que investem na captação de notícias originais mantendo contato permanente com as fontes primárias, os políticos em geral. Nas redes, colunistas de segunda mão, recém alfabetizados em política, apenas tentam reinterpretar as notícias veiculadas à luz de um embasamento precário, pouca história, e um acesso limitado às fontes primárias.

Os veículos de imprensa contratam jornalistas e investem na captação de notícias, e não só de política, mas também de economia, negócios, cultura, entretenimento e esportes. Os colunistas de opinião são isso mesmo, de opinião, e por isso analisam os fatos de acordo com sua interpretação e os colocam em um contexto amplo com base na sua experiência de anos. Gente que nunca leu jornal na vida, ou pelo menos que nunca acompanhou política, acha isso estranho, desconhecendo que funciona assim em todo o mundo democrático. Alguns chegam a afirmar, inocentemente, que os jornais deveriam apenas reportar os fatos e deixar a opinião para os leitores, como se todos tivessem a capacidade de enxergar a história e o contexto.

Quem quer formar a sua própria opinião pode ler ou ouvir vários analistas, de fontes diversas, e tirar sua conclusão, reduzindo eventuais vieses de cobertura, que ocorrem mesmo.

A grande imprensa realmente reduziu bastante a impressão de jornais e revistas, bem como caiu a audiência na TV, não porque perdeu credibilidade, mas porque foi atropelada pela velocidade da internet, que torna as notícias velhas rapidamente, pelas novas opções para entretenimento na TV e pela mudança do mercado publicitário acompanhando a maior presença das pessoas nas redes. 

Os veículos procuram se adaptar às circunstâncias do mundo digital, aprendendo novas formas de se comunicar, seja com podcasts, lives, blogs, agências de checagem, diretamente nas redes ou colunas divulgadas aos pedaços ao longo do dia.

Quando vejo alguma notícia nas redes sociais, corro para os sites da grande imprensa para verificar se saiu ali. Caso contrário há grande chance de ser fakenews, essa praga difícil de ver na grande imprensa - pode até ocorrer -, assim como as doentias teorias da conspiração, que nunca vi na grande imprensa. Além disso, os algoritmos das redes sociais nos transformam em seus produtos, dirigindo nossas vontades subliminarmente, sem oportunidade de ouvir outras fontes como a imprensa permite.

No mais, é lembrar da frase de George Orwell: "Jornalismo é publicar aquilo que alguém não quer que se publique. Todo o resto é publicidade." Ou do nosso Millôr Fernandes: “Imprensa é oposição. O resto é armazém de secos e molhados.”


Demétrio Magnoli: O sermão nosso de cada dia

Jornais descobriram atalho de confirmar e reforçar as coleções de ideias dominantes no seu público-alvo

Reza a sabedoria convencional que o advento das redes sociais provocou a crise existencial da imprensa em curso. O fenômeno é mais complexo: a crise deve-se, essencialmente, à resposta adaptativa escolhida pelo jornalismo profissional ao desafio posto pelas redes.

Diante da perda dramática de receitas publicitárias, os jornais engajaram-se na fidelização de leitores ou espectadores. Na batalha de vida ou morte, descobriram um atalho: falar, preferencialmente, para um segmento da sociedade definido por certas visões de mundo. Ou, dito de modo diferente, confirmar e reforçar as coleções de ideias dominantes no público-alvo.

Os veículos de imprensa entregaram-se a alinhamentos ideológicos cada vez mais nítidos. Nos EUA, exemplo icônico, as redes CNN e MSNBC tornaram-se porta-vozes informais das correntes mais liberais (ou seja, à esquerda) do Partido Democrata, enquanto a Fox firmou-se como arauto da ala reacionária do Partido Republicano. A última cresceu numa estridente oposição a Obama. As duas primeiras, assim como o New York Times, obtiveram retumbante sucesso comercial com a denúncia inclemente de Trump. Hoje, sem o “diabo laranja”, indagam-se sobre o rumo a seguir.

O atalho conduz a uma armadilha fatal. As pautas, os enfoques e a linguagem do jornalismo profissional tendem a se submeter à lógica discursiva das redes sociais. A Folha, que renasceu nos anos 80 com sua adesão ao movimento das Diretas Já!, uma posição editorial justificada pelo imperativo de reconquista da liberdade de imprensa, decidira não tomar parte em novas campanhas políticas, já que o sistema democrático garante a pluralidade de opiniões. Agora, porém, patrocina a campanha “#Use amarelo pela democracia”, uma bandeira anti-bolsonarista de forte apelo no seu leitorado que equivale a desistir de conversar com todos os brasileiros.

“Um bom jornal é uma nação dialogando consigo mesma” (Arthur Miller). A renúncia a esse ideal tem amplas consequências jornalísticas, como indicam as críticas da jornalista Bari Weiss, que se demitiu do NYT.

Espelho, espelho meu. As redes sociais alimentam seus seguidores com o discurso que eles querem ouvir. O jornal capturado por um nicho selecionado de leitores procede quase da mesma forma. “Toda pressão empurra para publicar mais um artigo sobre como Trump é um monstro ou um palhaço”, constata Weiss. Ela não gosta Trump, mas rejeita o tribalismo político dos dois lados: “Cada vez mais, o NYT e outros veículos mostram uma pequena faixa do país, um mundo como os editores ou os leitores gostariam que fosse”.

A pluralidade ideológica dos colunistas de opinião, item no qual a Folha dá um banho no NYT, não soluciona o problema. A ferida situa-se no núcleo do fazer jornalístico, não em editoriais apropriadamente duros (mas evitando a pulsão panfletária expressa em frases como “estupidez assassina de Bolsonaro”), ou na indispensável denúncia das torrentes de fake news. O ponto crucial é que o universo da notícia sofre uma compressão e uma amputação.

O jornal que pronuncia sermões imita a linguagem do pregador ou do militante —e, nesse passo, inclina-se a conceder a eles um palanque desproporcional à influência que exercem. As pautas identitárias extremas saltam da periferia do debate público —isto é, de obscuros refúgios acadêmicos— para o centro do palco. A reportagem sujeita a trama factual a uma mensagem apriorística. O comício deles contagia, infecta, espalha o vírus; a nossa manifestação de protesto purifica, liberta.

Sermão é um ato religioso: uma cisão entre “nós” e “eles”. O jornal que só conversa com os seus inscreve-se na moldura da intolerância discursiva, potencializando as engrenagens de polarização das redes sociais. Mesmo quando fala sem parar de amor, saúde, igualdade, solidariedade, justiça e inclusão.

*Demétrio Magnoli, sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.


Ricardo Noblat: Bolsonaro volta a atacar a imprensa e humilha seu filho Eduardo

“Você teve um voto. O resto foi meu”

Ao assumir a presidência da República em janeiro de 2019, a prioridade número um de Jair Bolsonaro era reeleger-se dali a quatro anos. Quanto ao resto, empurraria com a barriga.

Depois, à medida que seus três filhos zeros começaram a ser alvos de denúncias por corrupção, a reeleição passou a ser a prioridade número dois. Se não salvar os filhos, não se salvará.

É preciso, pois, desacreditar os autores das denúncias, especialmente a imprensa, que as divulga e pressiona os demais poderes a investigá-las a fundo.

A mais recente denúncia bateu diretamente à porta do gabinete presidencial no terceiro andar do Palácio do Planalto, e isso explica a escalada recente dos ataques de Bolsonaro à imprensa.

Ele reuniu-se com advogados do seu filho Flávio, acusado de embolsar dinheiro público à época em que era deputado estadual no Rio, com o propósito de ajudá-los no que fosse possível.

Estavam presentes o ministro Augusto Heleno, do Gabinete de Segurança Institucional, e seu subordinado, o delegado Alexandre Ramagem, chefe da Agência Brasileira de Inteligência (Abin).

Dois relatórios, mais tarde, enviados por Ramagem aos advogados, são a prova de que a Abin deu o caminho das pedras para que eles fossem bem-sucedidos em sua tarefa.

A descoberta de que isso aconteceu, pode configurar crime de responsabilidade praticado por Bolsonaro e, no limite, até custar-lhe o mandato, deixou o presidente da República apoplético.

Sua entrevista, ontem, ao canal do filho Eduardo no Youtube não contém nada de novo, mas é uma demonstração de como ele está fortemente incomodado com o episódio.

“Me chama de corrupto, vamos lá”, desafiou Bolsonaro referindo-se à imprensa. “Me chama de corrupto, porra. Não tem mais grana mole para vocês. Acabou a treta. O fim de vocês está próximo”.

“Imprensa canalha, não vale nada”, insistiu. “Não leiam jornais. É tudo um lixo. Vão para a internet. […] Ai do ministro se eu souber que [no seu local de trabalho] tem jornais”.

Como seria impossível ocupar mais de uma hora de entrevista somente falando mal da imprensa, Bolsonaro revisitou seu estoque de temas preferidos. Ao fazê-lo, repetiu as velharias de sempre.

Sobre a facada que levou em Juiz de Fora: o caso foi mal apurado porque Sérgio Moro era o ministro da Justiça. Líderes políticos da esquerda queriam matá-lo, e ainda querem.

Sobre o voto eletrônico: não confia nele e, por seus cálculos, mais de 70% dos brasileiros também não. Perguntou: “Em que país do mundo esse sistema foi adotado?”

Sobre tortura no período da ditadura militar de 64: “[Os que reclamam] não eram presos políticos, eram terroristas. E eram tratados [nos porões do regime] com toda a dignidade”.

Sobre as eleições municipais: “A imprensa falou que eu perdi. Quantos prefeitos eu tinha? Zero. Então vou dar uma de Dilma aqui: Eu não ganhei nem perdi”.

E sobre a pandemia: “Ela está chegando ao fim. A pressa da vacina não se justifica. Vão inocular algo em você. O seu sistema imunológico pode reagir ainda de forma imprevista”.

Por último, em meio a risadas, humilhou o filho ao trocar de posição com ele. Travou-se então o seguinte diálogo:

– Vamos ver se você está ficando inteligente. Você teve quantos votos nas últimas eleições? – perguntou Bolsonaro.

– Eu fui eleito [deputado federal por São Paulo] com 1.843.735 votos em 2018 – informou Eduardo.

– Não aprendeu nada. Você teve um voto. O resto foi meu.

Enquanto o pai gargalhava, o filho apenas retrucou:

– Você não acha que foi o meu trabalho?

Bolsonaro não respondeu.


Ricardo Noblat: Cala boca já morreu, Bolsonaro!

Presidente ameaçou encher jornalista de porrada

E a festa marcada para esta manhã no Palácio do Planalto que celebraria o sucesso do governo Bolsonaro no combate ao Covid-19? Seria aberta à imprensa. Continuará sendo? Está mantida? E se um jornalista resolver perguntar ao presidente porquê Fabrício Queiroz e sua mulher Márcia Aguiar depositaram 89 mil reais na conta de Michelle, a primeira-dama?

Alguns poucos bolsonaristas de raiz exultaram com a reação de Bolsonaro à pergunta de um repórter feita quando ele saía, ontem, de mais uma visita dominical à Catedral de Brasília. Sempre que sabe há aglomeração de turistas à porta da catedral, Bolsonaro vai até lá a pretexto de rezar. É mais uma oportunidade para tirar fotos com apoiadores, abraçar criancinhas e distribuir sorrisos.

Tudo teria saído como previsto não fosse a pergunta que o deixou furioso: “Presidente, porquê Queiroz depositou 89 mil reais na conta de dona Michelle?” A pergunta era mais do que pertinente. No final de 2018, quando o Ministério Público Federal do Rio revelou que Queiroz depositara 24 mil reais na conta de Michelle, Bolsonaro espontaneamente correu a explicar-se.

Jurou que o dinheiro era o pagamento de uma dívida contraída por Queiroz com ele. Lembrou que os dois eram amigos há mais de 30 anos e que não era a primeira vez que emprestara dinheiro a Queiroz. Semanas depois, sem que ninguém lhe perguntasse, corrigiu-se. A dívida não era de 24 mil, mas de 40 mil. Mas não adiantou se ela foi paga integralmente.

Num primeiro momento, a pergunta do repórter ficou sem resposta. Enquanto caminhava, Bolsonaro comentou com os seguranças que o cercavam que ainda daria uma porrada “na boca daquele cara”. Como o repórter repetiu a pergunta, finalmente encarou-o e disse: “Minha vontade é encher sua boca de porrada”. Em seguida, pressionado pelos seguranças, foi para casa.

“Ele voltou! Ele voltou!”, transbordavam de felicidade apressados bolsonaristas nas redes sociais antes de serem sufocados por milhares de mensagens em sentido contrário que se limitavam a reproduzir a pergunta do repórter. Não teve mais para nada. A hashtag Queiroz reinou soberana durante pelo menos 8 horas como o assunto mais comentado do Twitter no Brasil.

Por que tamanho espanto diante da ameaça do presidente de encher a boca de um jornalista com porrada? Até começar a fingir ser o que não é, Bolsonaro defendeu a tortura, o torturador Brilhante Ustra, lamentou que a ditadura não tivesse matado um número maior de presos políticos e quase foi condenado por dito que só não estuprava uma deputada porque ela era feia.

Bolsonaro reconciliou-se, afinal, com ele mesmo. Deve estar se sentindo muito melhor, mais leve, mais à vontade para frustração dos que imaginavam tê-lo convertido em um presidente normal. Tirou um peso insuportável nas costas. Se quiser, vai retomar o hábito de mandar jornalista calar a boca, provocar a Justiça, hostilizar o Congresso e bater no Centrão.

Êpa! Chega de exagero. Ameaçar encher a boca de jornalista com porrada não é motivo para abertura de processo de impeachment, concluiu o deputado Rodrigo Maia, presidente da Câmara. Provocar a Justiça não seria recomendável, pois dela dependem as investigações sobre seus filhos. Tampouco bater no Centrão do qual depende hoje para aprovar projetos no Congresso.

É hora de Bolsonaro dar mais força a Paulo Guedes, o ministro da Economia. Se fizer isso, todos os pecados lhe serão perdoados pelos que de fato mandam no país. Vida que segue até a próxima recaída.

O governo nada em dinheiro quando é para atender aos militares

Gasto polêmico
O Ministério da Defesa já empenhou 145,3 milhões de reais para a compra de um microssatélite que fará o monitoramento da devastação da Amazônia, segundo o jornal GLOBO.

Tudo estaria certo, tudo muito bem, não fosse por um fato: o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais, órgão do governo, tem um microssatélite tão ou mais moderno e já faz esse serviço.

O custo do microssatélite para que os militares possam chamar de seu é 48 vezes maior do que a verba prevista no Orçamento deste ano para projetos de monitoramento da área e risco de incêndios.


Leandro Colon: Ao ameaçar repórter, Bolsonaro prova que fase paz e amor é fake

Bastaram poucos minutos de contato com a imprensa para Bolsonaro ser Bolsonaro

O tal Jair Bolsonaro "paz e amor" das últimas semanas é um grande disfarce. É fake.

Não foram necessários cinco minutos de contato com a imprensa para Bolsonaro ser Bolsonaro.

Questionado sobre os cheques depositados por Fabrício Queiroz na conta da primeira-dama Michelle, o presidente ameaçou o repórter Daniel Gullino, do jornal O Globo.

"A vontade é de encher sua boca com porrada", disse o presidente valentão na frente dos profissionais de imprensa, ao lado da Catedral de Brasília.

Bolsonaro já mandou repórteres da Folha "calarem a boca" e prestigiou protestos palco de agressões físicas a profissionais de imprensa.

Mandou uma banana aos jornalistas, numa cena grotesca na porta do Alvorada, e estimulou insultos por parte dos seus apoiadores na residência oficial.

Talvez passe pela cabeça do presidente que, ao ameaçar, agredir e ofender repórteres, a imprensa se intimide e pare de questioná-lo sobre temas graves que o envolvem.

Bolsonaro pode até pagar de brigão e querer encher de porrada a boca de um repórter, mas precisam sair da dele as razões convincentes sobre o dinheiro que caiu na conta da primeira-dama entre 2011 e 2016.

Relembremos. Foram 27 movimentações. Só Queiroz depositou 21 cheques, que somam R$ 72 mil. Sua mulher, Márcia Aguiar, repassou outros R$ 17 mil por meio de cinco cheques.

Até agora, Bolsonaro não deu sua versão sobre as transações do ex-assessor investigado pelo esquema das "rachadinhas" no Rio.

Desde a prisão de Queiroz (hoje em domiciliar), em 18 de junho, o presidente evita contato mais próximo com a imprensa. Foge dela.

Ao mesmo tempo, baixou a temperatura da crise com o STF e o Congresso e adotou uma agenda populista de viagens para promover obras, entre elas a de uma barragem que rompeu no Ceará, expondo ao perigo 2.000 pessoas.

No campo da popularidade, Bolsonaro cresce nas ruas, como mostrou o Datafolha. No da honestidade, faltam explicações.


El País: Bolsonaro ameaça bater em repórter e rede faz eco à pergunta “Por que Michelle recebeu 89.000 reais do Queiroz?”

Presidente se irritou quando indagado sobre repasses à primeira-dama feitos por ex-assessor. Pergunta virou enxurrada em mobilização no Twitter com mais de 1 milhão de mensagens

O presidente Jair Bolsonaro voltou a atacar a imprensa neste domingo, e desta vez disse ter vontade de “encher de porrada” um repórter. O motivo para a ameaça foi ter sido questionado, por um jornalista de O Globo, sobre os motivos pelos quais Fabrício Queiroz, ex-assessor do seu filho Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ) e investigado por confisco de salários de servidores, ter repassado 89.000 reais para a conta da primeira-dama Michelle Bolsonaro. A informação foi revelada por uma reportagem da revista Crusoé.

Em um primeiro momento, de acordo com o jornal Folha de S. Paulo, o presidente rebateu perguntando ao jornalista sobre os supostos repasses mensais feitos pelo doleiro Dario Messer, preso na Operação Lava Jato e agora colaborador da Justiça, à família Marinho, proprietária da Rede Globo e do jornal O Globo. Após a insistência do repórter sobre os pagamentos à primeira-dama, Bolsonaro respondeu: “A vontade é encher tua boca com uma porrada, tá?”. O mandatário foi indagado por mais essa agressão a um profissional de imprensa. Mas ele ignorou os questionamentos. Jogou por terra, também, a ideia de que está se ajustando ao decoro do cargo.

Com um histórico longo de agressões verbais a jornalistas, ao vivo e nas redes sociais, o presidente teve de encarar uma reação imediata desta vez. Assim que a notícia com e a ameaça circulou, um movimento ganhou o Twitter: repetir a pergunta feita pelo profissional do Globo: “presidente Jair Bolsonaro, por que sua esposa, Michelle, recebeu 89.000 de Fabrício Queiroz?” Jornalistas, artistas e até políticos aderiram ao movimento. Do deputado Major Olímpio, ex aliado do presidente, a parlamentares do Partido Novo, até atrizes globais como Bruna Marchezine e Paolla de Oliveira. O tema foi parar nos assuntos mais comentados da rede e ganhou a adesão até em forma de desenho. A cartunista Laerte desenhou a pergunta que o mandatário não quis responder. Segundo Fabio Malini, pesquisador das mídias sociais, a pergunta foi repetida no twitter a cada 40 segundos. Ao final, foram mais de 1 milhão mensagens com a mesma pergunta.

O escândalo envolvendo Fabricio Queiroz, ex-assessor por anos da família Bolsonaro pressiona o Planalto. A investigação principal é contra o senador Flávio Bolsonaro que, assim como Queiroz, é alvo de um inquérito que apura se houve confisco de parte de salários dos servidores e lavagem de dinheiro. A trama, no entanto, é mais complexa por causa de depósitos do ex-assessor e família feitos à primeira-dama.

Crusoé revelou que o ex-assessor do senador Flávio e ex-policial militar Fabrício Queiroz depositou pelo menos 21 cheques na conta de Michelle. As transações, feitas entre 2011 e 2018. Conforme a revista, as transferências foram identificadas na quebra de sigilo bancário de Queiroz.A revelação contraria a versão dada pelo presidente Bolsonaro de que o depósito no valor de 24.000, desde dezembro de 2018 era parte do pagamento de um empréstimo de 40.000 que fizera ao ex-policial. Desde que esses novos valores foram revelados, Bolsonaro não apresentou a razão dos depósitos terem ocorrido para sua mulher.

Protesto de entidades

Só no primeiro semestre de 2020, presidente Bolsonaro fez 245 ataques contra o jornalismo. O monitoramento foi feito pela Federação Nacional dos Jornalistas. Conforme a instituição, foram 211 casos de descredibilização da imprensa, 32 ataques pessoais a jornalistas e 2 ataques contra a federação. “É lamentável que mais uma vez o presidente reaja de forma agressiva e destemperada a uma pergunta de jornalista. Essa atitude em nada contribui com o ambiente democrático e de liberdade de imprensa previstos pela Constituição”, protestou Marcelo Rech, presidente da Associação Nacional de Jornais (ANJ). “É uma tentativa de intimidação da imprensa, buscando impedir questionamentos incômodos”, disse o presidente da Associação Brasileira de Imprensa (ABI), Paulo Jeronimo.

Também o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, afirmou ao O Globo que “a liberdade de imprensa é um valor inegociável numa democracia”.


O Globo: Bolsonaro acumula ataques verbais a jornalistas e veículos de imprensa

Presidente já se dirigiu a repórteres com frases homofóbicas e de cunho sexual, além de ter sugerido obstáculos à atividade da imprensa

RIO — O ataque do presidente Jair Bolsonaro a um repórter do GLOBO neste domingo é mais um episódio de uma série de agressões verbais à imprensa durante o atual governo. O presidente, que declarou ter vontade de "dar porrada" no jornalista ao ser perguntado sobre cheques repassados pelo policial reformado Fabrício Queiroz à primeira-dama Michelle Bolsonaro, terminou 2019 com 116 ataques à imprensa contabilizados pela Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj).

Leia o posicionamento: O GLOBO repudia ataque do presidente Jair Bolsonaro a repórter do jornal

Neste ano, durante a pandemia da Covid-19, Bolsonaro seguiu reagindo de forma agressiva a perguntas de jornalistas, inclusive mandando a imprensa "calar a boca". Relembre a seguir alguns dos episódios de ataques do presidente:

Lauro JardimJair Bolsonaro acordou novamente como o motor de uma crise no seu próprio governo

'Cara de homossexual terrível'

Em dezembro, Bolsonaro já havia atacado a imprensa ao ser questionado sobre a investigação da prática de rachadinha envolvendo um de seus filhos, o senador Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ). Queiroz, ex-assessor de Flávio e suspeito de articular o desvio de verba pública na Assembleia Legislativa do Rio (Alerj), foi alvo de busca e apreensão do Ministério Público do Rio (MP-RJ) no fim do ano passado. A operação também mirou uma loja de chocolates, suspeita de ser usada para a prática de lavagem de dinheiro, que tem Flávio entre seus sócios.

SonarApós Bolsonaro atacar repórter, internautas indagam: 'Por que recebeu R$ 89 mil de Queiroz?'

Questionado sobre o assunto na entrada do Palácio da Alvorada, Bolsonaro se dirigiu de forma homofóbica a um repórter do GLOBO e afirmou que o jornalista tinha "uma cara de homossexual terrível".PUBLICIDADE

Reação: Entidades criticam ameaça de Bolsonaro a repórter do GLOBO

À época, questionado também sobre os cheques repassados por Queiroz a Michelle, o presidente afirmou não ter um recibo do suposto empréstimo feito ao ex-assessor de seu filho, e voltou a se dirigir de forma ofensiva aos jornalistas:

— Pergunta para a tua mãe o comprovante que ela deu pro teu pai, está certo? Querem comprovante de tudo — disse Bolsonaro.

Rodrigo MaiaSobre ameaça de Bolsonaro: 'Liberdade de imprensa é inegociável'

'Ela queria dar o furo a qualquer preço'

Em fevereiro deste ano, Bolsonaro insultou uma repórter do jornal "Folha de S. Paulo" com uma insinuação de cunho sexual. Durante entrevista na porta do Alvorada, enquanto interagia também com apoiadores, o presidente referiu-se ao depoimento de Hans River do Nascimento, ex-funcionário de uma agência de disparos em massa por WhatsApp, concedido à CPMI das Fake News.

No depoimento, o ex-funcionário mentiu sobre a conduta da jornalista, que fazia uma reportagem sobre supostos disparos ilegais na eleição presidencial de 2018. Bolsonaro reproduziu a versão mentirosa de Hans River, usando um trocadilho:

— Ela (repórter) queria um furo. Ela queria dar o furo a qualquer preço contra mim — afirmou o presidente.

Nas redes: De Caetano Veloso a Felipe Neto, internautas repetem pergunta após Bolsonaro atacar repórter do GLOBO

Em nota conjunta divulgada à época, a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e a Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji) afirmaram que Bolsonaro "repete as alegações que a Folha já demonstrou serem falsas" e que os ataques do presidente "são incompatíveis com os princípios da democracia". A Associação Brasileira de Imprensa (ABI), que também condenou a fala de Bolsonaro, afirmou que "este comportamento misógino desmerece o cargo de Presidente da República".

'Cala a boca, não perguntei nada'

Em maio, perguntado se havia pedido a substituição do superintendente da Polícia Federal (PF) no Rio, Bolsonarou reagiu aos gritos com a frase "cala a boca, não perguntei nada".

O ex-ministro da Justiça Sergio Moro, que havia deixado o cargo duas semanas antes, declarou à época que o presidente tentava interferir politicamente na PF. Bolsonaro, depois de mandar a imprensa calar a boca, afirmou que o então superintendente do Rio, Carlos Henrique Oliveira, estava deixando o cargo "para ser diretor-executivo" da corporação, nomeação feita na semana seguinte.

Na ocasião, a Associação Nacional dos Jornais (ANJ) afirmou, em nota, que o presidente mostrava "sua incapacidade de compreender a atividade jornalística", além de externar "seu caráter autoritário".

Ameaças à atividade jornalística

Em mais de uma ocasião, Bolsonaro já insinuou que poderia impor obstáculos à atividade de empresas de comunicação. Em outubro do ano passado, após a TV Globo veicular reportagem sobre a investigação do caso Marielle Franco com o depoimento de um dos porteiros do condomínio onde morava Bolsonaro, o presidente acusou a emissora de "canalhice" e "patifaria", e sugeriu que poderia não renovar a concessão do canal.

Em abril deste ano, na mesma entrevista em que disse "e daí?" ao ser questionado sobre as mortes em decorrência do novo coronavírus, Bolsonaro voltou a insinuar que "se não tiver tudo certo, não renovo a (concessão) de voces nem a de ninguém", usando a expressão "imprensa lixo".

No fim do ano passado, o presidente disse que havia determinado o cancelamento de todas as assinaturas da "Folha de S. Paulo" em órgãos do governo federal, e recomendou também, em tom de ameaça, que os anunciantes do jornal deveriam "prestar atenção". Em outra entrevista, também em 2019, o presidente voltou a se dirigir a anunciantes, ao declarar que não compraria produtos com publicidade veiculada no jornal.

— Recomendo a todo Brasil aqui que não compre o jornal Folha de S. Paulo. Qualquer anúncio que faz na Folha eu não compro aquele produto e ponto final — afirmou.


El País: Bolsonaro e a receita húngara para acabar com a imprensa crítica

'A Máquina do Ódio', de Patrícia Campos Mello, mostra como o presidente segue o manual de Viktor Orbán para silenciar a mídia. Leia um trecho do livro da Companhia das Letras

Patrícia Campos Mello

“Vocês são uma espécie em extinção. Eu acho que vou botar os jornalistas do Brasil vinculados ao Ibama. Vocês são uma raça em extinção.”

A frase de Jair Bolsonaro ainda pertence à categoria wishful thinking, mas seu governo está empenhado em transformá-la em realidade. De forma geral, políticos encaram a mídia como inimiga. Não entendem por que a imprensa precisa investigar, criticar e fiscalizar os governos. O presidente vai além. Ele quer convencer as pessoas de que quem lê jornais fica “desinformado”, e de que elas deveriam consumir informação diretamente das redes sociais dele e de seus apoiadores, sem filtros.PUBLICIDADE

Outro dia, num raro acesso de bom humor com a imprensa, Bolsonaro aceitou receber repórteres no Alvorada para “chupar uma manga”. Quando os jornalistas se preparavam para entrar no palácio, um apoiador se dirigiu a eles e disse: “Espero que vocês parem de fazer um jornalismo canalha. Espero que tenha manga com veneno para vocês”.

Bolsonaro segue à risca o manual húngaro “Como acabar com a imprensa independente em dez lições”, obra de seu colega populista de direita, o primeiro-ministro Viktor Orbán. Na Hungria, em poucos anos a mídia crítica foi dizimada. Tal como Bolsonaro, Orbán se queixava de que a mídia tradicional era injusta ao atacá-lo e tachava a imprensa independente de “fake news”. Ele então resolveu o “problema”: empresários ligados ao governo e a seu partido, o Fidesz, compraram a maior parte dos veículos de mídia independente, que hoje se dedicam a propagar as ideias caras a Orbán, como demonizar imigrantes e criticar o megainvestidor e filantropo George Soros.

Por mídia independente, entenda-se jornais, televisões, sites noticiosos ou rádios que não deixam de investigar um político só porque ele está no governo, não se curvam a pressões para veicular apenas notícias positivas que se encaixam na narrativa desejada pelo governante da vez, nem se transformam em porta-voz de determinado grupo.

A primeira lição do manual de combate à imprensa é sufocar a mídia em termos econômicos. Os jornais já vivem um contexto financeiro difícil no mundo. Há anos passam por uma crise em seu modelo de negócios. Poucos veículos conseguem ter lucro, mesmo com a combinação de assinaturas e anúncios on-line (que são fagocitados, na maioria, pelas grandes plataformas de tecnologia). Como disse o sociólogo Demétrio Magnoli, “os jornais converteram-se em anões na terra dos gigantes da internet”.

Nos Estados Unidos, entre 2013 e 2018, a receita publicitária dos jornais caiu de 23,6 bilhões de dólares para 14,3 bilhões de dólares. Em 2018, o Google, sozinho, teve 116 bilhões de dólares de faturamento publicitário, e o Facebook faturou 55 bilhões de dólares. Juntos, Google, Facebook e Amazon abocanham quase 70% do toda a receita publicitária on-line.

No Brasil, números sobre a divisão do bolo publicitário ainda não cobrem de forma abrangente o alcance dos anúncios na internet. Mas o levantamento do Cenp-Meios mostra que a participação dos veículos tradicionais de mídia vem caindo. A TV ainda abocanha a maior parte da verba publicitária — 53% a TV aberta e 7% a TV por assinatura em 2019, de janeiro a setembro. Mas a fatia encolheu: em 2017, chegava a 58,7% e 8,5%, respectivamente. Nesse ano, os jornais absorviam 3,3% do gasto em publicidade; as revistas ficavam com 2,1%; o rádio, com 4,6%, e a internet era destino de 14,8%. Em 2019, de janeiro a setembro, o gasto publicitário na internet subiu para 20,7%, o dos jornais caiu para 2,7%; revistas para 1%, e rádio se manteve estável, com 4,6%.

A queda da circulação dos grandes jornais é outra amostra da situação difícil em que se encontra a mídia tradicional. O número total de exemplares (digitais e impressos) de nove grandes jornais brasileiros — Folha de S.Paulo, O Globo, Estado de S. Paulo, Super-Notícia, Zero Hora, Valor Econômico, Correio Braziliense, Estado de Minas e A Tarde — em dezembro de 2014 era de 1712424; em dezembro de 2019, a cifra era 1476303 — queda de 236121 (13,8%).

Acrescente-se a essa fragilidade estrutural um governo aprovando legislação que ameaça a liberdade de imprensa e a viabilidade financeira dos veículos, e está criada a tempestade perfeita. Que já desabou na Hungria e está fustigando o Brasil.

Na Hungria, Orbán baixou uma série de leis que previam multas para veículos de mídia que fizessem “cobertura desequilibrada”, “insultuosa” ou em violação à “moralidade pública”. A legislação obriga a mídia a fazer cobertura “confiável, rápida e precisa” das notícias — do ponto de vista do governo, claro. Além disso, o húngaro recorre a um instrumento básico de intimidação: corte de anúncios do governo em mídia não alinhada ao partido no poder.

No Brasil, Bolsonaro ameaçou cortar publicidade na mídia “inimiga” e cumpriu a promessa já no primeiro ano de governo. Relatório do Tribunal de Contas da União (TCU) revelou que o governo passou a destinar os maiores percentuais de verba publicitária para a tv Record e o SBT — emissoras consideradas aliadas ao Planalto, mas que não são líderes de audiência.

Embora detentora do maior ibope do país, a Globo passou a ter participação bem menor no bolo. De acordo com reportagem da Folha, em 2017 a Globo ficou com 48,5% dos recursos do governo e, em 2018, 39,1%. Em 2019, com base em dados parciais, a fatia despencou para 16,3%. Os percentuais da Record foram de 26,6% em 2017, 31,1% em 2018 e, agora, 42,6%; os do sbt, 24,8%, 29,6% e 41%, respectivamente. Nos meios impressos críticos, anúncios do governo brasileiro e de estatais secaram.

Também foram adotadas na Hungria várias medidas que dificultam a aplicação de leis de acesso à informação, instrumento essencial para assegurar a transparência dos atos do governo e sua responsabilização. Isso quase ocorreu no Brasil, mas o Congresso brecou no início de 2019. Em 2020 Bolsonaro tentou de novo com uma medida provisória, com a desculpa de ser necessária em decorrência da epidemia do coronavírus — e foi suspensa por um dos juízes do Supremo Tribunal Federal.

Bolsonaro baixou medidas tendo em vista se vingar da imprensa que julga “injusta”. Em agosto de 2019, assinou uma medida provisória que acabava com a obrigação das empresas de capital aberto de publicar seus balanços em jornais de grande circulação; a partir de então, elas poderiam publicá-los sem ônus no site da Comissão de Valores Mobiliários, CVM.

A publicação de balanços é fonte importante de receita para vários veículos. Essa mudança já estava prevista, e é natural, uma vez que a migração para o on-line é tendência inexorável. Ela seria implementada de maneira mais gradual, porém. De acordo com a legislação aprovada pelo Congresso e sancionada pelo próprio presidente em abril, a publicação dos balanços em jornais de grande circulação ainda seria exigida até 31 de dezembro de 2021. Medidas provisórias têm efeito imediato após serem publicadas e precisam ser aprovadas em até 120 dias pelo Congresso para não perderem a validade. De propósito o Congresso perdeu o prazo de votar essa MP da desobrigação de publicar os balanços impressos e ela caducou em dezembro de 2019.

O presidente brasileiro não deixou dúvidas sobre sua motivação para a medida provisória: “No dia de ontem eu retribuí parte daquilo que a grande mídia me atacou. Assinei uma medida provisória fazendo com que os empresários que gastavam milhões de reais ao publicar obrigatoriamente por força de lei seus balancetes agora podem fazê-lo no Diário Oficial da União a custo zero”, disse na época.

Ameaçou o Valor Econômico em especial, dizendo “espero que sobreviva à MP de ontem”, e criticou supostas entrevistas que o jornal teria feito com ele, com declarações cheias de imprecisões. E, logo depois, em meio à polêmica mundial sobre suas políticas antiambientais, afirmou: “Nós estamos ajudando a não desmatar e estamos facilitando a vida dos empresários”. Segundo informou o Valor, o papel utilizado pela imprensa é produzido no Brasil e provém de reflorestamento, ou seja, não causa desmatamento. Por sua vez, o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, ponderou que “retirar receitas dos jornais do dia para a noite” não era uma boa ideia.

Em setembro de 2019, Bolsonaro voltou à carga e editou uma medida provisória que dispensava a publicação de editais de licitação, concursos e tomadas de preços em jornais diários de grande circulação. Pela proposta, esses comunicados deveriam ser publicados apenas na imprensa oficial. O texto foi suspenso por liminar do ministro Gilmar Mendes, do STF, em outubro.

O Congresso e o Supremo Tribunal Federal têm cumprido seu papel de agir como freios e contrapesos, barrando as medidas presidenciais mais autoritárias contra a imprensa. Mas isso não significa que Bolsonaro tenha sido neutralizado. O presidente e seu secretário de Comunicação, Fabio Wajngarten, passaram a pressionar anunciantes privados para não fecharem contratos de publicidades com alguns jornais e TVs. “Parte da mídia ecoa fake news, ecoa manchetes escandalosas, perdeu o respeito, a credibilidade [e] a ética jornalística. Que os anunciantes que fazem a mídia técnica tenham consciência de analisar cada um dos veículos de comunicação para não se associarem a eles preservando suas marcas”, disse Wajngarten, que, à frente da Secretaria de Comunicação, controla as verbas de propaganda do governo.

Já Bolsonaro, após a Folha ter publicado uma reportagem investigativa não favorável a ele, incitou anunciantes e leitores a boicotarem o jornal. “Eu não quero ler a Folha mais. E ponto-final. E nenhum ministro meu. Recomendo a todo Brasil aqui que não compre o jornal Folha de S.Paulo. Até eles aprenderem que tem uma passagem bíblica, a João 8:32 [E conhecerão a verdade, e a verdade os libertará]. A imprensa tem a obrigação de publicar a verdade. Só isso. E os anunciantes que anunciam na Folha também”, afirmou. “Qualquer anúncio que faz na Folha de S.Paulo eu não compro aquele produto e ponto final. Eu quero imprensa livre, independente, mas, acima de tudo, que fale a verdade. Estou pedindo muito?”

Patricia Campos Mello é jornalista da ‘Folha de S.Paulo’ e lançou às vésperas da eleição presidencial de 2018 uma série de reportagens sobre financiamento de disparos em massa de notícias falsas em redes sociais. Desde então tornou-se alvo de milícias digitais estimuladas pelo chamado Gabinete do Ódio, instalado no Palácio do Planalto. ‘A Máquina do Ódio', da editora Companhia das Letras, é o seu segundo livro.


Eugênio Bucci: Por que, em vez da doença, eu prefiro a cura como metáfora

É hora de doar tudo o que pudermos a quem não tem, é hora de bater panela...

Susan Sontag viu nas doenças do nosso tempo, o câncer e a aids, metáforas poderosas para pensarmos sobre as mentalidades que nos aprisionam e nos fazem cativos de preconceitos e medos irracionais. Acertou no nervo. Seus livros A Doença como Metáfora e Aids e suas Metáforas viraram clássicos instantâneos. Mas agora, diante da pandemia da covid-19, em que a civilização foi inteira para a enfermaria – e em parte para a UTI –, a metáfora que olha para nós com ares de esfinge não está na doença, mas na cura.

Sim, eu bem sei que a cura não existe. Não há vacina. Não dispomos de remédios específicos e comprovados, a despeito da propalada cloroquina presidencial. Por enquanto não há um fármaco que aniquile o coronavírus. Quando muito, a medicina nos socorre combatendo os sintomas e os médicos nos apoiam para ganhar tempo, enquanto o corpo, como diria Voltaire, trata de neutralizar a moléstia.

Não há solução individual para ninguém. Uma pessoa que desenvolva um quadro grave da doença terá de contar com os paliativos hospitalares, de um lado, e, de outro, com o próprio organismo para restabelecer o corpo. É só o que temos. Na dimensão coletiva, porém, podemos recorrer a um arranjo coletivo para enfrentar a enfermidade com eficácia. Individualmente, somos indefesos, mas agindo em conjunto, socialmente, podemo-nos proteger. As esperanças que podemos ter são esperanças coletivas. É por aí que começa a metáfora da cura (da cura que ainda não há, mas já é metafórica).

As medidas que os países que não são governados por loucos estão adotando ilustram o que quero dizer. A diminuição organizada dos contatos sociais – com a interrupção das aulas, dos comícios e dos cultos religiosos, além de festas (de aniversário, inclusive) e funerais – vai se mostrando eficaz para retardar e diminuir a intensidade do chamado pico de contaminação. Se não formos por aí, será o caos. Se o volume de casos graves explodir acima de um patamar suportável, faltarão, como se viu em outros países, leitos de UTI com respiradores. Ato contínuo, virá o sufocamento do sistema de saúde, o que vai esgarçar o tecido social, com o risco da generalização de mercados negros (não só de álcool em gel) e da violência descontrolada.

A única opção sensata que temos é ficar em casa e, acima disso, ajudar aqueles que não têm moradias adequadas – e não leem estas páginas – a se proteger. Dependemos agora de renúncia e solidariedade. A renúncia é individual: consiste em abrir mão de sair por aí passeando (para buscar o prazer) ou trabalhando (para buscar dinheiro). A solidariedade, claro, só se realiza no plano coletivo. Dispensar os trabalhadores domésticos sem lhes cortar o salário é o mínimo, mas não é suficiente. Estamos sendo chamados a fazer mais.

O mais interessante é que ninguém pode controlar se será ou não será infectado, mas todo mundo pode controlar, ao menos um pouco, se será ou não um vetor de contágio. Ninguém será bem-sucedido em ficar à distância do vírus, por mais que mantenha no armário do banheiro um estoque de máscaras cirúrgicas (que estariam mais bem empregadas se fossem doadas a um hospital). O vírus virá, seja no desenho da netinha ou no prato que o restaurante caro manda entregar por motoboy. Mas temos chances de ser mais bem-sucedidos em postergar o momento em que o vírus que está em nós atinja o próximo.

Eis, então, a metáfora: a única forma de cuidar de nós é cuidar do outro. Se eu quiser cuidar de mim, individualmente, de forma egoísta, estou roubado e, mais ainda, os outros ao meu redor também estão. Note bem o improvável leitor: no caso presente, os vícios privados não nos levarão a benefícios públicos. Só nos levarão ao desastre.

Vamos dizer “não” ao desastre. Vamos dizer “sim” ao pensamento. A metáfora nos desafia a repactuar as bases da civilização enferma. O Estado despachante do capital precisa ser questionado. Os governos autoritários e destituídos de empatia precisam ser derrotados. O sujeito que faz pose de fortão e chama a pandemia de gripezinha, apoiado em fake news, precisa ser desmascarado. É hora de doar tudo o que pudermos a quem não tem, é hora de bater panela e piscar as luzes do apartamento (para quem tem panela, energia elétrica e apartamento).

É hora disso tudo, mas sem lenga-lenga de autoajuda, pelo amor de Deus. Essa conversa de redescobrir o valor da família e as delícias de lavar com cândida o chão da cozinha, francamente, não dá pé. Haja afetação. Haja mariantonietismo. Eu não vejo nenhuma vantagem em ficar trancado no meu endereço domiciliar dando aulas para um notebook, por meio do qual meus alunos tentam me entender e fazer perguntas tão atentas quanto generosas. Quero reencontrar o quanto antes as pessoas que amo e de quem preciso sentir o calor, o beijo, o abraço. Gosto de perdigotos no meio da rua. Sinto saudades das calçadas sobre a quais salivam, enquanto sonham, as famílias que não têm casa para morar e precisam ser salvas.

No mais, a metáfora me intriga.

*Jornalista, é professor da ECA-USP