impostos

Quem são os brasileiros com offshores reveladas pelos Pandora Papers

Investigação jornalística identificou 1.897 brasileiros nos Pandora Papers

DW Brasil

Cerca de 2 mil brasileiros foram identificados como sócios de empresas abertas em paraísos fiscais, conhecidas como offshores, que tiveram documentos vazados para o Consórcio Internacional de Jornalistas Investigativos (ICIJ, na sigla em inglês) e analisados em parceria com veículos de comunicação, nos Pandora Papers.

Entre esses nomes, estão figuras relevantes da gestão da economia brasileira, como o ministro da Fazenda, Paulo Guedes, e o presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, e empresários bolsonaristas sob investigação da CPI da Pandemia e do Supremo Tribunal Federal sobre o financiamento de redes de disseminação de notícias falsas, como Luciano Hang e Otávio Fakhoury.

Também aparecem na lista os donos da operadora de saúde Prevent Senior, no alvo da CPI sob acusações de incentivo à prescrição para pacientes de covid-19 de medicamentos sem eficácia contra a doença e de ocultação de mortos pelo coronavírus em atestados de óbito.

Outros empresários na lista são Flávio Rocha, dono da Riachuelo e apoiador de Bolsonaro, e Rubens Menin, que controla a rede CNN Brasil, além da construtora MRV e do banco Inter.

No Brasil, a investigação dos Pandora Papers foi realizadas pelos portais Poder360 e Metrópoles, pela revista Piauí e pela Agência Pública. No total, foram identificados 1.897 brasileiros como sócios de offshores. Entre eles, estão 66 dos maiores devedores brasileiros de impostos, cujas dívidas somam R$ 16,6 bilhões.

Ter empresas offshores é permitido pela legislação brasileira, desde que elas sejam declaradas à Receita Federal e, caso o patrimônio delas supere 1 milhão de dólares, também ao Banco Central. Em geral, as empresas são registradas em paraísos fiscais como as Ilhas Virgens Britânicas e o Panamá por escritórios especializados em oferecer esse serviço, e não precisam recolher impostos a esses países nem são alvo de auditoria contábil. As contas dessas empresas, porém, ficam em bancos de nações mais estáveis, como na Suíça.

A abertura de empresas em paraísos fiscais por brasileiros pode ser uma forma de reduzir o pagamento de impostos relativos a investimentos no exterior ou para proteger ativos contra riscos políticos, penhora judicial e confiscos.


Ministro da Economia, Paulo Guedes. Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil
Coletiva do ministro da Economia, Paulo Guedes. Foto: Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil
Ministro da Economia, Paulo Guedes. Foto: Marcos Corrêa/PR
O Ministro da Economia, Paulo Guedes. Foto: Fábio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil
Paulo Guedes durante cerimônia do Novo FUNDEB. Foto: Isac Nóbrega/PR
O Ministro da Economia, Paulo Guedes e o presidente Jair Bolsonaro. Foto: Marcos Corrêa/PR
Paulo Guedes e Bolsonaro durante o Latin America Investment Conference. Foto: Marcos Corrêa/PR
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Arthur Lira e o ministro da Economia, Paulo Guedes. Foto: Pablo Valadares/Agência Câmara
O ministro da Economia, Paulo Guedes, durante palestra. Foto: Wilson Dias/Agência Brasil
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Ministro da Economia, Paulo Guedes. Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil
Coletiva do ministro da Economia, Paulo Guedes. Foto: Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil
Ministro da Economia, Paulo Guedes. Foto: Marcos Corrêa/PR
O Ministro da Economia, Paulo Guedes. Foto: Fábio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil
Paulo Guedes durante cerimônia do Novo FUNDEB. Foto: Isac Nóbrega/PR
O Ministro da Economia, Paulo Guedes e o presidente Jair Bolsonaro. Foto: Marcos Corrêa/PR
Paulo Guedes e Bolsonaro durante o Latin America Investment Conference. Foto: Marcos Corrêa/PR
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Arthur Lira e o ministro da Economia, Paulo Guedes. Foto: Pablo Valadares/Agência Câmara
O ministro da Economia, Paulo Guedes, durante palestra. Foto: Wilson Dias/Agência Brasil
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A seguir, mais detalhes sobre as offshores de alguns brasileiros revelados pelos Pandora Papers:

Paulo Guedes

O ministro da Economia, que chefia a pasta à qual está subordinada a Receita Federal, responsável pela arrecadação de tributos e atuações fiscais, é dono de uma offshore sediada nas Ilhas Virgens Britânicas identificada nos Pandora Papers.

A empresa chama-se Dreadnoughts, foi aberta em setembro de 2014, tinha patrimônio de 8,5 milhões de dólares (R$ 46,2 milhões) e segue ativa. Também são sócias da offshore a mulher e a filha de Guedes.

O Ministério da Economia afirmou, em nota, que a offshore de Guedes foi declarada à Receita Federal e à Comissão de Ética Pública antes de ele assumir o cargo. O ministro também disse que, ao ser nomeado para a pasta, "se desvinculou de toda a sua atuação no mercado privado".

Guedes pode ser convocado a explicar ao Congresso sua offshore, que tinha patrimônio de R$ 46,2 milhões

A revelação sobre a offshore de Guedes teve grande repercussão em Brasília nesta segunda-feira (04/10), e deputados e senadores de diversos partidos apontaram possível conflito de interesse na manutenção de uma offshore ativa pelo ministro.

O líder da oposição na Câmara, Alessandro Molon (PSB-RJ), afirmou que apresentará pedido de convocação para Guedes explicar o tema e para que o Ministério Público Federal analise a abertura de uma ação de improbidade administrativa contra o ministro. O procurador-geral da República, Augusto Aras, disse que fará uma "averiguação preliminar" e ouvirá Guedes sobre o tema.

O líder da oposição no Senado, Randolfe Rodrigues (Rede-AP), apresentou uma notícia-crime no Supremo Tribunal Federal, pedindo que seja avaliado o eventual cometimento de ilegalidades pelo ministro da Economia em relação à sua offshore.

Presidente do BC havia dito que tinha offshores em sabatina no Senado antes de assumir o cargo. Foto: Agência Brasil

Roberto Campos Neto

O presidente do Banco Central aparece nos Pandora Papers vinculado a duas offshores no Panamá, a Cor Assets e a ROCN Limited. A primeira foi criada em 2004 com aporte inicial de 1,09 milhão de dólares (R$ 5,9 milhões) e foi encerrada em agosto de 2020. A ROCN foi criada em 2007 e encerrada em 2016.

Campos Neto também mantém outras offshores, como relatou ao Senado no início de 2019, durante sua sabatina para ser nomeado ao cargo.

Presidente do BC havia dito que tinha offshores em sabatina no Senado antes de assumir o cargo

O presidente do BC afirmou que todo seu patrimônio no Brasil e no exterior é declarado e que ele parou de fazer movimentações assim que assumiu o cargo no governo.

Em sua queixa-crime ao Supremo, Randolfe também pediu que seja avaliado o eventual cometimento de ilegalidades por Campos Neto.

Por 17 anos, Hang manteve sua offshore de forma irregular, sem declarar às autoridades brasileiras. Foto: Leopoldo Silva/Agência Senado

Luciano Hang

O empresário dono da rede de lojas Havan abriu em 1999 nas Ilhas Virgens Britânicas a offshore Abigail Worldwide.

A empresa permaneceu irregular, sem ser informada às autoridades brasileiras, até 2016, quando Havan aproveitou a lei da repatriação, sancionada pela então presidente Dilma Rousseff, para declará-la. A norma autorizou a regularização de recursos mantidos no exterior mediante pagamento de imposto e multa.

Em 2018, a Abigail Worldwide tinha 112,6 milhões de dólares (R$ 613 milhões) em ativos. O empresário disse que mantém recursos fora do país para se proteger de variações da cotação do real, já que trabalha com importação de produtos. A empresa é hoje incorporada pela Havan.

Por 17 anos, Hang manteve sua offshore de forma irregular, sem declarar às autoridades brasileiras

Hang é aliado de Bolsonaro e costuma propagar um discurso nacionalista em suas manifestações e nas peças publicitárias da sua empresa, e uma de suas marcas pessoais é o uso de vestimentas nas cores verde e amarela, da bandeira brasileira. 

Ele é alvo da CPI da Pandemia, que apura seu papel no incentivo ao uso de medicamentos sem eficácia contra a covid-19, e investigado pelo Supremo em um inquérito sobre o financiamento de redes de distribuição de notícias falsas para atacar instituições democráticas.

Fakhoury, investigado por financiamento de fake news, disse que usa offshore para "planejamento fiscal". Foto: Leopoldo Silva/Agência Senado

Otávio Fakhoury

Outra pessoa no alvo da CPI da Pandemia que apareceu nos Pandora Papers é o empresário Otávio Fakhoury. Ele é investigado pela comissão e em inquéritos no Supremo sobre o financiamento da divulgação de notícias falsas e organização de atos antidemocráticos.

Ele atua no ramo imobiliário e foi militante do grupo Vem Pra Rua durante os protestos pelo impeachment de Dilma. Fakhoury também é um dos idealizadores do partido Aliança pelo Brasil, que Bolsonaro tentou criar, mas que ainda não obteve o número mínimo de assinaturas necessárias. 

O empresário é sócio de uma offshore sediada no Panamá, com ativos que chegam a 3 milhões de dólares (R$ 16 milhões), segundo os documentos dos Pandora Papers, e de outra empresa nas Ilhas Virgens Britânicas, constituída em maio de 2009 com capital inicial de 50 mil dólares (R$ 272 mil).

Fakhoury, investigado por financiamento de fake news, disse que usa offshore para "planejamento fiscal"

Ele afirmou à Agência Pública que a offshore é declarada e apresentou comprovantes da declaração de Imposto de Renda confirmando isso, e que a usa como uma estratégia de "planejamento fiscal".

Durante o depoimento de Fakhoury à CPI, na última quinta-feira, o senador Humberto Costa (PT-PE) afirmou que parte do dinheiro que teria financiado sites e blogueiros que disseminam notícias falsas no Brasil viria de offshores, conforme indicam quebras de sigilo bancário.

Irmãos Parrillo

Os irmãos Andrea, Fernando e Eduardo Parrillo, donos da operadora de saúde Prevent Senior, que está sob investigação da CPI e do Ministério Público sobre a prescrição de remédios sem eficácia contra a covid-19 e ocultação de mortes pela doença em atestados de óbito, são outros brasileiros identificados nos Pandora Papers.

Eles aparecem ligados a quatro offshores em São Cristóvão e Névis, paraíso fiscal no Caribe: Shiny Developments Limited, Luna Management Limited, Hummingbyrd Ventures Limited e Grande Developments Limited, que totalizam quase 9 milhões de dólares (R$ 49 milhões) em ativos.

Andrea aparece ligado às offshores Shiny e à Luna, com cerca de 3,7 milhões de dólares (R$ 20,1 milhões) em ações e investimentos. A Hummingbyrd é ligada a Fernando, que tem 3 milhões de dólares (R$ 16,3 milhões) em investimentos diversos. Já a Grande Developments é vinculada a Eduardo mantém 2 milhões de dólares (R$ 10,9 milhões) em aplicações.

A assessoria de imprensa da Prevent Senior afirmou que "todas as movimentações são declaradas" às autoridades brasileiras.

Flávio Rocha

Proprietário do grupo Guararapes, que controla a varejista Riachuelo, Rocha também é ativo politicamente e em 2018 chegou a ser pré-candidato à Presidência da República pelo PRB, hoje Republicanos. Naquele ano, ele desistiu da candidatura e se juntou à campanha de Bolsonaro.

Ele aparece nos Pandora Papers como diretor reserva da offshore Cruzcity Holdings, criada 2016 e com ativos de 1 milhão de dólares (R$ 5,4 milhões), que tem sua esposa como diretora principal. Rocha afirmou que seus investimentos são declarados às autoridades brasileiras.

Família Menin

A família do empresário Rubens Menin, dono do banco Inter, da rede CNN Brasil e da construtora MRV, é listado nos Pandora Papers como sócio de quatro offshores nas Ilhas Virgens Britânicas: Costellis International, Remo Invest, Stormrider Investments e Sherkhoya Enterprises Ltd, com pelo menos 82,2 milhões de dólares em ativos (R$ 447 milhões).

A Costellis é a dona de uma iate de luxo Dokinha V, no valor de 75 milhões de dólares (R$ 408 milhões), que tem 33 metros de comprimento e fica ancorado na Flórida. Menin afirmou que todas as empresas foram declaradas às autoridades brasileiras, e que as duas últimas já foram encerradas.

Fonte: DW Brasil
https://www.dw.com/pt-br/quem-s%C3%A3o-os-brasileiros-com-offshores-reveladas-pelos-pandora-papers/a-59404528


Ruy Castro: Estão gostando do palhaço?

Paulo Guedes, ministro-bufo de Jair Bolsonaro encarregado dos esquetes sobre economia, disse que “livro é coisa de rico”. E, como sempre, desafinou. Bolsonaro, por exemplo, é rico e não gosta de livros. O último que teve em mãos foi no dia de sua posse —um exemplar da Constituição, que ele jurou defender, mas nunca abriu e na qual cospe com regularidade.

Bolsonaro tem razão em não ligar para livros. Não só porque lê com dificuldade, acompanhando as linhas com a cabeça e tropeçando nas palavras quebradas, mas porque construiu seu patrimônio sem precisar deles, valendo-se apenas do salário de deputado e, dizem, do de seus servidores. A estante ao fundo em seus pronunciamentos no Planalto é cenográfica, com livros comprados a metro. Às vezes variam a cor das lombadas para combinar com sua gravata. Um brincalhão poderia rechear as prateleiras com as obras completas de Karl Marx e Bolsonaro não perceberia.

Esse brincalhão poderia ser Paulo Guedes. Numa trupe de momos como Abraham Weintraub, Ernesto Araújo e Eduardo Pazuello, era difícil notá-lo no picadeiro. À medida que eles foram sendo defenestrados, Guedes saltou para o centro da lona e nunca mais perdeu uma oportunidade de ficar calado. Exprobou as domésticas por irem à Disney, tachou os servidores públicos de parasitas, acusou os pobres de destruir o meio ambiente e ainda os condenou por não saberem poupar e só pensarem em consumir.

Como o show não pode parar, Guedes há pouco criticou o brasileiro por “querer viver 100, 120, 130 anos” e sobrecarregar a Previdência. Deu mais uma cotovelada na China, acusando-a de ter inventado o vírus e vender uma vacina de segunda. E avisou o IBGE que não lhe mandaria dinheiro para fazer o Censo porque “quem muito pergunta ouve o que não quer”.

Está certo. Imagine se, em meio ao espetáculo, alguém perguntar ao público se estão gostando do palhaço.

Fonte:

Folha de S. Paulo

https://www1.folha.uol.com.br/colunas/ruycastro/2021/04/estao-gostando-do-palhaco.shtml


Antonio Carlos de Medeiros: A agenda errática do Brasil e o manifesto dos presidenciáveis

País não tem agenda e não tem norte. Qual vai ser então? Esse é o desafio

Aprendemos com a História que um país não funciona sem agenda. Pois o Brasil, hoje, é um país sem uma agenda democraticamente pactuada. A nau, errática, segue em zigue-zague. Pode piorar. Acuado, o presidente Bolsonaro deverá ser tensionado também pela instalação da CPI da Covid-19.

As pressões estão crescendo. Somadas à sua crescente queda de popularidade nas pesquisas, elas já tiveram o efeito de fazê-lo assumir a agenda da compra e da aplicação de vacinas. A CPI, se instalada, vai acuar ainda mais o presidente. Ulysses Guimarães já dizia que a gente sabe como começa uma CPI, mas nunca saberemos como terminará.

De qualquer forma, agora a vacina está no topo da agenda. Neste contexto cada vez mais errático, a gestão federal do país cresce em ineficiência e ineficácia. É aí que a movimentação de Lula cria contraponto político e mostra a ausência da agenda. Não a agenda das eleições de 2022, mas agenda do aqui e do agora. Uma tempestade de crises.

O avanço de Lula para o diálogo com forças do centro democrático pressiona também os seis presidenciáveis que assinaram o manifesto em defesa da democracia - Amoêdo, Ciro, Eduardo Leite, Doria, Huck e Mandetta. O manifesto foi genérico. É pouco para a urgência da hora.

Com Lula na estrada, essas lideranças do Centro vão ter que antecipar decisões, contrariando os manuais de política, que dizem que os que agem fora do tempo queimam a largada. A largada já foi dada. Primeiro por Bolsonaro, desde sempre. Agora por Lula, que já procurou o PSB e já costeia o alambrado para comer pelas bordas o mingau do centro político.

Assim, os seis presidenciáveis precisam avançar em eixos de princípios, propostas e políticas públicas para o Brasil. O centro do eleitorado, que eles querem conquistar, não adere à agenda pré-iluminista de Bolsonaro, com seus ingredientes de um neoliberalismo autoritário. Este centro tem um pé atrás com o PT. Mas já começa a prestar atenção nos sinais de Lula de abandonar o isolamento do PT e buscar moderação e alianças. A moderação progressista de Joe Biden mexeu com a centro-esquerda brasileira.

A realidade é que o Brasil não tem agenda e não tem norte. Qual vai ser então? Esse é o desafio. Irão os líderes do centro democrático para a costura de uma agenda iluminista das liberdades, das reformas, do progresso e da tolerância? Vão revisitar o sempre atual liberalismo progressista de Karl Popper, diferente do liberalismo que reduz o destino da liberdade apenas à existência de livres mercados? Vão, ao mesmo tempo, revisitar, como Joe Biden, o liberalismo de John Maynard Keynes, que pensou que certa intervenção estatal na economia podia proteger o capitalismo, corrigindo os excessos do laissez-faire? O que vai ser?

Tudo somado, a agenda errática requer das forças democráticas ação consequente e despojada. E que elas se lembrem dos versos de Vandré: “quem sabe faz a hora, não espera acontecer”.

*Antonio Carlos de Medeiros é pós-doutor em Ciência Política pela The London School of Economics and Political Science. Neste espaço, aos sábados, traz reflexões sobre a política e a economia e aponta os possíveis caminhos para avanços possíveis nessas áreas


Marcus Pestana: O falso dilema entre saúde e economia

Nenhum de nós poderia imaginar que o Brasil chegaria a mais de 345 mil mortes. Passamos os EUA em mortes diárias. A razão é simples: a diferença de ritmo na imunização. O SUS resiste heroicamente. A Saúde Suplementar dá respostas aos seus 47 milhões de usuários. Mas o horizonte de vacinação ainda é incerto.

Não havia registro de mortes por desassistência hospitalar. Agora, dada a velocidade de propagação das novas variantes do vírus, formaram-se filas para acesso às UTIs e muitos estão indo à óbito sem conseguir acesso a tratamentos intensivos. Sem falar na ameaça de desabastecimento de medicamentos essenciais como sedativos, anestésicos e anticoagulantes.

Paralelamente, estabeleceu-se a polêmica sobre a compra privada de vacinas, o que quebraria o sentido democrático e epidemiológico de organização das prioridades na fila de imunização.

Desde o início da pandemia, em março de 2020, erramos ao estabelecer um falso dilema entre saúde e economia. Cada um de nós só estará salvo, quando todos estiverem livres do vírus. Inclusive a economia. É natural a dificuldade de governadores e prefeitos para imporem medidas restritivas. Mais uma vez, faltou coordenação e sincronia. A decretação de lockdowns e assemelhados é necessária enquanto não superarmos o atraso na vacinação. Mas, as medidas de distanciamento social têm que ser acompanhadas de apoios compensatórios aos mais pobres e às empresas.

Temos boas notícias no front econômico para a retomada pós-pandemia. Votações importantes ocorreram no Congresso com a aprovação dos novos marcos legais do saneamento e do gás e das novas leis de falência e de licitações. Também o leilão das concessões de 22 aeroportos, agrupados em três lotes (Norte, Centro e Sul), com um ágio de 3.822% e investimentos da ordem de 6 bilhões de reais em trinta anos, foi um sucesso.

Mas nem tudo são flores e céu de brigadeiro na política e na economia. Felizmente a crise militar foi debelada e como disse o ex-ministro da Defesa, Raul Jungmann: “todos prestaram continência à Constituição”. Mas se há notícias boas, há também problemas. Primeiro, a discussão do OGU/2021 virou uma confusão generalizada e demonstrou a Torre de Babel que impera, às vezes, na interlocução entre o Governo e o Parlamento. Por outro lado, o Congresso entrou em abril com diversas propostas legislativas com sinalização equivocada, como por exemplo, o congelamento de preços de medicamentos e planos de saúde.

Ora, a economia de mercado pressupõe competição, sistema de preços relativos orquestrando a alocação de recursos, custos, sustentabilidade, liberdade econômica e regulação seletiva e eficaz. O Brasil para a retomada precisa enfrentar dois problemas fundamentais: o estrangulamento fiscal e a criação de um ambiente de negócios atrativo. Congelamentos geram disfunções como falências, desabastecimento e “mercado negro” e espantam investimentos. A Petrobrás praticou aumentos de 54% na gasolina e 22,7% no gás de cozinha. O óleo de soja aumentou 84,22% e o arroz, 69,01%. Temos que enfrentar corajosamente essa questão cultural, política e ideológica: queremos uma moderna economia de mercado ou vamos sempre cultivar a utopia de um Estado intervencionista e onipresente operando uma economia centralizada? A experiência histórica ensina qual é o melhor caminho.    

*Marcus Pestana, ex-deputado, federal (PSDB-MG)


Cristina Serra: Esquadrão da morte bolsonarista

O Brasil submerge no 'inferno furioso' da pandemia

Nesta semana, o esquadrão da morte bolsonarista conseguiu avanços importantes no Congresso. No Senado, a esperteza de um aliado garantiu a entrada em vigor das normas que facilitarão o acesso a armas e munições. Milícias, hostes militarizadas, criminosos em geral agradecem.

A Câmara aprovou projeto de lei que implode a fila única da vacinação e rasga o princípio da solidariedade social que orientou a criação do Sistema Único de Saúde. Ao permitir que empresas privadas comprem vacinas, institucionaliza a vacina "censitária", por critério de renda, não de vulnerabilidade.

O projeto, que ainda vai ao Senado, atende à mentalidade de capatazia do empresariado, que alega a necessidade de vacinar sua mão de obra. Se tem pouca vacina, que morram os velhos, os doentes, os mais fracos. É cruel assim. É bárbaro assim. Pensamento não muito distante da facção empresarial que se reuniu com o marginal da democracia em repasto noturno: bilionários da Forbes, o dinheiro grosso dos bancos, patrões da mídia e a bolorenta Fiesp.

A essa gente pouca importa que em algumas cidades o número de atestados de óbito já seja maior que o de certidões de nascimento e que possamos chegar ao meio milhão de mortos. Os empresários aplaudiram o genocida. Manifestaram "otimismo" e "tranquilidade" após ouvi-lo.

A falange religiosa do esquadrão, porém, sofreu derrota importante no STF. Foi inquietante assistir à pregação de André Mendonça, da AGU, a favor dos cultos presenciais em igrejas e templos. Com seus olhos vidrados e pausas teatrais, encarnou o pastor, não o representante de instituição laica. Felizmente, a Corte derrubou a pretensão de inspiração teocrática.

Decisão do ministro Barroso, contudo, acrescentou fator de imponderabilidade para os próximos dias ao determinar que o Senado instale a CPI da Covid. Enquanto isso, como disse um conselheiro da OMS, o Brasil submerge no "inferno furioso" da pandemia.


Hélio Schwartsman: O ocaso das CPIs

Elas se tornaram uma sombra daquilo que foram no passado

Parece-me corretíssima a liminar exarada por Luís Roberto Barroso, do STF, que determina a abertura da CPI da Covid-19 no Senado.

Os três requisitos legais para a instalação estão dados: assinatura de 1/3 dos senadores, existência de fato determinado a investigar e prazo de vigência. No mais, a decisão de Barroso está de acordo com a jurisprudência do Supremo, que já mandou abrir outras comissões no passado.

Comissões parlamentares de inquérito, vale lembrar, são um dos instrumentos à disposição das minorias para exercer a função de fiscalização de governos —uma das principais missões das oposições—, daí que nem a Constituição nem os regimentos admitem que seu funcionamento seja obstado pela vontade da maioria e muito menos pela do presidente da Casa.

CPI da Covid-19 é, portanto, muito bem-vinda. Não vejo, porém, como deixar de observar que as CPIs de hoje se tornaram uma sombra daquilo que foram no passado.

Com efeito, nos anos 90, elas nos permitiram acompanhar com lupa grandes escândalos, como no caso da CPI do Orçamento. Mesmo quando tratavam de temas menos explosivos, não raro saíam com recomendações úteis para aperfeiçoamentos legais.

Ocorre, porém, que a política, como tudo na vida, está sujeita às agruras da evolução. Percebendo o potencial de danos das CPIs, as maiorias passaram a trabalhar para contê-los. Um dos muitos caminhos para fazê-lo era ampliar o escopo da investigação e, para cada convocado com potencial de incomodar o governo, convocavam um que poderia criar embaraços à oposição. Com isso, entramos numa dinâmica semelhante à da corrida armamentista entre predadores e presas, o que acabou tirando muito da efetividade das CPIs.

Não diria que elas se tornaram inúteis. Os chiliques de Bolsonaro contra Barroso dão mostra de que ainda assustam. Mas eu não esperaria nada parecido com a CPI do PC Farias que derrubou Collor.


Demétrio Magnoli: Da vacina ao protesto

Se houvesse abundância vacinal e a obrigação de optar, qual delas eu escolheria?

 “Qual vacina devo tomar, doutor?”. Nos EUA, na Europa e até no Brasil, médicos são confrontados com a inédita indagação. Jamais perguntamos a marca da vacina tríplice de nossos filhos ou do imunizante contra a febre amarela. Contudo, com a pandemia de Covid, a população mundial foi exposta a um curso relâmpago de imunologia cujo efeito colateral é a obsessão por comparar vacinas. Por que não selecionar a vacina como escolhemos automóveis ou celulares?

Mike Ryan, da OMS, deu a resposta certa e óbvia: a decisão racional é tomar o primeiro imunizante que lhe for oferecido. O raciocínio justifica-se por duas razões, uma “egoísta”, outra “altruísta”. A primeira: como todas as vacinas aprovadas previnem a imensa maioria dos casos graves, vacinar-se logo é proteger sua própria saúde. A segunda: cada pessoa imunizada contribui na redução da pressão sobre o sistema hospitalar.

Depois de meses de angustiante expectativa sobre o desenlace dos testes de imunizantes, o mundo foi informado de que, no lugar do temido fracasso universal, a ciência operou um pequeno milagre. As vacinas pioneiras, de tecnologia inovadora (Pfizer/BioNTech e Moderna), exibiram taxas de eficácia em torno de 95%. As seguintes, porém, apresentaram taxas menores, entre os 66% da Janssen ou 63% da AstraZeneca/Oxford e os 50% da Coronavac.

Aquilo que, antes, seria celebrado como triunfo, ganhou ares de decepção. Daí a pergunta que atormenta os médicos. A imprensa não prestou o melhor serviço público ao destacar, em manchetes, o número singular que indica a taxa de eficácia geral das vacinas. De um lado, porque há três taxas diferentes de eficácia: contra infecção, morbidade ou mortalidade. De outro, porque os testes de fase 3 não são comparáveis entre si.A Pfizer testou em amostra da população adulta; o Butantan testou a Coronavac entre profissionais de saúde da linha de frente, normalmente expostos a cargas virais maiores. Testes em diferentes países captaram a ação vacinal contra variantes diversas do vírus. Só conseguiremos cotejar imunizantes ao longo dos próximos meses, a partir de experimentos controlados ainda em andamento.

A publicidade ilusória das taxas de eficácia tem implicações negativas. Os EUA renunciaram a direcionar o produto da Janssen, que não exige ultracongelamento, às pequenas cidades, pois a decisão lógica seria fulminada pela (falsa) acusação de discriminação contra os pobres.Na União Europeia, governos acuados pela lentidão na imunização decidiram cobrir seus erros deflagrando uma guerra retórica contra a AstraZeneca.

O francês Macron chegou, ridiculamente, a dizer que a vacina seria “quase ineficaz” para maiores de 65 anos. O bombardeio oportunista prejudicou ainda mais o processo de vacinação, nutrindo resistências ao uso de um dos principais imunizantes disponíveis na região. Inexistem cardápios de vacinas. Os sistemas de saúde aplicam a vacina que está à mão. Mas, e se houvesse abundância vacinal e a obrigação de optar, qual delas eu escolheria?

Na ausência de nítidos motivos imunológicos, minha resposta derivaria de critérios éticos. Na Europa, eu optaria pela AstraZeneca. A associação da farmacêutica com a Universidade de Oxford comprometeu-se a vender seu produto sem lucro durante toda a pandemia, o que merece aplausos. Além disso, o gesto expressaria minha aversão à hipocrisia de Macron e cia.

No Brasil, pelo contrário, eu escolheria a Coronavac, como forma de reconhecer a persistência heroica e a competência do Butantan –e de protestar, solitariamente, contra os escandalosos atrasos da Fiocruz na entrega de doses da AstraZeneca. Felizmente, não terei opção: vacino-me com a primeira que chegar a meu ombro. Será, de qualquer modo, um protesto contra o negacionismo criminoso de Bolsonaro e a estúpida campanha antivacinal de seus acólitos.


Adriana Fernandes: Entre armas e livros, continua sendo melhor apostar na segunda opção

 Entre armas e livros, continua sendo melhor apostar na segunda opção

Reportagem desta semana do Estadão, “Receita diz que só rico lê, e livro pode perder isenção com unificação tributária”, viralizou e levou a uma série de relatos emocionantes nas redes sociais de brasileiros que nasceram em famílias de renda mais baixa e que se viraram para ter acesso à leitura. A discussão sobre o fim da imunidade para livros foi inserida no contexto do projeto de reforma tributária do governo, mas no Brasil de hoje esse é um assunto muito mais político do que de natureza tributária.

Um país que tem o orçamento público capturado por demandas políticas de cunho eleitoreiro. Com governo e parlamentares que não tiveram coragem de fazer cortes importantes nas renúncias tributárias de setores com grande influência em Brasília.

A incoerência fica ainda mais escancarada por um presidente da República que adotou corte de tributos para incentivar a compra de armas e videogames, além de ampliar incentivo para as multinacionais de refrigerantes na Zona Franca de Manaus. Medidas que drenaram a arrecadação em plena pandemia.

A polêmica surgiu porque a Receita, para justificar o projeto que cria a Contribuição Social sobre Bens e Serviços, a CBS, disse que a isenção aos livros pode acabar com a justificativa de que a maior parte é consumida pelas famílias com renda superior a dez salários mínimos. O certo teria sido o projeto retirar o incentivo ao livro e destinar o aumento da arrecadação para uma política de incentivo aos mais pobres. 

A pergunta que muitos se fizeram depois de ler a reportagem foi: por que os livros?

A resposta é complexa e com vários pontos de vista. De um lado, aqueles que defendem o fim da isenção com o argumento de que os mais pobres bancam o consumo dos mais ricos. De outro, os que acham que a medida vai dificultar ainda mais o acesso aos livros pelos mais pobres.

Com a controvérsia instalada, a pesquisadora portuguesa Rita de La Feria, que já fez a reforma em São Tomé e Príncipe, Índia e vários outros países, entrou em campo nas redes sociais em defesa do projeto do governo. “Uma manchete alternativa (e verdadeira) seria: com a reforma tributária, os mais pobres vão deixar de subsidiar o consumo dos mais ricos. Fica a sugestão.”

Rita ainda disparou outro conselho: “Muitos de nós (eu inclusive) têm uma relação emotiva com livros. Mas o sistema tributário não deve refletir emoções, apenas dados.” 

Patrocinador da PEC 45 de reforma tributária, o deputado Rodrigo Maia, ex-presidente da Câmara, alertou que a defesa da isenção aos livros era uma narrativa bonita, mas distorcida num falso dilema de um país em que os pobres financiam os ricos num Estado que não existe para reduzir as desigualdades.

No modelo tributário ideal, esses argumentos são todos muito válidos. O subsídio financeiro, via orçamento, destinado às políticas públicas, sem dúvida, é bem mais eficiente do que o tributário, que banca os ricos - assim como os livros acontece com os produtos da cesta básica. Que, aliás, o projeto da CBS não ataca.

No Brasil de hoje, porém, essa verdade não é tão certa. O setor privado captura dinheiro público por meio de incentivos muito mais robustos do que a isenção dada aos livros. E com impacto muito maior na arrecadação. Um exemplo desse método foram as tentativas frustradas de mudar a tributação de fundos exclusivos de investimentos dos super-ricos. Não tem jeito disso avançar no Congresso. Medida que garantiria hoje muito mais do que os R$ 10 bilhões calculados na última vez que se tentou emplacar a mudança, em 2018.

O enredo é sempre o mesmo. Acaba-se com o incentivo ao livro, mas ficam tantos outros. Defendidos ferozmente por lideranças políticas que não vão deixar que esse modelo tributário tão perfeito na teoria se aplique por aqui na prática. Na hora da votação, sempre tem uma listinha bem grande de exceções.

A briga feroz pelas emendas parlamentares, que divide o governo e se estende há duas semanas, é a maior prova disso. Não houve até agora nenhuma única ação para cortar incentivos ou aumentar tributos dos mais ricos para elevar a arrecadação e diminuir o endividamento público.

É por essas e outras razões que a reforma tributária faz água. Entre armas e livros, continua sendo melhor apostar na segunda opção.


Adriana Fernandes: Negociação pelo Refis é a mais nova batalha da equipe econômica

Se no auxílio pesava o lado dos pobres na balança, agora no Refis, é o peso empresarial que vai mostrar a sua força

A negociação do novo parcelamento de débitos tributários é a mais nova batalha no campo econômico em Brasília após a votação da PEC do auxílio emergencial em conjunto a um grupo de medidas fiscais.

A aprovação de um projeto de parcelamento de dívidas tributárias já estava devidamente contratada no Congresso desde 2020, mas o Ministério da Economia vinha segurando o seu avanço para não perder o controle e abrir uma brecha para uma renegociação ampla.

O problema para Guedes é que a pandemia piorou e a pressão ganhou um reforço de peso do presidente do SenadoRodrigo Pacheco.

A hora chegou. 

Logo depois da sua eleição, no início de fevereiro, Pacheco já havia pedido o Refis ao ministro. Guedes respondeu que seria melhor esperar a reforma tributária e começou a discutir uma ampliação do programa aberto de transação tributária, que prevê negociação direta com os contribuintes com base na capacidade de pagamento.

Não resolveu. Com a PEC aprovada, não está dando mais para segurar a pressão pelo Refis que sempre aparece pelo menos a cada três anos nas últimas duas décadas.

A reforma tributária não vai andar como se fala oficialmente (muitos parlamentares nem acreditam nela até 2022) e o Refis é hoje considerado mais importante para o cenário atual de pandemia e queda do PIB, como aconteceu com o auxílio emergencial, que não pode esperar a ampliação prometida do programa Bolsa Família.

Fernando Bezerra, líder do governo no Senado, foi escalado por Pacheco para ser o relator e o diálogo foi aberto nessa semana. De partida, Guedes quer limitar o Refis a débitos de 2020 e à lista de setores mais afetados.

Botou seus limites para iniciar as negociações. O posicionamento do ministro é uma tentativa de freio de arrumação muito semelhante às contrapartidas fiscais buscadas na PEC, mas, quando a discussão no Congresso esquentar, o negócio é outro com o Centrão em peso querendo o Refis. O Senado quer uma tramitação rápida para votação direta no plenário.

A questão é que tipo de Refis vai sair do Congresso? A dificuldade maior no Brasil é que foram tantos os programas especiais de parcelamento de débito (levantamento da Receita Federal aponta um total de 40 desde 2000) que se acabou criando por aqui o fenômeno do contribuinte “devedor contumaz”, aquele que deixa de pagar os tributos sempre à espreita do próximo. 

Para a Receita, que tem que arrecadar e financiar as despesas, esse é o pior dos mundos. Os Refis constantes também desestimulam o contribuinte que paga em dia. A publicação pelo Estadão nesta sexta-feira de reportagem sobre as negociações em curso para o Refis gerou esperança para muitos empresários, que estão esperando o programa, mas também críticas de que o Congresso está penalizado os que pagaram os tributos em dia, em prol de “caloteiros”, reforçando uma concorrência desleal.

Esse tipo de posicionamento mostra o tanto que os sucessivos Refis foram nocivos para o País e quanto o assunto é sensível. Agora, que a crise maltrata o setor produtivo e as pessoas físicas que perderam renda, argumentos desse tipo não fazem muito sentido.

É por essa razão que mais do nunca é importante impor limites que impeçam que o novo programa abarque o parcelamento de dívidas passadas que nada tem a ver com a pandemia permitindo mais “boiadas” na área tributária, como foi a confirmação pelo Congresso esta semana do perdão da dívida das igrejas ao isentá-las do pagamento da CSLL. Uma renúncia de R$ 1,4 bilhão com aval do presidente Jair Bolsonaro.

O dilema mais uma vez é a situação de fragilidade das contas públicas. Com a movimentação, que antecipa mais uma queda de braço entre o mundo político e a equipe econômica, o novo Refis já entrou ontem no radar do mercado financeiro como mais um risco fiscal a ser monitorado. Se no auxílio, o outro lado da balança era o mais fraco, os pobres, agora no Refis, é o peso empresarial que vai mostrar a sua força. 

Não por acaso o assunto de ponta entre os especialistas em contas públicas, que estão pensando na fase pós-covid-19, é justamente a necessidade de aumento dos impostos - tema hoje travado no debate nacional. Na Webinar do Estadão e do Ibre-FGV desta semana, a avaliação dos economistas é que ele vai voltar mais cedo ou mais tarde. Vale muito conferir o debate.


Vinicius Torres Freire: Guedes diz que vai estar cobrando mais imposto até o Natal da Covid

Ministro e parte do Congresso querem reduzir isenções tributárias da classe média rica

Paulo Guedes prometeu que o governo vai dar um “forte sinal” para diminuir “subsídios e gastos tributários”. Grosso modo, isso é aumento de imposto, goste-se ou não de mais essa providência por ora imaginária do ministro.

Quando vai ser? Quase na “semana que vem”, um dos prazos típicos de Guedes: “antes do fim do ano”, duas semanas, na prática.

“Gasto tributário” é um imposto que o governo deixa de recolher a fim de dar tratamento especial para empresas, setores da economia, um grupo de indivíduos, regiões. Em suma, de um modo ou de outro, quem recebe esse tratamento diferente paga menos imposto do que deveria, pela regra geral.

Qual o maior gasto tributário federal, pelas contas da Receita? O Simples Nacional (micro e pequenas empresas, o que pega também boa parte da “classe média”, ricos, bolsonarista). Depois vêm as isenções e deduções do Imposto de Renda da Pessoa Física (rendimentos isentos e não tributáveis e deduções de gastos com saúde e educação privada), o que inclui rendimentos de aposentados maiores de 65 anos e rescisões trabalhistas.

A seguir, vêm as isenções da agricultura e da agroindústria, na maior parte para a cesta básica e para exportações da produção rural. Logo depois, no ranking, vêm as filantrópicas (hospitais, escolas, faculdades), a Zona Franca de Manaus e “medicamentos, produtos farmacêuticos e equipamentos médicos”.

Tudo isso dá 75% do gasto tributário previsto para 2021.

Como de costume, não dá para saber direito do que Guedes está falando, mas o novo “vamos estar fazendo” do ministro bate com a mais recente mutação de uma proposta de emenda constitucional (PEC) de controle de gastos que rola pelo Senado desde 2019 e teve uma “versão” a cada dia desde a semana passada, dizendo tudo e seu contrário.

Na PEC, pretende-se obrigar governo e Congresso a reduzirem benefícios tributários e subsídios de crédito no ano que vem.

Quais subsídios? Não se sabe. Os subsídios que estão na conta do Tesouro (do governo) são basicamente compensações de financiamento barateado para a agricultura, da grande à miudinha, familiar.

Essa hipótese de PEC já chegou a prever também o corte de até 25% de jornada e salários de servidores, o fim do gasto mínimo em saúde e educação e o fim do reajuste automático das aposentadorias do INSS. Até quarta-feira de noite, tudo isso estava fora, assim como gambiarras fura-teto (que estiveram lá, segundo boatos ou balões de ensaio).

Para compensar, vai haver um gatilho de contenção de gastos quando a despesa obrigatória do governo passar de 95% da despesa atual (o que já acontece). Nesse caso, em suma, ficam proibidos reajustes quaisquer de salários de servidores e contratações.

Ou seja, talvez, parece, segundo o último rumor ou rascunho improvisado de uma emenda constitucional, haveria um arranjo fiscal entre Guedes e parte do Congresso. Não resolve grande coisa, mas não explode nada. O interessante vai ver quem seria esfolado pelo governo e por seus aliados no Congresso com esse aumento de imposto, na prática (chame-se de “fim de desoneração”).

Muito gasto tributário é mesmo favor, desordem nos impostos e incentivo à ineficiência econômica. Poderia ser objeto de reforma tributária ou de medidas paulatinas desde 2019. Mas o governo é uma baderna inepta e nada disso foi feito. Agora, vamos ver a reação do demagogo Jair Bolsonaro, do restante do Congresso e de quem vai levar a facada do aumento de imposto do Natal sem vacina.


Vinicius Torres Freire: Reforma de impostos de Guedes é injusta, ineficiente e selvagem

Com CPMF, reforma do governo aumenta injustiça e ineficiência tributária no país

“Poucas ideias são tão ruins que não podem ser pioradas. Infelizmente, o sistema tributário brasileiro não é exceção à regra… Uma prova disso é a constante ameaça do retorno da famosa … CPMF”, escreveu Adolfo Sachsida em um livro de 2017. Sachsida é ora secretário de Política Econômica do Ministério da Economia de Paulo Guedes.

A esse respeito, muita gente está de acordo com o secretário, este jornalista inclusive. Guedes quer substituir um imposto ruim e decadente, a contribuição patronal para o INSS, por um ainda pior, a CPMF ou equivalente. Se conseguir, vai aumentar a confusão, as distorções e várias iniquidades da tributação no Brasil.

Um modo de acabar com o imposto sobre folha de salários é tributar mais a renda, de preferência a dos mais ricos (ou o consumo, alternativa pior). Tributar mais os rendimentos maiores é também um modo de pegar os lucros da “economia digital”, que têm escapado dos fiscos do mundo inteiro.

Guedes não quer bulir com o IR. Pretende comer a renda de modo insidioso, com uma CPMF, imposto menos visível e que trata ricos e pobres da mesma maneira.

A ideia do ministro é arrumar R$ 120 bilhões a fim de reduzir o que as empresas pagam para o INSS. Acabaria o imposto sobre remunerações de um salário mínimo ou menos; a contribuição sobre salários maiores diminuiria. Uma conta de guardanapo indica que, de fato, esse dinheiro seria bastante para reduzir a alíquota do INSS de 20% para uns 11% (para salários maiores que um mínimo), tudo mais constante.

Guedes acha que arrecadaria esses R$ 120 bilhões com uma alíquota de 0,4% para sua CPMF misteriosa. Quando a CPMF era de 0,38% (de 2002 a 2007), a receita era regularmente 1,35% do PIB, atualmente uns R$ 94 bilhões. Mas passemos, pois ninguém sabe o que é essa CPMF do ministro e a economia mudou em 13 anos.

Uma CPMF ou coisa que o valha vai pesar mais sobre indústria e agricultura, menos sobre serviços. Impostos sobre a folha de salários, como a contribuição patronal para o INSS, pesam mais, claro, sobre setores que gastam relativamente mais com mão de obra e menos com capital.

Mas ao fim e ao cabo, impostos sobre transações financeiras são selvagens, em nada relacionados a um critério econômico razoável. Uma cadeia de produção longa e movimentação financeira relativamente grande levarão uma empresa a “pagar” mais (na verdade, a recolher mais imposto, repassando a conta para o cliente).

A CPMF tende a aumentar a iniquidade social e econômica da tributação. Um grande princípio da reforma tributária seria justamente uniformizar o quanto possível os impostos que cada setor ou empresa têm de recolher. Outro motivo da reforma é acabar com a cumulatividade (o imposto em cascata, que fica mais pesado quanto mais “fases” a produção de um bem ou serviço envolver). A CPMF é cumulativa.

Além do mais, uma CPMF de 0,4% é uma enormidade em ambiente de taxas de juros baixas. Logo, vai criar tumulto e custo também no mercado financeiro.

A redução dos encargos sobre a folha vai ajudar a criar empregos? Não há evidências. Talvez facilite formalização e contratações quando e se a economia estiver crescendo. Impostos menores sobre o emprego podem ser um coadjuvante da melhoria do mercado de trabalho, mas não o motivo.

Deputados relevantes ainda dizem que a CPMF não passa ou que pode atrasar a reforma tributária. Que o país esteja discutindo tal coisa é outro sucesso da selvageria iníqua e ignara que move o governo de Jair Bolsonaro.


Hélio Schwartsman: Jardim das delícias tributário

É difícil justificar é que a fé seja imune a impostos enquanto setores mais essenciais à vida são onerados

Depois da pejotização, a religiosização. Se a bancada da Bíblia e o presidente Jair Bolsonaro, agora atuando como um quinta-coluna contra o Ministério da Economia, tiverem êxito em seu intento de prover ainda mais vantagens tributárias a igrejas, poderemos assistir a um movimento de transformação de empresas em organizações religiosas, parecido com aquele que levou celetistas a se tornarem empresários.

Criar uma religião é um procedimento cartorial simples e barato. Como confessei aqui ainda outro dia, eu próprio já montei a minha, consubstanciada na Igreja Heliocêntrica do Sagrado EvangÉlio, com a qual tive acesso ao jardim das delícias tributário.

Dado que meu intuito era apenas mostrar quão fácil é a religiosização, limitei-me a fazer uma aplicação financeira de valor simbólico sem pagar impostos. Mas, se desse o salto de fé completo, poderia ter me livrado de IRPJ, ISS, IPVA, IPTU e, em alguns estados, até do ICMS embutido nas contas de luz, telefone e TV a cabo.

A única coisa de que não dava para escapar eram contribuições sociais, como CSLL e Cofins, e previdenciárias. É isso que está prestes a mudar, nem que seja via PEC. Ao que tudo indica, junto virá o perdão das dívidas passadas.

Até acho que imunidade tributária conferida a cultos fez sentido no passado. Era um jeito de evitar que o Estado criasse embaraços às religiões não oficiais impondo-lhes impostos especiais. Não penso, porém, que essa lógica ainda subsista. O poder público não tem mais condições de criar taxas que atinjam só minorias religiosas.

Nos dias de hoje, o que me parece difícil justificar é que a fé seja imune a impostos enquanto setores muito mais essenciais à vida, como alimentação e saúde, são às vezes pesadamente onerados. Já passa da hora de fazer prevalecer o princípio da solidariedade tributária, pelo qual todos pagam para que os impostos sejam menores para todos.