Impeachment
Marcus Pestana: As repercussões globais dos acontecimentos nos EUA
A democracia americana é uma grande referência mundial. Daí a repercussão global dos acontecimentos do último 6 de janeiro. O que lá acontece, respinga para além de suas fronteiras.
Como citou, certa vez, o senador americano Daniel Patrick Moynihan, “Todo mundo tem direito às suas próprias opiniões, mas não a seus próprios fatos”. Donald Trump, seus “engenheiros do caos” e suas verdades alternativas creem que é possível impor uma narrativa descolada da realidade a partir da repetição exaustiva da mentira e da manipulação dos algoritmos nas redes sociais, e assim, mudar as regras do jogo político e a face da sociedade.
A insistência exaustiva sobre fraudes nas eleições foi disseminada bem antes. Diante dos resultados, sucessivos recursos judiciais alimentaram o clima golpista desejado. Paralelo a isso, se deu a pressão sobre as eleições dos delegados ao Colégio Eleitoral. Já na reta final, Donald Trump pressionou o secretário de estado da Geórgia, o republicano Brad Raffensperger, a “encontrar votos” que lhe dessem a vitória. Não satisfeito, Trump infernizou a vida de seu vice e presidente do Senado, o republicano Mike Pence, para que não sancionasse a vitória de Biden.
Todas as manobras visavam um acontecimento inédito na história da democracia americana: barrar a posse do presidente eleito e criar o ambiente social necessário para as ruidosas manifestações que sitiaram o símbolo da democracia americana, o Capitólio. A gota d’água para estimular a agressão ao Congresso foi o discurso de Trump, incentivando a marcha que resultou nos dramáticos acontecimentos ocorridos, inclusive cinco mortes. Ainda sobrevive no ar uma névoa de dúvidas sobre o que poderá acontecer até a posse de Joe Biden.
Imediatamente, houve ampla reação internacional com pronunciamentos contundentes de líderes como Macron e Merkel, entre outros, preocupados com o estímulo a reações semelhantes de agressão à democracia no restante do mundo.
O posicionamento da sociedade civil, da imprensa, de partidos, de setores empresariais, nos EUA e mundo afora, foi unânime em condenar o atentado e defender a democracia. As redes sociais bloquearam as contas de Trump.
Para o Brasil ficam lições importantes. É preciso, até 2022, fortalecer a cultura democrática. O nacional-populismo autoritário não é obra de lideranças, loucas e/ou fascistas, isoladamente. É um fenômeno social de massas a partir da insatisfação de diversos segmentos sociais e não só do núcleo ideológico radical. Precisamos defender com firmeza a integridade de nosso sistema eleitoral e da urna eletrônica, que desde 1996, produziram um dos mais modernos processos de votação e apuração do mundo. Defender as instituições, a Constituição e as regras do jogo. Estancar a tentativa de politização das Forças Armadas e das polícias estaduais e a liberalização excessiva da venda de armas e munições. As milícias ideológicas armadas existentes nos EUA ainda poderão produzir tristes fatos até a posse de Biden. Não é um bom exemplo a seguir.
Democracia é liberdade, debate aberto, contenção no uso do poder, respeito aos adversários, debate, diálogo, formação de consensos, eleição e subordinação às regras e à alternância no poder.
Os acontecimentos de 6 de janeiro fortalecem a convicção que quase nunca o que é bom para os EUA é bom para o Brasil.
*Marcus Pestana, ex-deputado federal (PSDB-MG)
Marco Aurélio Nogueira: Impeachment Já
A crise está exposta, inflamada pelo Palácio do Planalto. E quanto antes ela for efetivamente enfrentada, melhor
A situação nacional chegou a tal ponto de absurdo e incompetência governamental que deveria estar pondo em alerta todas as forças responsáveis do País, dos partidos e movimentos às instituições, das Forças Armadas ao Poder Judiciário e ao Congresso. Ultrapassamos as barreiras do razoável, do suportável, e não há qualquer indício de que o atual governo vá mudar de orientação e de qualificação: continuará a agir com os olhos nos seus, de costas para a sociedade como um todo, seja ela entendida pela ótica dos interesses mais poderosos, seja a dos setores mais desfavorecidos, que formam a maioria do povo.
A opção pelo impeachment não é uma opção pelo confronto ou pela ruptura, mas pela salvação nacional, pela convergência política das maiorias, pela serenidade, pelo bom-senso. É algo para evitar que caiamos de vez no precipício. O País não aguentará mais dois anos de desgoverno. Se nada for feito, chegará ao fim de 2022 em pandarecos, perdendo quase tudo de positivo que conseguiu acumular nas últimas décadas. Falo das políticas sociais, dos direitos, da política educacional e ambiental, mas também da pujança econômica e do posicionamento no cenário internacional como potência média.
Tudo isso está sendo destroçado, dia após dia. Manaus é a ponte do iceberg. Um horror, que provoca espanto e incredulidade: como conseguimos chegar a esse ponto? Estamos nos afogando em uma chuva de lágrimas.
É impossível projetar o que acontecerá se houver uma troca de presidente. Mesmo que uma coalizão bem ajustada viabilize o impeachment, é difícil saber quanto tempo será necessário para que se recupere o País. Tudo dependerá da composição técnico-política do novo governo e da capacidade de sustentação que conseguir obter, na sociedade e no Congresso. Ele precisará contar com boa vontade e desprendimento, recursos difíceis de encontrar numa classe política viciada em cálculos eleitorais, cheia de ressentimentos e desejos de vingança.
Basta olhar o modo como estão sendo conduzidos os entendimentos em torno das presidências da Câmara e do Senado para ver incoerências e mesquinharia saltando por todos os poros. O apoio do PT e do PDT ao candidato do DEM no Senado é luminoso: partidos tidos como de esquerda renegam a combativa senadora Simone Tebet, do MDB, para ficar com a candidatura governista sem que se consiga conhecer as razões de uma opção tão estapafúrdia. Dizem que é para demarcar distância das posições pró- Lava Jato da senadora, dizem que é para não fortalecer demais o MDB. E daí que Rodrigo Pacheco é apoiado pelo bolsonarismo? Constrangedor, para dizer o mínimo.
É uma situação que indica as dificuldades que surgirão quando se pensar em articular uma candidatura competitiva para 2022.
Até por isso, a proposta de impeachment pode funcionar como um bálsamo para nossas oposições sem alma e sem direção. Pode ajudá-las a encontrar um rumo, energizá-las e reaproximá-las da população. Se não foram até agora competentes para confrontar um governo flagrantemente regressista e relapso, quem sabe não acordam?
Esse é o ponto secundário, mas não pouco importante. Chega a intrigar que ninguém tenha ameaçado iniciar um impeachment. Por muito menos Dilma e Collor receberam o impedimento. A explicação pode passar pelo “medo à crise”, pelo “foco na pandemia”, mas no fundo só se explica pela falta de coragem e maturidade democrática.
O principal argumento em favor do impeachment é mais que político: é resgatar a saúde da Nação. No sentido literal e no figurado. A pandemia aumentou e a vacinação exibe tamanha taxa de desencontros e incúria que não consegue nem sequer piscar como uma luz no fim do túnel. A Saúde Pública precisa ser salva. E o País precisa de medidas urgentes para recuperar minimamente suas forças, seu vigor e sua sanidade.
Estamos a assistir um ciclo de desmandos e incompetência jamais visto em nossa história. Não é razoável achar que isso deva prosseguir para que se evite o espocar de uma crise institucional. Quem tem olhos para ver não terá dificuldade alguma para constatar que a crise está aí, inflamada pelo Palácio do Planalto. E quanto antes ela for efetivamente enfrentada, melhor.
Para que se ponha na mesa um processo de impeachment alguém precisa colocar o guiso no gato. Começar uma campanha, cujo mote é simples: “Basta!”
Sergio Fausto: Na defesa da democracia, quem cala consente
Bolsonaro bate na mesma tecla de Trump, a mais golpista e antidemocrática
Enquanto assistia, horrorizado, ao ataque das tropas de choque de Donald Trump ao Congresso americano, a expressão “this is a cautionary tale” me vinha e voltava à cabeça. Não encontrei forma sintética para traduzi-la, mas não é difícil explicar o seu significado. Simplificadamente, cautionary tale é uma história (no passado grafaríamos estória) que alerta o leitor ou ouvinte sobre o risco de incorrer em grave perigo se tomar ou mantiver irrefletidamente certas iniciativas.
As imagens das milícias da extrema direita americana assaltando o Capitólio valem mais do que mil palavras: as forças tradicionais de direita que se aventuram a pular na garupa de líderes populistas autoritários, imaginando que cedo ou tarde lhes arrebatarão as rédeas, terminam pisoteadas pelo fanatismo de seus seguidores. É o que experimentaram os sabujos de Trump, que à última hora constaram o que já era obvio há muito tempo: o presidente dos Estados Unidos não hesitaria em jogar o país no abismo da violência e da tirania para reter o poder e/ou salvar a própria pele.
Uma coisa é ler sobre como as forças tradicionais de direita na Itália e na Alemanha dos anos 20 e 30 do século passado se aliaram ao nazi-fascismo para depois se tornarem, também elas, vítimas dos horrores do totalitarismo. Outra bem diferente é ver a história sendo de algum modo reeditada – ela nunca se repete – em cores e ao vivo, numa profusão de imagens aterradoras. Os milicianos que vandalizaram o Congresso não queriam apenas a cabeça de Nancy Pelosi, a presidente democrata da Câmara, mas também a do vice-presidente Mike Pence, que alguns ameaçavam enforcar, como mostram vídeos e mensagens de Twitter.
Felizmente, as instituições americanas resistiram ao mais duro teste a que já foram submetidas, embora não se saiba ainda quais serão as consequências de longo prazo da trágica passagem de Trump pela Casa Branca.
Resistiram porque houve coragem cívica de muita gente, que não se dobrou aos desmandos trumpistas. As instituições das democracias liberais não param em pé por si mesmas. Precisam de atos cotidianos de resistência e reforço e, nas horas decisivas, de homens e mulheres dispostos a se arriscar para defendê-las, como o fizeram, entre outros, as autoridades eleitorais, republicanas e democratas, que impediram Trump de violar os resultados cristalinos do pleito presidencial.
E nós, aqui? O repúdio ao assalto ao Capitólio foi imediato e duro da parte dos presidentes da Câmara dos Deputados e do Senado e de juízes do Supremo Tribunal Federal, assim como da imprensa. Já o presidente da República aproveitou o episódio para fazer coro com as mentiras de Trump sobre as inexistentes fraudes na eleição americana e para lançar ameaça sobre as consequências de uma eventual derrota sua em 2022: “Aqui pode acontecer coisa pior”.
Jair Bolsonaro bate na mesma tecla de Trump, a mais flagrantemente golpista e antidemocrática de seu tosco repertório autoritário: só será legítima a eleição que ele vença. Não se trata de bravata, mas de uma peça retórica para mobilizar antecipadamente as suas bases, igualzinho ao que fez o derrotado presidente americano.
Tal barbaridade deveria merecer o rechaço público dos companheiros de viagem de Bolsonaro que ainda podem dissociar-se do risco que ele representa. Salvo exceções, porém, o que se ouviu foi o silêncio. Já não era tempo de as Forças Armadas terem feito o exame de consciência necessário para se darem conta do erro que cometeram ao se deixar enredar pelo capitão presidente? E os empresários, de reconhecerem o autoengano de havê-lo apoiado e continuarem a fazê-lo em nome de reformas que ele não está disposto a fazer? E os políticos profissionais da direita racional e democrática, de sobrepor a sua reputação a seus interesses de curto prazo?
Não sou alarmista e confio em que, ao fim e ao cabo, as instituições democráticas no Brasil vão prevalecer, mas, como bem disse o professor Hussein Kalout em entrevista recente ao Valor Econômico, “o roteiro para o Brasil repetir o cenário dos EUA está pronto”. Ao menos na cabeça do presidente, de seus acólitos e de suas milícias reais e virtuais.
Outro a alertar para o perigo foi o jurista Miguel Reale Júnior. Para quem sabe, como ele, juntar os pontos, não passa despercebido que o presidente tem três obsessões interligadas: apontar sem base alguma os riscos de fraude do sistema das urnas eletrônicas, facilitar o acesso às armas e enaltecê-las como instrumento de exercício da vontade popular e da liberdade individual e cultivar com especial cuidado suas bases de apoio entre policiais e militares de baixa patente.
Que o roteiro esteja preparado, e o elenco de personagens venha sendo sub-repticiamente arregimentado, não significa que estejamos condenados a viver o filme de horror que habita os sonhos do presidente. Mas é preciso dizer em alto e bom som que o risco existe e atuar em todas as frentes para reduzi-lo. Mais importante ainda é construir uma aliança de forças capaz de aplicar a Bolsonaro uma derrota eleitoral definitiva.
*Diretor-Geral da Fundação FHC, é membro do Gacint-USP
Ricardo Noblat: Bolsonaro colhe uma derrota que poderá abreviar o seu mandato
O Brasil só teria a ganhar com isso
Políticos de faro aguçado e olhar de águia, alguns com mandato e outros sem, detectaram nos últimos dias o crescimento do número de deputados federais e de senadores favoráveis à abertura de um processo de impeachment contra o presidente Jair Bolsonaro.
Isso poderá se dar enquanto Rodrigo Maia (DEM-RJ) ainda for presidente da Câmara – e faltam apenas 16 dias para que deixe de ser. Ou então se o deputado Baleia Rossi (MDB-SP), candidato de Maia e da oposição ao governo, sucedê-lo no cargo.
Bolsonaro, como qualquer presidente da República até mesmo na época da ditadura militar, coleciona derrotas. O Presidente pode muito, não tudo. Mas ele só faz perder desde que decidiu tratar a Covid-19 como se não passasse de uma reles gripezinha.
Não procedeu assim somente por ignorância, embora no seu caso a ignorância seja abissal, também por cálculo. Acreditou que o vírus seria detido matematicamente depois de infectar 70% dos brasileiros. Acima de tudo, o importante era salvar a economia.
Que morressem, portanto, os que tivessem de morrer – e Bolsonaro jamais imaginou que morreria tanta gente que não fosse apenas velha e sofresse de outras doenças. O kit de drogas ineficazes recomendado por ele era para dar tempo ao tempo.
O vice-presidente Hamilton Mourão disse mais de uma vez que a situação estava sob controle rigoroso – só não sabia por quem. Depois de livrar-se de Luiz Mandetta na Saúde e de Sérgio Moro na Justiça, Bolsonaro achou que controlava todas as ações.
Quebrou a cara, como agora deve ter percebido. Ocorre que quebrou a cara a um preço para além do suportável pela maioria dos seus governados. Líder político algum desdenha da morte sem ser punido, e ele desdenhou. Pagará caro por isso. Bom que pague.
Por mais que fale que o Supremo Tribunal Federal o impediu de combater o coronavírus, como só ontem falou mais de 20 vezes em 53 minutos de palanque que lhe ofereceu Luiz Datena em seu programa na BAND, é difícil que consiga novos adeptos.
Por mais que ataque o governador João Doria (PSDB-SP) dizendo que ele não é homem, veste calça apertada e quis destruir a economia com medidas de isolamento social, não apagará a realidade de que Doria tem a vacina e ele, não.
Quando Manaus parou de respirar devido à falta de oxigênio, Bolsonaro tentou distrair a atenção do seu público cativo com a promessa de que a vacinação em massa teria início na próxima terça-feira – o tal do Dia D do general Eduardo Pazuello.
Não havia vacina garantida. O avião com destino à Índia para buscar 2 milhões de doses ficou retido no Recife. O jeito foi Bolsonaro se render à vacina da China, do Butantã e de Doria. Quer confiscar todo o estoque guardado em São Paulo.
Essa é uma fragorosa derrota capaz de marcar para sempre um desgoverno. Maior do que essa, talvez o impeachment que para Bolsonaro não seria tão mal assim. Diria que foi vítima de um golpe, desfrutando até morrer dos privilégios de um ex-presidente.
De todo modo, o Brasil sairia no lucro se isso de fato acontecesse.
Sérgio Amaral: O que restará do trumpismo?
Ainda é cedo para avaliar o futuro da onda nacional-populista de que Trump é o principal expoente
Em 3 de novembro, Donald Trump perdeu a eleição para a Presidência dos Estados Unidos e os republicanos foram vencidos na Câmara dos Representantes. Na Geórgia, mais recentemente, os democratas conquistaram a maioria no Senado. As vitórias eleitorais dos democratas propiciam a Joe Biden uma base sólida para a execução de um ambicioso programa de governo, tanto no plano interno quanto no internacional.
No dia 6 de janeiro, Trump sofreu uma segunda derrota, desta vez em seu próprio partido, pela decisão de algumas de suas principais lideranças, como o vice, Mike Pence, e o líder da maioria no Senado, Mitch McConnell, em aprovar a certificação dos delegados eleitos para o Colégio Eleitoral, como é legal e de praxe, ao contrário do que pretendia o presidente.
A ocupação do Capitólio, ostensivamente incentivada por Trump e membros de sua família, provocou o repúdio da opinião pública, por representar um atentado ao maior símbolo da democracia americana. E, como se não bastasse, mídias sociais decidiram suspender o acesso do presidente a suas plataformas, sob a alegação de incentivo à violência. Ainda que os motivos possam ser louváveis, não deixa de ser insólito que uma empresa privada possa censurar o presidente de um Estado.
Trump deixa a Casa Branca abatido e desmoralizado. As próximas pesquisas de opinião poderão estimar quantos na sociedade, e especialmente em seu próprio partido, deixaram de apoiá-lo. Diante desse cenário incerto e turbulento, resta saber o que ocorrerá com Partido Republicano e com o trumpismo no novo capítulo político que se inicia com a posse de Biden.
Lideranças republicanas já vinham manifestando seu incômodo com o casamento de conveniência entre o seu partido e o presidente. Martin Wolf, respeitado colunista do “Financial Times”, já havia condenado, de modo incisivo, o que chamou de pacto faustiano entre a plutocracia de Wall Street e Trump, pelo qual o Partido Republicano cede sua estrutura política ao presidente em troca das isenções na reforma tributária.
A temporada da luta interna no Partido Republicano está aberta. Alguns dos principais apoiadores de Trump já se transformaram em seus algozes. O que restará do trumpismo, até há pouco percebido como a principal força conservadora para a eleição de 2024? Ao longo de todo o mandato, a aprovação de Trump oscilou entre 37% e 42% do eleitorado.
Como manter esse capital político sem a caneta de presidente e sem os comícios que organizava quase todos os meses, em diferentes regiões do país? Alguns parlamentares republicanos que até há pouco se vangloriavam da proximidade com o presidente e buscavam tirar proveito eleitoral de sua transformação em “representantes da classe operária” agora se dissociam de Trump em público.
Qual o impacto das derrotas de Trump sobre os seus os seguidores pelo mundo? É bom ter presente que o trumpismo não se limita às maquinações de um líder carismático, por vezes desequilibrado, para ganhar as eleições, como fez em 2016. Na verdade, desde o início de seu ingresso na política, o presidente republicano se apresentou como o porta-voz de um movimento mundial, o populismo nacionalista, contra a globalização e o “globalismo”, em defesa da hegemonia americana (“America First”), que amealhou adeptos em várias partes do mundo, especialmente na Europa e inclusive no Brasil.
Hoje parece anedótico, mas foi real o projeto patrocinado por Steve Bannon, o guru de Trump, ao deixar a Casa Branca, para fundar uma escola de quadros, num convento medieval na pequena Trisulti, no centro da Itália, com o objetivo de formar os cruzados do século XXI. Professores chegaram a ser selecionados, entre os quais alguns brasileiros.
Ainda é cedo para avaliar o futuro da onda nacional-populista de que Trump é o principal expoente. Se é verdade que o Brexit venceu, também é certo que as hesitações britânicas em relação à União Europeia são históricas. O Reagrupamento Nacional na França e a Alternativa para a Alemanha avançaram, mas hoje parecem estacionados ou mesmo em refluxo. Na Áustria, Holanda e Itália, diferentes modalidades de populismo também recuam, diante da percepção de que movimentos sociais podem eleger ou ajudar a eleger candidatos, mas enfrentam sérios desafios para governar diante da ausência de uma estrutura partidária. Hungria e Polônia parecem ser a exceção que confirma a regra.
E o Brasil? Bolsonaro e Trump apresentam semelhanças notáveis. O carisma, a capacidade de comunicação, a competente utilização das mídias sociais, a aversão aos partidos e à imprensa. Certas condições em ambos os países também registram coincidências, como a persistência do racismo estrutural e da desigualdade. Nos dois casos, o compromisso com a democracia mostrou-se enraizado nas forças da sociedade, nas instituições e no estamento militar.
Um dos equívocos da recente campanha de Trump foi o de buscar repetir os temas e as táticas eleitorais de 2016, sem levar em conta uma das máximas da política: a história não se repete, o que na primeira vez é drama, um enredo sério, na segunda vez é uma farsa, como foi efetivamente a campanha republicana em 2020.
Em nossos dias, as mídias sociais estão sob suspeição, a mentira cansou e a radicalização é percebida como destruição, sem nada construir. No Brasil, as eleições do ano passado, ainda que municipais, emitiram alguns sinais para 2022, ao priorizar a reeleição de administradores experimentados, trazer de volta a centralidade dos partidos políticos, em detrimento das mídias sociais, a moderação nos debates e a objetividade das propostas.
*Sergio Amaral, ex-professor de ciência política na Universidade de Brasília, foi embaixador em Washington
El País: Segundo impeachment pode deixar Trump inelegível?
Senado estará dividido em 50 a 50 entre republicanos e democratas, mas o impedimento só é aprovado com dois terços dos votos
Donald Trump entrará na história como o único presidente submetido a dois julgamentos políticos, ou impeachments. Pode até se tornar o primeiro presidente dos Estados Unidos a sofrer esse impeachment já sendo ex-presidente. Porque ao contrário dos julgamentos anteriores no Senado contra Andrew Johnson, Bill Clinton e o próprio Trump, nesta ocasião o tempo é um fator determinante, uma vez que daqui a uma semana o presidente eleito, Joe Biden, prestará juramento nas escadarias do Congresso e Trump deixará o poder ao meio-dia do dia 20.
O ambiente político é muito diferente daquele do impeachment que Trump enfrentou em 2019. Na época os republicanos eram uma força monolítica e sem fissuras ―com a única exceção do senador Mitt Romney. Desta vez, o líder da maioria do Senado, Mitch McConnell, indicou que considera que a melhor maneira de tirar o trumpismo do Partido Republicano seria submeter o presidente a um impeachment. Trump seria julgado por “incitação à insurreição”.
A missão da Câmara dos Representantes nesta quarta-feira era aprovar a norma procedimental que definiria o impeachment, uma questão puramente mecânica, e votar a favor ou contra. A votação resultou na aprovação, porque só era necessária maioria simples e a Câmara está nas mãos dos democratas. A partir daí, tudo é novo em comparação com os julgamentos anteriores da época moderna, seja o de Clinton ou o do próprio Trump. Nancy Pelosi, a presidenta da Câmara dos Representantes, deve então decidir quando enviar a proposta de impeachment ao Senado, uma vez que, segundo o atual calendário, a Câmara Alta está em recesso até o próximo dia 19.
A única maneira de o Senado retomar suas sessões seria se os líderes de ambos os partidos, Mitch McConnell e Chuck Schumer, acordassem voltar mais cedo do que o calendário indica. Nesta questão, alguns democratas tinham pedido a Pelosi que adiasse o início do impeachment para permitir que Joe Biden começasse seu mandato sem que esse fardo pesasse sobre sua cabeça, o que, além disso, tornaria mais lenta a confirmação de seu Gabinete. Outros exigiram que começasse de imediato. Se forem confirmadas as palavras desta quarta-feira do líder da maioria da Câmara dos Representantes, Steny Hoyer, uma vez aprovados, os artigos do impeachment serão enviados imediatamente ao Senado, onde se realizará o segundo julgamento de Trump. Isto acabaria com as dúvidas sobre se os democratas esperariam os primeiros 100 dias de Biden na Casa Branca para realizar o julgamento e assim não interferir em sua agenda. No entanto, McConnell já avisou que não reunirá o Senado durante o recesso, razão pela qual o processo certamente terá lugar depois de Trump ter deixado a Casa Branca.
Numa atmosfera normal, não depois do ataque ao Congresso e com a Guarda Nacional mobilizada dentro do Capitólio, haveria uma investigação que seria enviada ao Comitê de Justiça da Câmara, que realizaria audiências intermináveis nas quais seriam redigidos centenas de artigos para que se aprovassem. Isto aconteceu em 2019, quando Trump foi processado por seu conluio com o presidente da Ucrânia. Esse inquérito demorou três meses. O julgamento de Clinton começou em 19 de dezembro de 1998 e terminou com sua absolvição em 12 de fevereiro do ano seguinte.
No entanto, existe o precedente de um impeachment expresso. Em 1868 a Câmara levou apenas três dias para julgar o presidente Andrew Johnson para evitar que violasse uma lei que o impedia de demitir o secretário de Guerra. A Câmara terminou então os artigos relativos ao impeachment depois que o presidente já tinha sido julgado, e absolvido. Em resumo: a Câmara pode avançar tão rápido quanto os líderes democratas desejarem.
Uma vez que a proposta de impeachment for enviada ao Senado, que é onde se julga o presidente, é de suma importância lembrar que o impeachment acontece num momento de transição tanto presidencial quanto de senadores. Os democratas Raphael Warnock e Jon Ossoff ganharam as eleições especiais da Geórgia no dia 5, mas como os resultados ainda não foram certificados eles não foram empossados, razão pela qual Mitch McConnell continua sendo o líder da maioria na Câmara Alta. O dia 22 é a data limite para a Geórgia legalizar os votos.
Se ambos os senadores tomarem posse enquanto Trump ainda for presidente, o Senado ficaria dividido em 50 a 50 e seria o vice-presidente, Mike Pence, quem romperia um empate em favor dos republicanos. Só depois que a vice-presidenta Kamala Harris e os senadores da Geórgia prestarem juramento é que os democratas assumirão o controle do Senado. De novo o tempo joga contra os democratas, e até ao dia 20, e mesmo alguns dias depois, McConnell e os republicanos é que decidirão o que será feito no Senado, o que significa que decidirão se começam o julgamento e como (por exemplo, quanto tempo será dedicado a ele, se testemunhas serão chamadas ou não).
Entre os obstáculos para que Trump seja condenado por insurreição ―e, a depender de uma segunda votação, incapacitado para voltar a ocupar um cargo público― está o fato de que deve ser aprovado por uma maioria de dois terços no Senado ―a incapacitação política dependeria de maioria simples, por outro lado. Embora várias vozes republicanas defendam a punição a Trump, seriam necessários 17 votos no Senado, o que torna uma condenação muito difícil. A isto se junta a pergunta de saber se o Senado pode proceder a um impeachment contra um presidente que já não está em exercício.
A pergunta que divide os especialistas citados pela imprensa norte-americana é: o Senado pode efetuar um impeachment contra um presidente que já não está em exercício? Há quem argumente que um ex-presidente já é um cidadão comum e que a figura do impeachment não foi redigida para tais casos. Outros dizem que o objetivo é conseguir que se proíba ao acusado poder concorrer à Casa Branca ―ou a outras instâncias do Governo― no futuro. A Constituição não dá respostas claras a esse respeito.
Enquanto isto acontece, Trump pode tentar alguma manobra, como declarar a lei marcial ou ordenar uma nova eleição, como sugeriu seu aliado Michael Flynn? Apesar de que, depois da insurreição, o presidente tenha se comprometido a respeitar a transição de poder, ninguém pode garantir que o fará. É por isso que uma grande maioria de legisladores democratas acredita que não se pode confiar que o presidente jogará limpo, e por isso pedem sua destituição imediata do cargo.
Merval Pereira: Defender a democracia
Como a democracia nos Estados Unidos, apesar dos últimos acontecimentos, continua sólida, a notícia saiu na edição digital do New York Times sem grande destaque. Mesmo assim, é inusitada para os padrões deles a nota dos chefes-militares das Forças Armadas americanas garantindo a defesa da Constituição e repudiando os ataques ao Congresso ocorridos há dias em Washington.
Garantem apoio à posse de Biden e pedem aos comandados, dentro e fora dos Estados Unidos: “Estejam prontos, mantenham os olhos no horizonte e permaneçam focados na missão”. Para nós, que temos uma democracia que tenta se consolidar em meio ao turbilhão autoritário liderado por um presidente que não tem respeito às leis, a nota dos generais americanos tem uma significação maior, e pode servir de exortação aos nossos generais, que há muito tempo já convivem com ataques à democracia por parte do presidente Bolsonaro e suas milícias, e não se posicionam firmemente contra claros avanços autoritários.
Ao endossarem, ou ao menos parecer endossar, as agressões de Bolsonaro às leis e à civilidade, os militares tornam-se cúmplices de um governo responsável por inúmeros ataques à democracia, culminando com a repugnante politização da COVID-19 que colocou o país como o segundo com maior número de mortes totais, e faz com que, mesmo diante da tragédia revisitada de mais de mil mortes diárias em média, ele se sinta em condições de fazer piada sobre a suposta ineficácia da vacina Coronavac produzida no Instituto Butantan.
É a única vacina que temos, cuja aprovação corre o risco de ser atrasada para permitir que o presidente Bolsonaro faça uma solenidade oficial no Palácio do Planalto para tornar-se dono de um programa de vacinação que desdenhava.
Cresce no mundo a sensação de que é preciso levar a sério as ameaças retóricas de populistas como Trump e Bolsonaro, e impedir que prosperem. Não levá-las a sério pode permitir que se concretizem. A atitude do Congresso americano, de levar adiante mais um processo de impeachment do (ainda?) presidente Donald Trump também serve de exemplo e advertência aos congressistas brasileiros.
Também lá nos Estados Unidos não há maioria para destituir Trump, mas mesmo assim a Câmara insistiu, pois atitudes de “incitamento à insurreição”, como está descrito na acusação votada ontem, precisam de uma resposta, mesmo que seja simbólica.
Desta vez, porém, há ainda uma pequena chance de que o processo vá adiante no Senado, seja pela revolta de alguns senadores republicanos que prometem aderir à oposição, seja pelo artifício parlamentar de deixar para continuar o processo após a posse de Joe Biden, dia 20, quando os democratas já terão a maioria também no Senado.
Se condenado pelo Senado, duas votações decidirão o futuro de Trump: se ele perderá os benefícios concedidos a um ex-presidente; e se será proibido de se candidatar novamente. Enquanto a votação do impeachment necessita da aprovação de dois terços do Senado, as duas sanções complementares necessitam apenas da maioria simples para serem aprovadas.
Diante do infame discurso de Trump incitando seus militantes a marcharem contra o Capitólio no dia da confirmação oficial da vitoria de Joe Biden à presidência, alguns deputados republicanos aderiram ao impeachment, gesto puramente simbólico, pois os democratas tinham votos suficientes na Câmara para aprovar.
Aqui entre nós, com mais de trinta pedidos de impeachment trancados na gaveta do presidente da Câmara, Rodrigo Maia, alega-se que não há ambiente político para a aprovação de um processo de impeachment, que perturbaria o cenário político.
Depois de dois anos em que o próprio presidente perturba o equilíbrio institucional com declarações e atitudes inconcebíveis em quem ocupa a presidência da República, já está na hora de uma reação firme de repúdio, mesmo que o Centrão impeça a concretização do impedimento de Bolsonaro. Os políticos fisiológicos e os radicais de direita sairiam fortalecidos, mas desmoralizados.
El País: Mike Pence rejeita apelos para destituir a Trump e abre as portas para o impeachment
Câmara de Representantes, dominada pelos democratas, vota a favor do uso da 25ª emenda, apesar da recusa do vice-presidente
O vice-presidente dos EUA, Mike Pence, rejeitou os apelos dos deputados democratas para que destitua Donald Trump com base na 25ª emenda da Constituição. A recusa de Pence, expressa em carta à presidenta da Câmara de Representantes, Nancy Pelosi, foi anunciada horas antes de a Câmara baixa colocar em votação, na noite de terça, uma resolução em que se solicitava formalmente ao vice-presidente que invocasse a 25ª emenda para declarar a vacância do cargo, sob a alegação de que Trump se encontra incapaz de cumprir seus deveres e obrigações. Os democratas deram um prazo de 24 horas para que Pence aja, e se isso não ocorrer pretendem votar nesta quarta-feira o segundo impeachment do presidente, para depois esperar que o Senado o destitua, quando faltam sete dias para o final do mandato de Trump e a posse do democrata Joe Biden como novo titular da Casa Branca.
“Não cedi à pressão para exercer um poder além de minha autoridade constitucional”, afirmou Pence em sua carta a Pelosi, “e não cederei agora aos esforços da Câmara de Representantes de fazer jogos políticos em um momento tão grave na vida da nossa nação”. Com a possibilidade de uma destituição via 25ª emenda sendo rejeitada antes mesmo de começar a correr o prazo dado pelos deputados, o caminho para o impeachment fica aberto.
Pence exibe assim um último gesto de lealdade a Trump. Ou talvez um zelo escrupuloso pelos limites do seu cargo, como diz em sua carta. Entre as limitadas atribuições constitucionais do vice-presidente ―único cargo eletivo de âmbito nacional, além do próprio presidente ― está a de evocar a 25ª emenda. Isso se dá informando por escrito aos líderes das duas casas do Congresso que o presidente, na avaliação da maioria do gabinete, se encontra “incapaz de cumprir os poderes e obrigações de seu cargo”, o que leva o próprio vice-presidente a assumir esses poderes e obrigações na qualidade de presidente interino. O desafio lançado a Pence pelos congressistas punha em xeque um relacionamento, vizinho ao servilismo, que permeia estes turbulentos quatro anos, desde que os dois políticos compuseram a chapa republicana para as eleições presidenciais de 2016 ―repetida em 2020. Mas se trata de uma relação que, nestas últimas semanas, esfriou de maneira notável.
Se já era remota a probabilidade de que Pence decidisse trair Trump na reta final, entrando para a história como um efêmero 46º presidente dos Estados Unidos, ela praticamente se extinguiu na noite de segunda-feira. Trump e Pence se reuniram no Salão Oval e, segundo fontes da Administração, se comprometeram a continuar trabalhando juntos “no que resta de mandato”. O fato de a reunião ser a primeira interação entre os dois desde a invasão do Capitólio, na quarta-feira passada, revela a insólita deterioração da confiança de Trump naquele que era um dos seus mais fiéis escudeiros.
O esfriamento começou em 15 de dezembro, quando alguém convenceu Trump de que Pence era sua última esperança para reverter o resultado das eleições que perdeu em 3 de novembro. A possibilidade de o vice-presidente impugnar a contagem dos votos do Colégio Eleitoral no Congresso virou uma obsessão para o presidente. Pence estudou a possibilidade com constitucionalistas, que concordaram em considerá-la inviável. A equipe do vice-presidente soube, segundo o The Washington Post, que os advogados de Trump preparavam inclusive uma ação judicial contra ele. O fato de Pence se basear em juristas do Departamento de Justiça para neutralizar essa ação, segundo o Post, deixou Trump ainda mais furioso.
A pressão sobre Pence incluiu um telefonema na manhã de 6 de janeiro, a fatídica data em que o vice-presidente presidiria o Senado para o ritual da certificação do resultado eleitoral. Depois da negativa de Pence, o presidente arremeteu publicamente contra seu vice. “Mike Pence não teve a coragem de fazer o que deveria ter feito para proteger o nosso país e a Constituição”, tuitou às 13h24 daquele dia (hora local). Àquela altura, as hordas trumpistas, estimuladas pelo presidente, já tinham tomado o Congresso de assalto. “Cadê o Pence?”, gritavam os amotinados. O vice-presidente tinha sido retirado do plenário do Senado e se estava escondido numa localização secreta do Capitólio. O presidente não ligou para Pence para saber se estava bem. Nem naquele dia nem nos seguintes.
O presidente anunciou que não assistirá à posse de Joe Biden e Kamala Harris na próxima quarta-feira. Pence, entretanto, confirmou que estará lá. O vice-presidente se manteve ao lado de Trump em todas as crises. Deu um jeito inclusive de esquivar os golpes à frente da errática resposta da Casa Branca à crise do coronavírus, transitando com destreza pelo cisma entre a ciência e as gafes do presidente. Agora, seu distanciamento com as bases trumpistas gera incógnitas sobre suas mal disfarçadas aspirações presidenciais.
Hélio Schwartsman: O impeachment como dever
O processo não avançaria, mas temos obrigação moral de tentar
Na atual conjuntura política, um processo de impeachment de Jair Bolsonaro seria derrotado, mas daí não decorre que não tenhamos a obrigação moral de tentar.
Dilma Rousseff buliu com as contas públicas e foi corretamente afastada pelo Congresso. Bolsonaro cometeu crimes de responsabilidade muito mais graves, mas nada acontece com ele. Por quê?
Isso se deve à natureza meio capciosa do instituto do impeachment e, principalmente, à complacência da sociedade. Processos de afastamento de presidentes exigem uma base jurídica, que não é difícil de conseguir —"proceder de modo incompatível com a dignidade, a honra e o decoro do cargo" vale para qualquer coisa—, e a quase inviabilidade política, já que o titular só é de fato destituído se mobilizar contra si 2/3 dos parlamentares.
Como o segundo elemento é muito difícil de obter, fechamos os olhos para violações constitucionais com uma frequência muito maior do que a recomendável.
Se a situação socioeconômica não se deteriorar muito nos próximos meses, o que não desejo, Bolsonaro não tem com o que se preocupar. O centrão deverá segurá-lo no cargo. Mas, sob pena de potencializar ainda mais os já escandalosos níveis de complacência nacional, a parcela dos brasileiros que rejeitam as atitudes e as políticas de Bolsonaro tem o dever de marcar posição, pressionando para que a Câmara ao menos dê início a um processo de destituição.
Ainda que a derrota seja quase certa, é uma satisfação que devemos aos pósteros. O Partido Democrata dos EUA passou por idêntica situação em 2020 e optou por dar seguimento ao primeiro impeachment de Donald Trump, mesmo sabendo que o processo morreria no Senado. Os democratas e os americanos que os apoiavam fizeram questão de mostrar que não haviam ficado cegos nem abandonado as noções básicas de retidão e decência.
A patacoada golpista de Trump na semana passada prova que tinham razão.
Ricardo Noblat: O Dia D e a Hora H do impeachment de Bolsonaro
O que é certo deve ser feito
Em uma democracia, um chefe de Estado só cai quando as ruas se voltam contra ele. Então os partidos o abandonam, ele perde as condições de governar, e acabou. É assim mais no presidencialismo do que no parlamentarismo.
Eleito em 1989, Fernando Collor de Mello foi à lona no final de 1992, acusado de corrupção. Dinheiro sujo pagou a compra de um Fiat Elba para uso dele e a reforma da Casa da Dinda, residência oficial de Collor enquanto ele foi presidente.
Eleita em 2010 e reeleita dali a quatro anos, Dilma Rousseff terminou deposta porque gastou mais do que o Congresso autorizara, desrespeitando assim a Lei de Responsabilidade Fiscal. A isso se deu o nome de “pedaladas”.
Por duas vezes, Temer, o vice que substituiu Dilma, escapou de ser denunciado por corrupção pelo Supremo Tribunal Federal, o que o afastaria do cargo enquanto durasse o processo. A Câmara negou licença para a apresentação das denúncias.
Derrubar um presidente não é fácil. Requer dois terços de um total de 513 votos de deputados e dois terços dos votos de 81 senadores. A insatisfação popular está na raiz de qualquer tentativa bem-sucedida de tirar um presidente.
As pesquisas de opinião pública ainda conferem a Jair Bolsonaro um elevado grau de apoio dos brasileiros. As pessoas se mostram dispostas a desrespeitar as regras de isolamento social para se divertirem, mas não para comparecer a protestos.
A situação era assim também nos Estados Unidos no ano passado quando o Partido Democrata aprovou na Câmara o pedido de impeachment de Donald Trump. Sabia de antemão que ele seria rejeitado no Senado de maioria republicana.
No entanto, foi em frente. Levou em conta que seria um ano de eleição e que isso de todo modo desgastaria Trump. O desgaste não foi tão grande. Mas antes de tudo, pesou na decisão dos democratas que o certo sempre deve ser feito.
Essa é a razão pela qual outra vez o Partido Democrata quer aprovar o impeachment de Trump, embora ele esteja a poucos dias de deixar a Casa Branca para o presidente eleito Joe Biden. Dificilmente haverá tempo para isso, mas valeria pelo exemplo.
Uma vez que no próximo dia 1º sejam eleitas as novas direções do Congresso brasileiro, certamente deputados e senadores se verão diante do desafio de refletir sobre a abertura de um processo de impeachment contra Bolsonaro.
Alega Rodrigo Maia (DEM-RJ), atual presidente da Câmara, que não haveria tempo até lá para que o processo fosse aberto. Bobagem! Maia guarda na gaveta mais de 20 pedidos que recebeu. Só depende dele escolher um e aceitá-lo.
Não o fará sob a alegação de que isso tumultuaria a eleição do seu sucessor. A questão será enfrentada pelo novo presidente da Câmara. Se Arthur Lira (PP-AL), candidato de Bolsonaro, se eleger, não haverá processo tão cedo.
Se o eleito for Baleia Rossi (MDB-SP), apoiado por Maia, partidos do centro e da esquerda, o processo poderá ser aberto. Motivos para isso não faltam. Há aos montes. Se o processo não vingar, é o que menos importa. O certo deve ser feito.
A esse respeito, em conversa, ontem, com um grupo de devotos, Bolsonaro comentou: “Vocês não sabem o tamanho da minha paciência. Eu sou imbrochável, tá ok? Então, vão ter que me aturar. Só papai do céu me tira daqui, mais ninguém”.
Paciência é tudo o que ele não tem. Ninguém é “imbrochável”. Se por “papai do céu” quis se referir a Deus, fique sabendo que Deus, também citado no preâmbulo da Constituição que vige, deu autonomia aos humanos para que façam suas escolhas.
Melhor deixar Deus de fora disso. Fazer o certo só dependerá do Congresso.
Breiller Pires: Do impeachment ao freio das redes, caminhos para evitar que Bolsonaro repita Trump
Inspirado em seu espelho americano, brasileiro dobra aposta na narrativa de fraude das eleições, enquanto apelos por frente ampla da oposição ganham força para dissuadir ameaças do presidente. Bolsonaro convida apoiadores a segui-lo no Parler, rede usada por grupos de direita
A invasão ao Capitólio, instigada pelo presidente derrotado nas últimas eleições dos Estados Unidos, lançou sinal de alerta ao Brasil, sobretudo após Jair Bolsonaro sinalizar que o movimento insurgente pró-Donald Trump pode ganhar uma versão tropical daqui a dois anos. “Se tivermos voto eletrônico em 2022, vai ser a mesma coisa”, comentou o mandatário brasileiro em nova tentativa de desacreditar, sem provas, o sistema eleitoral do Brasil e clamar pelo retorno do voto impresso. Diante de mais uma manifestação de apreço pela tática trumpista por parte da maior autoridade do país, não faltaram notas de repúdio e “alertas” sobre o estado de democracia vindos do Supremo Tribunal Federal. Mas a pergunta sobre a qual analistas, partidos e políticos de oposição se debruçam é: o que fazer para impedir uma eventual tentativa de chutar o tabuleiro institucional ou mesmo ensaiar um golpe mais clássico na próxima eleição?
Para o advogado Pedro Abramovay, diretor da Open Society na América Latina, ao insistir com a narrativa de fraude nas urnas, Bolsonaro e seus apoiadores têm plantado a semente de uma estratégia para se manter no poder em caso de derrota no próximo pleito. “Fica evidente a característica de intenção quando Bolsonaro faz esse tipo de manifestação. Ele não está só conjecturando. Estamos falando de um presidente que construiu sua vida política desacreditando a democracia”, afirma o jurista. Em resposta imediata à fala do mandatário brasileiro, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) emitiu nota condenando o ataque ao sistema eleitoral e frisando que seu presidente, o ministro Luís Roberto Barroso, “lida com fatos e provas, que devem ser apresentadas pela via própria”.
Abramovay entende que, além do posicionamento de instituições em contraponto a manifestações antidemocráticas do Governo e do bolsonarismo, é essencial que elas encontrem amparo no ecossistema político. “Se as Forças Armadas não estiverem dispostas a cumpri-la, a Constituição não vale nada”, explica o advogado. “O STF só vai conseguir fazer valer a Constituição se houver forças políticas articuladas e poderosas o bastante para barrar intenções golpistas do presidente.” Ele lembra que, em países como Hungria e Turquia, que experimentaram recentemente a ascensão de governos autoritários, o Estado democrático ruiu aos poucos, a partir de ataques graduais às instituições. “Enquanto a sociedade civil tiver voz e conseguir influenciar os espaços de defesa da democracia, é muito improvável ocorrer uma virada de mesa antidemocrática.”
Em linha semelhante, Andrei Roman, criador da consultoria Atlas Político, que desenvolve pesquisas de opinião sobre a popularidade de Bolsonaro e as predileções de seu eleitorado, enxerga um fator em comum entre o Brasil e regimes autoritários que pode ser decisivo para uma hipotética inclinação golpista. “No atual contexto, é cada vez mais difícil identificar o momento exato em que um golpe acontece”, diz o cientista político. “A infiltração de militares no Governo ocorre no Brasil da mesma forma que ocorreu com Chávez, na Venezuela, ou com Orbán, na Hungria. Ter atores que compartilhem a ideia de um regime autoritário em posições estratégicas é mais preocupante até mesmo que a popularidade do presidente.”
Roman aponta que, de acordo com os últimos levantamentos do Atlas Político, entre 10% e 15% da população brasileira apoia a tomada do poder pelos militares, percentual semelhante ao dos que endossam a narrativa de urnas fraudadas. O índice pode subir, dependendo do desempenho do Governo e da radicalização de Bolsonaro nos próximos meses, mas não o suficiente, segundo o cientista político, para sustentar apoio popular a um eventual ensaio golpista ou de incentivo a reações de alas radicalizadas de sua própria base ou das polícias, por exemplo. Por outro lado, Pedro Abramovay julga como alarmantes as manifestações de integrantes do Exército, a exemplo do ex-comandante Eduardo Villas Bôas, que chegou a ameaçar intervenção militar caso o STF concedesse habeas corpus ao ex-presidente Lula, em 2018, e do ministro-general Augusto Heleno, que insinuou —em tom de ameaça— que a apreensão dos celulares de Bolsonaro, como determinou o Supremo, poderia ter “consequências imprevisíveis para a estabilidade nacional.”
“O papel que deve ser exigido das Forças Armadas é de silêncio permanente, não de intervenção. Se assegurassem que não participam do jogo político, elas minariam a capacidade de ação das forças golpistas”, diz Abramovay. Nos Estados Unidos, a posição de neutralidade dos militares foi colocada à prova diante da resistência de Trump em acatar o resultado das eleições norte-americanas, que confirmaram o democrata Joe Biden como presidente eleito. Porém, figuras proeminentes do alto comando, como o general Mark Milley, chefe do Estado-Maior Conjunto, saíram a público para pregar respeito à Constituição dos EUA e aos ritos democráticos. Dias antes da invasão do Capitólio, o conjunto dos 10 ex-ministros da Defesa dos EUA que estão vivos, incluindo proeminentes republicanos, fizeram uma carta conjunta para condenar as alegações de fraude feitas por Trump e seu desejo de envolver os militares. Em que pese a obrigação institucional de neutralidade, Andrei Roman considera salutar o envolvimento de militares em uma frente ampla em defesa da democracia, embora o veja como improvável. “O máximo que se pode esperar dos líderes mais importantes das Forças Armadas é o afastamento do debate político ou até mesmo o desembarque gradativo do Governo Bolsonaro.”
Um dos reflexos da invasão do Capitólio é a cobrança antecipada, puxada por opositores do bolsonarismo, pelo cumprimento do papel institucional dos militares. “E se (ou quando) a invasão golpista, similar à dos Estados Unidos, ocorrer no Congresso Nacional, de que lado ficarão as Forças Armadas?”, questionou o governador do Maranhão, Flávio Dino (PCdoB). “A história brasileira justifica a pergunta. Espero que defendam a Constituição e não fiquem do lado dos arruaceiros e milicianos.”
Da frente ampla ao impeachment
A oposição a Bolsonaro se organiza em duas trincheiras com vistas a 2022. Uma delas defende a deposição imediata do presidente, em meio à gestão desastrada da crise sanitária causada pela pandemia de covid-19. A outra, cujos entusiastas —em boa medida— também apoiam o impeachment, tenta pavimentar a constituição de uma frente ampla a fim de diminuir as chances de reeleição de Bolsonaro. “Frente ampla de esquerda, nós e nossos partidos construiremos com energia e vontade de utopia. Mas uma unidade institucional urgente contra o fascismo e a morte, Dino, Doria, Camilo, Rui, Wellington, Kalil, João Campos poderiam construir já. Entre a vida e o acordo com a morte”, convocou na última quinta-feira o ex-ministro petista Tarso Genro, em crítica a Bolsonaro por minimizar a marca de 200.000 mortes por coronavírus no Brasil.
Na visão de Abramovay, a construção da frente ampla contra Bolsonaro deveria focar, em primeiro lugar, na defesa dos direitos fundamentais, e não necessariamente na eleição. “A frente tem de ser pensada de duas maneiras. Uma é a eleitoral, de difícil consolidação nesse momento. A outra, mais importante, é a de defesa da democracia, que não vai aceitar ataques à Constituição, ao Judiciário e ao Congresso. Ela pode ter ou não consequência eleitoral, mas seu grande objetivo deve ser formatar condições para que quem venha a desbancar Bolsonaro na eleição assuma em 2023”, projeta o advogado.
Porém, ao menos por enquanto, o mais palpável é o coro crescente pelo afastamento de Bolsonaro, o que sempre esbarra nas condições específicas de apoio no Congresso, na situação econômica e na opinião pública. Na quinta-feira, o PT protocolou o 60º pedido de impeachment contra o presidente, dessa vez por apologia à tortura pela provocação direcionada à ex-presidenta Dilma Rousseff. Depois de resistir ao acolhimento de vários pedidos contra Bolsonaro, que vão desde crime de responsabilidade por suspeita de intervenção na Polícia Federal à quebra de decoro por desrespeitar as medidas de isolamento social na pandemia, o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM), deve deixar a decisão a cargo do novo presidente da Casa, que será escolhido em fevereiro ―uma batalha onde o candidato apoiado por Maia e pela esquerda, o Baleia Rossi (MDB), disputará com o nome do Planalto, Arthur Lira (PP).
“É praticamente impossível que haja impeachment sem mobilização da sociedade. Mas é difícil imaginar ruas tomadas no meio de uma pandemia”, analisa Abramovay. “Fatos jurídicos para o impeachment já existem de sobra, dada a fartura de crimes de responsabilidade cometidos pelo presidente. Só que todos os outros elementos para que ocorra são políticos. Assim como não há garantia de que o Centrão se mantenha fiel a Bolsonaro, Baleia Rossi, caso eleito, também pode não levar o impeachment adiante.”
De acordo com números do Atlas Político, a popularidade de Bolsonaro, que chegou a cair quase 10 pontos percentuais no começo da pandemia, voltou a apresentar leve viés de queda em dezembro. A maioria dos entrevistados pela consultoria (55%) dizia apoiar o impeachment do presidente até julho do ano passado. Em abril, no auge das tensões pela queda de Sergio Moro, o Datafolha havia mostrado que o percentual de apoiadores da deposição era de 45%. “Bolsonaro não está imune ao impeachment até o fim do mandato. Ainda não há cristalização definitiva de sua base de apoio”, afirma Roman. “Com a resistência em se aproximar de Joe Biden, a relação com o novo Governo dos Estados Unidos pode desencadear uma crise diplomática e gerar mais um fato negativo para sua administração, fortalecendo o cenário de impeachment.”
O freio das redes sociais
No balanço final da invasão ao Capitólio, Trump acabou punido nas redes sociais por incitar apoiadores com o discurso de fraude nas eleições. Primeiro, o Twitter limitou o alcance de suas publicações, e depois suspendeu sua conta por 12 horas e, agora, anunciou que o fará de maneira permanente. Três mensagens foram apagadas sob alegação de propagar informações falsas. Já Facebook e Instagram baniram o presidente por tempo indeterminado. Em um comunicado, Mark Zuckerberg, proprietário das plataformas, explicou que, antes da punição, as redes apenas sinalizaram conteúdos que violam suas políticas, mas resolveu tomar providências mais rígidas por entender que “o contexto atual é fundamentalmente diferente, envolve o uso de nossa plataforma para incitar insurreição contra um governo democraticamente eleito. Os riscos de permitir que o presidente use a plataforma neste momento são grandes demais.”
Agora, existe a expectativa de que as redes, especialmente o Facebook, em que o presidente Jair Bolsonaro já divulgou informações falsas em suas tradicionais lives semanais, possam adotar postura semelhante no Brasil. Isabela Kalil, antropóloga e cientista política que estuda movimentos de extrema direita no Brasil desde 2016, observa que o bolsonarismo já usou de expediente parecido ao dos radicais americanos para instigar uma insurreição contra os Poderes Judiciário e Legislativo. Em março, após o presidente compartilhar vídeo estimulando apoiadores a se manifestarem contra o Congresso, um monitoramento coordenado por Kalil identificou a ação de perfis que convocaram atos antidemocráticos em frente a quartéis militares. “Do ponto de vista da base bolsonarista, tivemos um ensaio do que pode vir a ocorrer em 2022”, diz a pesquisadora.
Enquanto a invasão do Capitólio reuniu grupos neonazistas, antivacinas e supremacistas brancos, simbolizados pelo QAnon, movimento adepto de várias teorias da conspiração, a radicalização pró-Bolsonaro parte de seitas como o 300 pelo Brasil, liderado pela extremista Sara Winter, que chegou a ser presa e indiciada por ameaçar ministros do STF. Para Kalil, apesar de minoritários, esses grupos não devem ser menosprezados nem tratados somente como alegorias exóticas ou irrelevantes. “Nos Estados Unidos, uma parcela significativa da população não considera a invasão uma situação absurda. Ainda que grupos radicais adotem posições extremas, a sociedade vai normalizando esse tipo de manifestação ao achar que o fenômeno é isolado e está sob controle.”
Além do inquérito das fake news conduzido pelo Supremo, que apura a suposta existência de uma máquina de ódio e desinformação movida por bolsonaristas, o Facebook derrubou, em julho, dezenas de contas ligadas ao clã Bolsonaro por utilização de robôs e perfis falsos. O contragolpe nas redes é encarado como uma medida fundamental por Isabela Kalil, embora ela sinalize a necessidade de ampliar o alcance das restrições. “As plataformas tardaram muito em tomar providências, mas os vetos não podem se restringir a Trump. Têm de barrar todo tipo de discurso de ódio”, aponta a cientista política, que ainda frisa o papel das instituições no enfrentamento às redes de desinformação. “As plataformas comerciais não vão resolver o problema sozinhas. Grupos de extrema direita já estão migrando para outras redes, como o Parler. A contenção dessa onda passa por uma resposta firme das instituições democráticas.” Neste sábado, Bolsonaro convidou seus seguidores, em uma publicação no Instagram, a o seguirem no Parler ―um dia depois de o Google Play suspender o aplicativo até que a rede social esclareça seu viés autoritário. O Parler também deve ser retirado de operação, informaram seus desenvolvedores.
Pedro Abramovay entende que se trata de um debate delicado, por envolver o interesse das empresas de mídia, e diz não acreditar que as restrições a Trump sejam imediatamente replicadas no Brasil para conter arroubos autoritários e conspiratórios de Bolsonaro nas redes sociais. “O Facebook foi fundamental para a vitória do Trump. A decisão de suspendê-lo da plataforma somente quando está de saída do poder é mais um recado aos novos detentores do poder do que uma medida inovadora para enfrentar líderes autoritários.”
O advogado, assim como Kalil, argumenta que o melhor caminho para desidratar clamores antidemocráticos e uma escalada do autoritarismo no Brasil é o protagonismo das instituições de controle. “É preciso responsabilizar o presidente por falas de consequências gravíssimas, como no caso de desestimular a vacinação, mas é preferível que essa responsabilização se dê pelas instituições brasileiras do que por empresas privadas de comunicação.”
Amanda Mars: Trump dinamita o final com o qual sonhava
Até quarta-feira, o presidente republicano imaginava uma etapa pós-presidencial na primeira linha de combate. O ataque ao Congresso o deixa mais isolado e silenciado que nunca
Silenciado nas redes sociais, repudiado pelo establishment republicano, abandonado por uma série de altos funcionários de seu Gabinete e derrotado nas urnas, Donald Trump nunca esteve tão sozinho como agora. Sua última grande batalha contra o sistema dos Estados Unidos, na qual tentou reverter o resultado das eleições presidenciais espalhando acusações infundadas de fraude, serviu de teste final sobre as lealdades, e também sobre as forças democráticas, e o presidente se deu mal.
O secretário de Justiça William Barr, nomeado pelo próprio Trump, não encontrou nenhum fundamento da alegada grande operação fraudulenta; as autoridades republicanas dos Estados cujos resultados eleitorais foram contestados pelo mandatário resistiram às suas pressões; a Suprema Corte, de maioria conservadora e com três dos nove juízes nomeados por ele, decidiu por unanimidade não envolver-se; e no último momento, na quarta-feira, quando o Congresso se reuniu para certificar em Washington a vitória eleitoral do democrata Joe Biden, apenas um punhado de legisladores fiéis ao presidente se animou a torpedear o processo.
Naquele 6 de janeiro, já escrito para sempre nos livros de história, o magnata nova-iorquino resolveu fazer uma nova demonstração de força. Pela manhã, antes que os membros do Congresso se reunissem para ratificar Biden, convocou um comício em frente à Casa Branca, aproveitando a enorme quantidade de seguidores que tinham chegado de todo o país. Depois, incentivou-os a ir protestar diante do Capitólio, a ser fortes, a recuperar o país sem fraquejar.
Até quarta-feira, Donald Trump tinha planejado uma etapa pós-presidencial na primeira linha de combate, pensando em se manter como uma voz destacada do eleitorado conservador. Tinha revelado inclusive sua intenção de voltar a ser candidato nas eleições presidenciais de 2024 e, pelo que seu entorno vazou para a imprensa, pensava em anunciá-la formalmente no dia da posse de Joe Biden, em 20 de janeiro. Ninguém gosta tanto de um bom espetáculo como esse empreendedor imobiliário de 74 anos que conquistou a presidência mais poderosa do mundo ao saltar dos reality shows para a política. Irritado com a linha da TV conservadora Fox News —outra que o abandonou, segundo seu ponto de vista—, pensava em lançar uma plataforma própria para continuar conectado com suas bases. A batalha de fundo era o controle do eleitorado republicano. Alguns membros de sua família, como sua filha, Ivanka, e seu filho mais velho, Donald, também consideraram a possibilidade de seguir uma carreira política. Em suma, para a família Trump, a política estava apenas começando.
Todos esses planos se complicaram para Trump depois do violento assalto de seus seguidores radicais ao Congresso, uma revolta — instigada por sua campanha dos últimos meses— na qual morreram cinco pessoas e que pôs a imagem dos Estados Unidos, a democracia mais poderosa do mundo, em uma situação vergonhosa.
Segundo o procurador Ken Kohl, do gabinete do Ministério Público dos EUA em Washington, o Departamento de Justiça não planeja, pelo menos por enquanto, denunciar por crimes de incitação à violência o presidente ou outros que discursaram no comício da manhã de quarta-feira diante da Casa Branca (como seu filho Donald Jr.), onde foi aceso o pavio. No entanto, o Partido Democrata pretende submeter Trump a um processo de impeachment, ou seja, a um julgamento político no Congresso para decidir sobre sua destituição, a não ser que ele renuncie ou seu próprio Gabinete o deponha recorrendo à 25ª emenda da Constituição (estas duas últimas opções são improváveis).
Resta para Trump pouco mais de uma semana na Casa Branca, mas, se for condenado nesse processo, o Senado poderia votar também para incapacitá-lo como candidato no futuro. O impeachment teria caminho livre na Câmara dos Representantes, que iniciaria o processo e tem maioria democrata, mas seria complicado no Senado, onde ocorreria o julgamento político em si, no qual um presidente só pode ser condenado por maioria de dois terços dos votos —o que, atualmente, o partido de Joe Biden não tem.
“É muito difícil que tenham tempo para tudo isso; o que os democratas querem fazer é prejudicá-lo politicamente, evitar que possa se candidatar nas eleições em 2024, e buscam o apoio dos republicanos para isso, mas essa não é sua prerrogativa, é uma prerrogativa dos eleitores”, considera o jurista republicano Robert Ray, que atuou como procurador independente no caso Whitewater, um escândalo imobiliário que atingiu Bill e Hillary Clinton nos anos noventa.
Além dos episódios violentos no Congresso, o que estará à espera de Trump quando ele deixar o Governo é a Justiça. A procuradoria de Manhattan está investigando seu histórico tributário e, graças a uma vitória na Suprema Corte, terá acesso a oito anos de suas declarações, como parte de inquéritos sobre pagamentos a mulheres para ocultar possíveis infidelidades matrimoniais durante a campanha de 2016 e sobre uma possível fraude fiscal. Além disso, a procuradora de Nova York Laetitia James está analisando possíveis acusações contra sua construtora por alterar o valor real de seu ativos para obter empréstimos.
O Departamento de Justiça também terá o caminho livre para reativar o caso de obstrução à Justiça durante a investigação da trama russa —Trump já não terá a imunidade presidencial— e, por outro lado, continuam os processos por sua conduta pessoal: uma ação de sua sobrinha Mary Trump por fraude em uma herança e duas por difamação, uma destas movida pela escritora E. Jean Carroll, que o acusa de uma agressão sexual supostamente cometida nos anos noventa.
Essas questões, porém, já estavam na mesa antes do pleito de novembro e não minaram o apoio ao presidente, que perdeu as eleições, mas obteve 74 milhões de votos, quase 12 milhões a mais do que em 2016. A dúvida é se o magnata conseguirá manter sua capacidade de mobilizar as bases a partir de agora; se realmente, como afirma, poderá continuar sendo o líder dos eleitores conservadores depois de ser expulso do poder político, com menos atenção da mídia e com outros republicanos já pensando em varrê-lo do mapa para entrar na corrida pela Casa Branca.
Para o estrategista político Rick Wilson, um dos fundadores do The Lincoln Project, uma plataforma de republicanos contra Trump, o presidente perdeu “seu superpoder”, ou seja, seu alto-falante nas redes sociais, Twitter e Facebook, “e não poderá se comunicar com seus seguidores tão facilmente quanto antes”.
Wilson relativiza o peso dos 74 milhões de votos que Trump recebeu nas eleições, e alerta que metade deles é de “republicanos comportamentais”, ou seja, eleitores que “votarão em republicanos aconteça o que acontecer, porque para eles as eleições são uma alternativa entre socialismo e liberdade, luz e escuridão, bem e mal”. Resta, acrescenta o estrategista, essa outra metade que participa do culto à figura do magnata nova-iorquino. “Mas o grande cisma com que esta nação se defronta é se as pessoas que se dizem republicanas, que acreditam nos princípios conservadores, estão bem servidos com Trump”, assinala. Para o Partido Republicano, diz ele, o que ocorreu quarta-feira foi “devastador”.
Fala-se muito sobre os próximos movimentos de Trump. Renegado como nova-iorquino, espera-se que ele se mude para a Flórida, principalmente por conveniência fiscal. Um personagem tão singular como esse, alérgico às derrotas e orgulhoso até a agonia, não pode ser considerado varrido do mapa. Se vir opções, continuará lutando pelo controle dos eleitores republicanos, mas ninguém acredita mais que ele tenha coragem de convocar outra manifestação para coincidir com a posse de Biden.