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Eugênio Bucci: O capitão do mato como assessor de imprensa

Nos desplantes contra a imprensa e a sociedade há truculência ancestral e obtusidade imemorial

Dia desses, um jornalista experiente, dos maiores do Brasil, observou com precisão: a atitude de não dar nenhuma resposta às perguntas da imprensa vai se tornando padrão no governo federal. Resta aos jornalistas reportar o silêncio oficial: “O palácio decidiu não comentar”; “o ministério não deu retorno”; “consultamos a Presidência da República, mas não obtivemos resposta”.

A prática sistemática de ignorar as perguntas dos repórteres é mais um capítulo no bestiário que inclui numerosos insultos às redações jornalísticas e a seus profissionais. O governo, que já se notabilizou por ofender rotineiramente as empresas de comunicação e o ofício dos que se dedicam a informar o público, passa agora a adotar como política diuturna a arrogância do mutismo ostensivo e o desprezo contumaz pelo direito à informação. O quadro só piora.

É difícil encontrar precedentes para esse tipo de aberração. Nem mesmo Armando Falcão, ministro da Justiça de Ernesto Geisel, na ditadura militar, que recorria a evasivas como “nada a declarar” ou “sem comentários”, chegou a tanto. O que se estabelece agora, muito mais do que a esquisitice de um ministro dado a chiliques, é uma norma não escrita de indiferença governamental aos jornalistas e ao direito que cada cidadão tem de saber o que se passa dentro do Poder Executivo. É como se as autoridades nos dissessem a toda hora: “Vocês que se danem”.

No curso dos desplantes continuados contra a imprensa e contra a sociedade há traços de uma truculência ancestral – e de uma obtusidade imemorial. O presidente que aí está já deu mostras sucessivas de seus limites cognitivos, que o impedem de alcançar a complexidade das relações políticas mediadas por institutos como a liberdade de expressão e o direito à informação em sociedades modernas. O estilo deseducado, quando visto pela perspectiva do indivíduo em questão, é antes produto da estreiteza mental que de uma revolta genuína ou refletida. Nele o excesso de infâmia resulta da escassez de pensamento, o que o leva a se portar como um bárbaro dentro de seu próprio país.

Violência é a palavra-chave. Nas forças que levaram Jair Bolsonaro ao poder encontramos pistas que nos remetem à brutalidade que nos definiu como nação, numa linha contínua que atravessa toda a História do Brasil. O pacto autoritário que o elegeu e o sustenta tem no seu núcleo a presunção de que a opressão física a mando de interesses privados resolve os supostos desvios da vida pública. Nesse pacto a obediência tem mais valor do que a consciência e a liberdade. O chefe de Estado não é simplesmente um tipo amalucado de efeitos genocidas, não é apenas um falastrão xucro que chegou lá porque o eleitorado é volúvel e conservador – ele é a forma concreta do método pelo qual as camadas mais ricas e mais fortes esperam resolver seus impasses particulares a despeito do bem público.

Na constituição de caráter (ou de ausência de caráter) do atual presidente comparecem o capitão do mato, o jagunço, o matador de aluguel, o feitor de escravos, o capataz, bem como as novíssimas afetações das empresas de segurança privada e as milícias, as milícias, as milícias. Por meio dele, a polícia manietada se sobrepõe à política ilustrada. Ele entrou em cena como um prestador de serviços sujos a senhores que, em geral, preferem se refugiar em anonimatos ilustres e jamais o convidariam para jantar, ainda que o vejam como um agente útil, capaz de carpir a terra agreste para cair fora em seguida. O presidente está para as elites de hoje assim como o chicote, a chibata e os esquadrões da morte estavam para as elites de outros tempos. É uma ferramenta necessária, embora sabidamente infame.

O que não ocorre aos senhores, chafurdados em privilégios, é que às vezes o leão de chácara vira dono da boate – vide Pinochet. Não lhes ocorre que a política civilizada, no nosso tempo, é a única via de acesso ao futuro – vide Biden. Não há atalhos. Por não terem visto nada disso, e por acreditarem que o serviço sujo traz a “limpeza” classista, mantêm seu apoio indigno a um provocador que usurpa o próprio mandato. Não, a nossa tragédia não é a persistência do presidente da República. A nossa tragédia pior são aqueles que o sustentam por ação ou omissão.

E assim estamos. Quando esse governo achincalha a imprensa, como vem fazendo seguidamente, quer achincalhar a instituições da democracia e da vida civilizada. Sem descanso, trabalha para expelir da cena pública qualquer olhar que não seja subserviente. O governante que alimenta o projeto de um Estado como a extensão de um quartel rebaixado quer a sociedade como uma plateia de bajuladores.

Enquanto isso, vai fazer mais vítimas entre os que lhe deram esteio, pavimentando o caminho para seu idílio de intolerância e desfaçatez, no qual ele não terá de dar respostas, nunca, apenas ordens. Fora isso, vai seguir batendo na imprensa, vai continuar a chamá-la de “lixo”, sempre para deixar patente que, em matéria de cultura, de civilidade e de boas maneiras, a ele bastam o penteado descentrado e a gravata desconforme.

*Jornalista, é professor da ECA-USP


Ranier Bragon: Avesso a jornalistas, Lira quer concretizar antigo projeto de encastelar presidentes da Câmara

Obra blinda políticos de passar pelo palco de marcantes acontecimentos históricos da política nacional

A decisão de Arthur Lira (PP-AL) de mudar de lugar o seu gabinete tem efeitos que vão além dos obstáculos ao trabalho diário de jornalistas. A obra-relâmpago materializa um antigo projeto de encastelar presidentes da Câmara em uma arquitetura distante dos olhos da imprensa e do escrutínio público.

Ao levar o gabinete para um local que fica ao lado e com acesso direto ao plenário —onde funciona hoje a sala usada por repórteres de vários veículos que fazem a cobertura jornalística da Câmara—, Lira e seus sucessores ficarão a salvo, em prejuízo da transparência, de uma rotina que está no centro de alguns dos acontecimentos mais marcantes da história do país.

Em suma, nem ele nem os vários políticos e outros integrantes da sociedade que orbitam ao redor dos presidentes da Câmara precisarão mais passar diante das câmeras, microfones, gravadores e perguntas de jornalistas ao transitar entre o gabinete e o plenário, durante as votações.

E a depender da obra —cujos custos e detalhes ainda permanecem sob sigilo—, nem mesmo quando entrar ou sair da Câmara.

Cheguei à Sucursal de Brasília da Folha em fevereiro de 2003, sendo deslocado diretamente para ser setorista da Câmara —no jargão jornalístico, o repórter responsável pela cobertura diária de determinada instituição.[ x ]

Com isso, em vez da Redação, o meu posto fixo de trabalho por vários anos seguintes foram os salões, corredores, gabinetes e plenários da Câmara, tendo no comitê de imprensa —o local que Lira quer transformar em seu gabinete— o ponto de apoio para escrever as reportagens.

Um local sem mesa ou cadeira, amplo e todo acarpetado em tom verde, porém, sempre foi mais especial e marcante, para o trabalho de jornalistas e para a história.

Situado no coração da Câmara, com de cerca de 2.000 metros quadrados, o Salão Verde é exatamente o local a ser evitado por quem quer se esconder do escrutínio público.

É um dos espaços de maior circulação da Casa, por onde passam deputados, assessores, funcionários, visitantes, lobistas, jornalistas, entre vários outros, e que se transforma em um formigueiro humano no dia de votações importantes.

O vaivém se explica porque no salão estão as entradas do plenário onde ocorrem as votações, além de ser ponto de passagem para quem entra e sai da Câmara.

Em uma das extremidades opostas à das entradas do plenário está o corredor que leva às salas da presidência da Câmara. Ou seja, o principal caminho para chegar ao gabinete pela manhã, para sair à noite, e para ir ao plenário e voltar durante as votações passa, necessariamente, pelo Salão Verde. E por jornalistas que lá fazem plantão em busca de informações.

Foi exatamente no Salão Verde que momentos cruciais da história do país se desenrolaram. Foi lá, por exemplo, que o então presidente da Casa Eduardo Cunha (MDB-RJ) anunciou à imprensa, em dezembro de 2015, a deflagração do processo de impeachment de Dilma Rousseff (PT).

Foi lá também que, meses antes, Cunha foi alvo de protesto com uma chuva de notas falsas de dólar jogadas em sua direção quando ele dava entrevista à imprensa. E foi lá que, por diversas e diversas vezes, foi questionado por jornalistas, ao chegar ou sair da Câmara, ao transitar entre seu gabinete e o plenário, sobre as contas que tinha na Suíça —com a insistência e a firmeza que exigem o jornalismo independente e o interesse público.

Foi no Salão Verde, também, que Severino Cavalcanti (PP-PE), presidente em 2005, teve que explicar por várias vezes as acusações de que recebeu um mensalinho de um fornecedor da Casa, escândalo que lhe custou o cargo.

Para além dos casos de corrupção, os presidentes da Câmara são abordados principalmente sobre assuntos que estão na ordem do dia no país, já que ocupam um dos cargos dos mais importantes —o que define a pauta de votações da Casa, sendo o segundo na linha sucessória da Presidência da República.

Rodrigo Maia (DEM-RJ), por exemplo, teve que ali dar explicações e ouvir pressões em uma infinidade de ocasiões nos seus quatro anos e seis meses como presidente da Casa, em votações importantes que conduziu, como a da reforma da Previdência.




O desejo de se esconder dos holofotes e de só responder a perguntas em ambiente controlado, no momento em que julgar conveniente, é um desejo antigo na Câmara, que remonta, pelo menos, à gestão de João Paulo Cunha (PT), que comandou a Casa a partir do momento em que me tornei setorista da Folha no local, em 2003.

Sob o argumento da comodidade, de ter um espaço mais amplo para trabalhar e alocar assessores, de ter a rapidez de entrar e sair do gabinete durante as votações, e por alegadas questões de segurança, vários presidentes desde João Paulo acalentaram a proposta que, agora, Lira desengaveta.

Na hora H, porém, nenhum deles tocou o projeto pra frente, até pelas restrições históricas e legais, já que a área atualmente usada por profissionais da imprensa foi projetada por Oscar Niemeyer (1907-2012).

Falei com alguns deles. "Eu aconselharia o presidente Arthur Lira a não fazer a mudança, a não alterar uma tradição da Casa. Poderia parecer retaliação contra a imprensa, o que não seria bom para o início de sua presidência em um momento tão difícil do país", afirmou Aldo Rebelo (SP), que comandou a Câmara pelo PC do B em 2005 e 2006.

Embora diga considerar essa uma decisão exclusiva do presidente da Casa e que veja como natural a reorganização de espaços, Marco Maia (PT-RS), que presidiu a Câmara em 2011 e 2012, afirmou ser contra qualquer encastelamento.

"O presidente da Câmara precisa falar, dizer o que ele está pensando e ouvir o que a sociedade está pensando sobre os mais variados temas, afinal de contas o Parlamento é uma representação da sociedade. Quanto mais contato, mais próximo, mais ouvir a sociedade, menos ele vai errar na condução do processo legislativo."

A Câmara afirma que a obra não irá afetar o tombamento histórico, a arquitetura e os conceitos elaborados por Niemayer porque, em suma, não serão feitas alterações estruturais de monta —serão movidas apenas divisórias, além de mudanças elétricas e hidráulicas e no sistema de ar-condicionado.

Apesar de possivelmente haver aquisição de mobiliário novo, pretende-se usar como mão de obra contratos atuais de manutenção predial. A expectativa é que o novo gabinete da presidência da Câmara esteja pronto em meados de 2021, afirmam assessores.

Lira sempre foi um político de bastidores, avesso não só a discursos em plenário como ao contato com jornalistas —até esta quarta-feira (10), por exemplo, o novo presidente da Câmara não deu nenhuma entrevista coletiva, fez apenas pronunciamentos em que perguntas não foram permitidas.

Um dos maiores símbolos históricos da necessidade de extrema transparência por parte dos detentores de cargo público se materializou nas palavras do juiz da Suprema Corte dos Estados Unidos Louis Brandeis (1856-1941), segundo quem a luz do sol é o melhor desinfetante.

Brasília tem um pôr do sol que inunda diariamente as redes sociais. Como esse abaixo, visto a partir do comitê de imprensa da Câmara. O exato lugar que Lira quer ocupar com objetivos que destoam da célebre frase do juiz norte-americano, dita há mais de cem anos.

Pôr do sol em Brasília, visto do comitê de imprensa da Câmara dos Deputados
Pôr do sol em Brasília, visto do comitê de imprensa da Câmara dos Deputados - Camila Mattoso/Folhapress

Afonso Benites: DEM implode e ameaça levar junto o ensaio para unir centro-direita contra Bolsonaro em 2022

Criticando ACM Neto e a cúpula do partido, Rodrigo Maia e Mandetta devem se desligar da legenda nas próximas semanas. Desintegração é vitória tática para Planalto

Dois anos atrás, o Democratas ocupava o centro do poder no Brasil. Administrava a Câmara dos Deputados e o Senado Federal. Tinha ainda três ministérios ―hoje são dois. Parecia ser uma alternativa política de direita capaz de influenciar o jogo da sucessão presidencial. Os últimos movimentos internos da legenda, no entanto, mudaram a rota e causaram uma espécie de implosão interna. A sigla que resolveu, sob a liderança de seu presidente e ex-prefeito de Salvador, Antonio Carlos Magalhães Neto, se aproximar ainda mais do bolsonarismo nas tratativas paro o novo comando do Congresso acabou provocando o rompimento do ensaio de aliança de centro-direita DEM-PSDB-MDB-Cidadania para a sucessão presidencial de 2022. Além disso, duas de suas figuras proeminentes nos últimos anos, o ex-presidente da Câmara Rodrigo Maia e o ex-ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta encaminham suas desfiliações das hostes Democratas para as próximas semanas.

Alguns dos 29 deputados federais e dezenas de deputados estaduais da legenda devem segui-los. De olho nas próximas eleições, Maia e Mandetta começam a viver a temporada de assédio partidário. Ambos querem fazer oposição ao Governo Jair Bolsonaro (sem partido) e já receberam sondagens do PSL, Cidadania e do Podemos. Maia ainda teve convites do MDB e do PSDB, e Mandetta, sondagens. Mais do que debater questões políticas nacionais, tanto um quanto outro estão de olho em suas sobrevivências na política. Nesta equação, questões regionais devem ser levadas em conta.

Mesmo tendo sido convidado pelo presidente do MDB, Baleia Rossi, Rodrigo Maia teria dificuldade de aderir à sigla, já que no Rio de Janeiro a maioria da legenda é alinhada com o presidente Bolsonaro. Em princípio, ele teria o interesse de concorrer à reeleição e talvez tivesse um caminho facilitado pelas outras legendas que pretendem lhe dar espaço e autonomia. Já Mandetta não teria fácil acesso ao PSDB e ao MDB porque esses dois grupos políticos dão sustentação à candidatura da ministra da Agricultura, Tereza Cristina, que pretende disputar o Governo de Mato Grosso do Sul. Se não conseguir se firmar como uma alternativa a Bolsonaro ou a vice em alguma chapa, Mandetta é cotado para concorrer ao Governo sul-mato-grossense.

O deputado já avisou que deixará o DEM e está consultando o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) sobre a melhor alternativa de fazê-lo, sem correr o risco de perder o mandato por infidelidade partidária. Já o ex-ministro Mandetta disse que se reunirá com a cúpula da legenda dentro de duas semanas com o objetivo de chegar a uma decisão.

Rastros da Arena

A principal causa da ruptura de Maia com o partido, que em 2018 lançou sua pré-candidatura ao Planalto, foi a eleição para a cúpula de comando da Câmara na semana passada. Na ocasião, uma articulação encabeçada pelo presidente do Democratas, ACM Neto, resultou no fim do apoio a Baleia Rossi (MDB-SP) e consequente migração para Arthur Lira (PP-AL), o candidato de Jair Bolsonaro que acabou vencendo. Em entrevista ao jornal Valor Econômico, Maia afirmou que ACM Neto, de quem é amigo há 20 anos, “entregou de bandeja” a sua cabeça ao “Palácio do Planalto” e que o partido voltou a ser a extrema direita que deu sustentação à ditadura brasileira entre 1964-1985. Antigo PFL, o DEM surgiu da Arena, o partido dos militares que governaram o país durante o regime autoritário.

Diante da repercussão da entrevista de Maia ao Valor, ACM Neto voltou à artilharia. Emitiu nota dizendo que o deputado tinha a intenção de “se perpetuar no cargo de presidente da Câmara”, que ele “se encastelou no poder”, que o DEM “não tem dono”, que não aderiu ao bolsonarismo e se eximiu de responsabilidade na condução da eleição da Mesa Diretora da Câmara. “A mais grave de todas as falácias de sua narrativa é exatamente a de procurar jogar no colo do Democratas uma conta que não é nossa.”

O governador goiano, Ronaldo Caiado, outra liderança do DEM, também atacou Maia. “Ele faz questão de deixar claro que está saindo do Democratas e colocando seu nome a leilão. A sua entrevista não deve ser considerada pela classe política porque é indicadora de internação hospitalar”, disse em seu Twitter.

O líder do partido na Câmara, Efraim Filho, em nota também saiu em defesa de ACM Neto. “Com o anúncio de sua saída [de Maia] deixa claro que chegou ao fim de um ciclo no partido, e esta decisão ajudará a pacificar o Democratas”.

Ex-deputado e ex-prefeito de Salvador por dois mandatos, ACM Neto tem como objetivo principal disputar o Governo da Bahia. Também tinha como meta garantir a eleição de Rodrigo Pacheco (DEM-MG) à Presidência do Senado. A soma de questões regionais com a ambição nacional, fez com que ele acabasse abandonando o grupo de Maia na Câmara. Suas últimas declarações também afastaram Mandetta, um potencial candidato à Presidência da República pelo DEM. Na última semana, à Folha de S. Paulo, o dirigente do Democratas afirmou que, na eleição de 2022, não descarta estar com quase nenhum dos potenciais presidenciáveis. Nominou Bolsonaro, João Doria (PSDB), Ciro Gomes (PDT), Luciano Huck (sem partido) e o próprio Mandetta. “Só faltou citar o Lula”, disse o ex-ministro.

Alternativas

Presidente do Cidadania, Roberto Freire admite que os diálogos para uma frente de seu partido com o DEM, PSDB e MDB entraram em modo de espera. “A partir do momento que o DEM passou a admitir estar até com o Bolsonaro, as pontes foram rompidas”, disse. Mas isso não impede uma mudança, em médio prazo. “O mesmo cavalo de pau dado pelo DEM agora pode se repetir em 22. Se encontrarmos uma candidatura competitiva, ele pode voltar a integrar nosso grupo”, disse.

Freire admite os diálogos com Mandetta e Maia, mas não sabe quando haverá uma resposta. “Já tivemos conversas com os dois. Mas o timing quem dá é o político, não o partido. Por isso, seguimos conversando”, disse.

Entre membros do PSL consultados pela reportagem, o ingresso de Maia só seria possível caso os deputados bolsonaristas ―que representam cerca de 30 dos 53 parlamentares― deixem a legenda nos próximos meses. Se não for assim, dificilmente ele se vinculará à sigla. No PSDB, o governador de São Paulo, João Doria, fez um convite público a Maia, que também recebeu elogio do presidente de honra da legenda, Fernando Henrique Cardoso. No Podemos a articulação é feita entre alguns dos deputados e senadores, mas não teve um retorno direto da cúpula partidária. Mais do que o ingresso de Maia em qualquer nova legenda, o que contará para o cenário político será o número de lideranças regionais ele conseguirá levar consigo.


Rubens Barbosa: SOS Indústria

Se a crise do setor não for enfrentada já, perda da competitividade será irreversível

Basta de diagnósticos. A crise no setor industrial exige ação imediata dos empresários e do governo para recuperar o tempo perdido e reverter a tendência de seu gradual enfraquecimento. Se essa questão não for enfrentada de imediato, a perda da competitividade da indústria se tornará irreversível.

Nos últimos seis anos, 36,6 mil fábricas fecharam as portas no Brasil, 17 por dia. A saída da Ford e da Mercedes põem em risco todo o setor automotivo. No ano passado, com a crise econômica nacional agravada pela covid-19, o setor registrou sua menor participação no produto interno bruto (PIB) desde o início da série histórica, em 1946. O Brasil deixou de figurar como uma das dez maiores economias globais.

O processo de desindustrialização precoce está avançando pela ausência de políticas públicas voltadas para seu fortalecimento. A situação está tão grave que há até quem defenda a ideia de que o governo deixe de apoiar o setor industrial e se foque nas atuais vantagens comparativas do agronegócio e da mineração. Com mais de 200 milhões de habitantes e mais de 14 milhões de desempregados, o campo não tem como oferecer as oportunidades de emprego e renda que a indústria propicia.

A reindustrialização e a modernização industrial deveriam ser prioridades nacionais, aceleradas pela implementação da atual agenda de reformas horizontais (mudança estrutural) e pelo aumento da produtividade, complementadas com uma verdadeira política industrial que induza negócios estratégicos de alto impacto econômico e social, visando à geração de empregos e renda. Nesse sentido, caberia fortalecer mecanismos de apoio à indústria como financiamento, compras governamentais e estímulos à produção e exportação de bens de média e alta tecnologia; definir como áreas prioritárias as indústrias de alto conteúdo tecnológico e inovadoras; identificar nichos de mercado para a nacionalização de produtos essenciais estratégicos na área da saúde e outros (em quatro décadas, o Brasil reduziu de 55% para 5% sua capacidade de produção de insumos farmacêuticos); identificação de áreas para criar cadeias de valor agregado na América do Sul a partir de interesses da indústria nacional; apoio com políticas públicas à internacionalização da empresa nacional.

A agenda de competitividade poderia ser levada adiante mediante ação política junto ao Executivo e ao Legislativo para aprovação da reforma tributária, o fator mais importante para aumentar a competitividade da economia e das empresas nacionais. Outras políticas incluiriam a isonomia de tratamento entre produtos importados e nacionais; aprovação da reforma do Estado, com a desburocratização e simplificação de regras e regulamentos a fim de facilitar os negócios (portal único e OEA); fortalecimento de uma política de incentivos à inovação com estímulos a P&D para a iniciativa privada (universidades e centros de pesquisa) e os órgãos governamentais existentes em áreas estratégicas (mas não limitadas), como indústria 4.0, inteligência artificial e biotecnologia; incentivos à formação e capacitação de profissionais e dirigentes empresariais com a concessão de bolsas de estudo e estágios, no País e no exterior; licitação da tecnologia 5G ou autorização de redes particulares para acelerar o processo de modernização da indústria (4.0–inteligência artificial, automação avançada); alinhamento de políticas internas, principalmente a ambiental, com a política de comércio exterior para evitar medidas restritivas contra produtos brasileiros; medir os impactos sociais após a revisão completa dos tributos e outros projetos estratégicos no nível federal (sustentabilidade).

Com a pandemia surgiu a política de “autonomia estratégica”, que busca substituir importação em áreas limitadas e específicas, como saúde e alimentação, que interessam à segurança nacional. Nessas áreas, a vulnerabilidade dos países pela ausência de produção interna teria de ser superada. A autonomia estratégica, combinada com os avanços do 5G e da inteligência artificial, poderia ser nova referência para a definição de políticas para dar início a um ciclo de reindustrialização que ajudará a impulsionar o crescimento econômico e o emprego.

O Brasil tem ainda o maior parque industrial no Hemisfério Sul. Nos últimos 40 anos a participação relativa da indústria no PIB nacional vem caindo, passou de cerca de 26% no final dos anos 80 para pouco acima de 11% no ano passado.

Executivo e Legislativo estão devendo a aprovação das reformas em 2021. A questão, contudo, é de médio e longo prazos. Por isso, ao lado da política externa, do meio ambiente, da defesa nacional, a reindustrialização deveria necessariamente ser incluída no debate da eleição presidencial. A recuperação do setor industrial deveria ser uma das bandeiras do novo governo a partir de 2023.

O importante é olhar para a frente e defender políticas e medidas que possam, na década de 2020-2030, criar condições para a reindustrialização do País. E necessária uma visão estratégica de médio prazo. Para isso será necessário que a indústria se ajuste às transformações por que passa o mundo, se concentre em inovação e novas tecnologias e, sobretudo, não fique esperando as benesses do governo.

PRESIDENTE DO IRICE


Pedro Fernando Nery: Como a pandemia afetará os nascimentos no País?

Brasil pode perder não só os brasileiros que faleceram, mas ainda os que deixaram de nascer

Foram quase 40 mil nascimentos a menos registrados neste janeiro na comparação com o janeiro anterior. Os dados são do Portal da Transparência do Registro Civil, e representariam uma queda de 15% no número de nascimentos no Brasil. Possivelmente, refletem o endurecimento da pandemia no 1.º semestre de 2020. O título da coluna pode ser distópico, mas há algo a observar nos próximos meses: como a pandemia afetará os nascimentos no País?

A queda teria ocorrido em 25 Estados e no Distrito Federal. Essa análise inicial e apressada poderia estar superestimando o impacto da pandemia nos nascimentos (por exemplo se houver uma defasagem grande entre os nascimentos e os registros no atual contexto). Porém, os mesmos dados indicam mais registros de óbitos em janeiro, compatível com a covid-19 – um alta também de 15%. 

A redução de 15% no número de nascimentos não está distante da registrada inicialmente em dezembro na Itália (22%) – o primeiro país a sentir duramente os efeitos do vírus depois da China. Em um exercício simplório, se essa redução se mantivesse nos próximos meses, refletindo o avanço da primeira onda da pandemia em 2020, teríamos um primeiro semestre de 2021 com 200 mil bebês a menos.

O medo do contágio nos hospitais, a insegurança sobre os riscos do vírus a gestantes e recém-nascidos e a incerteza quanto a salários e empregos são explicações possíveis para o adiamento de gestações planejadas. Não é possível ainda afirmar para nenhum país qual seria a magnitude do fenômeno, e outras dúvidas se colocam.

O que em inglês tem se chamado de baby bust, será seguido posteriormente por um baby boom, um grande número de nascimentos – como ocorreu em vários países após a Segunda Guerra Mundial? Haverá um represamento nos nascimentos ou planos das famílias terão sido afetados para sempre? Os adiamentos estão somente à espera da vacina ou também à espera dos empregos? 

A questão econômica, e não apenas a sanitária, é especialmente importante diante de uma pandemia que é pior para as mulheres. As que já têm filhos tiveram o desafio das escolas fechadas. Muitas se ocupavam no setor de serviços, particularmente afetado pelo isolamento social. A geração de emprego formal foi até positiva para homens na pandemia, mas negativa para as mulheres.

Demógrafos acompanham atentamente a evolução da taxa de fertilidade, que no Brasil e em muitos países já vinha em forte queda. Tem, assim, implicações futuras sobre a educação (mais recursos por aluno), a violência (menor número de jovens potenciais criminosos), a previdência (menos contribuintes), a economia (menos trabalhadores), a defesa (menos recrutas).

O paralelo inicial na demografia para analisar essa questão na atual pandemia seria a gripe espanhola, a partir de 1918. Ali observou-se a queda na fertilidade e um subsequente baby boom. A situação vai se repetir? Hoje é sabido que muitas mulheres têm filhos mais tarde – o adiamento para idades com fertilidade menor poderia levar parte delas a acabar não tendo filhos ou a ter famílias menores.

Em estudo publicado em dezembro, pesquisadores de BangladeshEstados Unidos e Reino Unido sugerem que o boom depois da gripe espanhola pode não se repetir. Eles avaliam que a alta mortalidade daquela pandemia fez com que muitas mulheres a tenham experimentado de perto – na família, na vizinhança – o que as estimulariam a ter mais filhos (Ullah et al., 2020). Os pesquisadores ressaltam que em epidemias e desastres naturais mais recentes os efeitos foram menores e variaram em cada episódio (como as epidemias de SARS em Hong Kongzika no do Brasil, e ebola na África Ocidental).

Raquel Coutinho e outros pesquisadores das Universidades Federais de Minas Gerais (UFMG) e do Rio Grande do Norte (UFRN) apontam outra razão para que o pós-covid não seja equivalente à da pandemia de 1918. Para eles, o contexto atual “pode ter implicações distintas daquelas observadas em outros episódios registrados na história de alta mortalidade, sobretudo no que se refere ao possível aumento do número de nascimentos após o período de crise, já que os valores correntes com relação às normas sociais do tamanho ideal de família são bem diferentes do contexto da gripe espanhola” (Coutinho et al., 2020).

À revista Time, Dowell Myers – da University of Southern California – apontou que as taxas de natalidade seriam um “barômetro do desespero” no caso dos adultos jovens, pois refletiria a falta de otimismo com o futuro. Elas podem ser mais uma medida do custo humano da pandemia que castiga o nosso País. Os brasileiros que perdemos podem ser não só os que faleceram, mas também os que deixaram de nascer.

*DOUTOR EM ECONOMIA 


Carlos Andreazza: Jaca não vira cereja

Arthur Lira venceria mesmo sem o patrocínio de Bolsonaro. Talvez fosse mais difícil, com segundo turno; mas venceria. Venceu porque não teve adversário. Ou melhor: tinha a vitória encaixada quando finalmente o quiseram enfrentar. E, quando Baleia Rossi tentou, foi Mario Andreazza contra Paulo Maluf na convenção do PDS em 1984: crente numa campanha terceirizada e de gabinete, dedicada a pedir votos de parlamentares a governadores, prefeitos e líderes partidários; isso enquanto o adversário mercadejava no mano a mano, pé na estrada, falando aos iguais com a linguagem que cativa os que comerciam poder.

Lira tinha já costurados pelo menos 200 votos quando Rodrigo Maia ainda contava com o golpe de Alcolumbre pela reeleição; o que significou frustrar expectativas de aliados que esperavam a vez. Não há deputado fiel a ponto de aceitar um presidente da Câmara permanente; o que equivaleria a aceitar o próprio engessamento.

Maia — um bom presidente — confundiu seu tamanho com o do cargo. Sua dimensão individual parecia maior não porque tivesse crescido muito — mas porque era muito baixa a estatura média dos pares. Desqualificados, os que compõem o pior Parlamento da história, que, no entanto, têm o mesmo peso de voto.

Maia tomava café frio desde que o Supremo derrubara o movimento golpista contra a Constituição. Errou demais e em pouco tempo. Apostou —dizendo não querer — em que o STF lhe daria o direito casuístico de se reeleger. Então estimulou ao menos cinco candidaturas inviáveis. Esperava que um impasse entre esses aguinaldos resultasse na ascensão de seu nome como solução pacificadora. Quando o golpe fracassou, aquele arranjo fantasioso — o dos vários bivares insuflados a uma sucessão sob seu controle — impôs-lhe a anarquia. Exatamente o terreno em que melhor prospera o bolsonarismo, o do caos. Maia — cuja gestão se baseara na confiança dos pares — havia perdido. E talvez seja o caso de avaliar se não seria derrotado mesmo sendo ele próprio o candidato.

Lira fez a leitura correta. Propôs nova partilha de poder — perspectiva de novas lideranças. E levou. Agora é Lira. E Lira é Lira, é Lira, é Lira. Como Bolsonaro é Bolsonaro. Se ainda não tivermos aprendido: jaca não vira cereja. Com poder, mais jaca será. Será Lira na presidência da Câmara. Jaqueira. Para Bolsonaro, um investimento na blindagem contra impeachment e nas condições para o exercício fiscal do populismo financiador daquilo em que somente pensa: a reeleição.

Atenção. Não é que Bolsonaro de súbito se tenha convertido ao Centrão — ele comeu naquelas bordas por três décadas. É produto daquela engenharia com fim em si mesmo. Nem que o Centrão de repente vá transformado em bolsonarista — a lógica de funcionamento do varejo legislativo sempre encontrou campo de expansão favorável associada ao motor autocrático. Havendo bilhões, um alimenta o outro.

Será, pois, Lira no comando da Câmara: fiando o jorro de dinheiros para enfrentar a pandemia que Bolsonaro — criador de dificuldades para colher oportunidades eleitorais — faz prolongar. Grandes reformas? Antes seria necessário o governo apresentá-las. E depois — em vez de jogar aqueles fatias requentadas de tributária e administrativa no Parlamento — trabalhar por elas. Não creio. Creio na nova CPMF, porque alguém terá de pagar a conta.

A ideia otimista de que o governo doravante não terá mais desculpas para não aprovar as reformas é ingênua. Tem como pressuposto a mentira de que Maia as impedia. A verdade é que Bolsonaro e seus sócios jamais diminuirão a fartura da teta em que se alimentam; no caso do presidente, há 30 anos, para a edificação de bem-sucedida empresa familiar. Privatizar? Isso corresponderia a diminuir o volume de leite condensado com que chupadores como Bolsonaro e Lira incham a pança.

Como escrevo aqui há meses: o auxílio emergencial voltará — e no improviso. Tem sido assim. O governo nada faz, a miséria se aguça, o Congresso reage — pressionado pela inação calculada de Bolsonaro —, e o presidente ganha um cartaz para chamar de seu. O Parlamento se mexe; o Planalto colhe os louros. Isso é perfeitamente alinhado aos interesses do Centrão; um parceiro que não se incomoda — desde que mamando — em ancorar um programa de reeleição fiscalmente irresponsável que, uma vez alcançado, tende a se desdobrar na volta dos avanços golpistas.

Para além de garantir proteção e guarida a seu populismo, Bolsonaro — o maior empenhador de emendas parlamentares da história — patrocinou a ascensão de Lira de modo a interditar, plantando desconfiança, qualquer movimento desde o centro para desafiá-lo em 2022. Por exemplo: a eleição na Câmara indica — com o abraço provinciano de ACM Neto — ser mais fácil o DEM compor com Bolsonaro do que numa chapa de oposição. O presidente engajou o que o Tesouro não tem para desarticular o pouco que havia de centro, petrificar o tabuleiro e ter como adversária — numa nova peleja entre rejeições — a esquerda figurada em Lula ou em seu cavalo da vez.

Uma eleição que reproduza “ele não” para cada lado. É o paraíso para Bolsonaro, convencido de que eleitores que lhe deram o voto em 2018 — mesmo os que ora rejeitam seu governo — repetirão a escolha se ante a possibilidade de o PT voltar ao poder.


Míriam Leitão: Crise de produção e preços em alta

Os preços estão subindo fortemente dentro da indústria e há uma crise de suprimento. Altas da ordem de 60% no aço e de 63% nas resinas para plásticos. Embalagens continuam em falta. E os chips. Resultado de uma forte desorganização produtiva. O IPA industrial subiu 30% em 12 meses, e só em janeiro chegou a 4,48%. Para os consumidores também as contas estão chegando, os planos de saúde, combustíveis e material de limpeza sobem. Os preços dos alimentos vão cair porque a safra foi boa, mas menos do que se esperava. O IPCA mensal vai ficar em níveis baixos, mas o índice anual vai subir.

Dentro da indústria, o que está acontecendo é definido pelo economista José Roberto Mendonça de Barros, da MB Associados, como “pancada de custos e falha no suprimento”.

— Quando a economia parou, aqui e no mundo, todas as grandes aciarias desligaram fornos. Foram cinco desligados. Para religar, leva 60 a 90 dias, porque se perde os refratários internos. Isso gerou um atraso que não se tirou até hoje. Quando a demanda voltou em junho não tinha como entregar. Na metalurgia, muitas plantas anteciparam a manutenção preventiva. Nas embalagens, falta caixa de papelão, assim como latas de cervejas, porque no Brasil 70% do papelão é produzido por matéria-prima dos recicladores, as carrocinhas das grandes cidades — diz José Roberto Mendonça de Barros.

Os produtores de vidro durante a crise tiveram um alto custo. Para não parar os fornos eles produziam, quebravam os vidros e retomavam a produção. Agora tem demanda, mas a barrilha é importada, o dólar subiu, e o gás teve alta de preços, explicou uma fonte do setor.

— Falta frasco de vidro, garrafas, vidro para conservas. Garrafas para cerveja, se houver aumento de demanda, não têm para entregar —diz Mendonça de Barros.

Quanto disso vai ser repassado para o consumidor? A demanda vai cair neste primeiro semestre e deve segurar parte desse repasse. O IPCA de janeiro vai ser divulgado hoje e não será alto. Deve ficar entre 0,30% e 0,35%, mas ao longo do primeiro semestre o índice baterá em 6,5% em 12 meses, explica o professor Luiz Roberto Cunha. É que no ano passado os índices foram baixos ou negativos.

— A alimentação está desacelerando gradualmente, mas tem pressão de diesel, o vestuário está em alta. Em fevereiro, deve pesar a educação e tem uma certa confusão na energia elétrica que agora está sem a bandeira vermelha, mas que durante o ano vai subir — diz Luiz Roberto Cunha, da PUC-Rio.

Em 2020, o consumo de energia caiu. Por mais estranho que pareça, consumidor vai pagar mais por isso. A distribuidora teve prejuízo com a queda da demanda, e agora a conta vai para o consumidor. As empresas explicam que, para dar garantia de fornecimento, elas compram antecipadamente a energia. Se a demanda cai, ela continua pagando por essa energia. Em resumo: o consumidor sempre paga a conta.

A economia está vivendo um período bem confuso. Recessão com choque de custos, falta de produto e dificuldade de importar.

— Quando a demanda voltou, o dólar estava em R$ 5,50 e faltava navio. No mundo inteiro, houve aumento de pedidos e faltou navio. O preço do frete subiu. O preço de transportar por contêiner multiplicou-se por quatro — diz Mendonça de Barros.

Para o consumidor, o começo do ano sempre tem vários gastos extras, mas desta vez a pressão vem em momento de queda de renda e de elevação da incerteza. Além da energia, que pode ter reajustes de dois dígitos durante o ano, os planos de saúde estão cobrando a conta e a compensação por terem reajustado menos no ano passado.

Tanto para o consumidor quanto para o produtor industrial a situação está complicada. A desorganização produtiva fez com que em muitos casos o produto esteja pronto, esperando apenas uma peça. É por isso que há 250 mil carros vendidos e não entregues e 150 mil motos. E há coisas surpreendentes.

— Falta chip no mundo inteiro. Aqui e em outros países. Todo mundo trabalhando em casa houve uma demanda extra por equipamentos de informática. E como os chips para informática são mais sofisticados do que os que vão nos carros, os fabricantes mudaram a produção e agora falta produto — diz José Roberto.

Mendonça de Barros diz que “está sempre acontecendo coisa nova ruim no Brasil”. Desta vez, contudo, há um grau exagerado de confusão.


Andrea Jubé: Em política, fundo do poço tem mola

Grupo de Renan venceu Alcolumbre em palco secundário

As velhas raposas do Congresso ensinam que se pode cobrar quase tudo de um político no cemitério: que conforte a viúva, segure uma das alças do caixão, encomende a coroa de flores. Só não se pode exigir desse político que pule no buraco e se aconchegue do lado do morto.

Político tem instinto de sobrevivência como os animais. Um decano do Congresso ilustra, por exemplo, um erro de articulação de amador cometido pelo ex-presidente da Câmara Rodrigo Maia (DEM-RJ), ao tentar atrair deputados para o bloco de Baleia Rossi (MDB-SP) no papel de franco atirador contra o presidente Jair Bolsonaro.

Este político veterano lembra que os deputados no segundo biênio do mandato estão focados na reeleição. Por isso, não querem confronto com o governo - qualquer governo.

Ao contrário, procuram afinar a relação com o Executivo para assegurar emendas para sua base eleitoral, fidelizar prefeitos, e assim, pavimentar o caminho para o sucesso nas urnas.

Convencer um parlamentar a brigar com o governo a dois anos de sua reeleição é o mesmo que convidá-lo para saltar no buraco e se aconchegar ao morto dentro do caixão. Na vida real, discurso de independência na relação com o Executivo é conversa para boi dormir.

Um dos políticos mais experientes da cena política, o ex-senador Heráclito Fortes, do DEM do Piauí - um quadro que conviveu com figuras como Ulysses Guimarães e Eduardo Campos - costuma lembrar que, em política, fundo de poço - ou de buraco - tem mola.

Seu partido agonizou na era Lula, e emergiu como uma das principais forças políticas do último pleito. Independente do embate público entre Rodrigo Maia e ACM Neto, o DEM voltou com protagonismo ao palco político.

A metáfora do poço com mola no fundo vale para o MDB de Renan Calheiros (AL) no Senado. O observador distraído dirá que a bancada perdeu pela segunda vez a luta contra Davi Alcolumbre (DEM-AP) pela presidência da Casa. Mas um observador atento alertará que Renan ganhou a revanche contra Alcolumbre no fundo do palco.

O grupo de Renan derrotou um importante aliado de Alcolumbre na eleição para a primeira vice-presidência, o segundo cargo na hierarquia do Senado.

Num segundo “round”, o grupo liderado por Renan mira mais dois cargos estratégicos, com poder de fogo para elevar a pressão contra o governo: a presidência da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), cobiçada por Alcolumbre; e a presidência da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Saúde.

Nas articulações pelo apoio à candidatura de Rodrigo Pacheco (DEM-MG), um astuto Alcolumbre prometeu a primeira vice-presidência ao PSD e também ao MDB. Os emedebistas dobraram a aposta e levaram a disputa para o voto. Ao fim, Veneziano do Rêgo (MDB-PB) derrotou o aliado de Alcolumbre, o senador Lucas Barreto (PSD-AP), por 40 votos contra 33.

A vitória de Veneziano simboliza a revanche do MDB contra Alcolumbre, ainda que num palco menor, porque o senador da Paraíba representa o grupo autêntico de Renan e José Sarney. Apesar da passagem pelo PSB, Veneziano é um emedebista-raiz, irmão do ex-senador Vital do Rêgo, hoje ministro do Tribunal de Contas da União (TCU), e aliado de berço de Renan. Vital foi alçado ao TCU pelo voto de 63 senadores em 2014, e mantém até hoje vínculos com a Casa. Vital encabeçou ao lado de Renan a articulação do jantar de reconciliação entre o ministro da Economia, Paulo Guedes, e o então presidente Rodrigo Maia no começou de outubro.

Nos próximos “rounds”, o grupo de Renan quer nocautear Alcolumbre na disputa pela presidência da CCJ. E senadores ouvidos pela coluna não descartam que Renan assuma um cargo na CPI da Saúde: a presidência ou a relatoria.

Outro candidato a cargo de direção da CPI é o líder do MDB, Eduardo Braga, senador do Amazonas, e aliado de Renan, que tem demonstrado profunda indignação com o descontrole da pandemia em sua base eleitoral.

Com o MDB com fôlego renovado, Rodrigo Pacheco terá de demonstrar a mesma destreza que utilizou para atrair o PT para sua candidatura.

Completando uma semana no cargo, vai sofrer dupla pressão nos próximos dias. A pressão de 31 senadores - inclusive Renan e Braga - pela leitura do requerimento de criação da CPI da Saúde, que abre caminho para a instalação do colegiado.

Autor do requerimento da CPI da Saúde, o líder da Rede, senador Randolfe Rodrigues (AP), receia que Pacheco tentará adiar a leitura do requerimento até a realização da audiência para ouvir o ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, na esperança de que a temperatura baixe até lá.

O governo ainda pode agir para retirar assinaturas da CPI até meia-noite do dia da leitura, mas Randolfe não acredita em recuo dos senadores que apoiaram a investigação dos erros e responsabilidades das autoridades no enfrentamento da pandemia, em especial no Amazonas. “Quem retirar a assinatura vai pagar um preço além do comum junto à sociedade”, diz Randolfe.

Em outro foco de pressão sobre Pacheco, Bolsonaro tem de decidir até o fim do mês sobre o pedido da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) de veto ao artigo que fixou prazo de cinco dias para que a agência se manifeste sobre uso emergencial das vacinas, e possa chancelá-las, caso tenham sido autorizadas por uma das nove autoridades sanitárias estrangeiras relacionadas na lei.

Se o veto se consumar, o Congresso já está armado para derrubá-lo, em sessão que será presidida por Pacheco.

Se há controvérsia em torno da eleição da deputada Bia Kicis (PSL-DF) para a presidência da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), está praticamente certa a nomeação do deputado Darci de Matos (PSD-SC) para relatar a PEC da reforma administrativa no colegiado. O presidente Arthur Lira (PP-AL) já elencou a proposta entre os itens prioritários da agenda econômica. Mudando regras apenas para os futuros servidores, lideranças da Casa acreditam que a matéria pode avançar.


Ricardo Noblat: Bolsonaro, sem compromisso com o que diz e faz

A arte de enganar

De tanto ir e vir, dizer algo hoje e amanhã o seu oposto, o presidente Jair Bolsonaro criou as condições para escapar impune aos efeitos do seu comportamento errático. Salvo um bando cada vez menor de jornalistas incômodos, ninguém se espanta mais com o que ele diz ou faz. O país limita-se a observar entediado.

Normalizou-se o absurdo. Em novembro último, descobriu-se que um total de 7 milhões de testes da Covid-19 mofava em armazéns de Guarulhos, na Grande São Paulo, e que seu prazo de validade expiraria no final de dezembro. O que fez o Ministério da Saúde? Prorrogou o prazo para o final de abril próximo. Simples.

Agora, incapaz de aplicá-los em sua totalidade, decidiu doar parte dos testes ao Haiti. Um gesto humanitário de um governo que pouco se importa com a preservação de vidas, como cansou de demonstrar ao longo da pandemia. Dos 7 milhões de testes, os armazéns ainda acumulam 5 milhões. Melhor doá-los, pois.

Quem mais do que Bolsonaro pregou contra a vacinação e desqualificou as vacinas pondo em dúvida a sua eficácia? Quantos milhões de brasileiras não tomaram horror à vacina por acreditarem na palavra do presidente da República? Por que se vacinarem se Bolsonaro já disse e repetiu que não se vacinará?

Mas, em entrevista à Rede Bandeirantes de TV, Bolsonaro revelou que está sendo realizada uma votação entre seus irmãos para decidirem se vacinam ou não a mãe, Olinda Bonturi Bolsonaro, de 93 anos. E que ele votou a favor “mesmo com uma vacina que não está comprovada cientificamente”.

Se não há comprovação científica por que ele como presidente da República não se opôs à liberação de vacinas pelo Ministério da Saúde? E por que mesmo admitindo que drogas como a cloroquina e outras carecem de comprovação científica, no entanto as recomendou para tratamento precoce da doença?

No final de janeiro passado, Bolsonaro descartou a volta do pagamento do auxílio emergencial aos brasileiros mais pobres atingidos pela pandemia “porque isso quebraria o país”. Na entrevista à Band, afirmou que a volta do pagamento do benefício “é para ontem”, embora possa trazer “problema” para a economia.

Nada demais. Está em linha com ele mesmo. Não jurou que se fosse eleito não governaria com o Centrão e nem lotearia cargos entre os partidos? Rendeu-se ao Centrão para ganhar o comando da Câmara e do Senado e tentar se reeleger. Prometeu combater a corrupção e acabou com a Lava Jato.

Pelos filhos encrencados com a Justiça, fará qualquer coisa. José Vicente Santini, amigo dos garotos, foi demitido por Bolsonaro em 28 de janeiro de 2020 de um cargo na Casa Civil por ter viajado sem necessidade para o exterior em um avião da FAB. Foi para dar exemplo de que o seu era e seria um governo austero.

– Inadmissível o que aconteceu, tá? Já está destituído da função. Decisão minha. O que ele fez não é ilegal. Mas é completamente imoral – decretou Bolsonaro à época.

No dia seguinte, a nomeação de Santini para outro cargo na Casa Civil foi publicada em edição extra do Diário Oficial. Como pegou mal para ele, Bolsonaro mandou anular a nomeação. Finalmente, ontem, Bolsonaro nomeou Santini para secretário-executivo da Secretaria-Geral da Presidência da República. Que tal?

ACM Neto recusa paternidade do novo ministro da Cidadania

Para não dar razão a Rodrigo Maia

Estava tudo acertado entre o presidente Jair Bolsonaro e o presidente do DEM, ACM Neto. Uma vez que os candidatos de Bolsonaro às presidências da Câmara e do Senado fossem eleitos, o ex-chefe de gabinete de ACM Neto, João Roma, seria nomeado ministro da Cidadania no lugar de Onyx Lorenzoni.

Roma é baiano e filiado ao partido Republicanos, que apoiou ACM Neto duas vezes para prefeito de Salvador, e o apoiará ano que vem para o governo da Bahia. Ele e ACM Neto são amigos de longa data. Roma filiou-se ao Republicanos a conselho do ex-prefeito, que costuma distribuir amigos por vários partidos.

Ocorre que a eleição de Arthur Lira (PP-AL) para presidente da Câmara provocou o rompimento entre o deputado Rodrigo Maia (DEM-RJ) e ACM Neto. Maia acusa ACM Neto de ter entregado em uma bandeja sua cabeça a Bolsonaro, comprometendo a posição de independência do partido em relação ao governo.

O Republicanos quer Roma como ministro. Roma quer ser ministro. Bolsonaro aceitou nomeá-lo. Agora, é ACM Neto que não quer para não dar razão a Maia.


Cristina Serra: A praga do jornalismo lava-jatista

A operação corrompeu e degradou amplos setores do jornalismo

Quando começou, em 2014, a Lava Jato gerou justificadas expectativas de combate à corrupção. Revelou-se, no entanto, um projeto de poder e desmoralizou-se em meio aos abusos e ilegalidades cometidas por Moro, Dallagnol e a força-tarefa.

Além de afrontar o ordenamento jurídico e ajudar a corroer a democracia, a Lava Jato também corrompeu e degradou amplos setores do jornalismo; em alguns casos, com a ajuda dos próprios jornalistas, como a Vaza Jato já havia mostrado e agora é confirmado nas conversas liberadas pelo ministro do STF, Ricardo Lewandowski.

Relações promíscuas entre imprensa e poder não são novidade. No caso da operação, contudo, as conversas mostram que repórteres na linha de frente da apuração engajaram-se no esquema lava-jatista e atuaram como porta-vozes da força-tarefa, acumpliciados com o espetáculo policialesco-midiático.

Jay Rosen, professor de jornalismo da Universidade de Nova York, cunhou o termo "jornalismo de acesso" para definir como jornalistas sacrificam sua independência e abandonam o senso crítico em troca do acesso a fontes, que passam a ser tratadas com simpatia e benevolência. A Lava Jato é um caso extremo de "jornalismo de acesso", no qual repórteres aceitaram muitas convicções sem as provas correspondentes.

Colaboraram com o mecanismo de delações e vazamentos seletivos, renunciaram à obrigação ética de fazer suas próprias investigações e fecharam os olhos para os métodos da força-tarefa. Nas empresas, tiveram retaguarda. O jornalismo corporativo participou abertamente do projeto lava-jatista.

Em março de 2016, por exemplo, Moro vazou o conteúdo do grampo que captou ilegalmente conversas entre a então presidente Dilma Rousseff e o ex-presidente Lula. O grampo, que sabidamente atendia a interesses político-partidários, foi reproduzido por muitos veículos sem a necessária crítica quanto a isso.

A relação pervertida entre poder e imprensa fere a dignidade da profissão. É uma praga a ser sempre evitada e combatida.


Eugênio Bucci: Fora, Bolsonaro

Presidente que lidera campanhas contra a imprensa é um atentado ambulante à Constituição

O xingamento “Globolixo”, com o qual as falanges bolosonáricas agridem reiteradamente a Rede Globo, tem duas origens malignas: uma superficial, de ocasião, e outra histórica, profunda.

Em sua origem superficial, “Globolixo” resulta de um trocadilho que faz troça da marca publicitária “Globeleza”, que a própria empresa adota em suas ações de marketing. À primeira vista, parece apenas um tipo de molecagem inconsequente. Nesse plano, temos a sensação de que o xingamento, um sinal de repúdio à programação e à linha editorial da maior rede de televisão do Brasil, poderia ser empregado por adolescentes de qualquer coloração ideológica, de direita ou de esquerda, indistintamente.

Mas não é assim. O palavrão guarda mais identidade com as milícias virtuais da direita antidemocrática, esse pessoal que, à moda do chefe, elogia torturadores, prega o fechamento do Supremo Tribunal e diz que o uso de máscara é coisa de maricas. Mais que uma tirada ignara, “Globolixo” é uma peça de retórica fascista. Mais do que ofender uma organização de mídia em particular, seu propósito é desacreditar toda a imprensa e todo o sistema de que as sociedades democráticas dispõem para separar o que é verdade factual do que é mentira. A palavra “Globolixo” concentra uma campanha insuflada diretamente pelo Planalto contra a imprensa livre.

Isso fica mais claro quando vamos atrás das origens históricas do termo espúrio. Essas origens remontam a palavra alemã Lügenpresse, algo como “imprensa mentirosa”. O termo frequentou o vocabulário de variadas correntes políticas a partir do século 19. No mais das vezes, servia a forças conservadoras ou ultraconservadoras para atacar órgãos de imprensa mais ou menos liberais, anticlericais e críticos, embora tenha atendido também a facções de esquerda que tentavam denunciar hipocrisias nos jornais burgueses. Entre tantas invocações, vindas de atores tão diversos, foi com os nazistas que a palavra Lügenpresse marcou lugar na história no século 20. Por meio dela os seguidores de Adolf Hitler produziram um estigma contra os judeus que estariam por trás das redações jornalísticas e uma ponta de lança para a propaganda massiva que mobilizaram para desacreditar todos os métodos independentes de verificação dos fatos.

Por que os nazistas rechaçavam o jornalismo? Muito simples. Para eles, só havia verdade nos enunciados do partido – tudo o que não fosse a palavra do partido era mentira potencial ou consumada. Um fato só era fato quando declarado fato pelo partido. Um fato não reconhecido pelo partido não era fato. Tudo muito chapado, muito estreito, bem ao gosto das massas que têm sede de tirania (massas que estão por aqui até hoje).

Em seus diários, Josef Goebbels, o ministro da propaganda do 3.º Reich, afirmou que gostaria de transformar o nazismo na religião do povo. A suástica funcionava, na imaginação dele, como a essência primordial, um sopro inaugural ou, ainda, o DNA insubstituível de todo discurso verdadeiro. Segundo essa dogmática, qualquer forma de expressão ou de representação que pretendesse conter ou indicar alguma verdade teria de carregar em seu código interno a inscrição da suástica. Dizendo Lügenpresse, os nazistas generalizavam seu juízo sobre a atividade jornalística – que seria por inteiro, e em absoluto, uma atividade de produção de falsidades – e rejeitavam de antemão a credibilidade de qualquer voz que não fosse a do próprio Führer.

Nos nossos dias, os fascistinhas de Facebook que repetem o xingamento “Globolixo” ecoam a campanha nazista baseada na palavra infamante Lügenpresse. Eles tentam minar a confiança do público na imprensa para matar o jornalismo de inanição (uma redação que não recebe o alimento da confiança do público morre à míngua). O pacto autoritário e antidemocrático que chegou ao poder com Bolsonaro sabe perfeitamente que para não desabar depende de eliminar a função social de verificação dos fatos, encarnada na imprensa independente – essa instituição social que está nos diários, como este aqui, nos telejornais de respeito, como o Jornal Nacional, e numa série de pequenas redações profissionais destemidas que investigam os acontecimentos com método e honestidade intelectual. O projeto de poder que aí está tem consciência de que só sobreviverá se matar o espírito livre da imprensa. Coerentemente, encoraja seus seguidores gritar “Globolixo”.

Em recente levantamento da entidade Repórteres Sem Fronteiras, constatou-se que 80% dos ataques contra a imprensa nas redes sociais em 2020 vieram diretamente do presidente da República ou de um de seus filhos. Em outra pesquisa, a Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj) registrou um aumento do número de agressões ao jornalismo no mesmo ano e provou que o campeão das aleivosias é Jair Bolsonaro.

Um presidente liderando campanhas anti-imprensa é um atentado ambulante à Constituição. Os jornalistas brasileiros não se afastariam do seu dever de objetividade e independência se exigissem, em bloco, a destituição de Jair Bolsonaro.

*Jornalista, é professor da ECA-USP


Ruy Castro: Os brutos também amam o mimimi

Genocídio, feminicídio, homicídio e outros cídios, tudo bem. Suicídio não

A palavra mimimi ainda não está nos dicionários. Pelo menos não nos aurélios e houaisses, mas a culpa pode ser das minhas edições, tão antigas que ainda impressas em papel. Mimimi é um desafio à morfologia, ciência que, em linguística, significa o estudo da estrutura e da formação das palavras. De onde veio mimimi? Desconhece-se uma raiz que a justifique. Pode ter vindo de mi, a 3ª nota da escala musical, donde mi-mi-mi seria uma sequência de mis. Mas não deve ser o caso —é raro alguém sair solfejando em meio aos selvagens bate-bocas em que hoje é usada a palavra mimimi.

Foi com ela que, de maneira avassaladora nos últimos tempos, bandeiras como o combate ao racismo, ao feminicídio, à homofobia, ao genocídio, às armas que levam ao homicídio e a outros cídios passaram a ser classificadas por certos grupos. Mimimi é sinônimo de chororô, vitimismo maricas, coisa de fracos, choro de perdedor. Tornou-se não apenas uma forma de negar aos humilhados e ofendidos o direito de se defenderem como de ridicularizá-los, reduzindo seus argumentos a uma palavra cômica.

Mas, quando se pensava que o mimimi não teria lugar no universo da macheza e do triunfalismo, eis que a menção a um inesperado cídio —o suicídio— acusa uma brecha nessa carapaça de invencíveis e inexpugnáveis.

Um colunista sugeriu candidamente a Jair Bolsonaro que, para o bem do Brasil, se matasse. Mera ironia, sabendo-se que é o que Bolsonaro sugere todo dia ao povo brasileiro, ao induzi-lo a contrair o coronavírus desprezando a máscara, o álcool gel, o distanciamento, a vacina. É claro que, sendo Bolsonaro um macho full-time, ex-soldado, ex-atleta e ex-humano, a dita sugestão nem o abalou. Mas abalou seus apoiadores. "É um crime!", gritaram. "Uma covardia!". "Não se induz um homem ao suicídio!". "E se ele aceitar a sugestão??".

Surpresa! Os brutos também amam o mimimi.