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Dodô Azevedo: Quando todos os seres humanos do planeta eram negros
Por algumas décadas, a ciência ocidental debruçou-se sobre um falso mistério: quais eram as características físicas dos antepassados de todos nós.
Mistério falso porque já sabe-se há mais de 150 anos, que o homo sapiens evoluiu apenas em um continente. A África.
Há 200 mil anos atrás, nascia o que chamamos de ser humano.
Nasceu negro, e com cabelo como o do professor João, do BBB 21.
E assim permaneceu por mais de 100 mil anos, quando os primeiros seres humanos resolveram migrar da África para outros continentes.
Ao migrarem para lugares mais frios, com pouca incidência de sol, suas peles e cabelos e olhos foram tornando-se claros.
Nascia, cerca de 50 mil anos atrás, o homem-não-negro. Colocava-se um ponto final em um período de 150 mil anos, onde só haviam homens negros e mulheres negras sobre a Terra.
Mas o que se sabe destes 150 mil anos? Como era o mundo quando nele só havia gente preta?
Uma coisa é certa: os seres humanos pretos não eram chamados de negros. Por questão de lógica. Se no mundo só haviam negros, então pra que nomear essa característica?
Toda a água é molhada. Nem por isso, a chamamos de “água molhada”. Chamamos de “água”.
Outra descoberta da ciência ocidental é que foram os seres humanos negros que criaram a escrita, a agricultura, a matemática, o dinheiro, a filosofia, as línguas, a arte, as primeiras cidades, os primeiros exércitos, os primeiros impérios, as primeiras religiões.
E porque não aprendemos isso na escola?
A esfinge de Guizé, que todos nós conhecemos na escola como a maior estátua monolítica do mundo, feita há 2.500 anos atrás, localizada onde hoje é o Egito, tem quatro patas, uma cabeça e nenhum nariz. Vê-se que o nariz foi decepado, destruído.
Era um nariz negróide, de traços grossos, característica de pessoas pretas.
Uma da mais populares versões para o sumiço do nariz da esfinge é que ele teria sido destruído pelas tropas de Napoleão, no século 18. É que revelar ao mundo europeu que a mais avançada civilização da história fora composta por seres humanos negros, iria atrapalhar o mercado de escravos sequestrados da África para as colônias mantidas pelos países do velho continente.
Para que seres humanos negros pudessem ser traficados e escravizados sem culpa por parte de europeus e seus descententes, era necessário que pessoas negras fossem vistas como um ser humano inferior. Como mercadorias. Não como criadores de tudo que conhecemos hoje como civilização
E é assim, para atender demandas do mercado, que o racismo existe até hoje, e existirá por muito tempo.
A única instância que pode, algum dia, decretar o fim do racismo, é o mercado. Não pode-se contar com os privilegiados por este jogo, porque nunca irão abrir mão do que o mercado os dá, todos os dias.
Até lá, a matriz africana do mundo permanecerá assunto de um livro ou outro, de editoras pequenas, sempre, ou, no máximo, de uma coluna de opinião em um jornal que só fale de assuntos de gente de cor preta.
Gente que por 150 mil anos foi chamada apenas de… gente.
E que hoje precisa todos os dias explicar que a água é molhada.
Djamila Ribeiro: Lutar contra o racismo é um dever de todos, e o esporte é peça fundamental para isso
Tão importante quanto atletas negros terem acesso a debates raciais é a conscientização de brancos acerca deles
A pedido do Comitê Olímpico do Brasil, desenvolvi junto a Tiago Vinícius André dos Santos, professor de direito antidiscriminatório da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul, o curso Esporte Antirracista: Todo Mundo Sai Ganhando, para atletas da delegação brasileira dos Jogos Olímpicos de Tóquio.
A iniciativa pioneira do país recebeu apoio do Unicef e será traduzido para outros idiomas e trabalhado em delegações de outros países.
Na produção do curso, que tomou meses de mim e do meu querido parceiro, também coordenador pedagógico da plataforma Feminismos Plurais, um espaço virtual de debate e ensino antirracista, tomamos contato com trajetórias negras invisibilizadas na história.
Então, iniciamos o curso com um pedido de bênção aos mais velhos na pessoa de Melânia Luz, do São Paulo, primeira mulher negra brasileira na delegação de uma Olimpíada, na edição de Londres de 1948.
Melânia foi pioneira em muitos sentidos. Também se destacou por seu envolvimento com as lutas negras ao longo de sua carreira e até a sua morte, aos 88 anos, em 2016. Era uma mulher devota a Nanã, orixá sábia e a mais velha.
Também foi a oportunidade de conhecer Irenice Rodrigues, do Fluminense, que era tão excepcional nos 800 metros que, mesmo que a modalidade fosse proibida às mulheres pela ditadura, competia internacionalmente.
Denunciou a discriminação de gênero, de raça e liderou movimentos grevistas. O Brasil tinha e tem onças pretas nas pistas, nas águas e nas quadras.
Nas Olimpíadas de 1968, no México, Nelson Prudêncio ganhou a prata no salto triplo e quebrou o recorde mundial. Prudêncio graduou-se em educação física pela Federal de São Carlos, obteve o título de mestrado na Universidade de São Paulo e de doutorado na Universidade Estadual de Campinas.
Os atletas negros e negras lutaram muito pelo direito de existir e empoderar sua comunidade, e a universidade foi e é um palco importante dessa disputa.
Entendo que é necessária a expansão das políticas de acesso a esses locais, pois inspirações não faltam. Outro exemplo é o de Aida dos Santos, quarto lugar na Olimpíada de Tóquio, em 1964, mesmo sem apoio financeiro.
Foi professora por muitos anos da Universidade Federal Fluminense, onde fundou um instituto em que crianças tinham aulas de esportes e também reforço escolar gratuito.
No passado recente, cada vez mais atletas têm se engajado na luta antirracista. Diogo Silva, do taekwondo, primeiro medalhista de ouro do Pan-Americano do Rio de Janeiro, que mantém um blog fundamental sobre o tema; Janeth Arcain, histórica jogadora de basquete; Daiane dos Santos, da ginástica que tanto nos orgulha; Damiris Dantas, jogadora de basquete que tem brilhado nas quadras; Formiga, jogadora de futebol com mais jogos pela seleção; Raissa Rocha, atleta paraolímpica de lançamento de dardo, entre tantos.
Trabalhar com saberes antirracistas e convites a uma prática transformadora em um espaço de tanta potência na sociedade deve, sem dúvidas, ser aproveitado.
Parabenizo o COB pela iniciativa e pela idealização de um projeto vanguardista. Fico muito feliz de poder ser parte disso, entendendo os variados impactos positivos na conscientização de atletas que ainda não tiveram a oportunidade de se dedicar de maneira mais aprofundada ao tema, bem como empoderar aquelas e aqueles que vêm lutando pela pluralidade no esporte.
A luta contra o racismo é constante, já que o sistema se atualiza como forma de resistir a mudanças. Contra essa estrutura, que independe de nossa vontade, temos pessoas engajadas na busca de igualdade racial. Foi o grupo social branco que criou o racismo, sistema que o privilegia. É fundamental que pessoas brancas se engajem e o combatam.
Tão importante quanto atletas negras e negros terem acesso a debates raciais críticos é a conscientização de atletas brancas e brancos acerca deles. Estes devem estudar e descolonizar seus olhares e práticas.
Também trabalhamos no curso ações antirracistas, práticas que o COB, as confederações e demais envolvidos no esporte podem adotar para combater a estrutura racial.
A inclusão de pessoas negras em cargos diretivos e técnicos, o apoio a atletas negras e negros para que se desenvolvam e permaneçam no esporte e trabalhos de conscientização como esse curso são algumas medidas possíveis. Lutar contra o racismo é um dever de todas as pessoas, e o esporte é um meio fundamental para isso.
*Djamila Ribeiro é mestre em filosofia política pela Unifesp e coordenadora da coleção de livros Feminismos Plurais.