Impeachment Dilma Rousseff
Revista online | Breve notícia da terra devastada
Luiz Sérgio Henriques*, especial para a revista Política Democrática online (49ª edição: novembro/2022)
Em Washington, mal começado o governo e já na primeira viagem internacional, o presidente Jair Bolsonaro (PL) cunhou a epígrafe definitiva da obra a que se dedicaria com afinco nos anos seguintes. Conservadores de variado coturno – ou melhor, reacionários do calibre de Olavo de Carvalho e Steve Bannon – ouviram-no proclamar o sentido da “missão divina” que se autoatribuía e que consistia em “desconstruir” e “desfazer” regras e valores, hábitos e instituições, antes de começar a pôr de pé a parte supostamente positiva da sua agenda.
Livramo-nos há pouco da promessa bolsonarista da “construção” a ser cumprida em mais um mandato, mas é forçoso admitir que só quatro anos bastaram para legar um cenário de terra devastada. Em outras palavras, a metade inicial do projeto está realizada. A celebração grosseira do “politicamente incorreto” contaminou parte das elites e infiltrou-se por toda a sociedade, criando um reacionarismo de massas agressivo e destruidor.
Juristas defenderam uma leitura golpista da Constituição – em particular, do artigo 142, simultaneamente curto e prolixo, que na aparência dá voz a quem numa democracia deve ser o “grande mudo”. Médicos militaram, e talvez militem ainda, no movimento antivacina, deixando um traço lastimável de retrocesso civilizatório. E a violência política tornou-se um recurso, quando não legítimo, ao menos aceitável para setores da sociedade contaminados pelo culto às armas e pela tentação de eliminar fisicamente o inimigo interno – se preciso for.
Confira, a seguir, galeria de imagens:
Na verdade, a contrarrevolução política e cultural a que fomos submetidos desde 2019 – e a que, em certa medida, assistimos “bestializados” – teve mais de uma vertente. Desde logo, vimo-nos arrastados pela grande crise das democracias contemporâneas, que está longe de ter se esgotado e parece renovar-se em cada eleição e em cada momento.
Uma crise estrutural, certamente, com aspectos até bizarros. Não é comum que alguém como Viktor Orban, autocrata de um país distante e pequeno (ainda que culturalmente muito relevante), torne-se uma espécie de ídolo global dos “revolucionários” da extrema-direita, inclusive no país-chave do Ocidente, os Estados Unidos. Mais do que ídolo, um modelo para o programa de corrosão das democracias aplicado em várias realidades nacionais. Pois a Viktor Orban fomos também apresentados na posse mesma do presidente Bolsonaro, sinalizando uma aliança e uma afinidade que até então inocentemente ignorávamos.
Há também uma dimensão propriamente interna – ou, mais do que isto, um emaranhado de contradições que são coisas nossas e nos levaram à beira do precipício. A exasperação do conflito político, especialmente a partir de 2013, teve efeitos desastrosos, cuja enumeração exaustiva não cabe aqui.
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Mencionemos só um exemplo. Não soubemos lidar nada bem com o instituto do impeachment. Todos os governos não petistas, sem exceção, foram alvo de insistentes pedidos de impedimento por parte do PT ou de figuras próximas. E, no entanto, o impeachment de Dilma Rousseff, num contexto de recessão brutal e perda de apoio parlamentar, teve como contrapartida a acusação inapelável de “golpe”, como se 2016 tivesse sido o marco zero da ruptura institucional – o que, a bem da verdade, não tivemos em momento algum, sequer em 2018 e menos ainda, obviamente, em 2022. Aliás, com seus sinais de nova esperança, a data mais recente reuniu numa só trincheira todos os personagens de vocação democrática, inclusive os que antes se contrapuseram duramente.
Coisa bem diferente é postular que o segundo mandato do aspirante a autocrata teria aprofundado a ação da toupeira ou, para usar termo militar, o trabalho de sapa contra as instituições consagradas na Constituição. Uma democracia fortemente tutelada e uma sociedade conflagrada poderiam, em conjunto, somar a repressão “tradicional” dos aparelhos de Estado e a violência nascida das entranhas do corpo social, violando todas as dimensões da liberdade duramente conquistadas após a ditadura. E assim terminariam por se desenhar as linhas de um pós-fascismo, ou de um fascismo do século XXI, encerrando tragicamente, com um grau maior ou menor de coerção, o mais longo período de vida democrática que tivemos sob a República.
Há quem diga que construções intelectuais dizem pouco, quase nada, sobre as lutas cruas pelo poder a que se entregam de corpo e alma as forças políticas e que são sua razão única de ser. Afinal, o cinismo autoriza a dizer que programas convincentes sempre podem ser encomendados na primeira esquina e nunca falta gente para fornecer discursos altissonantes.
A vantagem de conjunturas críticas, como esta que ainda não deixamos para trás, é que evidenciam a conexão mais íntima entre ideias e atitudes, ideólogos e políticos – mesmo que uns sejam farsantes e os outros toscos. Uma conexão que funciona para o bem e, como acabamos de ver, vezes sem conta para o mal, o que talvez seja uma das advertências mais poderosas sobre as possibilidades de degradação social e política sempre latentes em qualquer circunstância.
Sobre o autor
*Luiz Sérgio Henriques é tradutor e ensaísta
* O artigo foi produzido para publicação na revista Política Democrática online de novembro de 2022 (49ª edição), produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.
*** As ideias e opiniões expressas nos artigos publicados na revista Política Democrática online são de exclusiva responsabilidade dos autores. Por isso, não reflete, necessariamente, as opiniões da publicação.
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Nas entrelinhas: Fracasso do Novo reflete o colapso do neoliberalismo
Luiz Carlos Azedo | Nas entrelinhas | Correio Braziliense
Candidato do Novo, Felipe d’Avila até agora não emplacou. Na última pesquisa do Ipespe, registrou 1% de intenções de votos. Com 58 anos, nascido em São Paulo, é cientista político, mestre em administração pública pela Universidade de Harvard. Fundou, em 2008, o Centro de Liderança Pública, uma organização sem fins lucrativos dedicada à formação de líderes políticos. Com 10 livros publicados, é o candidato da chamada “nova política”, mas não consegue sensibilizar os eleitores.
O Novo é um projeto político que antecedeu as manifestações de junho de 2013, uma explosão de insatisfeitos de todos os matizes, contra o governo Dilma Rousseff. Com a reeleição da petista, a movimentação espontânea foi sendo direcionada para a campanha do impeachment dela. Nesse processo, surgiram vários movimentos cívicos; a turma do Novo, porém, desde o primeiro momento, apostou na formação de um partido ideológico, sem concessões ao pragmatismo político. A política do Novo é o neoliberalismo.
A grande façanha do Novo em 2018, quando elegeu oito deputados federais e 12 deputados estaduais, foi a eleição do governador de Minas Gerais, Romeu Zema, que lidera as pesquisas sobre o pleito para o governo do estado como candidato à reeleição. Entretanto, não existe transferência de votos para Fernando d´Avila em Minas. Com palanque aberto, Zema enfrenta o ex-prefeito de Belo Horizonte Alexandre Kalil, aliado do ex-presidente Lula, que lidera as pesquisas para a Presidência em Minas. O governador mineiro trafega nas bases de Bolsonaro, mas mantém um posicionamento independente.
O Novo foi o único partido que votou contra a chamada PEC das eleições, que aprovou o Auxílio Brasil e os subsídios para caminhoneiros e taxistas. Mantém sua coerência em relação aos princípios e valores que levaram à fundação da legenda, a ponto de devolver os recursos dos fundos partidário e eleitoral. Essas bandeiras vão ao encontro do cidadão comum que tem ojeriza à política e aos políticos, mas não têm apelo eleitoral até agora.
A abertura econômica está entre as principais propostas de d’Ávila, que chove no molhado: “O Brasil precisa de um presidente capaz de vencer esse populismo que nos deixou com estagnação econômica há 20 anos, recorde de desemprego, aumento da miséria. A abertura econômica do Brasil é fundamental. Nenhum país do mundo ficou rico mantendo a sua economia fechada”. O candidato do Novo defende a “conciliação” do agronegócio com o meio ambiente, a descentralização do poder e o empoderamento do cidadão por meio da digitalização do governo. E empunha a bandeira da “pacificação”, ao criticar a polarização entre o ex-presidente Lula e o presidente Bolsonaro.
Quatro décadas
O discurso envelheceu. O neoliberalismo está sendo responsabilizado pelo aumento das desigualdades no mundo e das baixas taxas de crescimento. Segundo o economista Joseph Stiglitz, Nobel de Economia, a diminuição simultânea da confiança no neoliberalismo e na democracia não é coincidência, nem mera correlação. “O neoliberalismo minou a democracia durante 40 anos. A forma de globalização prescrita pelo neoliberalismo deixou indivíduos e sociedades inteiras incapazes de controlar uma parte importante de seu próprio destino”, argumenta.
Segundo Stiglitz, o sistema capitalista precisa ser reformado, porque fomenta um crescimento de desigualdades, destruição do meio ambiente, polarização de nossas sociedades e um permanente descontentamento, que não podem ser negados. “Precisamos de um novo contrato social, que espalhe solidariedade em nossas sociedades e pelas gerações. Isso significa um papel diferente para os governos, menos ajuda para as empresas e mais ajuda aos cidadãos que necessitam, impostos progressivos e, acima de tudo, reescrever as regras da economia”, argumenta o economista.
Esse cenário é corroborado até pela diretora-gerente do FMI, Kristalina Georgieva, segundo a qual o “o capitalismo está fazendo mais mal do que bem”. O FMI fala em “cultura da solidariedade” e “globalização da esperança”. Também fala em melhorar os sistemas globais do comércio, de controlar os fluxos de capitais pelos danos que podem causar e sobre a sustentabilidade da dívida. Trocando em miúdos, o projeto de d’Ávila está descolado da realidade do Brasil e do mundo.
Os Divergentes: Livro recupera o dia a dia do impeachment de Dilma
Ainda o impeachment da presidente Dilma Rousseff. Um livro surpreendente. Um leitor desavisado, ao pegar um exemplar em algum lugar do País que não em Brasília, pensará que está lendo a obra de um historiador que vê os acontecimentos de 2016 em perspectiva. Entretanto, o livro de Luiz Carlos Azedo reproduz suas crônicas e análises produzidas no calor dos acontecimentos.
Por José Antônio Severo
O autor acompanhou e narrou com tamanha precisão o dia a dia que mais parecem, visto de hoje, uma análise de fatos consumados e não o jornalismo dos tumultuados momentos da última queda de um governo desta república.
“O Impeachment de Dilma Rousseff – Crônicas de uma queda anunciada” é a recuperação do trabalho de um dos jornalistas mais completos do País. Azedo revela-se vários pontos acima da média dos comentaristas e analistas da imprensa, salvo algumas honrosas exceções.
O trabalho de Azedo demonstra que um leitor de jornal impresso atento da mídia pode estar bem a par dos acontecimentos. Neste caso, os leitores do Correio Braziliense tiveram essa oportunidade. Quem não viu e não leu o principal diário da capital tem, agora, a chance de recuperar como foram aqueles momentos dramáticos e com que lucidez o jornalista viu e narrou, passo a passo, o governo petista afundar-se em suas contradições e os erros de seus operadores.
Em resumo: é um livro notável. Azedo é um jornalista muito bem equipado, com sólida formação filosófica, de teoria política e histórica. Essa bagagem ele a utiliza com grande segurança, no calor dos acontecimentos, como fica demonstrado para o observador de hoje, vendo como a narrativa dava ao leitor do dia do Correio Braziliense uma informação correta do que estava se passando.
Para o leitor com formação ou leitura nos autores de vertente marxista, um atrativo a mais, pois Azedo vai botando aqueles fatos dentro do enquadramento político/filosófico. Originário do antigo Partidão, dentre sua variada experiência profissional em jornais de várias cidades do País, ele se qualifica como diretor-responsável do semanário “A Voz da Unidade”, órgão central do antigo Partido Comunista Brasileiro, o PCB, matriz da esquerda brasileira.
Como diz na orelha do livro Alberto Aggio: “A leitura das crônicas de Azedo não deixa dúvida de que o impeachment de Dilma está longe da chamada “narrativa do golpe”, construído pelos apoiadores do governo deposto”. Também o prefácio, assinado pelo atual senador do PPS, professor Cristovam Buarque, elogia a visão precisa de um profissional de elite que sempre acertava no centro do alvo.
Para dar uma ideia ao leitor da capacidade profissional e intelectual do autor, vamos reproduzir um trechinho do livro, escrito 10 dias antes da votação do impeachment, mas que parece o texto de um historiador vendo os acontecimentos depois de fatos consumados.
Escreve Azedo dia 14 de agosto: “O impeachment da presidente afastada, Dilma Rousseff, que deve se consumar a partir do dia 25, quando começará seu julgamento pelo Senado, encerra um ciclo de experimentalismo político e econômico de esquerda no Brasil, que se esgotou porque o projeto do ex-presidente Lula e do PT estava referenciado em ideias nacionais desenvolvimentistas e socialistas derrotadas historicamente no século passado, além de alicerçadas em práticas políticas pautadas pelo populismo, pelo fisiologismo e pela corrupção”. O governo Dilma, ele diz logo adiante tentou mudar o país com “capricho e ignorância”.
Editado pela Verbena Editora, com patrocínio da Fundação Astrogildo Pereira, o livro é uma visão de um marxista muito lido e a opinião de um jornalista sólido, concorde-se ou não com suas conclusões, as quais, por sinal, apenas ver se referiam ao dia presente. É este seu grande valor, pois dá uma credibilidade singular ao livro de Luiz Carlos Azedo.
Fernando Henrique Cardoso: A crise do Brasil
Devemos demonstrar que podemos reinventar o significado e os rumos de nossa política
Em 31 de agosto, o Senado brasileiro destituiu a presidenta Dilma Rousseff. Após cinco longos dias de debate, 61 dos 81 senadores, muito acima dos dois terços necessários para se destituir um presidente, a condenaram por crimes fiscais e orçamentários. Seus partidários disseram que a presidenta foi vítima de um “golpe parlamentar”. Haviam retirado do poder injustamente uma pessoa eleita por 54 milhões de votos, inocente de quaisquer crimes. Na América Latina modelos de democracia e Estado de direito como Cuba, Venezuela, Bolívia e Equador ecoaram esse protesto.
Certamente, nada disso é verdade. A realidade, como de costume, fala por si só. O processo de impeachment foi ao mesmo tempo judicial e político. O procedimento estabelecido pela Constituição brasileira foi seguido ao pé da letra. As duas Câmaras do Congresso aprovaram por maioria absoluta, primeiro, o início do processo, e depois, a condenação da presidenta. O julgamento realizado no Senado foi liderado pelo presidente do Supremo Tribunal. O principal órgão judicial do país reafirmou diversas vezes a legitimidade do processo. Mas é certo que não estavam em jogo somente os crimes de uma pessoa, mas muitas outras coisas. O processo foi o resultado da convicção, expressada nas ruas por milhões de brasileiros, de que o sistema de poder instituído pelo ex-presidente Lula e o Partido dos Trabalhadores é o culpado pelo fato do Brasil afundar na crise econômica, política e moral mais grave desde a restauração da democracia em 1985.
Dilma, em sua defesa no Senado, muito emocionada, insistiu em sua inocência. Mas sua beligerância não a justifica e não a absolve de sua irresponsabilidade fiscal – os bilhões de dólares transferidos ilegalmente a empresas privadas e estrangeiras – e de sua incapacidade, quando presidia o conselho de administração da Petrobras, para impedir o saque da maior empresa brasileira em benefício do PT e dos demais partidos que apoiaram seu Governo.
E o que tudo isso nos deixou? Sem dúvida, as ilusões perdidas de todos os que acreditaram nas promessas do PT. Mas também uma economia em recessão e um desemprego em massa, uma sociedade destroçada por uma onda sem precedentes de escândalos de corrupção e um sentimento generalizado de decepção. Mesmo que a presidenta não tenha sido a autora dos atos de corrupção, revelados graças a uma imprensa independente e juízes sem medo, ela se beneficiou politicamente deles. Os políticos processados pertencem a tantos partidos que, na realidade, é a “classe política” em seu conjunto que está sendo julgada diante de uma opinião pública atenta. A queda do Governo do PT provocou o desmoronamento de todo o sistema político.
Existem motivos para otimismo. A democracia brasileira demonstrou sua capacidade de resistir e se adaptar
Ainda assim, existem motivos para o otimismo. A democracia brasileira demonstrou sua capacidade de resistir e se adaptar. Milhões de pessoas saíram às ruas. O que estamos presenciando no Brasil são os efeitos de transformações econômicas e tecnológicas imensas. A globalização enfraqueceu os Estados nacionais, as sociedades estão cada vez mais fragmentadas por uma nova divisão de trabalho e à mercê das tensões e dos desequilíbrios de uma diversidade cultural cada vez maior. As consequências são a inquietude, o temor pelo futuro e a incerteza sobre como manter a coesão social, garantir o emprego e reduzir as desigualdades. A ação popular e a opinião pública têm um poder transformador. Mas as instituições são necessárias. Não existe democracia sem partidos políticos. As estruturas proporcionam o terreno e as oportunidades para que o ser humano aja, mas a é vontade dos indivíduos e de setores da sociedade, inspirados por seus valores e interesses, o que abre a porta às mudanças.
Devemos demonstrar no Brasil que podemos reinventar o significado e os rumos de nossa política; caso contrário, o descontentamento voltará a lançar o povo às ruas, para protestar contra sabe-se lá quem e a favor do que. O desafio que enfrentamos é fechar a brecha existente entre a demos e a res publica, entre as pessoas e o interesse geral, voltar a tecer os fios que podem unir o sistema político e as demandas da sociedade.
Fernando Henrique Cardoso foi presidente do Brasil e é membro do Conselho do século XXI no Berggruen Institute
Fonte: El País
Fernando Canhadas: Enfim, o Golpe.
"Depois de tantos meses de disputas, negociatas e articulações, o dia D do impeachment de Dilma Roussef chegou e enfim tivemos um golpe no Brasil. Mas para a surpresa minha, sua e do mundo, não houve o golpe tão propalado pelos defensores do governo Dilma, mas sim um outro golpe. Na verdade um golpe de mestre, orquestrado e costurado à sorrelfa, ou como se diz hoje em dia, na miúda, por gente graúda. Muito graúda. Se vocês não têm essa ideia com clareza ainda, vamos aos fatos.
Mesmo sabedor da circunstância de que o impeachment estava sacramentado, Lula continuava trabalhando forte nos bastidores. Hoje soubemos o motivo. Não era para evitar o impeachment coisa nenhuma, mas sim para evitar a inabilitação de Dilma.
Segunda pergunta mais importante: quem ganha com o golpe de hoje? Ao menos dois grandes grupos de pessoas: 1) Dilma, PT e todo mundo que trabalhava no discurso do golpe, que agora para sempre poderá dizer que “ah, tanto foi um golpe que ela sequer foi condenada – fica óbvio que ela não cometeu nenhum crime e o único intuito era tirá-la”; e 2) Cunha e todos os demais parlamentares (PMDB em peso) que estão correndo o risco de perderem o mandato, especialmente em épocas de Lava-Jato – não perdendo os direitos políticos, eles poderão concorrer a novas eleições em breve e, por consequência, manter prerrogativas de foro.
Primeira pergunta mais importante: quem participou desse Golpe, além de Lula? Temos todos os nomes, então vamos lá: José Eduardo Cardozo, óbvio; Renan Calheiros, óbvio; Ricardo Lewandowski, óbvio (que já estava com a decisão pronta e redigida, segundo ele porque a possibilidade daquela questão já vinha sendo abordada pela imprensa – aqui, oh!) e obviamente, todos os outros senadores que votaram pelo impeachment, mas não pela inabilitação ou que se abstiveram em relação à segunda, quais sejam: Acir Gurgacz (PDT-RO), Antonio Carlos Valadares (PSB-SE), Cidinho Santos (PR-MT), Cristovam Buarque (PPS-DF), Edison Lobão (PMDB-MA), Eduardo Braga (PMDB-AM), Hélio José (PMDB-DF), Jader Barbalho (PMDB-PA), João Alberto Souza (PMDB-MA), Raimundo Lira (PMDB-PB), Renan Calheiros (PMDB-AL), Roberto Rocha (PSB-MA), Rose de Freitas (PMDB-ES), Telmário Mota (PDT-RR), Vicentinho Alves (PR-TO), Wellington Fagundes (PR-MT), Eunício Oliveira (PMDB-CE), Maria do Carmo Alves (DEM-SE) e Valdir Raupp (PMDB-RO).
É amigos, temos que dar a mão à palmatória. A ideia foi genial. Tudo foi feito na surdina e ninguém da imprensa – pelo menos que eu tenha lido – antecipou essa possibilidade. E vejam a sofisticação da manobra: agora estão falando de impugnar a decisão no STF, por conta da separação das votações. Mas não vejo como impugnar uma parte sem a outra. Quem votou hoje pelo impeachment, votou apenas pelo impeachment, não pelo destaque. Não seria possível presumir a inclusão do destaque na primeira parte da votação de hoje.
Assim, se alguém quiser impugnar (como Caiado disse que irá fazer), a decisão do impeachment de Dilma fica anulada e outra sessão deveria ser convocada. É mole?
Por fim, é óbvio ululante e não há como negar que a decisão de separar as votações de hoje foi inconstitucional. A leitura do art. 52, parágrafo único do texto constitucional não admite nenhuma outra interpretação, a não ser de que o impeachment leva à cassação dos direitos políticos.
Mas para que Constituição com o Senado que temos? Com os Partidos que temos? Com o STF que temos?
Hoje finalmente houve um golpe no Brasil. E que belo golpe."
Fernando Henrique Cardoso: A história ensina
A política requer desprendimento e grandeza
Em julho passado André Franco Montoro faria cem anos. Em um país desmemoriado é bom recordar: Montoro foi dos raros políticos capazes de, sendo realistas, não deixar de lado os sonhos, as crenças, os valores. Em época de pouco caso ao meio ambiente, Montoro exortava as pessoas a plantarem hortas, a darem preferência à navegabilidade dos rios, a deixarem de lado os egoísmos nacionais e olharem para a América Latina, a dizer não à bomba atômica. E principalmente, a entender que a política requer desprendimento e grandeza. Foi assim quando, quase sozinho, impôs ao antigo PMDB um comício pelas eleições diretas-já na Praça da Sé, em 1984. E outro exemplo nos deu quando, lidando com outros gigantes, apoiou Tancredo Neves para a disputa no Colégio Eleitoral.
Conto um episódio. Nos preparativos para a eleição indireta do novo presidente, a Veja publicou uma entrevista de Roberto Gusmão, então chefe da Casa Civil de Montoro, em que este, falando por São Paulo, lançava o nome de Tancredo Neves para concorrer pela oposição. Na época, além de muito ligado a Ulysses Guimarães, eu era presidente do diretório do PMDB de São Paulo. Ulysses, como fazia habitualmente, passou na manhã subsequente à publicação da entrevista pelo casarão que então sediava o partido. Perguntou-me de chofre: "isso é coisa do Gusmão ou do Montóro"? Como ele pronunciava. Confirmei que era opinião do governador de São Paulo. "E você, o que acha?" Disse-lhe: "O senhor sabe dos laços de respeito e amizade que nos unem, mas nas circunstâncias é a opção para ganharmos no Congresso". Redarguiu: "quero ouvir isso do Montóro".
E assim, uma noite jantamos Montoro, Ulysses, Gusmão e eu, e cada um de nós, sob o olhar severo de Ulysses, confirmou nossas opiniões. Ulysses, não teve dúvidas: chefiou a campanha pela eleição de Tancredo. De fato, eleitoralmente quem poderia concorrer com Tancredo era Montoro, dado o volume de votos de São Paulo, que pesariam em eleições diretas. Tancredo, entretanto, teria vantagens táticas no convencimento de um Colégio Eleitoral composto por congressistas. Realista, Montoro logo propôs o nome mais viável. Vencemos.
Então estava em jogo a redemocratização do país, a convergência era necessária. Ela teve que ser ampliada para englobar os que antes eram adversários. Assim atravessamos o Rubicão e fomos, pouco a pouco, reconstruindo a democracia. Escrevo isso não só para valorizar a trajetória política e humana de gigantes como Montoro, Ulysses e Tancredo, mas para fazer paralelo com o presente.
Para o Brasil poder reconstruir-se, depois do tsunami lulopetista, ingloriamente culminado com quem talvez menos culpa tenha no cartório, a ainda presidente Dilma, é preciso grandeza. Não nos iludamos: estamos atravessando uma pinguela, a ponte é frágil. Sempre fui renitente a processos de impeachment porque, mesmo quando bem embasados, como o atual, implicam em destronar alguém que teve o voto popular e entregar o poder a quem também o recebeu, mas de forma mediata, em comparação com o presidente (a) a ser destronado. Contudo, a Constituição deve ser respeitada. Não adianta sonhar sem realismo com um plebiscito que talvez nos levasse a novas eleições. O mais provável é que nos levasse a uma escolha precipitada, se não à via indireta do Congresso pela impossibilidade de se obter a renúncia da incumbente e do vice. Mesmo que a destituição de ambos viesse por ordem do Supremo Tribunal Eleitoral, isso só ocorreria no próximo ano, quando a Constituição manda que a eleição seja indireta.
Logo, o que de melhor temos a fazer é fortalecer a pinguela, caso contrário caímos na água, e quem sabe, fortalecida, a pinguela se transforme mesmo em ponte para o futuro. Não é tarefa fácil e não cabem hesitações, nem ambições pessoais. A desorganização da economia, da política e da vida do povo causada pelos desatinos dos governos petistas vai requerer serenidade, firmeza, objetivos claros e muita persistência. Não é momento para exclusões. O PT e seus aliados são partes da vida nacional. Que se reconstruiam, que desistam das hegemonias e se habituem à competição democrática e à alternância no poder.
Precisamos fixar algumas prioridades, aliás, sabidas. Primeiro consertar a economia, começando pelas finanças públicas e por aceitar que, gastar sem haver recursos, não é política "de esquerda", é erro; quem paga as consequências dos erros (desemprego, inflação e desinvestimento) é o povo. Segundo, que não dá para governar com dezenas de "partidos" que são meras letras justapostas para obter vantagens financeiras. A cláusula de desempenho e a proibição de coligações nas eleições proporcionais se impõem. Terceiro, não basta o equilíbrio fiscal, é preciso alcançá-lo de modo favorável ao crescimento e à redistribuição de renda. O crescimento, em nosso caso, vai depender de o Estado bem desempenhar seu papel de regulador (por exemplo, nas parcerias público/privadas e nas concessões) e se abster de abarcar tudo. Quarto, que algum sinal na Previdência (por exemplo, a fixação progressiva de uma idade mínima para as aposentadorias) e no mercado de trabalhos (por exemplo, apoiar a sugestão do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo que dá maior peso às negociações) será importante. Por fim, é preciso entender que a agenda do atraso, preconizada por setores fundamentalistas, que se opõem aos direitos sociais e às políticas de identidade (de gênero, cor, comportamento sexual etc.) e equalizadoras (as cotas, as bolsas e etc.) é tão perniciosa quanto a paixão pela hegemonia voluntarista.
Há que aceitar as diferenças e conciliar pontos de vista olhando para o horizonte. É hora de mais Montoros e dos demais gigantes que nos tiraram do autoritarismo e nos levaram à democracia.
Fonte: El País