HISTORIOGRAFIA BRASILEIRA
RPD 33 || Luciano Mendes de Faria Filho: Astrojildo Pereira, intelectual mediador!
Nas décadas de 1930 e 1940, quando pesquisava sobre a edição das obras completas de Rui Barbosa pela Casa Rui Barbosa, deparei-me com a figura emblemática de Astrojildo Pereira. Ele foi um dos convidados por Américo Jacobina Lacombe, à época o Diretor da Casa e o responsável maior pela edição, para escrever um prefácio para um dos tomos das obras completas, em cujo projeto editorial o prefaciador é um intelectual, geralmente renomado, que empresta sua pena para fazer a mediação entre o tempo e a obra ruiana e os leitores que a receberão.
A Astrojildo Pereira, então um dos maiores intelectuais brasileiros, foi encomendado prefaciar o volume referente aos textos de Rui Barbosa sobre a escravidão. Seu prefácio, em pleno Estado Novo, é uma aula de História do Brasil e, sobretudo, da história da população negra no país. Adverte Astrojildo, contra muitos intelectuais de seu tempo, que o fim da escravidão não havia significado a liberdade para o povo negro. Faltou, dizia ele, o conjunto das reformas, a começar pela agrária, que possibilitaria integrar plena e dignamente, a população negra, e não apenas os/as ex-cativos/as, à vida nacional. Vale a pena ler e reler o texto! Aliás, vale lembrar também que a participação de Astrojildo Pereira no projeto político-cultural-editorial das obras completas foi, ao longo do tempo, alardeada por Jacobina Lacombe, homem oriundo das hostes católicas e com um pé na Ação Integralista, como uma demonstração do espírito democrático de Getúlio Vargas, Gustavo Capanema e, de resto, o próprio Estado Novo, pois até mesmo um comunista convicto havia sido convidado a participar da edição.[1]
Anos depois, já no México, eis que encontro o mesmo Astrojildo Pereira envolvido num outro monumental projeto editorial, agora ligado à Editora Fondo de Cultura Económica. No projeto, a mesma posição de intelectual mediador e um apurado senso de responsabilidade e grande acuidade de conhecimento sobre o Brasil. Trato, no caso, da presença marcante do intelectual brasileiro na configuração de uma verdadeira “brasiliana” para a América Hispânica ler, parte dos projetos editoriais levado a cabo pela mais importante e prestigiosa editora mexicana e latino-americana de meados do século XX acima referida.[2]
No projeto político-econômico-editorial de integração latino-americana desenhado pelo editor e intelectual mexicano Daniel Cósio Villegas, em consórcio com seus pares de diversos países do continente, coube a Astrojildo Pereira não só receber o emissário da editora mexicana no Brasil, o intelectual argentino Norberto Frontini, no início de 1943, e ajudá-lo a fazer contado com a nata da intelectualidade brasileira, mas também coube ao militante comunista fazer a articulação desses intelectuais com a editora e contribuir decisivamente no desenho final da “brasiliana” que o Fondo pretendeu publicar.
As correspondências ativas e passivas depositadas no Arquivo da FCE. na Cidade do México, deixam claro o registo de que, no projeto editorial da Coleção Tierra Firma, que pretendia integrar a América Latina por meio do mútuo conhecimento de seus intelectuais, Astrojildo teve papel decisivo, tanto na articulação da intelectualidade brasileira, como na definição de temas que deveriam compor a Coleção.
No que se refere à articulação da e com a intelectualidade brasileira, coube-lhe o papel de projetar e animar a participação dos nosso grandes nomes – Gilberto Freire, Vinicius de Morais, Oswald de Andrade, Carlos Drummond, Manuel Bandeira, Lúcia Miguel Pereira, Sérgio Buarque de Holanda, Caio Prado Júnior, dentre outros – no projeto editorial, ocasião em que ele sugeria ou vetava nomes de participantes, como também sugeria temas que dessem visibilidade ao Brasil como um todo, e não apenas às suas paisagens mais conhecidas (Sudeste e Nordeste).
Dessa ação de Astrojildo Pereira, resultou uma “brasiliana” mais alargada do que a inicialmente prevista, bem como a clara tendência de convidar intelectuais do campo democrático para participar da iniciativa, razão, pelo que entendo, de não haver quase nenhum convidado ligado às hostes católicas antidemocráticas que abundavam o Estado Novo no projeto. No transcurso da elaboração e operacionalização do projeto editorial da Coleção Tierra Firme, corresponde a Astrojildo Pereira a delicada tarefa, como por exemplo, de defender insistentemente a participação de Lúcia Miguel Pereira que, sem motivos declarados, fora vetada pelo editor mexicano, assim como vetar a participação de intelectuais como Cassiano Ricardo, sob o argumento de que ele não possuía lastro cultural nem seriedade como outros que ele indicava.
Ainda que o projeto de uma brasiliana para o FCE não tenha sido levado a cabo, sendo poucos os livros encomendados efetivamente escritos e publicados no México, dele resultaram clássicos de nossa historiografia em várias áreas – Apresentação da Literatura Brasileira, de Manuel Bandeira; História Econômica do Brasil, de Caio Prado Júnior; Música Popular Brasileira, de Oneida Alvarenga, dentre outros -, assim como nele registra-se a presença marcante de Astrojildo Pereira como importante intelectual mediador.
[1] Ver meu estudo: Edição e Sociabilidades Intelectuais: a publicação das obras completas de Rui Barbosa (1938/1948). Belo Horizonte, Autêntica/Ed. UFMG, 2017.
[2] Ver meu estudo: Uma Brasiliana para a América Hispânica: a editora Fundo de Cultura Econômica e a intelectualidade brasileira (décadas de 1940/1950). São Paulo, Paço Editorial, 2021.
Luciano Mendes de Faria Filho é doutor em Educação pela Universidade de São Paulo (1996); Professor Titular da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais, onde coordena vários projetos de pesquisa; autor de extensa obra, em que se destacam Edição e Sociabilidades Intelectuais – a publicação das obras completas de Rui Barbosa (Autêntica/Ed. UFMG, 2017), Uma brasiliana para a América Hispânica – a editora Fondo de Cultura Econômica e a intelectualidade brasileira (Paco Editorial, 2021), A primeira página e outros contos mexicanos (Veñas Abiertas, 2020) e Entre Mulheres (Caravana, 2021).