Impeachment
Demitido por uso de avião da FAB, Santini ganha novo cargo no governo
Ex-secretário-executivo da Secretaria-Geral da Presidência foi nomeado secretário nacional de Justiça do Ministério da Justiça e Segurança Pública em edição publicada no Diário Oficial da União (DOU), assinada pelo novo novo ministro-chefe da Casa Civil, Ciro Nogueira
Ingrid Soares / Correio Braziliense
Amigo da família Bolsonaro, José Vicente Santini ganhou um novo cargo no governo nesta quarta-feira (4/08). Ele foi nomeado secretário nacional de Justiça do Ministério da Justiça e Segurança Pública em edição publicada no Diário Oficial da União (DOU), assinada pelo novo novo ministro-chefe da Casa Civil, Ciro Nogueira.
A mudança ocorreu após o general Luiz Eduardo Ramos ter sido nomeado para comandar a Secretaria-Geral no lugar de Onyx Lorenzoni, que segue para o novo Ministério do Trabalho e Previdência.
Santini foi secretário-executivo da Casa Civil e exonerado após ter utilizado o avião da Força Aérea Brasileira (FAB) para viajar à Suíça e à Índia. A saída dele foi decidida no mesmo dia em que Bolsonaro retornou da viagem a Nova Délhi. O chefe do Executivo se mostrou incomodado com o uso da aeronave e afirmou que Santini deveria ter viajado em voo comercial, a exemplo de outros ministros.
Após o episódio, Santini voltou ao governo federal em setembro, quando ganhou um cargo de assessor especial do ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles.
Fonte: Correio Braziliense
https://www.correiobraziliense.com.br/politica/2021/08/4941689-demitido-por-uso-de-aviao-da-fab-santini-ganha-novo-cargo-no-governo.html
Carlos Marchi diz que pandemia inibe manifestações pelo impeachment
Jornalista e escritor analisa, em artigo na revista Política Democrática online de julho, reflexo da pandemia na mobilização de Bolsonaro
O jornalista e escritor Carlos Marchi diz que “multidões estariam ocupando as ruas pedindo pelo impeachment se não fosse a ameaça do coronavírus”. Ele publicou artigo na revista Política Democrática online de julho (33ª edição), produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília.
Clique aqui e confira a revista Política Democrática Online de julho (33ª edição)
Todos os conteúdos da revista mensal da FAP podem ser acessados, gratuitamente, na versão flip da revista, de forma gratuita. Segundo o autor, o presidente de Jair Bolsonaro (sem partido) sustenta seu negacionismo e mobilização nas ruas justamente porque seus opositores não podem fazer o mesmo sem se contradizerem.
É assim que, ainda de acordo com o autor, o presidente tem mantido seu emprego e pensado em reeleição no ano de 2022. “Afinal, ele e Lula, à frente nas pesquisas, são antípodas só de mentirinha; na verdade, são mutuamente convergentes na polarização. Um retroalimenta o outro”, analisa.
Em outras palavras, segundo o texto, Lula não seria melhor ou pior que Bolsonaro. “Os antípodas não são antípodas”.
Ainda sobre as eleições, Marchi volta a mencionar como Lula parece ser o único a vencer Bolsonaro, sua rejeição arrefece, pois, segundo ele, muita gente que não votaria nele contra qualquer outro candidato muda de ideia nesse quadro e acaba votando, para “evitar o pior”.
“As grandes manifestações de rua sempre impõem alguma mudança de rumo ao país”, diz o texto. O autor cita, por exemplo, a manifestação de 1904, as greves de 1917, a grande marcha civilista de 1937 e a Passeata dos Cem Mil, em junho de 1968, que enfraqueceu a ditadura militar.
O impeachment de Collor, o qual foi turbinado pelas ruas, serve de base para o jornalista e escritor afirmar que as ruas podem mudar o rumo da sucessão. Porém, segundo o jornalista, o que interessa a Bolsonaro e Lula é a polarização, não as ruas cheias.
Confira todos os autores da 33ª edição da revista Política Democrática online
Na revista Política Democrática online de julho, os internautas também podem conferir entrevista exclusiva com a jurista Eliana Calmon e reportagem especial sobre a fome, que no país e no restante do mundo, pode matar 11 pessoas a cada minuto, até o final deste ano, no planeta, caso nada seja feito, segundo relatório da organização internacional Oxfam. A revista mensal Política Democrática online de julho também traz artigos sobre políticas nacional e externa, economia, meio ambiente e cinema.
Além do diretor-geral da FAP, Caetano Araújo, o escritor Francisco Almeida e o ensaísta Luiz Sérgio Henriques compõem o conselho editorial da revista.
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Sob Bolsonaro, a corrosão do Estado e das liberdades individuais
Presidente repete líderes autoritários e atenta contra direitos civis operando o Direito, aponta levantamento
Bruno Ribeiro, Daniel Bramatti e Marcelo Godoy
Era 2 de julho de 2018 quando o então candidato à Presidência pelo PSL, Jair Bolsonaro, revelou em entrevista um desejo: se eleito, pretendia ampliar de 11 para 21 o número de ministros do Supremo Tribunal Federal (STF). Seria, segundo sua justificativa, uma forma de pôr “juízes isentos lá dentro”. Durante a campanha, o tema adormeceu. Mas, pouco depois da posse, o presidente tentou uma manobra para mexer na composição da Corte. Incluiu-se na reforma da Previdência um artigo que retirava da Constituição a idade-limite de 75 anos para os ministros do Supremo, deixando que ela fosse definida em lei complementar.
A medida foi dissimulada em meio à Proposta de Emenda à Constituição patrocinada pelo ministro da Economia, Paulo Guedes. Não haveria justificativa para estar ali, até porque o impacto de 11 aposentadorias é irrisório para o caixa da Previdência. Tratava-se, segundo os críticos, do primeiro ataque à democracia e à independência dos poderes feito pelo governo de Bolsonaro. A retirada da idade-limite da Constituição permitiria ao presidente fixar por lei nova idade-limite, menor do que a atual, aposentando uma leva de ministros da Corte.
“É o modelo posto em prática na Venezuela e na Polônia”, diz Luis Manuel Fonseca Pires, juiz e professor de Direito Administrativo da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). “Ou aposentam ministros ou aumentam o número para garantir o controle da Corte Constitucional. O novo autoritarismo age por meio do Direito para obter legitimidade.” Em 2004, Hugo Chávez elevou o número de ministros da Corte Constitucional da Venezuela de 20 para 32. Na Polônia, o partido Direito e Justiça (PiS) usou a desculpa do combate à corrupção para tentar aposentar à força 27 dos 72 juízes da Corte Suprema.
Levantamento do Estadão sobre a atuação de Bolsonaro em 20 temas mostra que, desde sua posse, o presidente e seus ministros editaram 88 decretos, medidas provisórias, portarias, pareceres ou resoluções ou patrocinaram projetos de lei e alterações legais que incluíam medidas que corroíam o Estado ou atentavam contra as liberdades civis e direitos constitucionais. Ou seja, a cada 11 dias, ao menos uma medida desse tipo foi criada pelo governo. O levantamento leva em conta a avaliação de analistas. Trata-se de um processo de “cupinização” do governo das leis, na expressão do professor emérito da USP e ex-ministro das relações Exteriores Celso Lafer. “Você vai ‘cupinizando’ as regras do Direito”, disse. “No fundo, o que o governo Bolsonaro busca é, fugindo das instituições e das regras do Direito, sempre definir a exceção para obter a servidão voluntária e ‘cupinizar’ as instituições.”
Segundo Pires, o Direito é a forma usada por populistas autoritários para criar exceções com as quais modificam estruturas do Estado, atacam a democracia e negam direitos. Suas decisões são sempre tomadas levando em conta a oposição entre amigos e inimigos.
Lafer e Pires usam a mesma pista para compreender esses governos e suas relações com o Direito: as obras do pensador francês Étienne de La Boétie e do jurista alemão Carl Schmitt. “La Boétie trata da servidão voluntária e, evidentemente, o que os bolsonaristas acabam logrando é a servidão voluntária de seus sequazes”, afirma Lafer. O ex-ministro prossegue: “Para Schmitt não interessa a normalidade; interessa a exceção. O que caracteriza o pensamento dele é poder definir a exceção, a capacidade de poder defini-la. O soberano tem o poder de declarar a exceção. No fundo, o que Bolsonaro quer é ter o poder soberano de declarar a exceção.”
Protestos contra Jair Bolsonaro
É isso que explicaria ações do governo, como a Medida Provisória 979, de 2020, que autorizava Bolsonaro a nomear reitores provisórios para a universidades federais enquanto durasse a pandemia de covid-19. A intervenção na autonomia das universidades – identificadas pelo governo como centros dominados por inimigos esquerdistas – foi barrada pelo então presidente do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP), que devolveu a MP sem analisá-la. Era a segunda vez que Bolsonaro tentava, sem sucesso, modificar o processo de escolhas dos reitores.
O mesmo modo de agir – não para a adoção de políticas, mas para atacar inimigos escolhidos pelo governo – teria marcado a ação do governo em outra área: a do Meio Ambiente. Populações indígenas e a atuação de ecologistas e de ONGs ligadas à Amazônia foram escolhidas como alvo pelo governo, a ponto de o Supremo ter obrigado Bolsonaro a estabelecer um plano de combate à covid-19 nas aldeias e ter destituído o presidente do Ibama sob a acusação de ele ser conivente com a exploração ilegal de madeira. Quase metade das normas que corroem a base legal do Estado teve como alvo enfraquecer a defesa do Meio Ambiente.https://datawrapper.dwcdn.net/dU6Ci/10/
Para a subprocuradora-geral da República Luiza Frischeisen, governos autoritários têm projeto de destruição de direitos. No Brasil, muitas das medidas contestadas nesta gestão foram adotadas como portaria ou decreto, em razão da resistência do Congresso em mudar as leis, como no caso das legislações ambiental e de armas. Ela destaca ainda o perigo de mudanças na lei eleitoral servirem para restringir a democracia e a representação popular. “O Ministério Público é resiliente e seus integrantes vão cumprir seu dever. Assim como o STF, que entendeu muito bem que deve ser uma barreira à desconstrução da Constituição.”
Lafer também destaca a resistência no Brasil a medidas do atual governo. “A tradição política do Direito é conter o arbítrio. É o que dizia Rui Barbosa na Oração aos Moços. Ele sempre procurou assegurar o governo das leis e não o dos homens. Cabe ao advogado, nesse sentido, um tipo de magistratura. É isso que muitos juristas, preocupados com a res pública, procuram fazer: exercer essa magistratura.”
Juntamente com o Judiciário, as universidades e a área ambiental, a imprensa é um dos alvos prioritários da ofensiva antidemocrática de Bolsonaro. Levantamento da organização Repórteres Sem Fronteiras (RSF), divulgado na semana passada, identificou 87 ataques do presidente à imprensa nos primeiros seis meses deste ano, o que representa um aumento de 74% em relação ao semestre anterior. Foram 49 ataques contra a imprensa em geral, 28 contra veículos específicos e dez contra jornalistas. Se considerado o “sistema Bolsonaro” – grupo que inclui a família e os ministros do presidente –, o número de ataques no semestre chega a 331. No ranking de agressores, Bolsonaro está em primeiro lugar, seguido por três filhos de seus filhos.
Também divulgado na semana passada, o Relatório Global de Expressão, da organização Artigo 19, qualificou o Brasil como uma “democracia em crise”. No relatório, que é relativo a 2020, o País registrou só 52 pontos na escala de liberdade de expressão, que vai de zero a cem, sendo zero a nota de um país sem liberdade de expressão e cem a de total liberdade. Foi a menor pontuação brasileira no indicador desde a primeira medição, em 2010.
O documento enumera 464 situações em que o presidente, ministros ou assessores próximos “atacaram ou deslegitimaram jornalistas e o seu trabalho, nível de agressão pública que não é visto desde o fim da ditadura militar”. A Artigo 19 é uma organização que promove o direito à liberdade de expressão e de acesso à informação no mundo. Seu nome tem origem no 19.º artigo da Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU.
O Estadão procurou o Palácio do Planalto e a assessoria da Casa Civil para que comentassem o papel do governo na erosão da democracia, mas não houve resposta aos questionamentos da reportagem.
Imagens de Jair Bolsonaro
Cargos públicos são utilizados para controle
Bolsonaro garante a execução de políticas controversas a partir da nomeação de aliados para funções estratégicas
Bruno Ribeiro, Daniel Bramatti e Marcelo Godoy, O Estado de S. Paulo
Em paralelo às tentativas de mudar a legislação para fortalecer seu controle sobre o Estado, Jair Bolsonaro nomeou para cargos-chave do funcionalismo aliados dispostos a executar suas políticas mais controversas. Ele responde a um inquérito por tentativa de interferência na Polícia Federal.
No Ministério da Saúde, por exemplo, sob o comando do general Eduardo Pazuello, o corpo técnico foi ocupado por nomes como a médica Mayra Pinheiro, a “capitã cloroquina”, e Hélio Angotti Neto, que preparou um “Dia D” para distribuir o remédio em meio à falta de oxigênio nos hospitais. No Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), órgão com décadas de expertise no monitoramento do desmatamento, houve proibição de realização dessa função, transferida para o Ministério da Agricultura. Na Fundação Zumbi dos Palmares, cuja função é promover a cultura negra, após a indicação do jornalista Sérgio Camargo houve anúncio de redução de metade do acervo da instituição, tido como “marxista”.
Sua proposta de reforma administrativa é alvo de crítica de opositores por, segundo eles, dar chances de perseguição e demissão de servidores de carreira não alinhados aos objetivos do governo atual.
“Se aprovada, permitirá a perseguição política, ainda mais em um governo que não gosta de servidores que possam ter independência funcional”, diz o deputado Alessandro Molon (PSB-RJ). Ele considera a reforma necessária, mas ressalta: “Duas coisas têm de ser feitas para melhorar o serviço público brasileiro: regulamentar a avaliação de desempenho (dos servidores) e criar mais carreiras transversais. A reforma do Bolsonaro não faz nenhuma das duas coisas. Ela abre brechas para a demissão de servidores por perseguição e permite a indicação política para cargos de natureza técnica”.
Com 32 meses de mandato, Bolsonaro já pôde indicar seis diretores-gerais de agências reguladoras, órgãos com função de balancear interesses de governo, consumidores e setor privado. Os dirigentes têm mandato.https://arte.estadao.com.br/uva/?id=zjwYdy&show_brand=false
Na Agência Nacional do Petróleo (ANP), com a indicação do contra-almirante Rodolfo Saboia, os militares passaram a ter controle do Ministério de Minas e Energia, da presidência e do Conselho de Administração da Petrobras e da ANP. Na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), sob gestão do contra-almirante Antonio Barra Torres, o governador de São Paulo, João Doria (PSDB), fez críticas pela demora na liberação da vacina Coronavac – os técnicos do órgão também impuseram restrições à Covaxin, defendida pelo governo.
“No passado, as agências já foram alvo de interferência política, com prejuízo para toda a sociedade”, afirma o coordenador executivo do Centro de Gestão de Políticas Públicas do Insper, André Luiz Marques. Ele cita ações da ex-presidente Dilma Rousseff para controlar preços de energia. “Nas agências, você precisa de um corpo técnico forte, não pode ter loteamento de cargos. Senão, as relações ficam desiguais, e quem paga por isso geralmente é o consumidor.”
Não há a menor dúvida de que essa reforma, se aprovada, permitirá a perseguição política, ainda mais em um governo que não gosta de servidores que possam ter independência funcional”Alessandro Molon, deputado (PSB-RJ)
O caso da Polícia Federal é o que mais teve repercussão. Em abril de 2020, o ex-ministro da Justiça e da Segurança Pública Sérgio Moro acusou o presidente de interferir no órgão. A PF no Rio investigava o senador Flávio Bolsonaro (Patriota-RJ) após a Operação Furna da Onça apurar corrupção na Assembleia Legislativa do Rio (Alerj) e chegar a Fabrício Queiroz, ex-assessor de Flávio (e amigo de Jair), nome central nas apurações de suspeitas de “rachadinhas” em gabinetes da família presidencial. Com Anderson Torres na Justiça, o novo diretor-geral Paulo Maiurino propôs a criação de um setor na PF, vinculado a ele, para investigar políticos que possuem foro especial.
ENTREVISTA
LUIS MANUEL FONSECA PIRES, JUIZ E PROFESSOR DE DIREITO DA PUC-SP
‘Há o surgimento de uma nova modalidade de regime autoritário’
Estudioso afirma que governo opera sob premissa de ‘amigos e inimigos’ como elemento estruturante
Daniel Bramatti, O Estado de S. Paulo
Estudioso da forma como o Direito é usado pelos governos autoritários de nosso século – à esquerda e à direita – o professor de Direito Administrativo da PUC-SP e juiz Luis Manuel Fonseca Pires defende a tese de que os atos e as políticas do governo Jair Bolsonaro não podem ser reduzidos a uma questão de constitucionalidade ou de inconstitucionalidade. “Não estamos mais operando no campo do legal ou ilegal. O que se está operando é uma produção de políticas públicas, atos políticos e administrativos que têm sempre a premissa da equação amigo e inimigo como elemento estruturante de suas ações.”
Autor do livro Estados de Exceção, a usurpação da soberania popular, Pires afirma ser necessário atualizar a concepção clássica de estado de exceção, pois, na atualidade, ela é acompanhada da ideia de “volatilidade do inimigo”. Ora ele é uma instituição, ora ele é um grupo.
● Há um denominador comum por trás das medidas legais do governo Bolsonaro?
É preciso entender que o autoritarismo contemporâneo é um processo em construção. Ele não se dá em um dia, em um momento específico. É um processo que se elabora permanentemente. É preciso ter consciência de que isso não é um sinal de fragilidade da ascensão do autoritarismo. É simplesmente que essa é a estratégia do terceiro milênio, ele se elabora dessa forma gradual. É uma construção que opera por fragmentação. O autoritarismo contemporâneo seleciona âmbitos da vida civil e instituições públicas que ele ataca sistematicamente, mas de um modo circular. Ora é preciso atacar o Judiciário, ameaçar o impeachment de algum ministro, depois, deixa-se isso de lado e se vai para um âmbito civil. Por exemplo: a liberdade de imprensa. E é preciso atacar e massacrar essa liberdade. O estado de exceção tradicionalmente se estrutura pela equação amigo e inimigo. No romance (1984) ninguém sabe direito se Emanuel Goldstein existe ou não, se é uma lenda. Mas há uma cultura de ódio contra ele porque o estado totalitário precisava ter um inimigo, porque sem um inimigo ele não sobrevivia. Já o estado de exceção contemporâneo tem a estratégia de mudar os campos de ataque. Ele não pretende ser totalitário. Ele pretende ir minando vários campos. O pressuposto ainda é o mesmo: ele precisa ter o inimigo como estruturante de suas ações. Os atos e as políticas públicas do governo Bolsonaro não podem ser reduzidos a uma questão de constitucionalidade ou de inconstitucionalidade. Nós não estamos mais operando no campo do legal ou ilegal, porque todos os governos podem praticar medidas legais ou ilegais que devem ser corrigidas. O que se está operando é uma produção de políticas públicas, atos políticos e administrativos que têm sempre a premissa da equação amigo e inimigo como elemento estruturante. Mas com a estratégia da circularidade. Há algo que é preciso atualizar na concepção clássica de estado de exceção, que é mais um motivo para chamarmos de ‘estados de exceção’ na atualidade, que é a ideia da volatilidade dos inimigos.
● Por que o inimigo agora é difuso, ao contrário do que ocorria nos autoritarismo do século 20?
Houve uma larga produção de pensamento crítico à esquerda e à direita após a 2.ª Guerra Mundial sobre os absurdos produzidos pelo estado de exceção clássico, que se identificou com a ideia do totalitarismo, a ideia da produção de um homem novo, do domínio de todos os campos ao mesmo tempo. A partir dos anos 1970, na América Latina, você começa a contar com o uso do Direito de uma forma mais sofisticada, mascarando a produção da exceção. Tanto porque o pensamento crítico não tolerava mais isso quanto pela legitimidade que o Direito dá às situações arbitrárias. Seria muito melhor para a construção da legitimidade o uso da ação judicial. Esse é um modo diferente do novo autoritarismo. Ele tem o cuidado de dissimular suas práticas e precisa contar muito mais com o Direito como aliado. A cúpula nazista não estava preocupada com o Direito. Hoje é o contrário. Após a 2.ª Guerra há um processo de transformação em que há necessidade de se contar com a comunidade jurídica, com os legisladores, a produção de políticas, os atos do Executivo, com o Ministério Público, o Judiciário e as posições-chave nas universidades. Todos os lugares onde de algum modo se produzem atos, decisões e o ensino jurídico. As universidades têm dois motivos para serem atacadas: primeiro pela produção jurídica que podem oferecer e, segundo, por serem um local de pensamento crítico. Regimes autoritários contemporâneos têm os três pilares do pensamento crítico como inimigos: a Educação, a Cultura e a liberdade de imprensa. E operam com circularidade nos ataques aos inimigos. Precisam ter o inimigo do mês ou da semana. Numa semana ele é Leonardo Di Caprio. Na outra, o youtuber Felipe Neto ou o pensamento do Paulo Freire. A volatilidade é a marca da sociedade contemporânea. Mas sem o inimigo não se estrutura o estado de exceção. Nem no passado, nem no presente.
● A produção legal e infralegal do governo seria fundamental então para entender como o governo Bolsonaro opera?
É essencial ter produção jurídica para dar verniz de legitimidade. Essa é a ideia. Para que as medidas autoritárias não se apresentem como tais, elas precisam contar com o Direito para tentar dar uma racionalidade à produção da vontade política arbitrária. O elemento mediador do conflito entre a política e o Direito é a Constituição. Esta estabelece uma relação de valores fundamentais. Por exemplo: a ciência. Se a Constituição é a mediadora das vontades políticas, isso significa que as decisões possíveis dos governos devem estar no âmbito da ciência. Não se pode negar a ciência. Como então produzir políticas públicas negacionistas, acabar com distanciamento e o uso de máscaras na pandemia? Como tomar medidas contra o senso comum estabelecido pela ciência? Essa vontade política é arbitrária porque rompe com o horizonte de possibilidades que a Constituição deu. Em uma pandemia, não é uma alternativa legal você negar a pandemia. Quando a vontade política pretende impor o negacionismo, ela precisa atualmente do Direito, ao contrário do que ocorria no passado ou em regimes autoritários clássicos, como a Coreia do Norte.
● Nessa perspectiva, qual a importância do controle do STF?
É um objetivo que deve estar presente para a construção de um regime autoritário. Hoje, no Brasil, os pontos mais marcantes de resistência à ascensão do autoritarismo são a liberdade de imprensa, os movimentos sociais, o Poder Judiciário. E o Direito passa a ser utilizado como recurso de minar essa resistência. Ele é usado para escolher reitores de universidades que não foram os mais votados. Há ataques constantes à imprensa quando esta tenta identificar suspeitas de corrupção e o uso da Lei de Segurança Nacional para intimidar jornalistas e opositores pacíficos em protestos. O Direito é usado para minar os inimigos – e não a força bruta.
● Como esses governos mobilizam pessoas contra os inimigos?
As vontades políticas arbitrárias são mobilizadas por afetos políticos, por sentimentos. Aquilo que no passado se manifestava por meio de ordem administrativa, de detenção ou de execução, como na Noite dos Longos Punhais (a execução de líderes da S.A., a mando de Hitler, em 1934), hoje se manifesta no Direito. Ele é o repositório desses afetos. Ele tem o papel de converter os afetos políticos – como o ódio – em discursos pretensamente racionais. Como o ódio ao processo de conhecimento se materializa para calar professores e o desenvolvimento do pensamento crítico em sala de aula? Como fazer isso no terceiro milênio? É preciso do Direito para que ele se converta em discurso de pretensa racionalidade com o nome de escola sem partido.
● Mas não se trataria apenas de mera ‘passagem de boiada’?
Todas as vontades arbitrárias, que não se encontram na Constituição, para se manifestarem são estados de exceção. Os regimes autoritários contemporâneos não fecham o Parlamento ou o Judiciário. Eles funcionam com as instituições formalmente presentes. Essa nova estratégia mantém um grau de permanência na vida civil: não é preciso eliminar todos os órgãos de imprensa ou todas as políticas públicas ambientais. Vive-se com ataques, que os vão minando gradualmente, o que dificulta a produção do pensamento crítico. Pessoas que não se deram conta da gravidade da situação têm como horizonte as referências históricas. Elas dizem que este ou aquele não é um regime autoritário porque o Congresso está funcionando. O regime autoritário do passado tinha a meta de fincar a bandeira. Havia dia, mês e ano para celebrar sua instauração. Hoje o autoritarismo é fluido com a constante atualização dos inimigos a serem combatidos. Não vamos ter uma data para celebrar o fim da democracia, pois autoritarismo contemporâneo usa o símbolo da democracia como justificativa de suas medidas de exceção. O objetivo não é fechar universidades, mas capturá-las. O objetivo não é fechar o Supremo ou o Congresso, mas colocá-los ao lado de quem opera os estados de exceção. Bolsonaro não conseguiria fazer tudo isso sozinho. Ele precisa do apoio de outras forças. A volatilidade do inimigo é também traço da volatilidade do soberano nos estados de exceção. Ele não pode se estabelecer às claras; é uma fantasmagoria. O novo autoritarismo não tem uma meta. A meta é o presente. O que está acontecendo é o surgimento de uma nova modalidade de regime autoritário.
EXPEDIENTE
Editor executivo multimídia Fabio Sales / Editora de infografia multimídia Regina Elisabeth Silva / Editores assistentes multimídia Adriano Araujo, Carlos Marin e William Mariotto / Editor de Política Eduardo Kattah / Designer multimídia Vitor Fontes / Reportagem: Bruno Ribeiro, Daniel Bramatti e Marcelo Godoy / Edição de texto: Vitor Marques, Fernanda Yoneya e Valmar Hupsel Filho
Fonte:
O Estado de S. Paulo
https://www.estadao.com.br/infograficos/politica,sob-bolsonaro-a-corrosao-do-estado-e-das-liberdades-individuais,1185836
TSE já publicou 62 vídeos em 2021 para desmentir fake news sobre urnas
Em contrapartida, defensores do voto impresso promoveram uma enxurrada de "dislikes" no canal da Corte Eleitoral no YouTube
Enquanto o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) e aliados intensificam ataques contra as urnas eletrônicas, numa tentativa de colocar em descrédito o atual sistema de votação, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) tem direcionado boa parte de sua comunicação para desmentir notícias falsas e esclarecer aos eleitores sobre o funcionamento do voto eletrônico e as auditorias feitas para atestar a segurança do modelo.
O TSE tem divulgado produtos nas mais diversas redes sociais e, recentemente, aderiu até mesmo ao TikTok. No YouTube, segundo levantamento do Metrópoles, já foram publicados, neste ano, 62 vídeos sobre urnas eletrônicas, voto impresso, fraudes ou ciberataques.
As respostas do tribunal se acentuaram sobretudo após 14 de maio, quando o presidente do TSE, ministro Luís Roberto Barroso, lançou uma campanha, segundo ele, para demonstrar a segurança, transparência e auditabilidade do processo eleitoral. Desde então, o canal da Corte no YouTube subiu 92 vídeos. Desses, 46 – ou seja, a metade – tratam do assunto.PUBLICIDADE
“Não é uma campanha de resposta a ninguém; não é uma campanha de polemização. É apenas uma campanha de transparência para que a sociedade tenha conhecimento pleno e informação fidedigna sobre a lisura do nosso sistema eleitoral”, ponderou Barroso, durante o lançamento.
Só neste ano são mais de 7 horas e 51 minutos de vídeos publicados sobre o assunto. Ao Metrópoles, o TSE informou que todo o material é produzido pela Secretaria de Comunicação do tribunal e que, portanto, não há custos extras.
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Em contrapartida, bolsonaristas têm promovido ataques contra as publicações que tratam de urnas eletrônicas e voto impresso no canal do TSE. Os 62 vídeos deste ano sobre esses temas receberam mais de 370,8 mil dislikes, o equivalente a 6 mil avaliações negativas por vídeo. O número é 11 vezes maior que a média de likes dos mesmos conteúdos: 540.
Fonte
Metrópoles
https://www.metropoles.com/brasil/politica-brasil/tse-ja-publicou-62-videos-em-2021-para-desmentir-fake-news-sobre-urnas
A saúde, o veto e as inovações tecnológicas para a incorporação de medicamentos
Questão da incorporação automática de medicamentos
Marcus Pestana / O Tempo
Na última terça-feira, saiu publicado no DOU o veto do presidente Jair Bolsonaro ao Projeto de Lei no. 6330/2019, de autoria do senador Reguffe (PODEMOS/DF), que pretendia estabelecer a incorporação automática dos medicamentos antineoplásicos de uso oral a partir do simples registro na ANVISA, sem a devida “Avaliação de Tecnologias em Saúde” (ATS) pela ANS, para todos os usuários de planos e seguros de saúde.
Sempre considerei que a aprovação de qualquer medida legislativa deveria se dar a partir da avaliação criteriosa de seu conteúdo e não de sua origem ou da postura governista ou oposicionista do parlamentar. Não há sentido em uma oposição sistemática do tipo “quanto pior, melhor”. Ouso dizer, na linha de Rodrigo Maia, que o veto presidencial está correto.
Assusta-me a postura de meus colegas, ex-gestores de saúde, hoje exercendo mandatos parlamentares, que não levantaram essa discussão e aprovaram o PL 6330/2019 acriticamente, quando a OMS diz que a ATS é “a avaliação sistemática das propriedades, efeitos e/ou impactos da tecnologia da saúde. Seu principal objetivo é gerar informação para a tomada de decisão, incentivando a adoção de tecnologias custo-efetivas e prevenindo a adoção de tecnologias de valor questionável aos sistemas de saúde”.
Hoje, em todo o mundo, é aceito que os custos dos sistemas de saúde, públicos ou privados, serão crescentes. Isto se deve à transição demográfica e ao frenético processo de inovação tecnológica no setor.
Ninguém, em sã consciência, se coloca contra a incorporação de inovações que melhorem a atenção à saúde dos brasileiros. Em abstrato, na incorporação de novas tecnologias, o céu é o limite. Mas aí, nós, os chatos economistas, erguemos conceitos como restrição orçamentária e relação custo-efetividade. Isto impõe o exercício da ATS. No Brasil é papel da CONITEC e da ANS. Em dois dos melhores sistemas de saúde do mundo é função da NICE, no Reino Unido, e da CADTH, no Canadá. Ninguém no mundo desenvolvido faz incorporação tecnológica automática.
A ANVISA analisa unicamente a segurança e a eficácia. Mas isto não se confunde com a necessária ATS. É preciso esclarecer que os novos medicamentos são caríssimos. E “não há almoço grátis”. Alguém irá pagar a conta. No caso do SUS, todos os contribuintes. No caso da Saúde Suplementar, todos os 48 milhões usuários de usuários, que verão suas mensalidades subir significativamente. No caso concreto, qualquer oncológico recém-lançado implicará em tratamentos que custam entre 500 mil a 1 milhão de reais por ano.
Os planos de saúde já cobrem o tratamento de câncer, inclusive 58 medicamentos orais. A partir da última incorporação ao rol feita pela ANS, em abril de 2021, existem apenas 11 medicamentos, que têm registro na ANVISA a serem avaliados, que custam de 3.000 a 113.000 reais a caixa. O Canadá ainda não aprovou nenhum deles e o Reino Unido apenas um. Se o Congresso Nacional derrubar o veto, o Brasil será pioneiro.
O processo de ATS na ANS tem levado de dois a três anos. É muito tempo. Porque não fixar 180 dias, com a possibilidade excepcional de mais 90 dias, como propôs, em substitutivo, o deputado Pedro Westplalen?
Uma última pergunta: e os 166 milhões de brasileiros que dependem exclusivamente do SUS? Serão excluídos mais uma vez, aumentando a iniquidade social na saúde?
*Marcus Pestana, ex-deputado federal (PSDB-MG)
Fonte:
O Tempo
https://www.otempo.com.br/politica/marcus-pestana/subscription-required-7.5927739
Insanidade de Bolsonaro põe em risco os interesses do Centrão
Como ficarão os que se elegerem ano que vem se o presidente, uma vez derrotado, denunciar que houve fraude?
Blog do Noblat / Metrópoles
O sonho de consumo do Centrão é um presidente da República exangue, a mendigar apoio, disposto a ceder os anéis, os dedos e, se for o caso, um pouco mais para não ir ao chão antes da hora.
Não lhe interessa, porém, sustentar um presidente capaz de tocar fogo no pagode porque os pagodeiros, mesmo que o abandonem a tempo, correrão o risco de sair chamuscados.
Apoio político é um negócio como outro qualquer. Nada tem nada de pessoal. O acordo só é bom quando os dois lados ganham, embora um possa ganhar mais do que o outro.
O presidente Jair Bolsonaro sabe disso. Nasceu no Centrão e ali se criou. Prometeu a Ciro Nogueira (PP-PI), líder do Centrão e novo chefe da Casa Civil, que se comportaria bem doravante. Mas…
Mas faltou com a palavra antes mesmo de Nogueira tomar posse. Deu mais um passo em falso ao mentir durante duas horas e pouco sobre o voto eletrônico. Assim deixou mal seus avalistas.
Pode não parecer, mas o Centrão se preocupa com a própria imagem. Quer ser visto como um grupo de partidos responsável pela governabilidade do país, não só por explorar governos débeis.
Há gente demais dentro do Centrão que responde a processos. Essa gente só tem a perder quando o presidente da República hostiliza a Justiça da qual justamente depende sua sorte.
De resto, só Bolsonaro teria alguma coisa a ganhar, talvez a impunidade, com essa história de não reconhecer os resultados das eleições do ano que vem uma vez que as perca.
Denunciaria como fraudulento só o resultado da eleição presidencial, ou também os resultados para os governos de Estados, Câmara dos Deputados e Senado? E os demais eleitos?
A indagação faz sentido, sim. O voto eletrônico servirá para eleger a todos. Como dizer que houve fraude apenas no voto para presidente? Ou se anula tudo ou não se anula nada.
Arthur Lira (PP-AL), presidente da Câmara, voltou a repetir que o projeto bolsonarista que restabelece o voto impresso não será aprovado. E por que então Bolsonaro insiste com isso?
Porque quer estancar a sangria de votos que o debilita. Tem de continuar falando todos os absurdos que lhe garantiram o apoio da linha dura dos seus devotos. É ela que ainda o mantém respirando.
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Por que justamente agora, por que somente ontem o ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal, ordenou à Polícia Federal que retome a investigação sobre a interferência do presidente Jair Bolsonaro na corporação?
A interferência foi denunciada pelo ex-juiz Sérgio Moro ao demitir-se do cargo de ministro da Justiça. A Procuradoria-Geral da República abriu um inquérito a respeito, mas depois concluiu que nada aconteceu. Alexandre quer que o caso vá adiante.
Não ficará por isso mesmo os ataques semanais feitos por Bolsonaro ao Supremo, ao Tribunal Superior Eleitoral e a muitos dos seus ministros. Muito menos o seu empenho em desacreditar o sistema de votação eletrônica há 25 anos imune a fraudes.
Nesta segunda-feira, o Supremo reiniciará suas atividades suspensas durante as férias de julho. Ninguém, ali, põe muita fé na resposta que o ministro Luiz Fux dará ao que Bolsonaro tem dito. Fux ainda defende um pacto entre os três poderes da República.
Noves fora Fux, porém, tramitam ações em tribunais superiores capazes de afetar interesses pessoais de Bolsonaro. Elas poderão ganhar velocidade ou produzir decisões.
Fonte:
Blog do Noblat / Metrópoles
https://www.metropoles.com/blog-do-noblat/ricardo-noblat/insanidade-de-bolsonaro-poe-em-risco-os-interesses-do-centrao
BBC Brasil: Como análises matemáticas afastam hipótese de fraude nas urnas
A pretensa análise matemática dos resultados das eleições brasileiras se tornou a principal arma de apoiadores do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) para sustentar que já houve fraude nas urnas eletrônicas — alegação contestada pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE)
Mariana Schreiber, Da BBC News Brasil
Em sua live semanal desta quinta-feira (29/7), o presidente fez uma série de acusações contra a confiabilidade do sistema eleitoral brasileiro e anunciou que a Polícia Federal analisará um vídeo em que são apresentadas supostas provas de que a apuração dos votos de 2014 foi manipulada para garantir a vitória da então presidente Dilma Rousseff (PT) sobre Aécio Neves (PSDB) no segundo turno, quando o tucano perdeu por uma margem apertada de votos. O próprio PSDB, porém, reconhece que o resultado foi legítimo.
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Nesse vídeo de 2018, um anônimo analisa a evolução da contagem dos votos minuto a minuto, identificando o que seria um supostamente um padrão estatisticamente impossível de ocorrer naturalmente.
O vídeo foi produzido e divulgado por Naomi Yamaguchi, que tentou ser eleita deputada federal em 2018 pelo PSL e é irmã da médica Nise Yamaguchi, apoiadora de Bolsonaro conhecida por defender o uso da cloroquina no tratamento de covid-19, apesar de o remédio não ter eficácia comprovada contra a doença.
A argumentação exposta nesse vídeo, porém, é contestada pelo TSE e por especialistas em segurança de dados e estatística ouvidos pela BBC News Brasil. Análises matemáticas produzidas por acadêmicos têm identificado, inclusive, o oposto: que não há evidências de fraudes nas urnas eletrônicas.
Nessa reportagem, a BBC News Brasil destrincha os argumentos matemáticos que tentam comprovar as supostas fraudes e explica por que os cálculos são inconsistentes na avaliação de especialistas. Você vai entender, por exemplo, como o uso da Lei de Benford nessas análises tem sido aplicada de forma controversa para tentar detectar padrões fraudulentos na distribuição de votos nas urnas.
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Ao final, a reportagem mostra também como o cientista político Guilherme Russo, da Fundação Getúlio Vargas (FGV), aplicou uma metodologia desenvolvida por acadêmicos estrangeiros para analisar a distribuição dos votos nas eleições presidenciais de 2014 e 2018 e não encontrou evidências de fraudes.
Os especialistas ouvidos enfatizam que análises estatísticas não são capazes de provar que houve ou não manipulação nas eleições. Elas servem apenas como ponto de partida para detectar se há algum indício de anormalidade que precise ser melhor investigado.
Bolsonaro tenta provar que houve fraude nas eleições para sustentar a necessidade de alterar a urna eletrônica para incluir um comprovante impresso do voto. Segundo ele, apenas isso permitiria a auditoria do resultado eletrônico.
Já o TSE afirma que a urna eletrônica permite a auditoria dos resultados por meio do Boletim de Urna que é impresso ao final da votação na seção eleitoral (o documento possibilita comparar os votos computados em cada urna no sistema eletrônico do TSE com os do respectivo boletim).
Críticos de Bolsonaro dizem que ele não está de fato preocupado com a segurança da votação e deseja lançar desconfianças sobre o sistema eletrônico para contestar o resultado do pleito de 2022 caso não consiga se reeleger.
Entenda a seguir as falhas nas análises matemáticas que vem sendo apresentadas como "provas" de fraudes por Bolsonaro e seus apoiadores e como outras aplicações da ciência estatística têm afastado essa hipótese.
Os problemas nos cálculos que tentam provar fraude em 2014
"Em 2014, a pessoa que eu vou entrevistar, usando apenas as parciais (da apuração de votos) fornecidas pelo TSE e cálculos matemáticos, descobriu as fraudes nas urnas", afirmou Naomi Yamaguchi ao iniciar o vídeo de cerca de 15 minutos em que fala com um homem anônimo que diz ter provas de uma suposta ilegalidade na apuração da eleição presidencial.
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A imagem do entrevistado não é revelada, sendo possível apenas ouvir sua voz enquanto conversa com Yamaguchi.
A análise parte de uma premissa falsa: no vídeo, o homem diz ter certeza que a eleição foi fraudada porque o candidato Aécio Neves, no início da apuração, quando um volume ainda pequeno de urnas tinha sido contabilizado, atingiu um percentual de quase 70% dos votos válidos contra cerca de 30% de Dilma.
Conforme mais votos foram sendo contabilizados, Dilma inverteu a vantagem, conquistando uma vitória por pequena margem: o placar final da eleição ficou em 51,64% para a petista contra 48,36% do tucano.
Essa inversão, porém, é explicada pela dinâmica da contagem de votos em 2014, segundo o TSE. Por causa do horário de verão que era adotado em parte do país naquele ano, zonas eleitorais de estados do Norte e Nordeste fecharam depois de zonas do restante do país.
Dessa forma, a contagem começou com urnas de regiões onde Aécio era mais forte (Sul e parte do Sudeste), dando vantagem inicial ao tucano. Quando mais urnas do Norte e Nordeste foram contabilizadas, Dilma virou.
"Isso frustrou o país todo, inclusive a mim. E naquela hora eu tive certeza de que as urnas foram fraudadas", disse o anônimo no vídeo, ao comentar a inversão da vantagem de Aécio ao longo da apuração.
O homem conta então que buscou uma forma de provar a fraude a partir de uma análise da evolução da contagem de votos minuto a minuto, divulgada pelo TSE. "Se eu analisar esses números e descobrir um padrão, eu comprovo que esses números foram frutos de uma fórmula matemática, de um algoritmo", disse.
A partir daí, ele afirmou ter analisado a variação do incremento de votos de Dilma e Aécio em cada minuto e encontrou um padrão que seria praticamente impossível estatisticamente: por 241 minutos seguidos, os dois candidatos teriam se alternando na liderança da variação do ganho de votos.
"Aqui nós temos (a alternância) Dilma, Aécio, Dilma, Aécio, Dilma, Aécio, Dilma, Aécio, Dilma, Aécio. Quantas vezes, Naomi? 241 vezes Dilma, Aécio (se alternando)", sustentou o entrevistado de Yamaguchi.
"Aqui eu encontrei o padrão que eu procurava. E isso aqui não é o resultado de uma eleição natural, aonde se abrem urnas de vários pontos do país e você tem minuto a minuto uma variação imprevisível. Aqui, é totalmente previsível. E eu concluo com isso que somente uma fórmula poderia produzir este minuto a minuto que a gente enxergou em 2014", disse ainda o homem.
Ao analisar os dados brutos da apuração minuto a minuto, a BBC News Brasil não encontrou um padrão de alternância entre os incrementos de votos de Dilma e Aécio em 2014 durante os 333 minutos que duraram a contagem.
Os números oficiais do TSE indicam, na verdade, que Aécio liderou sozinho o ganho de votos nos minutos iniciais. Depois, Dilma apresentou maior incremento de votos na maior parte do tempo, com o tucano recebendo mais votos em alguns momentos pontuais.
O especialista em segurança de dados Conrado Gouvêa, doutor em Ciência da Computação pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), também analisou a apuração minuto a minuto e não encontrou um padrão de alternância entre os ganhos de votos de Dilma e Aécio. Sua análise está detalhada em seu site pessoal.
Gouvêa reproduziu as tabelas divulgadas no vídeo de Yamaguchi para tentar entender a análise sugerida pelo entrevistado e identificou que foi feito um cálculo errado que tem o resultado prático de necessariamente levar a alternância de Dilma e Aécio como o vencedor da apuração minuto.
Isso porque, em vez de analisar quem ganhou o maior incremento de votos a cada minuto, o homem anônimo elaborou uma metodologia em que analisou alternadamente o desempenho de cada candidato nos minutos ímpares e pares da apuração.
Ele passou a somar a cada minuto par os votos obtidos em todos os minutos pares anteriores de cada candidato. E fez o mesmo para os minutos ímpares. Depois calculou a evolução da proporção de votos ímpares e pares de cada candidato minuto a minuto.
O problema, afirma Gouvêa, é que com o avançar da apuração a proporção de "votos pares" e "votos ímpares" de cada candidato tende a se estabilizar de uma forma que necessariamente um dos candidatos sempre aparece como "vencedor" nas linhas pares e o outro sempre como "vencedor" das ímpares.
Isso explica porque nos 241 minutos finais de apuração, Dilma e Aécio aparecem alternados na análise feita pelo homem anônimo.
"Eu fiz um teste usando o mesmo cálculo aplicado no vídeo, em que gerei votos aleatórios para Dilma e Aécio, e o resultado alcançado foi o mesmo: dava uma alternância entre os dois. Se a mesma metodologia for usada nos resultados do resultado da eleição de 2018, fatalmente haverá uma alternância por muitos minutos entre Bolsonaro e Haddad (candidato do PT derrotado). Isso não é indício de qualquer fraude", disse Gouvêa à BBC News Brasil.
Ele afirma que é difícil saber se o erro de cálculo no vídeo apresentado por Yamaguchi foi por desconhecimento do entrevistado ou algo intencional para gerar uma falsa prova de fraude.
"Tem duas hipóteses: ou a pessoa realmente achou que estava fazendo uma análise certa e não estava, ou realmente foi má fé. É difícil diferenciar uma coisa da outra, mas a consequência é a mesma: levanta essa acusação (de fraude nas urnas) que não faz sentido, coloca em dúvida todo o processo eleitoral e muitas pessoas caem", lamentou.
Uma conversa de Bolsonaro no início de julho com apoiadores na porta do Palácio do Alvorada evidencia que o presidente é um dos que deu crédito a essa análise. "A fraude está no TSE, para não ter dúvida. Isso foi feito em 2014", disse na ocasião.
"O minuto a minuto, por 271 vezes consecutivas, dá para imaginar? Dá quatro horas e pouco. Momentos antes de as curvas se tocarem, dava: Dilma ganhou, Aécio ganhou, Dilma ganhou, Aécio ganhou, por 271 vezes. É vocês jogarem uma moeda 271 vezes para cima e dar cara, coroa, cara, coroa. Isso deve ser a quantidade de átomos aqui na terra", acrescentou, reproduzindo a tese divulgada no vídeo de Yamaguchi.
A BBC News Brasil procurou Naomi Yamaguchi por meio de sua irmã Nise Yamaguchi. Foram enviadas perguntas por email na segunda-feira (26/7) questionado se ela gostaria de responder às críticas ao seu vídeo, mas não houve retorno até a publicação desta reportagem.
O uso controverso da Lei de Benford
Outra análise matemática que tem sido usada para questionar a integridade da urna eletrônica é a aplicação da Lei de Benford, que é citada na segunda parte do vídeo de Naomi Yamaguchi como mais uma evidência de que a eleição de 2014 foi fraudada.
Além disso, é usada por Hugo Cesar Hoeschl, ex-procurador da Fazenda Nacional, para sustentar em um vídeo de 2018 que "a probabilidade de fraude na última eleição presidencial brasileira (2014) foi de 73,14%".
Sua tese é exposta em um texto de 11 páginas, com explicação superficial da metodologia empregada, e ganhou projeção por meio do veículo conservador Brasil Paralelo, que mantém em sua página do YouTube vídeos em que Hoeschl expõe suas conclusões.
A Lei de Benford, que leva o nome do físico Frank Benford, estabelece que em alguns conjuntos de números, como tamanhos de rio ou da população de cidades, o dígito inicial mais comum é o 1 (com 30,1% de frequência), seguido do 2 (17,6%). A frequência dos demais algoritmos como dígito inicial vai caindo sucessivamente também do 3 até o 9, quando é de apenas 4,6%.
Ou seja, ao analisar a população de todas as cidades do Brasil, por exemplo, há bem mais chances de o número começar com o dígito 1 (por exemplo, 100.148 habitantes, ou 13.400 habitantes, etc), do que começar com 8 ou 9.
Essa regra se mostra consistente na análise de vários conjuntos numéricos e é aplicada inclusive para detectar possíveis fraudes financeiras. Porém, segundo estatísticos consultados pela BBC News Brasil, não serve para prever a distribuição do dígito inicial de todo e qualquer conjunto de números.
Por exemplo, se formos analisar a distribuição da altura de todos os brasileiros adultos, encontraremos uma frequência inicial do dígito 1 muito maior que 30,1% como sugere a Lei de Benford, porque o mais comum é que adultos meçam mais de um metro e menos de dois.
A Lei de Benford, portanto, tende a funcionar quando se está analisando um conjunto abrangente de números que não tenham uniformidade.
No caso do vídeo da Naomi Yamaguchi, o entrevistado diz que aplicou a Lei de Benford para analisar a distribuição do primeiro dígito "nas parciais minuto a minuto fornecidas pelo TSE" da soma de votos de Dilma e Aécio.
O resultado que ele encontra porém destoa totalmente do previsto na lei porque dá uma baixa frequência para os dígitos iniciais 1, 2, 3 e 4 e mostra como algoritmo mais frequente no primeiro dígito o 5, tanto para os votos de Dilma como os de Aécio. E do 6 em diante a frequência é próxima de zero.
A questão é que ele usou na análise a evolução do acumulado dos votos de cada candidato minuto a minuto e, para ambos, a soma dos votos foi subindo gradualmente até atingir o patamar de mais de 50 milhões de votos, se estabilizando pouco acima disso.
O resultado final ficou em 54,5 milhões de votos para Dilma e 51 milhões para o Aécio, sendo impossível, portanto, que os dígitos de 6 a 9 aparecerem com frequência relevante.
"O dígito 5 é o mais frequente por um simples motivo: foram 105 milhões de votos válidos, resultando cerca de 50 milhões de votos para candidato. E a apuração foi ficando mais lenta conforme foi avançando (o que é normal), fazendo com que exista um grande número de parciais na casa dos 50 milhões (primeiro dígito 5), e um número razoável na casa dos 40, 30, 20 e 10 milhões (primeiros dígitos 4, 3, 2, 1). Isso é exatamente o que está ilustrado no gráfico do vídeo (Naomi Yamaguchi)", explica em seu site o especialista em segurança de dados Conrado Gouvêa.
Essa análise, porém, é tratada no vídeo como grande evidência de fraude.
"Nós não temos a Lei de Benford nas parciais minuto a minuto fornecidas pelo TSE. Isso aqui também tem um embasamento muito forte na Matemática de que praticamente é impossível você ter um universo natural de números aonde a maior parte dos números começam com 5. Isso vai totalmente contra a lógica matemática", diz o entrevistado anônimo.
"O Brasil Paralelo fez um estudo esse ano que falou que em 2014 houve 74% de chances das urnas serem fraudadas. Você está nos dando a prova de que foi 100% de chances de elas terem sido fraudadas", responde Naomi Yamaguchi, em referência às teses de Hugo Hoeschl.
A pedido da BBC News brasil, o professor do departamento de Estatística da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) Rafael Stern analisou o texto de 11 páginas que Hoeschl assina com mais três pessoas (Tania Cristina D'Agostini Bueno, Gilson da Silva Paula e Claudio Tonelli).
Esse artigo diz em sua conclusão que "a eleição brasileira de 2014, sob a ótica da Lei de Newcomb Benford, encontra-se reprovada na análise de conformidade, com grau de certeza de 73,149%".
Para Stern, "faltou rigor científico" ao texto, já que ele não explica detalhadamente a metodologia utilizada e os cálculos feitos. Isso impede que cientistas reproduzam a análise para testar sua validade.
"Parece que é um texto científico, mas não mostra muito bem algumas premissas por trás da análise dele. Eu não saberia replicar exatamente o que ele fez ali. Ele não explica como esse valor de 73% foi calculado. Para um texto rigoroso científico, está faltando muito", disse o professor.
"A Lei de Benford é complicada de um ponto de vista estatístico. Tem muitos artigos escritos sobre as condições em que essa lei é satisfeita, mas se o cenário eleitoral com o processamento que ele fez estaria dentro ou não da lei eu não sei te dizer porque ele não explica bem como foi aplicada", disse ainda.
O estatístico Carlos Cinelli, doutorando na Universidade da Califórnia, nos Estados Unidos, usou a Lei de Benford para analisar os resultados da eleição de 2014 e identificou limitações da sua aplicação.
Em seu blog pessoal, ele mostrou que a distribuição da frequência do primeiro dígito na quantidade de votos obtidos por Dilma em cada município apresentou boa correlação com a lei quando aplicada para analisar essa distribuição nacionalmente (ou seja, em todos os municípios do país).
Já quando a análise dos municípios era feita por Estado, foram encontradas discrepâncias grandes com os resultados previstos na lei em locais como Bahia, Minas Gerais, Pernambuco, Piauí e Rio Grande do Sul.
Segundo ele, isso não serve como indicativo de fraude, porque a variação do primeiro dígito no número de habitantes das cidades desses Estados também não segue a Lei de Benford.
Como o número de eleitores (votos) está relacionado ao número de habitantes, logo a lei não seria aplicável nesses casos, ele ressalta em seu site: "Deste modo, para o caso em questão, as grandes discrepâncias entre a Lei de Benford e o número de votos em alguns Estados parecem decorrer, em grande medida, do próprio desvio já presente nas distribuições da população e do eleitorado".
À BBC News Brasil, Cinelli explicou que isso provavelmente ocorreu porque o tamanho da população nas cidades desses Estados deve ser mais homogêneo. E a Lei de Benford funciona melhor quando há uma abrangência grande de números variados.
"Isso (a falta de correlação em alguns Estados) diminui a utilidade da Lei de Benford para identificar indícios de possíveis manipulações", afirma.
Ele ressalta que, mesmo nos casos em que a Lei de Benford se aplica, ela não serve como prova de que houve ou não alguma fraude, mas sim como um indicativo de possíveis focos que devem ser melhor investigados.
Ao analisar o texto de Hoeschl a pedido da BBC News Brasil, Cinelli também identificou problemas, já que ele diz ter aplicado a Lei de Benford nos resultados das zonas eleitorais (em vez de municípios) de cada Estado.
"Não teria porque esperar que a distribuição de votos dentro de cada Estado seguisse a Lei de Benford (para os primeiros dígitos), dado que a própria população não segue. A situação piora ainda mais se olharmos por zona eleitoral. Quanto menor o âmbito da análise, menos a gente espera que a Lei de Benford se aplique para os primeiros dígitos", disse Cinelli.
Procurado pela BBC News Brasil, Hoeschl respondeu aos questionamentos após a publicação da reportagem. Ele discordou da crítica de Cinelli e insistiu que sua análise por zona eleitoral e Estado é adequada.
"Via de regra, os estados possuem mais zonas eleitorais do que municípios, o que significa um universo maior de dados para serem comparados com as proporções de Benford, o que torna a análise mais rica e mais distribuída", disse.
No entanto, o portal do TSE mostra que praticamente todos os Estados têm mais municípios que zonas eleitorais (apenas no Rio de Janeiro ocorre o inverso). O país tem no total 5,5 mil municípios e 2,6 mil zonas eleitorais.
Hoeschl também refutou que falte rigor científico à sua publicação. Questionado se poderia detalhar como chegou ao resultado de 73% de probabilidade de fraude na eleição de 2014, disse que isso já estava claro em seu texto.
"A forma como o método está descrito no texto está bastante simples, clara e objetiva, e se deve discordar da negativa de reprodutibilidade do procedimento ali descrito - ou do seu teor conclusivo - sem que tal negativa esteja escorada em dados concretos, registros de tentativas, logs reconstrutivos, ou resultados diversos dos encontrados até então", afirmou.
A reportagem também questionou o Brasil Paralelo sobre as críticas ao conteúdo de Hoeschl divulgado em seu canal do YouTube. Identificando-se como chefe de relações institucionais do veículo, Renato Dias respondeu por email que Hoeschl foi um dos entrevistados para o mini-documentário Dossiê Urnas Eletrônicas, motivado pelo "grande movimento de pessoas que estavam desconfiadas sobre a auditabilidade das urnas eletrônicas" em 2018.
"Reforçamos que em nenhum momento a Brasil Paralelo afirmou que alguma eleição já foi fraudada. O objeto de pesquisa sempre foi a confiança do eleitor na urna eletrônica", afirmou ainda.
Outras análises matemáticas contradizem hipótese de fraudes
O cientista político Guilherme Russo, pesquisador da FGV, aplicou outra análise matemática da distribuição dos votos entre os candidatos nas eleições presidenciais de 2014 e 2018 e obteve resultados que afastam a suspeita de fraudes nas duas disputas.
A metodologia empregada por ele é detalhada em um artigo de 2012 dos cientistas políticos Bernd Beber e Alexandra Scacco, então professores da New York University, nos Estados Unidos. Hoje ambos são pesquisadores do WZB Berlin Social Science Center, na Alemanha.
A metodologia consiste em analisar como se distribuem os últimos algarismos do número de votos dos candidatos em cada urna.
O último algarismo pode variar de 0 a 9 e, numa eleição não manipulada, a incidência de cada um desses dez algarismos tende a estar próxima de 10%.
Por exemplo, o site do TSE permite ver que, no primeiro turno de 2018, na 6ª seção da 4ª zona eleitoral São Paulo, localizada na zona leste da cidade, Bolsonaro recebeu 85 votos contra 34 de Fernando Haddad (PT) e 31 de Ciro Gomes (PDT).
O que é levado em conta nessa análise é o último dígito do número de votos. Ou seja, 5 no caso de Bolsonaro, 4 no caso de Haddad e 1 no de Ciro Gomes, considerando essa sessão específica de São Paulo.
Segundo a metodologia aplicada, ao se analisar todas as urnas do país, a quantidade de vezes que o número de votos de Bolsonaro, Haddad ou Ciro acaba em 5, por exemplo, deve ser cerca de 10% para cada um deles. E a mesma coisa para o número de vezes que acaba em qualquer um dos outros dígitos entre 0 e 9.
Já quando há manipulação nas eleições, essa distribuição de frequência dos dígitos finais não tende a ser uniforme, argumentam Beber e Scacco.
No artigo de 2012, publicado pela revista científica Political Analysis, da Universidade de Cambridge, no Reino Unido, eles usam pesquisas da área de psicologia para mostrar como eventuais fraudes nas urnas tendem a deixar rastros detectáveis por análises matemáticas.
Isso porque os seres humanos são pouco habilidosos para gerar números aleatórios. Dessa forma, ao fraudar os números de votos, tendem a alterar o resultado das urnas sem respeitar a aleatoriedade que uma votação sem manipulação produz.
Ao testar sua metodologia em eleições da Suécia, Nigéria e Senegal, os dois encontraram evidências de manipulação no pleito nigeriano de 2003 e no senegalense de 2007.
Ao aplicar essa metodologia para os resultados do primeiro turno de 2018 no Brasil, Russo identificou que a distribuição do último dígito da quantidade de votos em cada urna do país entre os três candidatos presidenciais mais votados naquele pleito — Jair Bolsonaro (então no PSL), Fernando Haddad (PT), Ciro Gomes (PDT) — se deu de maneira bastante uniforme entre os três, sempre em torno de 10%.
Outra maneira de tentar identificar a interferência humana no resultado das eleições proposta por Beber e Scacco é olhar para os dois dígitos finais do número de votos.
"Humanos tendem a subestimar a repetição de um mesmo algarismo (por exemplo, 1-1 e 4-4). Também utilizamos pares de algarismos sequenciais mais do que o acaso criaria (por exemplo, 2-3 e 7-8)", explica Russo.
A aplicação dessa análise à última eleição presidencial também não apontou sinais de manipulação. "Em 2018, a frequência de algarismos repetidos nos dois últimos dígitos é 10,025% nos votos de Bolsonaro no 1º turno, 9,674% para Haddad e 10,139% para Ciro Gomes. Ou seja, são muito próximos da expectativa de 10%", nota ele.
"Já a existência de algarismos consecutivos deve acontecer 20% das vezes em um sorteio, pois há duas entre dez possibilidades de que o segundo algarismo seja vizinho do primeiro (considerando 9 e 0 como vizinhos). Os números obtidos são: 19,159% (Bolsonaro), 19,922% (Haddad) e 20,129% (Ciro)", acrescenta.
As mesmas análises foram aplicadas por Russo para votos do primeiro turno presidencial de 2014 recebidos por Dilma, Aécio e Marina Silva (Rede), com resultados semelhantes. Na sua visão, esses dados "contradizem a irresponsável alegação de fraude".
Análises matemáticas não servem para cravar se houve ou não fraude
A pedido da BBC News Brasil, o professor de Estatística da UFSCar Rafael Stern também avaliou a metodologia usada por Russo e a considerou "bem consistente" para a análise dos resultados das eleições. Ele ressaltou, porém, que essa análise estatística também não permite cravar se houve ou não fraude.
"Não dá pra concluir categoricamente que não houve fraude. O que essa análise mostra é que não houve um tipo de fraude que resultaria nessa quebra de padrão (de frequência dos últimos dígitos da quantidade de votos por urna). Você pode imaginar que um fraudador suficientemente sagaz tentaria manter esses padrões", nota o professor.
Isso poderia ser alcançado, exemplifica Stern, se o fraudador subtraísse um número de votos de um determinado candidato e transferisse para outro de forma idêntica em uma quantidade suficientemente grande de urnas que não alterasse essa distribuição aleatória do dígito final.
Uma série de mecanismos de segurança adotados pelo TSE, porém, dificultam as invasões das urnas eletrônicas.
"Não é um processo trivial, é necessário encontrar alguma vulnerabilidade que permita fazer isso sem ser detectado", nota Paulo Matias, professor do Departamento de Computação da UFSCar que participou de testes de vulnerabilidade nas urnas eletrônicas em 2017.
"Não existem evidências de fraudes desse tipo em eleições passadas, nem de risco iminente de fraude nas eleições do ano que vem", disse ainda.
Apesar disso, Matias é um dos estudiosos da segurança das urnas eletrônicas que defendem a adoção do voto impresso associado à urna eletrônica, como forma de aperfeiçoar os mecanismos de segurança no futuro, com mais um instrumento de auditagem. O modelo é usado em alguns locais, como Índia e distritos dos Estados Unidos.
"É extremamente irresponsável tentar implementar o voto impresso em apenas um ano (para a eleição de 2022), pois uma implementação descuidada trará mais riscos ao processo eleitoral que benefícios", diz.
"Por outro lado, justamente por ser um mecanismo que demanda implementação cuidadosa, devemos começar a pensar em implementá-lo desde já, em vez de deixar para começar só quando ele se mostrar necessário. Não sabemos se o panorama vai continuar o mesmo daqui a dez anos", argumentou ainda.
Fonte:
BBC Brasil
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-58007138
Bolsonaro ignora apelo do centrão, volta a ameaçar eleições e diz que 'não aceitará farsa'
Presidente novamente desrespeitou protocolos sanitários em motociata no interior de SP e fez live com problemas técnicos
Ana Luiza Albuquerque e Emerson Voltare, da Folha de S. Paulo
O presidente Jair Bolsonaro (sem partido) ignorou apelos de líderes e dirigentes de partidos do centrão que dão sustentação ao seu governo e voltou a atacar o sistema eleitoral durante manifestação a seu favor em Presidente Prudente (SP) neste sábado (31).
Em transmissão ao vivo na quinta-feira (29), Bolsonaro havia feito o mais duro ataque contra as urnas eletrônicas, sem, entretanto, apresentar qualquer prova das supostas fraudes nas eleições que denuncia há três anos. Ministros do TSE (Tribunal Superior Eleitoral) e do STF (Supremo Tribunal Federal) reagiram nos bastidores, e aliados do centrão apelaram ao presidente para que moderasse o tom.
Dois dias após os ataques e a disseminação de informações falsas, porém, Bolsonaro afirmou em palanque que a democracia só existe com eleições limpas e que não aceitará uma "farsa".
"Queremos eleições, votar, mas não aceitaremos uma farsa como querem nos impor. O soldado que vai à guerra e tem medo de morrer é um covarde. Jamais temerei alguns homens aqui no Brasil que querem impor sua vontade", disse.
O discurso de Bolsonaro foi transmitido ao vivo em suas redes sociais, mas a transmissão enfrentou problemas técnicos e caiu diversas vezes.
A motociata em Presidente Prudente foi a sexta promovida pelo presidente, que voltou a ignorar protocolos sanitários, gerar aglomerações e cumprimentar apoiadores sem máscara. Acompanharam o chefe do Executivo os ministros Marcelo Queiroga (Saúde) e Tarcísio de Freitas (Infraestrutura).
A manifestação ocorreu em meio ao avanço da variante delta da Covid-19, mais transmissível que as demais. O Brasil registrou 886 mortes pela doença nesta sexta-feira (30), e chegou a 555.512 óbitos desde o início da pandemia. A média móvel de mortes é de 1.013 —o país está há 191 dias seguidos contabilizando mais de 1.000 mortes por dia.
As cinco motociatas anteriores foram realizadas entre maio e julho, em Brasília, Rio de Janeiro, São Paulo, Chapecó (SC) e Porto Alegre. O presidente anunciou que a próxima será em Florianópolis, no dia 7 de agosto.
Segundo resposta obtida pela Folha via Lei de Acesso à Informação, somente a motociata realizada no Rio em maio custou ao menos R$ 231 mil aos cofres públicos, somando os gastos com o cartão corporativo, transporte terrestre, passagens, telefonia e diárias.
Na soma não estão inclusos os custos do governo estadual com reforço no policiamento. Na motociata da capital paulista, esses gastos chegaram a R$ 1,2 milhão com a participação de 1.433 policiais, cinco aeronaves, dez drones e aproximadamente 600 viaturas, informou a Secretaria de Segurança Pública do estado.
Em Presidente Prudente, ainda segundo a secretaria, esses custos foram superiores a R$ 300 mil. O efetivo foi reforçado com 450 policiais militares, drones e um helicóptero.
Para a passagem de Bolsonaro em Presidente Prudente, foi bloqueado o acesso das principais rodovias que vão para o norte do Paraná, para a divisa de Mato Grosso do Sul, para a capital paulista e para o norte do estado de São Paulo. Foram escalados para o evento 500 policiais militares, 150 rodoviários, batalhões especiais e um helicóptero.
Além de apoiar o presidente, segundo os organizadores, a motociata teve como objetivo fortalecer o movimento “Brasil livre e a favor do voto auditável” —fazendo coro às mentiras espalhadas por Bolsonaro sobre supostas fraudes nas eleições, nunca provadas por ele.
Bolsonaro chegou no aeroporto por volta das 9h, percorreu um percurso nas estradas que circundam o local, e seguiu para o parque do Povo, principal parque urbano da cidade.
Segundo a agenda oficial, o presidente foi a Presidente Prudente para formalizar o credenciamento do Hospital de Esperança, antigo HRCPP (Hospital Regional do Câncer de Presidente Prudente), junto ao SUS.
Além da motociata, a agenda extraoficial de Bolsonaro previa um megachurrasco com 2.000 pessoas no centro de exposições da cidade.
A pedido do Ministério Público, o evento foi cancelado pela Justiça, que alegou que uma cerimônia deste tamanho só poderia estar inserida na categoria dos eventos-teste anunciados pelo governo paulista em meio à pandemia da Covid-19.
A prefeitura afirmou que o evento era encabeçado pela UDR (União Democrática Ruralista), uma associação civil que despontou em defesa dos ruralistas em meados dos anos 1980, quando o oeste paulista se tornava epicentro de conflitos fundiários, com a presença do MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra) na região.
A organização já foi presidida por Luiz Antonio Nabhan Garcia, líder ruralista local e hoje secretário de Assuntos Fundiários do Ministério da Agricultura do governo federal e aliado próximo do presidente. Desde a corrida presidencial de 2018, Nabhan Garcia é ainda um dos principais fiadores de Bolsonaro entre parte do setor do agronegócio no país.
Na CPMI da Terra, concluída em 2005, Nabhan Garcia foi acusado de estar associado a milícias armadas no campo em defesa de fazendeiros na região de Presidente Prudente. À época, o agora secretário de Bolsonaro responsável pela reforma agrária e demarcação de terras indígenas negou as acusações e não foi indiciado.
Irmão dele, Maurício Nabhan Garcia chefia hoje a Secretaria de Agricultura e Abastecimento em Presidente Prudente, pasta criada pelo atual prefeito prudentino, que, apesar de estar filiado a um partido que faz oposição a Bolsonaro a nível nacional, se mostra alinhado ao presidente.
Desde a eleições municipais de 2020, quando garantiu seu primeiro mandato à frente da prefeitura, Ed Thomas (PSB) mantém elogios públicos e fotos com Bolsonaro nas redes sociais. A cidade elegeu o presidente com 78% dos votos válidos no segundo turno das eleições de 2018
Nesse sábado, o prefeito publicou uma nova imagem com o presidente, afirmando que sua visita é uma "oportunidade para manifestar gratidão pelo credenciamento do Hospital de Esperança junto ao SUS".
Fonte:
Folha de S. Paulo
Os democratas devem pautar o debate público
Dedicado à memória do jornalista Marco Antônio Tavares Coelho.
Cláudio de Oliveira
As forças democráticas precisam pautar o debate público do país. Esse debate não pode girar em torno da agenda de Jair Bolsonaro, pois ela não representa, em grande parte, os interesses e as necessidades da maioria da sociedade brasileira.
Naturalmente, quem está na chefia do Executivo tem grande força política para definir os termos do debate. O presidencialismo brasileiro concentra grande poder na mão do presidente, que detém a iniciativa política.
Também contribuem para tal fato, a fragmentação partidária e a fraqueza dos partidos políticos no Brasil. As oposições estão divididas e algumas delas voltadas para os seus problemas.
Mas, recentemente, no início da pandemia do coronavírus, a Câmara dos Deputados, então presidida pelo deputado Rodrigo Maia, mostrou capacidade política de propor os termos do debate e liderar, de algum modo, o enfrentamento da pandemia. Foram muitas as iniciativas dos deputados para a condução da crise sanitária, em contraste com o negacionismo, o boicote e a inação do governo federal.
Depois de esperar por duas semanas por uma proposta oficial de auxílio-emergencial, anunciada verbalmente pelo ministro Paulo Guedes no valor de R$ 200, Rodrigo Maia colocou em votação a proposta de auxílio da própria Câmara, inicialmente no valor de R$ 500 e aprovada depois para R$ 600. Como sabemos, o auxílio foi fundamental para socorrer parcela expressiva da população que se viu sem fonte de renda por conta da pandemia.
Também partiram da Câmara dos Deputados diversas iniciativas necessárias ao enfrentamento da Covid-19, como a aprovação de um orçamento extraordinário da pandemia, que autorizava o chefe do Executivo a desconsiderar o teto de gastos.
Mesmo a reforma da Previdência de 2019 deveu-se sobretudo à ação parlamentar, da aprovação de um tema que estava na pauta do país desde pelos menos 1998, quando o então presidente Fernando Henrique Cardoso apresentou sua proposta visando garantir a higidez da Previdência pública, derrotada por um voto.
Como analisou a economista Laura Carvalho, assessora econômica do candidato a presidente pelo PSOL, Guilherme Boulos, o texto da reforma da Previdência aprovado “ficou a anos-luz do original no que tange ao impacto sobre os mais pobres”(1). Uma diferença fundamental: foi mantido o atual sistema previdenciário de repartição, como propuseram os constituintes de 1987/1988, diferentemente do modelo de capitalização do Chile, desejado pelo ministro Paulo Guedes.
A decisão do Senado de instalar a CPI da Pandemia deu às forças democráticas a iniciativa de pautar os termos do debate em torno da crise sanitária, deixando o governo Jair Bolsonaro na defensiva e provocando alterações significativas no executivo federal.
As forças democráticas devem agora tentar pautar o debate de forma positiva, apresentando suas propostas para o Brasil pós-pandemia. Como já ficou demonstrado desde 2019, o governo Bolsonaro não tem um projeto de desenvolvimento para o país.
Ajustar as contas públicas e fazer reformas do Estado são medidas necessárias porém insuficientes para relançar o Brasil em um novo ciclo de desenvolvimento que o qualifique para a grande competição global. Lembrando ainda que os ajustes realizados e as reformas propostas pela atual equipe econômica, com poucas exceções, foram de qualidade e efeitos duvidosos.
Some-se à falta de projeto do governo, o isolamento internacional que o Brasil foi jogado por Jair Bolsonaro, por sua política externa ideológica de extrema-direita, a ação em prol do “lupem-empresariado” como madeireiros, garimpeiros e grileiros, e o desmonte de importantes instituições do país, inclusive em setores estratégicos como ciência, pesquisa, tecnologia, educação e cultura.
O afastamento do presidente Jair Bolsonaro é um imperativo que se impõe, não só por essas questões como principalmente pela tentativa de erosão das instituições democráticas e do Estado de Direito. As forças democráticas devem, portanto, pautar o impedimento do presidente da República como primeiro item do debate público.
Além disso, devem apresentar a agenda que realmente interessa ao país: como aperfeiçoar as instituições e os órgãos de controle da corrupção no país, como democratizar e melhorar a representação político-partidária, como retomar o crescimento econômico, como retomar e ampliar a inclusão social, como acelerar a transição para uma economia verde de carbono zero, como melhorar os programas de proteção social, como avançar na questão crucial da educação, como aperfeiçoar o SUS – que deu provas de vitalidade no enfrentamento da pandemia, apesar da pouca coordenação em nível federal.
É em torno de uma pauta progressista que as forças democráticas devem fazer com que o debate público gire, apresentando à sociedade brasileira propostas concretas para os grandes desafios nacionais e as soluções positivas para os problemas que afligem a nossa gente.
* Cláudio de Oliveira é jornalista e cartunista e autor dos livros ERA UMA VEZ EM PRAGA – Um brasileiro na Revolução de Veludo e LÊNIN, MARTOV A REVOLUÇÃO RUSSA E O BRASIL, entre outros.
PS: Para ilustrar este artigo usei imagem que recebi pelas redes sociais de um chamado Bloco Democrático, do qual, defendo, nenhum partido ou movimento do campo democrático deve ser excluído.
NOTA
(1) Laura Carvalho - A previdência pública sobrevive
https://www1.folha.uol.com.br/colunas/laura-carvalho/2019/07/a-previdencia-publica-sobrevive.shtml?origin=folha
Em busca de novos caminhos
O Brasil precisa tomar o rumo da racionalidade para ter sucesso
Murillo de Aragão / Revista Veja
Na tese do copo d’água meio cheio, o Brasil só não fracassou em termos. Estamos entre as maiores economias do mundo e somos o segundo maior produtor de alimentos, entre outras façanhas. Mas existe o meio copo d’água vazio, que, em algum momento, terá de ser preenchido. Ou nos afogaremos em um país de fato fracassado.
Aos que têm recursos é fácil imaginar uma vida amena fora do Brasil. E, de lá, meter o pau no país, entre uma taça e outra de vinho. Mas a questão importa para os mais de 200 milhões de brasileiros, pelo menos, que não vão sair daqui, e nem sequer sabem o que é um passaporte. Devemos pensar neles.
Qual seria o caminho para incorporar milhões de brasileiros em uma nação potencialmente virtuosa? Devemos começar pensando que as soluções do passado não funcionaram. O tenentismo nos trouxe a estatização e terminou reforçando a supremacia do Estado sobre a sociedade.
O esquerdismo também não deu certo quando se revelou reforçando a presença do Estado na economia. O centro, com uma social-democracia mais equilibrada, foi capturado pela lógica financeira e tributária, perdendo a chance de fazer revoluções sem grandes dores.
Em um afã “liberaleiro”, há quem queira abrir as fronteiras para que produtos chineses destruam nosso parque industrial no melhor estilo de Martínez de Hoz, que acabou com a indústria argentina. O caminho do sucesso não deve ser nem “nacionaleiro” nem “liberaleiro”. Deve ser racional. E a racionalidade nos aponta, com obviedade, o caminho do sucesso.
“O tenentismo nos trouxe a estatização e o esquerdismo também não deu certo”
Para trilhar o caminho do sucesso devemos respeitar fundamentos importantes. Quais? Vamos por partes. Garantir a liberdade de empreender, já que a iniciativa privada, com todos os seus defeitos, é o que gera dinamismo econômico. A liberdade de expressão deve ser assegurada, pois a força da palavra traz questionamentos, aperfeiçoamentos e o livre pensar.
A liberdade de cátedra deve ser garantida, para bem ensinar de forma plural. Devemos renegar tanto o ensino enviesado e “canhoteiro”, que predomina em nossas academias públicas, como a tentativa de domesticar a aprendizagem por outros cânones ideológicos.
A partir desse entendimento, devemos superar os obstáculos que nos amarram ao passado. O primeiro a ser removido é o custo do dinheiro, que nada mais é do que papel pintado. Temos de ter abundância de crédito. Em crise, os Estados Unidos nos dão o exemplo: injetam dinheiro na economia, assim como a China.
O segundo obstáculo a ser encarado refere-se à necessidade de simplificar o sistema tributário. O Brasil devia se transformar em um paraíso fiscal onde pagar impostos seja tão fácil e barato a ponto de a sonegação se tornar irrelevante.
O terceiro obstáculo a ser demolido reside no custo do Estado: pensões e penduricalhos, entre outros gastos, devem ser removidos por decisão judicial. São claramente inconstitucionais e uma penada da Justiça pode eliminá-los.
O quarto obstáculo encontra-se no sistema partidário e eleitoral, que termina por perpetuar o atraso. O caminho para removê-lo é também pela via judicial, com o fim da fragmentação partidária e de fundos eleitorais e partidários abundantes.
Enfim, o caminho do sucesso estará em outra via, seja quem for nosso futuro presidente. E a construção de uma nova via impõe uma reflexão sobre qual futuro desejamos para o Brasil.
Fonte:
Publicado em VEJA de 4 de agosto de 2021, edição nº 2749
https://veja.abril.com.br/blog/murillo-de-aragao/em-busca-de-novos-caminhos/
Perigo está na derrota do centrão para o Partido Militar, não no contrário
Risco de rompimento do equilíbrio instável não está no acordo com Nogueira e Lira
Reinaldo Azevedo / Folha de S. Paulo
A "prova matemática" que Jair Bolsonaro apresenta de que houve fraude em 2018 é, ela mesma, uma fraude já desmoralizada pelos... matemáticos. O truque, a exemplo do que se dá com o cloroquinismo, consiste em chamar de mera opinião a ciência, e de ciência a mera opinião ou o proselitismo ideológico. Uma postura corrói a democracia; a outra mata pessoas. O momento é delicado. Bolsonaro já sabota seu recém-indicado ministro da Casa Civil.
A trapaça se opera com a mesma sem-cerimônia com que o crime é chamado de liberdade de expressão, e a liberdade de expressão, de crime. E tudo se dá sob o silêncio cúmplice do procurador-geral da República, Augusto Aras, ele próprio empenhado em criminalizar os que têm uma opinião desabonadora não a respeito de sua pessoa privada —talvez seja um cara bacana—, mas de seu desempenho à frente da PGR, a exemplo do que faz com Conrado Hübner Mendes, colunista deste jornal.
Antes de sua patuscada matemática —criminosa por si mesma porque ataca a institucionalidade por meio de uma falácia—, foi o presidente a acusar o Supremo de ter cometido crime ao supostamente tê-lo impedido de atuar contra a pandemia. É evidente que não agiria com tamanha desenvoltura não fossem a certeza da impunidade e a esperança da virada de mesa "manu militari". E aqui está o xis da questão.
O centrão terá de decidir se vai ser esbirro do golpismo, que conta com apoio de alguns fardados de pijama, ou se vale o combinado entre o próprio Bolsonaro, Arthur Lira (PP-AL), presidente da Câmara, e Ciro Nogueira, novo ministro da Casa Civil: apoio até o fim, mas dentro das regras do jogo. Nogueira, note-se, foi o intermediário do recado golpista de Braga Netto, o gendarme da Defesa, a Lira: ou voto impresso ou suspensão das eleições de 2022.
Como desdobramento imediato da ameaça, deu-se o revés da fortuna para o Partido Militar (PM). O presidente do PP foi guindado à Casa Civil, definida por Bolsonaro como "a alma" do governo. Convém lembrar que Luiz Eduardo Ramos, o defenestrado, saltara do Comando do Sudeste para a Secretaria de Governo, encarregando-se, então, da articulação política. Uma aberração.
A 18 de fevereiro de 2020, assumiu a Casa Civil outro general: justamente Braga Netto, oriundo da chefia do Estado Maior do Exército. Mais uma aberração. Quando o presidente houve por bem "mostrar quem manda" nas Forças Armadas, tirou Fernando Azevedo e Silva da Defesa, substituindo-o por aquele que ameaçou pôr fim às eleições, e entregou a Casa Civil a Ramos.
Ora, é preferível que o centrão seja "a alma" do governo a que o governo tenha uma alma fardada e golpista. Os parlamentares podem ser aposentados pelo voto. O moralismo estridente que tomou conta do meio ambiente político com o lavajatismo policialesco destruiu a nossa hierarquia de valores. E não é raro que se leiam na imprensa textos de pessoas até bem-intencionadas a relegar a própria democracia a aspecto lateral em nome do que entendem ser a moralidade.
Pululam em todo canto, por exemplo, os vídeos da campanha de Bolsonaro em que ele assegura que vai governar sem o centrão, sem os políticos, sem os partidos, sem as ONGs, sem os entes da sociedade civil. Era candidato a César, não a presidente. E aí se contrasta aquele postulante, como se virtuoso fosse, com o presidente de hoje, que faz acordo com o centrão.
Esperem aí! Aquele era o Bolsonaro fascistoide, que voltou a dar as caras nesta quinta. Já o acordo com o centrão pertence ao universo da política se cumprido. Ocorre que, tudo indica, o novo ministro da Casa Civil nem deu os primeiros passos e já está sendo sabotado pelo presidente.
A nomeação de Nogueira representou uma derrota para o Partido Militar. Pela primeira vez em dois anos e sete meses, o governo pode ter um eixo que não seja a força, ainda que seja o centrão. A nova agressão de Bolsonaro ao STF e a mentira sobre a fraude eleitoral indicam que o risco de rompimento do equilíbrio instável não está no acordo com Nogueira e Lira, mas no seu descumprimento. O perigo está na derrota do centrão para o Partido Militar, não no contrário.
Fonte:
Folha de S. Paulo
https://www1.folha.uol.com.br/colunas/reinaldoazevedo/2021/07/o-perigo-esta-na-derrota-do-centrao-para-o-partido-militar-nao-no-contrario.shtml
Centrão ajuda Bolsonaro a fazer o governo do extremistão
Não há ilusão de normalidade na contratação de um operador político para o Planalto
Bruno Boghossian / Folha de S. Paulo
O novo chefe da Casa Civil chegou ao Planalto com a missão de azeitar relações com o Congresso, reduzir tensões com o STF e preparar terreno para a reeleição de Jair Bolsonaro. A contratação de um profissional para cumprir essas funções deixa o presidente livre para continuar exercendo sua especialidade: trabalhar na direção contrária.
Ao mesmo tempo em que abria as portas do governo para o centrão, Bolsonaro espalhou novas mentiras sobre a atuação do Congresso na aprovação do fundo eleitoral, acusou integrantes do Supremo de conspiração e voltou a divulgar informações falsas para tumultuar a realização das próximas eleições.
Não há nenhuma ilusão de normalidade na contratação de um nome como Ciro Nogueira para administrar as articulações e gerenciar o trabalho do Planalto. O centrão pode até tentar reduzir danos políticos provocados pelos ataques de Bolsonaro às instituições, mas a linha mestra do governo continua sendo executada no gabinete presidencial, controlado pelo líder do extremistão.
O presidente já mostrou que não tem interesse numa relação saudável com outros Poderes. Nas últimas semanas, ele insinuou que o STF trabalha para fraudar a disputa de 2022 e acusou o vice-presidente do Congresso de fazer uma manobra que não existiu na votação que reservou R$ 5,7 bilhões para o fundo de financiamento de campanhas.
O centrão também acompanha placidamente o trabalho de Bolsonaro na destruição da credibilidade das eleições. Nesta quinta (29), o presidente divulgou informações falsas coletadas na internet e reproduziu relatos já desmentidos de anormalidade na urna eletrônica. O crime de responsabilidade foi transmitido ao vivo pela TV oficial do governo.
Os caciques do centrão já deixaram de ser parceiros de ocasião, que extraem benefícios políticos do governo enquanto Bolsonaro conduz um projeto de degradação contínua da democracia. Agora, esse grupo parece mais do que satisfeito em ajudar o presidente a completar sua missão.
Fonte:
Folha de S. Paulo
https://www1.folha.uol.com.br/colunas/bruno-boghossian/2021/07/centrao-ajuda-bolsonaro-a-fazer-o-governo-do-extremistao.shtml