Igor Gielow
Igor Gielow: Levante de governadores pressiona Bolsonaro no auge da crise da Covid-19
Mundo político acorda para a tragédia em curso no país, mas Congresso ainda não embarcou
O apocalipse sanitário à espreita do Brasil provocou um levante de governadores contra o presidente Jair Bolsonaro (sem partido).
Tal clima de indignação pela falta de rumo e sabotagem intencional de ações coordenadas por parte do Planalto já havia sido registrado em abril do ano passado, mas agora a situação é muito mais grave.
Quase um ano se passou e, sem o devido preparo, o país se depara com variantes novas do Sars-CoV-2 mais transmissíveis e talvez mais letais para pessoas mais jovens, segundo a observação empírica nos hospitais.
As cenas de revolta se repetem. Aliados de Bolsonaro, como Ratinho Jr. (PSD-PR) e Ronaldo Caiado (DEM-GO), coassinam carta de 19 mandatários estaduais rebatendo a campanha de desinformação promovida por Bolsonaro.
O presidente, acentuando o que já havia feito em outros momentos, resolveu culpar os governadores pela a ameaça de o Brasil virar uma grande Manaus, do ponto de vista epidemiológico. Em vez de dizer que "o Supremo me tirou o poder", agora questiona "onde está o dinheiro que enviei?" a estados e municípios.
Pegou mal. A aliados, Ratinho Jr. se disse inconformado com o tratamento dispensado pelo presidente, que mentiu ao listar repasses federais obrigatórios como parte de um "pacote contra a pandemia", além de ignorar os R$ 1,48 trilhão de impostos recolhidos nos estados que param na mão da União.
O governador baiano, Rui Costa (PT), chorou ao comentar a dificuldade de implementar medidas de restrição de circulação de pessoas em seu estado. Ações que são bombardeadas dia sim, dia sim por Bolsonaro e por seu entorno em redes sociais.
Candidato a maior protagonismo no cenário nacional, o gaúcho Eduardo Leite (PSDB) disse que Bolsonaro "despreza sua gente" e a está "matando".
Algo bem diferente do que há menos de um mês, quando ele ponderava em entrevista que seu partido não teria como fazer oposição sistemática a Bolsonaro porque buscava diferenciar-se de João Doria, o tucano paulista que é o maior antagonista do presidente na crise.
A questão do controle da transmissão do vírus é cultural, alguns alegam, mas quem enalteceu a revolta de brasilienses na frente da casa do governador Ibaneis Rocha (MDB) devido ao seu ensaio de lockdown no domingo (28) foi o presidente da República.
O questionamento do uso de máscaras e a empáfia ao dizer que "não errou nenhuma" acerca da pandemia, quando a realidade está à sua volta, causaram revolta no grupo de WhatsApp do Fórum dos Governadores.
Cientes de que a fatura sempre cai no colo de quem está na ponta primeiro, especialmente no momento em que há um crescimento de demanda por vacinas ainda inexistentes, os governadores se reorganizaram.
Estados voltaram a pressionar pela compra avulsa de vacinas, como a russa Sputnik V, de forma a não contar com os cronogramas fantasmas do Ministério da Saúde. E houve o embate das verbas, provocado por Bolsonaro.
Leite teve papel de protagonismo na elaboração da nota, com apoio de outros chefes estaduais que querem moderar o destaque de Doria.
As nuances do embate político subjacente à tragédia em curso no país se mostraram também na dura carta do Conselho Nacional dos Secretários de Saúde na segunda, na qual era pregado o toque de recolher e eventual lockdown em locais mais afetados do país
Jean Gorinchteyn, o secretário de Doria, não apoiou o texto por considerar lockdown inviável agora —em entrevista à rádio CBN, falou que pessoas irão "morrer de fome" caso a medida ocorra sem contrapartidas de natureza financeira.
Em São Paulo, Doria está sob ataque de bolsonaristas a cada movimento que faz para tentar controlar o vírus, e busca consenso com prefeitos. Há pressão interna, também. O Centro de Contingência da Covid-19, montado por Doria como um marco na transparência e no cientificismo no trato da pandemia, costuma sugerir medidas mais duras.
Mas ele é uma instância sem poder decisório, e as recomendações são filtradas em inúmeras reuniões com integrantes de outras áreas do governo, onde a palavra lockdown é um palavrão, para ficar num exemplo.
Saindo de São Paulo e das pretensões presidenciais de Doria e, como gostariam alguns tucanos, de Leite, a questão é que atores do mundo político parecem ter acordado para o tamanho do problema.
Dois presidentes de partidos do centrão que celebravam há pouco tempo o apoio de Bolsonaro à eleição de Arthur Lira (PP-AL) para a presidência da Câmara disseram, sob reserva, que Bolsonaro "está maluco" na condução da crise.
Para eles, o ministro Eduardo Pazuello (Saúde) deveria ser substituído já. Noves fora o interesse específico do grupo em retomar as polpudas verbas da pasta, é um termômetro da fervura em Brasília.
Lira, que passou as duas últimas semanas preocupado cozinhando medidas para aumentar a impunidade de parlamentares, também teve seu momento de lucidez e buscou pegar carona no levante dos governadores, convocando um almoço nesta terça para discutir medidas contra o caos.
Não foi exatamente um embarque, mas uma sinalização.
Não se vê tal disposição ainda no pacato Rodrigo Pacheco (DEM-MG), que assumiu o Senado neste ano. Enquanto alguns membros da Casa pedem uma CPI sobre a crise, ele não conseguiu fazer críticas objetivas a Bolsonaro nas entrevistas que concedeu ao desfilar por São Paulo na segunda.
Mas um correligionário dele afirma que é uma questão de tempo, lembrando que até Romeu Zema (Novo-MG), um dos governadores mais amigáveis em relação ao Planalto, foi a Brasília discutir a crise com Lira.
Igor Gielow: Prisão de deputado mostra os custos do bolsonarismo para os Poderes
STF confirma decisão de Moraes em momento de tensão da corte com militares
A decisão do Supremo Tribunal Federal de manter preso deputado federal Daniel Silveira (PSL-RJ) demonstra a extensão dos danos do bolsonarismo à relação entre Poderes no Brasil.
Num preâmbulo, a decretação da prisão pelo ministro Alexandre de Moraes deu oxigênio a uma fogueira cujas brasas foram animadas pelo general Eduardo Villas Bôas, jogando no mesmo escaninho de confusão institucional temas que são imiscíveis —embora guardem raízes genéticas, por assim dizer.
A tensão na praça dos Três Poderes havia sido reduzida consideravelmente no país após a prisão do faz-tudo do clã Bolsonaro Fabrício Queiroz, que levou o presidente a recolher-se e estabelecer uma dança com o centrão que acabou no baile dado por Arthur Lira (PP-AL) ao conquistar a Câmara dos Deputados.
Claro, impropérios seguiram sendo ditos e descaminhos trilhados, em especial na condução da pandemia da Covid-19, mas as palavras Planalto, golpe, Supremo e militares pararam de frequentar conversas como ocorria de forma quase ligeira até junho do ano passado.
Agora, o flagrante contra Silveira após um vídeo de baixo calão que só não é inacreditável porque trata-se de um bolsonarista de quatro costados na tela, evidencia o custo da associação institucional com o movimento ideológico que tem no presidente o líder.
Aliados de Bolsonaro correm para dizer que ele não é Silveira, mas parecem não ter visto o tuíte do filho presidencial Carlos lamentando a prisão do amigo.
Com a previsível confirmação da prisão pelo plenário do Supremo, sobraram a Lira duas opções para a análise do cargo.
A do fígado, usar o corporativismo e relaxar a prisão de Silveira, que alguns especialistas apontam como de difícil justificativa no modo flagrante, embora o crime seja evidente.
Para quem tem a deputada Flordelis (PSD-RJ), acusada de assassinato, solta nos corredores da Câmara, não é um preço moral alto.
A outra saída, cerebral, seria compor um acordo que talvez poupe Silveira da cadeia, mas que o coloque no patíbulo do Conselho de Ética imediatamente.
Seria uma forma de dar alguma satisfação extra corporis. Como lembrou o decano Marco Aurélio Mello, agora Lira terá de analisar não uma decisão monocrática, e sim do plenário por unanimidade.
Seja como for, o presidente da Câmara não tem nem três semanas no cargo e já paga o preço institucional de associação com o bolsonarismo extremado. Silveira inclusive envolveu o Senado em suas críticas.
"Lá no Senado tem muito senador na mãozinha de vocês. E vocês estão nas mãos de muitos senadores", esbraveja o deputado seu monólogo direcionado ao Supremo.
Como não se vê de Bolsonaro disposição de promover uma versão política da Noite das Longas Facas, quando em 1934 Adolf Hitler eliminou a cabeça das SA (Tropas de Assalto) que lhe pavimentaram a chegada ao poder para então consolidar sua aliança condicional com o establishment alemão, a questão que fica é outra.
Lira irá apenas colocar mais um item na fatura apresentada ao Planalto por seu apoio ou começará a ponderar o custo de sua adesão?
Até aqui, pautas bolsonaristas mais explícitas já sofrem bombardeio no Congresso, disposto a tocar agendas econômicas simpáticas ao Planalto. Mas ele também viu temas caros ao centrão, como o enterro da Lava Jato, sendo levados em frente.
Mas há dimensões adicionais à crise em plena data que já foi conhecida como Quarta-Feira de Cinzas.
É indissociável do contexto da decisão confirmada pelos ministos do STF o braseiro mexido pelo general Villas Bôas ao revisitar a confecção do tuíte em que tentava emparedar a corte a não impedir a prisão de Luiz Inácio Lula da Silva em abril de 2018.
O ex-comandante do Exército, em livro-depoimento lançado pela Fundação Getúlio Vargas, traça claramente o cenário em que discutiu a nota com o Alto-Comando da Força em um ambiente de crescente antipetismo e adesão à candidatura Bolsonaro.
Afinal, como a Folha mostrou no domingo (14), o texto de admoestação era ainda mais duro e segundo Villas Bôas foi lido por três generais que são ministros de Bolsonaro —ao menos um, Luiz Eduardo Ramos, nega ter participado.
Essas revelações precipitaram a reação do ministro Edson Fachin, que levou Silveira a produzir o chorume virtual contra o Supremo, que por sua vez horrorizou outros membros da corte.
Na quarta (16), pelo menos três deles conversaram, inclusive dois críticos de Fachin, levando ao pedido de reação por parte de Moraes —que adota linha dura contra os radicais do bolsonarismo desde o ano passado. O presidente do Supremo, Luiz Fux, não participou da articulação.
Para os militares, a saída até aqui foi o silêncio. Repercutiu mal, mesmo entre oficiais-generais que apoiam a posição de Villas Bôas, ele ter tripudiado de Fachin ao questionar no Twitter por que ele demorou três anos para ver na postagem de 2018 uma ameaça.
Os militares, o comandante do Exército Edson Leal Pujol à frente, riscaram uma linha no chão e tentaram de alguma forma dissociar-se do dia-a-dia de um governo que tem 9 fardados entre seus 23 ministros, inclusive o contestado general da ativa Eduardo Pazuello (Saúde).
Inexequível como fato, deu mais ou menos certo como imagem. Agora, tudo isso é colocado em xeque, com o bônus de verem Silveira, que simboliza um radicalismo ao qual os generais dizem ter asco, no mesmo lado do ringue que eles.
O problema adicional é que a narrativa de Villas Bôas no livro explicita que, no berço, muito da espuma produzida pela hidrofobia bolsonarista tem DNA verde-oliva: o ódio ao PT, ao politicamente correto, ao que percebiam como revanchismo de esquerda.
Agora caberá à surradas instituições, testadas o tempo todo sob Bolsonaro, acharem uma acomodação para mais esse espasmo. A bola está com Lira.
Igor Gielow: Doria faz ofensiva para unir PSDB, expulsar Aécio e receber parte do DEM
Com plano de pavimentar candidatura em 2022, tucano chama cúpula do partido para jantar
Preocupado com o racha no PSDB apresentado na eleição da Câmara dos Deputados, quando boa parte do partido apoiou o candidato de Jair Bolsonaro à presidência da Casa, o governador João Doria (SP) decidiu apresentar um ultimato à cúpula tucana.
Em jantar na noite desta segunda (8) no Palácio dos Bandeirantes, Doria irá colocar na mesa a proposta de expurgar o partido do grupo de Aécio Neves (MG) e de absorver dissidentes do DEM ligados ao ex-presidente da Câmara, Rodrigo Maia.
O deputado do PSDB mineiro é visto pelo entorno do governador como o motor do governismo latente no partido e principal obstáculo interno para a candidatura de Doria, hoje maior rival de Bolsonaro em cargo eletivo, à Presidência no ano que vem.
A proposta será servida de entrada no Bandeirantes, já que foi informada no convite aos comensais desta noite. Na prática, ela coloca o partido alinhado à tese da postulação de Doria em 2022, reforçando sua posição no momento em que até aqui aliado DEM rachou e assumiu ares neobolsonaristas.
A alternativa, pela lógica, seria a saída de Doria do PSDB. Mas seus aliados não consideram essa hipótese provável hoje.
A contrariedade com o mineiro é partilhada pela ala histórica do partido, a velha guarda liderada por Fernando Henrique Cardoso. O ex-presidente e outros integrantes do grupo, como o senador José Serra (SP) e o ex-senador Aloysio Nunes Ferreira (SP), foram convidados para o jantar.
Devem participar membros da cúpula tucana, como o presidente do partido, Bruno Araújo, e o líder do partido na Câmara, Rodrigo de Castro (MG), que é próximo de Aécio.
O plano de Doria havia sido delineado já na véspera da eleição no Congresso, ocorrida na segunda passada (1º), quando ficou clara a implosão do DEM.
O partido de Rodrigo Maia deixou naquele domingo (31) o apoio ao candidato dele à sua sucessão, Baleia Rossi (MDB), que também era o nome de Doria na disputa com Arthur Lira (PP-AL), o rei do centrão apoiado pelo Planalto.
A desistência do DEM, patrocinada pelo presidente da sigla, ACM Neto, quase levou o PSDB junto. Na noite de domingo, Bruno Araújo ligou para Doria e o informou que seria muito difícil segurar o partido no bloco de apoio a Baleia.
No começo da madrugada de segunda, os deputados Rodrigo de Castro, Carlos Sampaio (SP) e Eduardo Cury (SP) foram à casa de Lira anunciar que o partido deveria ficar independente —na prática, liberando os cerca de 15 ou 20 de 31 deputados que votariam de qualquer forma no líder do centrão.
Maia entrou em ação e contatou Aécio, visto como apoiador dos deputados. O mineiro argumentou que os deputados estavam votando porque a torneira de emendas parlamentares do Planalto havia secado para eles nos dois últimos anos, mas disse que trabalharia para o PSDB se manter nominalmente no bloco de Baleia.
Esse relato dá matizes à crise na segunda cedo, quando só transparecera que Doria e FHC haviam trabalhado para que o partido ficasse no bloco. Para seus interlocutores, foi uma prova de que Aécio não teria operado para Lira.
Mas, na visão dos aliados do governador paulista, o gesto de Aécio foi apenas um ato de respeito prestado a Maia na despedida do cargo.
No domingo (7), Doria recebeu o ex-presidente da Câmara e o seu vice-governador, Rodrigo Garcia, que também é do DEM. Ambos foram convidados para integrar o PSDB, algo que o tucano confirmou em entrevista coletiva nesta tarde de segunda.
"Ficaremos muito felizes se eles aceitarem", disse. "Fez bem o PSDB em convidar Rodrigo Maia para entrar no partido. Presidiu corretamente a Câmara e é bom quadro político. Tomara que aceite", escreveu FHC no Twitter no começo da noite.
No caso de Garcia, a possibilidade é bastante grande, já que o DEM deixou de ser um partido com o qual Doria conta para 2022.
O tucano tem um compromisso de deixar o cargo para que Garcia dispute a reeleição como governador. Apesar de estar no DEM/PFL desde 1994 e hoje comandar o partido no estado, sempre trabalhou com os tucanos.
De quebra, se ele estiver no PSDB, são tolhidas as eventuais pretensões de Geraldo Alckmin, com quem Doria almoçou recentemente, de voltar a disputar o Bandeirantes. A aliados, contudo, o ex-governador cita que considera quem estiver na cadeira e puder concorrer é o "candidato nato".
Garcia já foi sondado por Baleia para migrar para o MDB, mas esse movimento parece muito difícil. O partido já apoia o governo Doria e teve a vaga de vice da chapa vitoriosa de Bruno Covas (PSDB) na capital paulista ofertada pelo tucano em nome de um acerto em 2022.
ACM Neto ainda está tentando convencer Garcia a ficar no DEM. Ele marcou para esta terça (9) uma visita a ele e a Doria para discutir o assunto, mas as chances são baixas.
Já a realidade de Maia é algo diferente. Entrar no PSDB significaria dar o controle partido no Rio, seu estado, para o deputado. Mas ele colocou como condição para tal um processo que chamou de purificação da sigla.
Entre outros nomes que devem migrar para o PSDB está o de Luiz Henrique Mandetta, o ex-ministro da Saúde demitido por Bolsonaro devido a divergências no manejo da pandemia.
O embate entre Doria e Aécio, que quase foi eleito presidente no segundo turno em 2014 e caiu em desgraça após a divulgação do áudio em que pedia dinheiro para o empresário Joesley Batista, é antigo.
O governador considera o mineiro um fardo político incontornável em termos de imagem, além de rival na política interna da sigla.
O paulista buscou a expulsão do mineiro da sigla, mas foi derrotado na Executiva Nacional. Depois, viu o deputado quase emplacar um nome seu, Celso Sabino (PA), na liderança do partido na Câmara.
A força de Aécio na bancada, apesar de seu ostracismo público, é grande e transcende o PSDB. Mas ele sofreu reveses recentes: Sabino está com o pedido de expulsão da sigla em análise pela Comissão de Ética do partido.
Aí entra a confluência com a velha guarda do PSDB, tradicionalmente pouco afeita a Doria e que acalenta desde 2018 uma candidatura do apresentador Luciano Huck à Presidência.
Com o "embaixador" de Doria em Brasília Antonio Imbassahy de mediador, os dois grupos concordam que é preciso isolar Aécio e talvez mais seis deputados —preferencialmente os expulsando do PSDB.
O vácuo seria ocupado por nomes ligados a Maia e a Garcia egressos do DEM e que estão irritados com a condução de ACM Neto.
A guerra ficou escancarada em uma entrevista concedida por Maia ao jornal Valor Econômico nesta segunda, na qual disse que o ex-prefeito de Salvador entregou "a cabeça do partido para Bolsonaro".
O baiano retrucou nesta tarde, dizendo à Folha que o deputado "se encastelou no poder conquistado e, agora, demonstra surpreendente descontrole".
Doria namora o que seus aliados chamam de "DEM do bem", avessos à aproximação com o centrão e o Planalto.
Há resistências contra esse movimento na bancada federal. Um aliado de Aécio afirma que pelo metade do partido na Câmara não concorda com o que chama de "exibicionismo" do tucano paulista, ainda que reconheça seu peso relativo pela cadeira que ocupa e pelo protagonismo no combate à pandemia do novo coronavírus.
Esse deputado afirma, contudo, que prefere ver uma disputa interna no PSDB entre Doria e Eduardo Leite, o governador gaúcho que já foi especulado para tal missão pela velha guarda.
Com o racha instalado no partido, contudo, o tempo corre para que os tucanos se decidam. Na avaliação de seus aliados, a projeção nacional dada pelo patrocínio da vacinação contra a Covd-19 deu a Doria o carimbo que faltava para suas pretensões presidenciais.
Igor Gielow: Trump promove sedição e fornece roteiro para Bolsonaro em 2022
Se brasileiro perder, narrativa do inconformismo está pronta; republicanos pagam preço na Geórgia
A derrota do Partido Republicano na Geórgia, tirando da sigla o controle do Senado e entregando um Congresso mais amistoso para o governo Joe Biden, é um conto cautelar acerca dos limites do populismo da cepa Trump.
Não só deles: antecipa, a insurreição estimulada pelo presidente na frente do Capitólio e nas ruas de Washington, a tática no forno de Jair Bolsonaro caso perca o pleito em 2022.
Particular, a variante trumpista do populismo agregou lições dos eurocéticos britânicos, da extrema direita anti-imigração europeia e de líderes autocráticos como o russo Vladimir Putin, mas trouxe consigo a estridência isolacionista das entranhas dos EUA.
Aproveitando o solo semeado pelo movimento Tea Party, de rejeição à globalização e com fortes cores conspiratórias, Donald Trump emergiu para sua surpreendente vitória em 2016 e inspirou seguidores no mundo todo. Hoje, o que ocupa o principal posto se chama Bolsonaro.
Assim, o fracasso republicano no Sul dos EUA, ainda que tenha de ser relativizado pelas margens estreitíssimas da vitória democrata, é o preço pago pelo partido por manter-se mais ou menos fiel a Trump até o fim.
Isso porque o fim, para o presidente americano, não tem nada menos do que o tom sombrio do "Götterdämmerung" (crepúsculo dos deuses) wagneriano levado por Hitler a seu bunker em 1945. A democracia americana viu cenas inacreditáveis em pleno 2021.
Só que o desespero aqui é acrescido do tom burlesco que marca Trump, diluindo o resultado num pastiche quando tudo acabar, ou assim se espera. O que não quer dizer que não haja perigos reais, a começar pelo confronto que pode degringolar nas ruas.
Se parece exagero ver riscos institucionais ou para a paz mundial, cabe atentar à carta assinada por dez ex-secretários de Defesa ainda vivos. Com poucas meias palavras, eles mandam Trump parar de alimentar o mito da eleição fraudada e de namorar ideias de ruptura.
Tudo ocorre à luz do dia, ou quase: Trump tenta manipular a recontagem de votos presidenciais na mesma Geórgia e vocifera, dia sim e outro também, que está sendo vítima de um roubo. Aliados próximos sugerem coisas como a decretação da lei marcial para manter o sujeito no cargo.
Ao dizer claramente que militares devem evitar se misturar a isso, o texto dos ex-secretários também remete à escalada militar no golfo Pérsico, percebida por um acuado Irã como o risco de um conflito para tentar bagunçar os dias finais do mandato de Trump.
Próceres do conservadorismo americano como Dick Cheney e Donald Rumsfeld, arquitetos das guerras do 11 de Setembro, estavam entre os signatários. Republicanos de quatro costados, simbolizam o afastamento do coração do partido de Trump.
O próprio vice-presidente Mike Pence, que constitucionalmente comanda a sessão do Congresso que contará simbolicamente os votos da eleição vencida por Biden, escreveu uma carta histórica, rejeitando a pressão feita pelo chefe para que desconsiderasse votos contestados na eleição.
Ele simplesmente não pode fazer isso, mesmo que quisesse. Ainda assim, Trump fez um discurso igualmente histórico, pela infâmia, implorando a Pence que descumprisse a Constituição.
Ciosos de que isso não daria certo, os republicanos ainda trumpistas impõem patranhas para tentar melar a sessão da confirmação de Biden. Foi quando a turba resolveu intervir e interromper o trabalho do Legislativo.
O dano aos republicanos na Geórgia sela ao menos um racha na sigla, com a repreensão às manobras contra os resultados no Arizona por figuras mais graduadas do partido.
Isso antevê a disputa que se dará para tentar juntar os cacos para os pleitos seguintes, se é que Trump não acabará saindo preso da Casa Branca —ele estimulou sedição contra o Congresso.
Na maior vitrine que sobrou do trumpismo, o governo Bolsonaro, esses movimentos deverão ser lidos com atenção pelos aliados do presidente nesses próximos dois anos.
Bolsonaro usa a carta da fraude eleitoral, focada em sua obsessão pelo voto impresso, desde antes de ser eleito. Já naquele tempo dizia que, se não ganhasse a eleição, teria ocorrido um roubo. Provas, como no caso de seu ídolo americano, nunca mostrou.
Basta acompanhar a "cobertura", aspas obrigatórias, do processo eleitoral americano nas redes sociais bolsonaristas para saber o discurso montado para 2022. Naquele mundo paralelo pontificado pelos filhos do presidente, a fraude brasileira já está no forno.
Assim, a confusão nas ruas de Washington remete às aglomerações estimuladas por bolsonaristas e aos protestos antidemocráticos do primeiro semestre no Brasil.
Aquelas que foram atendidas pelo próprio presidente. A ameaça será usada até o limite, na hipótese de Bolsonaro ser derrotado ano que vem. Até o discurso de culpar a mídia por tudo é idêntico
O fato de que o presidente foi o último de algum país com algum peso relativo a dar parabéns a Biden em si foi inócuo, mas importante para entender o método. Ninguém pode se queixar de imprevisibilidade quando se trata de Bolsonaro.
Conhecido pelo faro de sangue na água, o grupo de partidos conhecido como centrão já apoiou todo mundo, do PT a Bolsonaro. Estava embarcado confortavelmente no governo Dilma Rousseff quando a vaga do impeachment a colheu. Segue no poder.
Mas, como ocorreu em 2016, não tem vocação para carregador de caixão político. O pleito municipal de 2020 no Brasil já sugeriu uma inflexão do eleitorado, de resto ainda bastante apoiador do presidente, em direção a nomes mais moderados.
Bolsonaro teme a debacle econômica que pode advir neste ano, além de todo o caos gerencial da pandemia —outro ponto em comum com seu guru americano.
Terá de se agarrar à sua base mais fiel e radical, enquanto cede mais espaço aos aliados antes demonizados, em caso de perda de popularidade mais ampla.
Se 2022 assistir a um embate polarizado e histriônico, como Bolsonaro sugere sempre que pode, talvez a lição americana seja lida com antecipação pelo pessoal do centrão.
Igor Gielow: Não queremos fazer parte da política nem deixar ela entrar nos quartéis, diz chefe do Exército
Em meio à crise Mourão-Bolsonaro, general Pujol se distancia da participação de fardados no governo
O comandante do Exército, general Edson Leal Pujol, fez uma rara manifestação na qual buscou delimitar seu distanciamento da ala militar do governo Jair Bolsonaro.
"Não queremos fazer parte da política, muito menos deixar ela entrar nos quartéis", afirmou durante uma live do IREE (Instituto para a Reforma das Relações entre Estado e Empresa) Defesa e Segurança.
Ele respondia a um questionamento do ex-ministro da Defesa na gestão Michel Temer (MDB) Raul Jungmann, presidente-executivo do instituto, sobre o papel dos militares na política, tema que acompanha o governo Bolsonaro desde a campanha eleitoral.
A conversa foi mediada também pelo general da reserva Sérgio Etchegoyen, presidente do conselho do instituto e ex-chefe do GSI (Gabinete de Segurança Institucional) também no governo Temer.
A fala ocorre no momento em que Bolsonaro está estremecido, novamente, com seu vice, o general da reserva Hamilton Mourão, devido a divergências na política ambiental. Na gestão do capitão reformado do Exército, 9 dos 23 ministros são de origem fardada.[ x ]
Pujol, conhecido por ser um homem de poucas palavras, não criticou os colegas que estão no governo —a começar pelo seu chefe, o general Fernando Azevedo, ministro da Defesa.
Mas ressaltou que "se for para chamar [um militar para o governo], é decisão do Executivo". Nem tampouco viu problemas nisso, citando que o Supremo Tribunal Federal requisita desde 2018 um general para assessorar seu presidente, cargo que foi ocupado por Azevedo na gestão Dias Toffoli.
Mas é na segunda parte de sua formulação que o recado fica dado. Assim como disse à Folha após a vitória de Bolsonaro em 2018 o antecessor de Pujol, Eduardo Villas Bôas, a Força teme a politização dos quartéis na esteira da militarização da política.
Esse movimento tornou-se uma preocupação no Alto Comando do Exército durante o período de maior radicalização de Bolsonaro na Presidência, entre abril e junho deste ano.
Enquanto o presidente frequentava manifestações golpistas pedindo o fechamento do Supremo e do Congresso, havia o temor de que o baixo oficialato se empolgasse com a retórica de Bolsonaro.
No topo da cadeia alimentar do setor, a Defesa chegou a endossar uma ameaça velada do general Augusto Heleno (Gabinete de Segurança Institucional) ao Supremo.
Com o paroxismo da crise e a prisão do ex-assessor do clã presidencial Fabrício Queiroz no fim de junho, Bolsonaro acabou se retraindo e compondo com o centrão, o que abafou o risco de um impeachment ou outra ruptura.
Ato contínuo, a ala militar do governo se viu submersa parcialmente, só para frequentar o noticiário quando há escaramuças com os setores radicais do bolsonarismo no poder, como a briga entre o vice Mourão e o ministro Ricardo Salles (Meio Ambiente) demonstrou.
De forma geral, porém, os fardados tendem a considerar que saíram do holofote. "Não nos metemos no que não nos diz respeito", afirmou Pujol.
O próprio comandante do Exército foi tragado para a confusão quando, no começo de maio, Bolsonaro considerou trocá-lo pelo amigo Luiz Eduardo Ramos, general que comanda a Secretaria de Governo.
A discussão foi tornada pública pela Folha, obrigando Ramos a negar veementemente a hipótese. Vez ou outra, o tema ressurge, embora a possibilidade seja considerada nula por oficiais da ativa.
A insatisfação de Bolsonaro com Pujol decorria da atitude do comandante em relação à pandemia do novo coronavírus, para a qual ele mobilizou o Exército em sua maior operação desde o envio de pracinhas para combater o nazismo na Segunda Guerra Mundial na Itália.
Pujol inclusive negou um aperto de mão, oferecendo o cotovelo a Bolsonaro, numa solenidade militar antes da discussão sobre a eventual troca de comando.
Na live, o comandante afirma que só se preocupa com assuntos militares, e que se alguém tem de falar de política, é o general Azevedo em reuniões de ministros.
Igor Gielow: Bolsonaro pode celebrar, mas caso Witzel é aviso à 'geração de 2018'
Afastamento de governador mostra que a caveira de burro da política do Rio segue viva
A caveira de burro, figura extraída da mitologia do futebol que indica um lugar onde tudo dá errado, é o símbolo máximo da política do estado do Rio de Janeiro.
Dos 8 governadores que o estado elegeu desde que voltou a fazer isso, em 1982, 6 estão vivos. Todos foram implicados em algum esquema de corrupção, 5 foram presos em algum momento e 1, Sérgio Cabral, está na cadeia condenado a uma pena de quase 300 anos.
Agora foi a vez de Wilson Witzel (PSC), talvez o mais exótico exemplar em termos de trajetória política a frequentar o assombrado Palácio Laranjeiras, sob o qual parece enterrado o proverbial crânio muar.
Seu afastamento, somado ao processo de impeachment que sofre na Assembleia Legislativa, parece ser o prego no caixão da meteórica carreira política desse ex-juiz, eleito no tsunami conservador-bolsonarista de 2018.
O patrono da turma, o presidente Jair Bolsonaro, tem motivos para celebrar a queda em desgraça do antigo apoiador. Ao longo de 2019 e, principalmente, com a ascensão da realidade pandêmica, Witzel buscou afastar-se do Planalto com tom ácido.
Figura dada a extravagâncias, além de inventar uma "faixa presidencial" estadual que gostava de envergar, Witzel se proclamou candidato ao posto de Bolsonaro em 2022. Talvez realmente acreditasse que sua retórica agressiva de combate violento ao crime no Rio e imagem de rigidez moral fossem um trampolim.
Se o fez, errou feio. A política do "mirar na cabecinha" de gente armada resultou em crianças mortas por balas perdidas. Já a moralidade propalada se desfez a partir de maio, quando seu governo foi alvo da Operação Placebo —não por acaso, quando submergiu seu tom crítico ao presidente.
Naquele momento, a recente intervenção de Bolsonaro na Polícia Federal do Rio e o papel do órgão na construção do caso contra Witzel tornavam a hipótese de mero direcionamento contra adversários do Planalto mais do que plausível.
A ação policial espalhafatosa foi um ato de intimidação de governadores opositores, no auge da disputa com Bolsonaro com os estados sobre a condução do combate à Covid-19.
Isso obviamente não tornava Witzel inimputável ou inocente. Assim, passado o tempo e assentadas as apurações, os indícios contra o governador ganharam peso e se tornaram um nó dificílimo de desatar agora.
Witzel é o mais vistoso dos desconhecidos eleitos no vagalhão bolsonarista de 2018 com problemas. Enfrentam problemas outros nomes catapultados do nada para o governo, como o Comandante Moisés (PSL-SC). Outros gerem caos administrativos, como Romeu Zema (Novo-MG).
Esses fracassos reforçam a impressão que se tem, nos meios políticos, que arranjos mais tradicionais poderão triunfar no pleito municipal deste ano. A aposta em governantes salvacionistas, sem experiência prévia, era parte da antipolítica inspirada pela Lava Jato.
Isso pode ter perdido a força e alimenta uma concertação na praça dos Três Poderes contrária ao espírito lava-jatista. Com efeito institucional algo seletivo, como se vê, dado que é o mesmo impulso que chegou às acusações contra Witzel.
Uma incógnita nessa equação chama-se Sergio Moro, que calcula como poderá entrar no jogo sucessório. Se ele teve um estágio como ministro de Bolsonaro e não pulou na política eleitoral de cara, como Witzel, sua associação com o espírito moralista da Lava Jato é seu grande ativo.
Como tudo isso evoluirá até 2022 é outra história. Para Bolsonaro, que preside sobre uma balbúrdia em forma de governo, há ainda a sombra das investigações do caso Fabrício Queiroz. Sua celebração nesta manhã certamente merece uma boa dose de moderação.
Igor Gielow: Ditadura formou geração de militares que hoje povoam governo Bolsonaro
Uma das bases de sustentação do atual governo, fardados trazem do regime autoritário a mentalidade de que as Forças Armadas são importantes para a união nacional
A ascensão do capitão reformado do Exército Jair Bolsonaro ao poder fez brilhar os olhos de uma geração de oficiais-generais brasileiros.
Após 33 anos fora do núcleo decisório do país, os fardados enxergaram uma oportunidade de redenção.
Em aproximação mediada por generais da reserva que haviam encampado a candidatura, houve, depois do primeiro turno, a bênção do Alto-Comando do Exército, principal órgão da estrutura militar brasileira, a Bolsonaro.
O resultado, passado um ano e meio de governo de fato, é a maior crise existencial recente das Forças Armadas.
“Há uma confusão institucional. Chama a atenção o grande número de militares no governo”, diz o primeiro general da reserva que deixou o primeiro escalão, Carlos Alberto dos Santos Cruz (ex-Secretaria de Governo).
Em uma “live” do Instituto Brasiliense de Direito Público no sábado (20), ele classificou de desequilibrado o papel dos militares na política. “Há excesso. Isso começa a deteriorar o comportamento.”
Hoje, 10 dos 23 ministros do governo vieram da caserna, incluindo aí o interino da Saúde, general Eduardo Pazuello. A exemplo do sucessor de Santos Cruz, Luiz Eduardo Ramos, Pazuello é da ativa. “Para ir ao governo, todo mundo tem de passar para a reserva”, afirma o ex-ministro.
Ramos prometeu adiantar sua saída do serviço ativo. Mais próximo militar, historicamente, de Bolsonaro, ele personifica um conflito que remonta ao regime de 1964.
A ditadura foi a última de uma série de intervenções militares desde a proclamação da República, em 1889, um clássico golpe fardado.
A República Velha terminou em 1930 com outro golpe. Os anos de 1945, com o fim do Estado Novo, e 1954, marcado pelo suicídio de Getúlio Vargas, também veriam ações decisivas de alteração do poder civil pelas mãos militares.
Em 1975, o cientista político americano Alfred Stepan (1936-2017), analisou a correlação das Forças Armadas com o poder civil no Brasil.
Ele traça a formação do caráter de tutela que os militares se arrogaram ao longo da história. Mas estabelece limites, lembrando que duas tentativas de golpe (1955 e 1961) que não tiveram apoio legitimador de parte expressiva da elite civil fracassaram.
Essa leitura salvacionista, de união nacional, é visível nas duas notas assinadas pelo ministro da Defesa de Bolsonaro, o general da reserva Fernando Azevedo, acerca do golpe de 1964.
Ali está o resumo do que sua geração acredita: o movimento militar teria sido necessário para deter o alinhamento do governo de João Goulart (1919-1976) com o então comunismo internacional e teve amplo respaldo interno.
Sendo parte de um processo histórico, o golpe não deveria envergonhar os militares —torturas e assassinatos, além das progressivas perdas de liberdades civis, são esquecidas na avaliação.
Bolsonaro sempre promoveu a ditadura, enquanto um obscuro deputado, principalmente seu caráter repressivo.
No poder, envernizou um pouco o discurso, mas seu instinto provocador de crise entre Poderes constante manteve a tensão alta entre os fardados a seu lado.
Não são poucos: além dos ministros e altos funcionários, há hoje 2.900 militares da ativa emprestados para funções civis na Esplanada.
A dita ala militar do governo, sempre fraturada, buscou apresentar-se moderada e também moderadora.
Isso teve altos e baixos, dado o embate dela com a ala ideológica representada pelos filhos presidenciais e seus aliados no governo, mas de forma geral repetiu o formato de pretensa tutela do poder civil pelos militares.
Não deu muito certo na prática, dado o caráter incontrolável de Bolsonaro, mas a crescente ocupação de cargos vitais no Planalto e na Saúde durante a pandemia da Covid-19 mostra um efeito prático da intenção.
Antes da posse de Bolsonaro, o então comandante do Exército, Eduardo Villas Bôas, disse em uma entrevista à Folha que a vitória do capitão não era a volta dos militares ao poder, embora temesse uma politização dos quartéis.
Hoje ela assusta observadores nem tanto nas Forças, mas sim nas polícias, em especial militares, muitas vezes identificadas ao bolsonarismo.
Isso é uma novidade histórica, dado que nas oportunidades em que houve conflito envolvendo forças estaduais, como em 1930, 1932 ou 1961, eram os governadores que retinham o apoio das tropas.[ x ]
A grande quantidade de questões internas para as Forças é ressaltada por Stepan em seu trabalho. Tendo travado sua última grande guerra regional no Paraguai há 150 anos, desafios externos acabam sendo substituídos por tarefas de cunho político.
O grande período de turbulência e tutela de 1945, após a queda de Getúlio Vargas, até o golpe de 1964 viu tal espírito intervencionista se expandir até o paroxismo da ditadura.
No primeiro governo militar, do marechal Humberto Castello Branco (1899-1967), foi feita uma reforma buscando normalizar tal agitação.
Foi determinado um sistema pelo qual 25% do efetivo de oficiais-generais, em todos os níveis, seria renovado todos os anos.
Na outra ponta, foram tomadas medidas para reduzir a politização dos estratos mais baixos da tropa, vistas como vulneráveis ao socialismo.
Antes, os fardados já haviam passado pelo processo interno de apagamento da memória da FEB, a Força Expedicionária Brasileira que lutou em 1944 e 1945 na Itália.
Quando voltaram ao país, os comandantes foram espalhados de forma a não constituir um núcleo político: tinham ido lutar contra o nazifascismo e voltaram para a ditadura do Estado Novo, que seguia tal orientação. Ainda assim, foi por pressão militar que Vargas deixou o cargo.
A reforma dos anos 1960 veio com dificuldade, e trouxe o conflito entre Castello Branco e seu ministro da Guerra, Arthur da Costa e Silva (1899-1969), e por fim o último se tornou o presidente do AI-5.
Só Castello Branco havia lutado na FEB, entre os presidentes da ditadura. Costa e Silva, diz Stepan, “era considerado simpático aos desejos de um governo mais militante e autoritário e de uma posição menos pró-americana e mais nacionalista”.
O ato institucional que recrudesceu a ditadura, em 1968, foi um divisor de águas. Os militares aferraram-se ao poder de forma definitiva.
É na década de 1970 que se forma o núcleo dos generais de Bolsonaro, ele mesmo um cadete da turma de 1977. O decano deles, Augusto Heleno (Gabinete de Segurança Institucional), formou-se na Academia Militar das Agulhas Negras em 1969 e sempre abraçou causas políticas enquanto estava no serviço ativo.
Suas críticas à política indigenista do governo Luiz Inácio Lula da Silva (PT) lhe custaram o Comando da Amazônia e, em 2011, foi impedido de saudar o golpe de 1964 em sua despedida à reserva.
De forma paradoxal, foi sob Lula (2003-2010) que os militares tiveram um grande ganho do ponto de vista material.
Projetos estratégicos de armamentos, liderança na Missão de Paz da ONU no Haiti, aumento de verbas e de participação nas GLOs (operações de garantia da lei e da ordem) marcaram o período.
Os anos Fernando Henrique Cardoso (PSDB, 1995-2002) são, por sua vez, lembrados com desprezo pelo oficialato.
Consideram que foram relegados ao segundo plano em suas funções militares, já estando fora da política, e a criação do Ministério da Defesa foi vista como uma subordinação indesejada ao poder civil.
Sob Dilma Rousseff (PT, 2011-2016), os ruídos políticos cresceram, devido principalmente à Comissão da Verdade, que apontou crimes da ditadura, avaliada pela cúpula militar como um tribunal de um lado só.
Com o impeachment da petista e a chegada de Michel Temer (MDB) para seus dois anos de poder em 2016, o caminho para a volta ao protagonismo foi aberto.
A Defesa foi entregue em 2018 para um general de quatro estrelas, acabando com o princípio simbólico da pasta, e o general Sérgio Etchegoyen (GSI) assumiu papel vital no aconselhamento do governo.
O sequestro do estamento militar pela ritualística do governo Bolsonaro desandou nas ameaças veladas de uso das Forças contra outros Poderes pelo presidente.
Em uma “live” do grupo Personalidades em Foco, em 20 de maio, Heleno rechaçou golpismo.
“Não passa [pela cabeça] golpe, intervenção. [Devo isso aos] nossos instrutores, vacinados por toda aquela trajetória de militares se intrometendo de uma forma pouco aconselhável, mas muitas vezes necessária, na política.”
A frase é reveladora pelo seu aposto: “muitas vezes necessária”. Heleno é visto como o mais duro dos generais que migraram para o Planalto com Bolsonaro, mas sua visão não é hegemônica.
Coube ao general Azevedo fazer o papel de pivô moderador da turma fardada, com um alinhamento grande com seu ex-subordinado Walter Braga Netto, o general que comanda a Casa Civil. Ramos, que também serviu sob o comando do atual ministro, já esteve mais próximo dele.
O agravamento da crise tríplice pela qual passa o Brasil, com a Covid-19 se somando a uma recessão à vista e à tormenta política, tem aumentado os ruídos entre o serviço ativo e os militares de terno.
Stepan aponta que isso ocorria já no auge da ditadura. Se estivesse vivo, poderia fazer associações à repulsa dos comandantes pelo ativismo sindicalista que era preconizado por Bolsonaro, um militar indisciplinado.
Nas três décadas fora do poder, as Forças “se afastaram das crises políticas, impeachments, casos de corrupção” e têm “credibilidade alta” entre a população, diz Santos Cruz.
O general, que passou pelos dois lados do balcão, resume o momento militar atual: “Situação complexa”.
Onde estavam os bolsonaristas
General Augusto Heleno
Concluiu a Academia Militar das Agulhas Negras (Aman) em 1969. Em 1977, capitão recém-promovido, assumiu o cargo de assessor do ministro do Exército, Sylvio Frota
General Fernando Azevedo
Iniciou a carreira no Exército em 1973, na Academia Militar das Agulhas Negras, no Rio de Janeiro, e fez parte da Brigada de Infantaria Paraquedista
General Hamilton Mourão
Formou-se na Academia Militar das Agulhas Negras em 1975
Jair Bolsonaro
Em 1977, formou-se na Academia Militar das Agulhas Negras
General Luiz Eduardo Ramos Baptista Pereira
No ano de 1979, foi aspirante a Oficial da Arma de Infantaria
General Eduardo Pazuello
Em 1984, formou-se na Academia Militar das Agulhas Negras, como oficial de intendência (assessor do comandante na administração financeira e na contabilidade)
General Walter Souza Braga Netto
Entrou na Academia Militar das Agulhas Negras em 1975. Foi aspirante a oficial da arma de Cavalaria, em 1978.
Olavo de Carvalho
Entre 1966 e 1968, militou no Partido Comunista contra a ditadura militar. Nos anos 1970, atuou como astrólogo.
Paulo Guedes
De 1974 a 1978 estava fazendo doutorado na Universidade de Chicago (EUA)
Igor Gielow: Prisão de Queiroz completa tempestade perfeita para Bolsonaro
Fantasma do braço direito surge em meio a cerco judicial e à crise tríplice do governo
O fantasma de Fabrício Queiroz, vivíssimo num imóvel do advogado da família Bolsonaro em Atibaia (SP), ressurgiu para assombrar o presidente da República numa semana em que o chão sob seus pés foi bastante reduzido pelo Judiciário.
Até as emas do Palácio do Alvorada sabiam que esse dia chegaria, pelos relatos de aliados do presidente. Queiroz é um nome que acompanha o noticiário desde o começo do governo, pelo explosivo elo que é entre Bolsonaro e o submundo das milícias do Rio.
O presidente é amigo de Queiroz desde 1984 e terceirizou o antigo faz-tudo para o gabinete do filho Flávio, quando o atual senador pelo Rio era um deputado estadual. O resto é história: a rachadinha, os pagamentos envolvendo a família, os movimentações suspeitas e o contato com milicianos.
Bolsonaro e Flávio se alternaram entre lavar as mãos e defender Queiroz. A natureza da operação desta quinta (18) indica que eles sabiam bem mais sobre a proteção dada ao aliado.
Queiroz estava escondido numa casa do advogado Frederick Wassef, frequentador dos palácios de Brasília —ontem mesmo estava na posse de Fábio Faria (Comunicações) no Planalto. E houve batida em um escritório politico do clã em Bento Ribeiro, no Rio.
Abordado por jornalistas no aeroporto em Brasília, Wassef não quis dar entrevista, disse que falaria depois e que estava atrasado para embarcar para o Rio. Wassef não usava máscara facial, de uso obrigatório no Distrito Federal para o combate ao coronavírus.
A ação coroa uma tempestade perfeita para o presidente, que vive uma crise entre Poderes desde o começo do ano, agravada pela desorientação no combate à pandemia do novo coronavírus e a bomba recessiva que se arma na economia do país.
Após um fim de semana marcado por desafios enormes do bolsonarismo aos Poderes, com a nota ameaçadora do presidente sugerindo desobediência das Forças Armadas ao Judiciário e o ataque de radicais ao prédio do Supremo, Bolsonaro colecionou reveses.
No âmbito do inquérito sobre atos antidemocráticos, foram presos radicais bolsonaristas em Brasília na segunda (15), e houve operação e quebra de sigilo bancário contra parlamentares aliados e apoiadores do presidente, na terça.
Na quarta, foi a vez de o Supremo confirmar a validade do inquérito das fake news, que mira o coração da comunicação bolsonarista. Enquanto isso, o governo discutia entregar uma cabeça estrelada do radicalismo, Abraham Weintraub (Educação), que está sob risco de ser preso após pedir o mesmo para ministros da corte.
Ambas as investigações desaguam, em termos de protagonistas e objetivos, na ação que analisa a cassação da chapa presidencial no Tribunal Superior Eleitoral —que já compartilha dados com o inquérito das fake news, atrás de provas de financiamento ilegal da campanha de 2018.
Essa é a tríade nuclear, do ponto de vista institucional, apontada para Bolsonaro. Agora Queiroz vem completar o quadro, o qual nunca havia deixado na realidade, lembrando o que o clã presidencial fez nos verões passados.
A depender do que for extraído do antigo braço direito, o arranjo que o presidente fez para se proteger do impeachment ao angariar apoio de partidos do centrão poderá se liquefazer de forma mais rápida do que observadores poderiam supor.
A reação inicial de aliados do presidente foi de grande apreensão, por motivos óbvios. Queiroz e as palavras associados, como milícias e caso Marielle Franco, são alguns dos maiores gatilhos de irritação de Bolsonaro.
Eles citam uma ironia adicional: a prisão de Queiroz foi executada pelo Dope (Departamento de Operações Policiais Estratégicas).
A unidade foi criada no ano passado pelo governador João Doria (PSDB-SP), principal adversário político de Bolsonaro em cargo executivo e seu antípoda na condução do combate à Covid-19.
Desta vez, não houve morte a ser apontada como queima de arquivo por críticos, como ocorreu no caso do milicano Adriano da Nóbrega, outro personagem central do enredo do caso Queiroz, apanhado pela polícia baiana em fevereiro.
Por fim, uma curiosidade anedótica: Atibaia está no centro de uma apuração central para a carreira de duas figuras que polarizam o eleitorado: Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e, agora, Bolsonaro.
É na pacata cidade paulista que fica o sítio usado por Lula, que lhe rendeu uma condenação já em segunda instância por corrupção e lavagem de dinheiro.
No caso atual, ainda que haja incertezas, mesmo auxiliares do presidente admitem que a situação se agravou bastante.
Pelo manual de instruções do bolsonarismo, a reação inicial será buscar mais radicalismo e mobilização de sua acossada base mais fiel. Não será surpresa se Bolsonaro sacar outros espectros, como um apoio que não lhe é unânime nas Forças Armadas, para tentar combater o fantasma dos Natais passados que lhe visitou.
Igor Gielow: Resposta do Supremo evidencia falta de instrumentos de Bolsonaro
Presidente usa militares e esbraveja enquanto Judiciário mantém sua tríade nuclear
A eloquente resposta institucional do Supremo Tribunal Federal às recentes ameaças vindas do Palácio do Planalto evidencia a falta de instrumentos à mão de Jair Bolsonaro.
A decisão pela continuidade do inquérito das fake news já era esperada, mas houve uma degeneração no ambiente político entre os Poderes desde que a questão começou a ser discutida.
Uma nova cadeia de acontecimentos, iniciada na sexta (12), reforçou o peso impresso pelos ministros e ministras em seus votos.
Naquela noite, Bolsonaro divulgou uma nota coassinada pelo vice Hamilton Mourão e pelo ministro Fernando Azevedo (Defesa) na qual disse que os militares não aceitariam ordens absurdas ou julgamentos políticos.
Era uma resposta à decisão provisória na qual o ministro Luiz Fux, próximo presidente do Supremo, negava a ideia de que as Forças Armadas teriam algum papel moderador —argumento torto do bolsonarismo quando quer invocar o fantasma de uma intervenção armada.
Na noite seguinte, foi a vez de fogos de artifício serem jogados sobre o STF em protesto, com uma inação da Polícia Militar punida com a destituição de seu chefe interino. Domingo, o ministro Abraham Weintraub (Educação) em ato pedindo o fechamento da corte e do Congresso.
Na segunda, na mão contrária, foi deflagrada a primeira parte da ofensiva do outro inquérito que preocupa o bolsonarismo, o dos atos antidemocráticos.
Ali foram presos os radicais do grupo 300 do Brasil. No dia seguinte, um golpe no coração do bolsonarismo militante: buscas e quebras de sigilo atingindo 11 parlamentares e organizadores da causa.
O ato contrariou ainda mais Bolsonaro por ter sido determinado por Augusto Aras, o procurador-geral e candidato a ministro do Supremo tão próximo do Planalto.
É certo que este inquérito não cita Bolsonaro, mas seus protagonistas e atos se confundem com aqueles da apuração das fake news.
Dali para uma acusação de financiamento ilegal de campanha é um pulo, e o Tribunal Superior Eleitoral que já analisa o caso é a próxima parada.
Espremido pelas acusações de desgoverno na pandemia e à espera de seus efeitos econômicos, além da crise política, sobrou a Bolsonaro, esbravejar nesta quarta (17). Falou grosso e ameaçou usar na batalha recursos legais, dos quais já dispõe e cujo uso é lícito, como ações da Advocacia-Geral da União.
Não falou em Forças Armadas ainda, muito devido à má repercussão que a nota de sexta gerou na cúpula militar da ativa.
Se sobram oficiais-generais que condenam o ativismo do Supremo, faltam os que aceitam ideias golpistas ensaiadas pelo presidente.
Observadores são mais cautelosos ao avaliar o oficialato médio, mas a falta de coesão militar atual não sugeriu até aqui ruptura de hierarquia. Resta saber o real potencial revoltoso entre as PMs: a inação de sábado fez soar alarmes.
Isso não torna os togados donos de uma razão universal, por óbvio. A transformação da corte no proverbial Posto Ipiranga da política nacional distorceu suas atribuições há anos.
Ora o STF se ocupa de legislar, ocupando o vazio do Congresso, ora transparece inconstância pelos humores políticos –caso do vaivém acerca da prisão para condenados em segunda instância.
Mesmo o inquérito das fake news é eivado de um voluntarismo de saída bastante inusual, dispensando a Procuradoria e tomando decisões no mínimo polêmicas. Mas para isso há o pleno do Supremo a corrigir distorções se algo vier a ser julgado.
Ministros da corte, contudo, sempre que podem defendem a imposição do momento histórico.
Alegam que a inação do Legislativo, cujos segmentos intestinos do centrão estão sendo cooptados por Bolsonaro, acaba por forçar os togados a uma posição mais combativa.
Isso não seria o desejável, nem o ideal, segundo eles. Mas é fato que o protagonismo do Supremo até retirou da catatonia recente Rodrigo Maia (DEM-RJ), que havia submergido após perder controle sobre o centrão.
Sobre o grupo de partidos que vem ocupando espaços, é o melhor dos mundos para eles: o embate é problema alheio.
Se Bolsonaro se enrolar de vez e perder o cargo, já estarão aninhados para a transição ao próximo hospedeiro.
Ao lado do presidente só estão os militares do governo, cada vez mais expostos, e seu entorno ideológico, crescentemente radicalizado.
A discussão sobre a demissão de Abraham Weintraub, o ministro da Educação que chamou os ministros do Supremo de vagabundos que mereciam ser presos, e agora enfrenta risco ele de ir à cadeia, é exemplar.
Ela havia sido especulada para apaziguar ânimos, mas foi esquecida, só para ser retomada após o fim de semana agitado.
Agora, está sendo postergada por pressão dos filhos presidenciais. Se efetivada, ainda mais para algum cargo remunerado em dólar no exterior, terá efeito nulo no clima.
No jargão militar, tríade nuclear é o nome dado às formas como podem ser empregadas armas atômicas, por terra, mar e ar.
A manutenção da tríade fake news-atos-TSE deixa o Judiciário como a fronteira onde o risco existencial para Bolsonaro é mais alto.
De seu lado, o presidente brinca com a bomba atômica de uma intervenção militar que, aos olhos do mundo político, parece cada vez mais uma quimera.
Igor Gielow: Militares da ativa e ministros do Supremo reprovam nota de Bolsonaro
Presidente, vice Mourão e ministro da Defesa assinaram texto em nome das Forças Armadas
A nota em que o presidente Jair Bolsonaro, o vice Hamilton Mourão e o ministro Fernando Azevedo (Defesa) dizem que as Forças Armadas não cumprirão "ordens absurdas" foi reprovada por setores da cúpula militar e pelo seu alvo, os ministros do Supremo Tribunal Federal.
O texto foi elaborado na noite de sexta (12), após o ministro Luiz Fux conceder uma decisão provisória delimitando a interpretação do artigo 142 da Constituição, que regula o emprego dos militares.
Na liminar, Fux respondia a um questionamento do PDT acerca da interpretação corrente no bolsonarismo de que o artigo permitiria às Forças Armadas intervir caso um Poder tentasse tolher o outro.
A visão vem sendo ventilada pelo presidente, pelo vice e outros membros do governo. A nota de sexta dizia também que as Forças não tolerariam "julgamentos políticos", uma referência nem tão velada à ação de cassação da chapa Bolsonaro-Mourão que corre no Tribunal Superior Eleitoral.
A Folha conversou com oficiais-generais da ativa dos três ramos armados. Enquanto muitos consideram que o Judiciário tem exagerado em suas decisões, e todos ressaltem que os signatários da nota são seus superiores hierárquicos, o tom foi reprovado.
Não que haja aprovação às colocações de Fux, consideradas igualmente hiperbólicas nas conversas entre fardados.
Mas, para um almirante, a nota coloca as Forças Armadas como um poder moderador acima da lei. Ele disse que é óbvio que os militares têm de responder a decisões e que, se não concordarem, sempre caberá recurso dentro da Constituição.
Em grupos de WhatsApp de oficiais, a crítica mais comum era a de que as Forças foram colocadas como uma extensão do bolsonarismo militante, que tem no confronto com Poderes uma de suas características.
Já havia grande irritação pela entrevista que o general Luiz Eduardo Ramos (Secretaria de Governo) havia concedido à revista Veja, no qual ele falou em tom ameaçador contra a oposição ao mesmo tempo em que se apresentava como representante das Forças.
Ramos, já no centro de insatisfações quando foi cogitado por Bolsonaro para substituir o comandante Edson Pujol, ao mesmo tempo cedeu a pressões e decidiu passar à reserva —irá deixar o interino da Saúde, Eduardo Pazuello, como último general da ativa com cargo de primeiro escalão.
A nota coroou uma semana de ruídos entre a ativa e o governo Bolsonaro, como a Folha mostrou. A tentativa de maquiagem de dados da Covid-19 na Saúde, a frustrada portaria para dar direito ao uso de aviões ao Exército e a revelação de negócio entre a Força e uma empresa americana de armas favorecida pelo filho presidencial Eduardo Bolsonaro não foram bem digeridos.
Ante todo esse clima, com efeito, Mourão concedeu entrevista à Folha na manhã deste sábado e tentou modular a nota, dizendo que não há indisciplina possível entre os fardados da ativa.
Há relatos divergentes acerca de uma consulta do Planalto aos comandantes de Forças sobre o tom da nota. A Folha questionou o general Azevedo sobre isso. Segundo sua assessoria, os chefes militares não participam de manifestações políticas.
Já entre ministros do Supremo, o tom variou de desânimo a irritação.
O desapontamento veio do fato de que o Planalto havia dado sinais de uma tentativa de normalização na relação com a corte, que está em processo de votação que deverá manter vivo o inquérito das fake news —que atinge o coração do bolsonarismo.
A principal sinalização foi dada acerca do ministro Abraham Weintraub (Educação), que na reunião ministerial de 22 de abril disse que queria ver os integrantes do Supremo, a quem chamou de vagabundos, na cadeia.
Nas últimas semanas, emissários fizeram chegar a ministros da corte que o Planalto estaria disposto a rifar Weintraub como punição pela fala. Em vez disso, o ministro envolveu-se em nova polêmica, com a rejeitada medida provisória que previa nomeação de reitores de universidades federais nesta semana.
A esse empoderamento somou-se a nota de sexta. A liminar de Fux havia sido alvo de contentações internas por parte de alguns ministros, que viram nela um certo truísmo ao reafirmar o que já está na Constituição e pela vacuidade do objeto: é uma decisão retórica, na prática.
Mas há simbolismos inescapáveis, e aí entra a contrariedade geral. Fux será o próximo presidente da corte, a tomar posse em setembro, e em momentos de crise entre Poderes os 11 integrantes do Supremo costumam agir em bloco.
Assim, o ataque direto a Fux se tornou, por extensão, mais uma afronta à corte por parte de Bolsonaro, que já participa contumazmente de atos pedindo o fechamento do órgão máximo do Judiciário e do Congresso.
A assinatura conjunta com Mourão foi vista como um recibo de ambos pelo fato de serem objeto da ação no TSE. Já a presença de Azevedo reforçou um sentimento que vem se consolidando na classe política: Bolsonaro tem usado as Forças Armadas como escudo por extrema fragilidade.
Assim, a banalização das ameaças, que assustam muitos devido ao passado intervencionista das Forças, tem sido vista pelo decrescente valor de face. Preocupa mais o Supremo a eventual perda de controle nas ruas, estimulada por Bolsonaro.
Chocou especialmente a sugestão do presidente para que hospitais sejam invadidos para provar a hipótese de que governadores estão inflando politicamente números da Covid-19.
Situações de violência implicam o uso das polícias militares, consideradas muito próximas do espírito bolsonarista. O motim da PM do Ceará no começo do ano, apoiado veladamente pelo governo, é um exemplo sempre lembrado.
Seja como for, no Distrito Federal a polícia acabou com o acampamento do 300 do Brasil neste sábado sem incidentes. O grupo pró-Bolsonaro prega violência e fechamento de Poderes, e não houve a temida adesão de policiais a ele.
As consultas que começaram na noite de sexta prosseguem neste sábado no mundo político, dado que Bolsonaro conseguiu elevar ainda mais o patamar de suas provocações institucionais, mas por ora o clima é mais de observação de cenário do que de reações exacerbadas.
Igor Gielow: Saúde, aviões e armas desgastam Bolsonaro na ativa das Forças Armadas
Episódios envolvendo diretamente militares da ativa geram incômodo em alguns setores
O desgaste do governo Jair Bolsonaro entre setores do serviço ativo das Forças Armadas cresceu na última semana.
Três fatores principais, além de questionamentos já existentes sobre a identificação dos militares com o governo, concorreram para isso.
O principal foi a confusão acerca da divulgação dos números da Covid-19 no país pelo Ministério da Saúde, controlado pelos militares.
Foi visto com reserva o desempenho do interino, o general da ativa Eduardo Pazuello, por alguns de seus colegas de farda.
A decisão dos militares da pasta de seguir a ordem de Jair Bolsonaro e alterar parâmetro de contagem de mortos e de reduzir a transparência de dados foi vista como danosa às Forças.
Ao longo dos anos pós-redemocratização, pesquisas apontaram os militares como titulares da instituição mais bem vista do país, e esse patrimônio está, para muitos, sob risco.
Pazuello é visto como um oficial cumpridor expedito de ordens. Assim, talvez por corporativismo, as críticas são mais centradas ao Planalto.
Outro fator de atrito foi o decreto, do Ministério da Defesa, permitindo ao Exército operar aviões de asa fixa, e não só helicópteros. O caso, divulgado pelo jornal O Estado de S. Paulo, provocou uma forte reação na Força Aérea, e o texto foi revogado na segunda (8).
Parece uma discussão bizantina, mas não é. A interoperabilidade entre Forças é chave de qualquer poder armado moderno: quanto mais sobreposições de funções, pior. A Aeronáutica viu no gesto um agrado a mais ao Exército, Força de origem do capitão reformado Bolsonaro.
Os aviadores são politicamente mais distantes do governo. Têm apenas com um ministro nominal, Marcos Pontes (Ciência e Tecnologia), que saiu da cota pessoal do presidente. O Exército tem 7 dos 9 ministros militares, e a Marinha tem 1, mas possui assento na Secretaria de Assuntos Estratégicos no Planalto.
Há ecos históricos aqui: Juscelino Kubitschek quase enfrentou uma revolta ao tentar acomodar aviadores e marinheiros quando comprou o porta-aviões Minas Gerais, em 1956.
O navio foi encomendado para tentar apaziguar os ânimos das duas Forças contra o governo, mas só fez piorar a situação. A disputa sobre quem operaria aeronaves na embarcação só foi resolvida no ano 2000, com a reativação da operação de aviões pela Marinha.
O imbróglio atinge novamente a posição do ministro da Defesa, general da reserva Fernando Azevedo, cujo papel tem sido questionado nos meios políticos e militares.
No sábado (6), ele novamente embarcou em um helicóptero militar com Bolsonaro.
Desta vez não foi sobrevoar ato golpista como no domingo anterior (31), mas sim para acompanhar o chefe em mais uma visita simbólica a uma unidade militar —o Comando de Artilharia do Exército.
Azevedo foi questionado por ministros do Supremo acerca de sua conduta, e as respostas que deu foram consideradas evasivas.
Políticos de oposição dizem que essas demonstrações de suposto apoio da ativa feitas por Bolsonaro só agravam a crise política, já coalhada de rumores golpistas.
Na visita a Formosa (GO), por outro lado, o presidente estava acompanhado pelo comandante do Exército, general Edson Leal Pujol.
Ele e Bolsonaro estão afastados, e o presidente cogitou removê-lo do cargo, por divergências acerca da condução da crise do coronavírus. Nas últimas visitas relâmpago do presidente a unidades do Exército, o general não estava presente.
Também participaram outros integrantes da ala militar do governo, como os generais Augusto Heleno (Gabinete de Segurança Institucional) e Luiz Eduardo Ramos (Secretaria de Governo), além do capitão Tarcísio de Freitas (Infraestrutura).
O terceiro item no cardápio de problemas, intensamente comentado em grupos de militares nesta terça (9), foi a revelação pela Folha de que o Exército está perto de fechar um acordo com a fabricante americana de pistolas SIG Sauer.
A empresa é objeto de lobby pessoal do deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP).
Para alguns oficiais, o esforço do filho presidencial prejudica o projeto, que vinha sendo discutido desde 2018, e o contamina com suspeita de ingerência política.
A área de armas e munições, obsessão da família do presidente e objeto da promessa de Bolsonaro de armar a população, é foco de ruídos. Cabe ao Exército regular a área, mas o presidente derrubou duas portarias de controle recentemente.
Com tudo isso, a ativa mantém o alto grau de ansiedade imposto pela dinâmica política de Bolsonaro e de seus ministros egressos da caserna.
Há apoio ao presidente, em especial no seu embate com decisões do Supremo, mas ele vem decrescendo à medida que aumenta a graduação do militar.
Há uma preocupação, compartilhada com os integrantes da ala militar, com as crescentes manifestações de rua contra Bolsonaro. Por um lado, uns temem que o presidente busque usar eventuais conflitos para justificar a convocação das Forças Armadas contra protestos.
O tema chegou a um paroxismo na semana passada, mas Bolsonaro foi aconselhado pela ala militar a baixar a fervura, apesar de aqui e ali dizer acusar ativistas contra seu governo de radicalismo.
Para os generais do governo, a prioridade é estabilizar o quadro político, uma vez que por ora o apoio do centrão está sendo angariado com cargos. Isso remove uma ameaça mais imediata de abertura de processo de impeachment, neste momento.
Há também entre os fardados o temor da radicalização em si, já que faz parte da mentalidade militar a preocupação constante com cenários de contingência.
Isso tem sido minimizado por governadores, segundo os quais os atos por ora estão sob controle e suas polícias, em que pese a decantada simpatia da categoria pelo bolsonarismo, trabalhando normalmente.
O teste do domingo passado (7) transcorreu com atos limitados e sem complicações.
Isso animou por sua vez oposicionistas, que esperam que uma onda maior contra o presidente se forme se houver um arrefecimento na pandemia do novo coronavírus nos próximos meses.
ENTENDA OS CASOS
Dados do coronavírus Desde a última semana, o governo federal vinha atrasando a divulgação dos números da pandemia no país. Além disso, o portal no qual o Ministério da Saúde divulga o número de mortos e contaminados foi retirado do ar na noite da última quinta-feira (4).
Quando retornou, depois de mais de 19 horas, passou a apresentar apenas informações sobre os casos "novos", ou seja, registrados no próprio dia. Desapareceram os números consolidados e o histórico da doença desde o começo da pandemia no Brasil. Nesta segunda (8), Alexandre de Moraes, do STF, mandou o governo retomar a divulgação na íntegra dos dados acumulados de mortes e casos confirmados.
Acordo com fabricante de armas
Após intenso lobby de Eduardo Bolsonaro, o Exército está prestes a fechar uma parceria para a fabricação de pistolas da marca americana SIG Sauer no Brasil. O filho do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) é entusiasta de armas, e é visto no mercado como uma espécie de garoto-propaganda da SIG.
Decreto da Defesa
O ministério havia permitido ao Exército operar aviões de asa fixa, e não só helicópteros. Após forte reação na Força Aérea, o decreto foi revogado na segunda.
Igor Gielow: Vídeo explicita face agressiva e paranoica do governo Bolsonaro
Peça única, registro tem de menosprezo ao centrão até sugestão de insurreição armada
É atribuído ao pai da unificação alemã, Otto von Bismarck (1815-1898), o alerta acerca de leis e salsichas: para apreciá-las, é melhor não saber como são feitas.
Jair Bolsonaro e sua equipe ministerial deram um "upgrade" ao conceito, a julgar pelo vídeo da reunião entre eles no dia 22 de abril.
Pois se o objeto do acesso da Justiça à peça, o inquérito sobre a acusação do ex-ministro Sergio Moro (Justiça) de que o presidente quis interferir na Polícia Federal, ganha densidade com as falas reveladas, o panorama que a gravação apresenta é único na história republicana.
O governo paranoico e em ritmo de guerra que se mostra na gravação crua vai desagradar apoiadores, detratores e os neoaliados arregimentados à base de cargos para evitar a progressão de um processo de impeachment na Câmara contra o presidente.
Claro, os palavrões abundantes, a linguagem chula e desencontrada de Bolsonaro e de alguns ministros podem agradar a parcelas mais fiéis do eleitorado do presidente. É coisa de macho, diriam, coerentes ao ideário da turma.
A mães e pais de família Brasil afora, talvez seja um pouco demais. Não é nada que qualquer repórter de política não tenha ouvido com alguma experiência de campo, mas, evocando Bismarck, ver a produção da salsicha pode ser desagradável.
Para começar por Moro, o vídeo confirma o que as transcrições anteriores insinuavam: sim, Bolsonaro queria interferir em órgãos de inteligência e citou a PF, "e ponto final". Haverá discussão acerca da referência à mexida no Rio, mas os atos posteriores à saída de Moro basicamente comprovam a intenção do presidente.
O mandatário máximo surge como uma figura acuada. Fala ora que está tudo bem, ora que o governo ruma a um iceberg. "Se for para cair, que não seja por babaquice", reclama, citando o caso de seus exames ditos negativos de Covid-19.
De forma preocupante, mantém o morde e assopra no sensível tema da intervenção militar. Diz que é contra, mas lembra com insistência do artigo 142 da Constituição, que permite a Poderes convocarem os fardados a retomar a ordem pública. Para Bolsonaro, "todo mundo quer o 142".
A isso se soma a lembrança de 1964, cujo golpe livrou o país "dessa cambada" que faria a todos "plantar cana". Até aí, zero novidade sobre a cabeça presidencial, mas muito a dizer sobre o eloquente silêncio do vice Hamilton Mourão a seu lado.
Mais grave, contudo, é a parte da conversa em que Bolsonaro faz basicamente a defesa da insurreição armada no país contra governadores e prefeitos que impõem a quarentena devido à Covid-19, uma obsessão do presidente.
"Quero que todo mundo se arme contra a ditadura", diz, seguindo a leitura do porte de armas enraizado na fundação dos EUA, seu país-modelo.
Para isso, ele reforça a derrubada das portarias do Exército para controle de armas e munições, objeto de apuração do Ministério Público Federal. Bolsonaro acaba de adicionar mais uma suspeita de crime de responsabilidade à sua coleção na pandemia.
Chama a atenção o silêncio dos ministros militares e de Moro. O monopólio da força, numa democracia, é dos fardados; fora disso é chavismo, para ficar numa comparação continental.
O trato aos governadores, ríspido e já conhecido, ganha cor com o vídeo. Ainda mais um dia depois de o presidente tratar a todos de forma cordata em reunião feita para gerar um ar de normalidade democrática no país.
O ex-superministro em atividade Paulo Guedes (Economia), por sua vez, colabora para a certeza de quão volátil será a lealdade do centrão, recém-cooptado com cargos para buscar um seguro contra o impeachment.
Num dado momento, ele diz: "Nós podemos conversar com todo mundo aqui, porque é o establishment, é porque nós precisamos dele pra aprovar coisas, mas nós sabemos que nós somos diferentes. Nós temos noção que nós somos diferentes deles", diz.
De forma utilitarista, completa: "E quando eles cruzam a linha a gente solta a mão e sai andando sozinho. Enquanto eles tiverem no trilho, conosco, no caminho de fazendo as reformas que nós prometemos, nós tamo junto. Na hora que o cara soltou a mão e passou pro lado de lá, a gente deixa o cara ir sozinho e a gente continua sozinho".
À Folha, um líder de partido em negociação por vagas no governo sublinhou justamente esse ponto a comentar o vídeo. Nada que não soubesse, mas aí vale a citação aos embutidos e à legislação.
Guedes ainda sugere a venda do Banco do Brasil ("Essa p…") e protagoniza a sugestão de transformar o Rio de Janeiro em polo de cassinos, com direito a insinuação sobre exploração sexual, respondendo à ministra Damares Alves (Mulheres).
"Deixa cada um se f… do jeito que quiser. Principalmente se o cara é maior, vacinado e bilionário. Deixa o cara se f…, pô!”, afirmou, garantindo que lá não entraria "nenhum brasileirinho desprotegido, entendeu?".
Para a ciência política, há muito a ser mastigado sobre o bolsonarismo na peça. O presidente se apresenta o tempo todo como um perseguido pela imprensa, sobrando impropérios aos "pulhas", como chama os jornalistas a quem seus ministros não deveriam atender.
Bolsonaro lembra que "querem a nossa hemorroida", e distribui palavrões aos desafetos João Doria (PSDB-SP) e Wilson Witzel (PSC-RJ), governadores contrários à política oficial de menosprezo à Covid-19, assim como ao prefeito de Manaus, Arthur Virgílio (PSDB).
O motivo da teima em evitar a divulgação de todo o vídeo fica clara quando falam os ministros egressos do bolsonarismo-raiz. O sempre exuberante Abraham Weintraub se sobressai, com sua vontade de botar "esses vagabundos na cadeia, começando pelo STF".
É o "éthos" bolsonarista em estado puro. Weintraub se apresenta como o militante zero, que não se contamina pela política, que se queixa do "cancro de Brasília" e de ter de conversar "com quem a gente tinha de lutar".
O fato de que ele teve de ceder ao centrão fatias expressivas de sua pasta poucas semanas depois do vídeo apenas adiciona vazio ao espetáculo.
Continua Weintraub com imprecações contra os termos "povos indígenas" e "povo cigano", também lembrado por Damares Alves (Mulheres, Cidadania e Direitos Humanos), que por sua vez sugeriu prender prefeitos e governadores por medidas restritivas contra a Covid-19.
Saindo da retórica e indo à prática vem outro ideológico, Ricardo Salles (Meio Ambiente), que também esbarra na improbidade administrativa ao sugerir que é preciso "aproveitar a Covid" para dar uma "baciada de simplificação" de regras em sua área. Ele diz ser possível "passar a boiada".
A doença que hoje colocou o Brasil no centro da pandemia só é tratada com seriedade pelo então recém-chegado Nelson Teich, defenestrado semana passada da Saúde. Ele ressalta que só é possível focar a economia após o coronavírus ser controlado. "É fundamental."
Ele o faz só para ser interrompido por Bolsonaro, se queixando de que o chefe da Polícia Rodoviária Federal havia lamentado a morte de um integrante da força por Covid-19, quando ele tinha várias comorbidades —palavra que o presidente não consegue falar de primeira.
Outro que assume a voz do mestre é Pedro Guimarães, presidente da Caixa Econômica Federal, que, depois de chiar sobre a "ladroagem do PT, PMDB e PSDB" no órgão, reclama da ideia de deixar funcionários em casa para protegê-los do vírus.
Para ele, trata-se de "frescurada de home office".
A determinação de Celso de Mello ao liberar a peça, de apenas tarjar as claras referências ao temor de que a China esteja espionando os ministérios e críticas pontuais aos asiáticos, mostra algo que já se aferia em Brasília: o decano do Supremo não quer se aposentar sem um último grande ato.
Mais: a liberação veio no dia em que o general Augusto Heleno (Gabinete de Segurança Institucional) achou por bem ameaçar as instituições com uma nota em que protestava contra um ato protocolar de Mello, enviar para a Procuradoria-Geral da República um pedido para a apreensão do celular de Bolsonaro.
A PGR iria descartar tal ideia mesmo que não fosse tão alinhada a Bolsonaro. Mas o recado de Heleno, emulando de forma menor a famosa advertência do então comandante do Exército ao Supremo em 2018, para que não concedesse habeas corpus a Luiz Inácio Lula da Silva, caiu muito mal na corte.
Não só nela. Na quarta (20), Heleno havia negado a hipótese de intervenção militar em uma "live" divulgada pela Folha, agradando a oficiais-generais da ativa. A imagem se desfez em dois dias.
O vídeo traz elementos novos, para todos os gostos, à crise política. Mas é como retrato de uma época que ganha o ar de documento histórico.