história
Hélio Schwartsman: R$ 200, avanço ou retrocesso?
Seja como for, não é uma surpresa ver, mais uma vez, o Brasil na contramão da história
Ao lançar a nota de 200 reais, o Brasil se coloca na contramão do que vêm fazendo economias mais avançadas, que é abandonar cédulas e moedas em favor de transações digitais ou por cartões.
A tendência de desmonetização é liderada pela Suécia, onde menos de 2% das transações ocorrem com papel-moeda e mais de 50% das agências bancárias já não trabalham com dinheiro vivo. Mas várias outras nações vêm tirando cédulas, principalmente as de alto valor, de circulação. A UE acabou com a nota de 500 euros, passo que já havia sido dado décadas antes nos EUA com a descontinuação das cédulas de 500, 1.000, 5.000, 10.000 e 100.000 dólares.
E nem dá para afirmar que essa seja uma exclusividade de países ricos. A Índia teve uma experiência desastrada com a eliminação de notas de 500 e de 1.000 rúpias em 2016. Mas o Quênia se dá bem com o m-pesa, a moeda digital operada por celulares que ganha espaço em outras nações.
O principal atrativo da desmonetização é que ela representa um golpe contra o crime. Assaltantes, traficantes, corruptos, sonegadores etc. operam melhor quando o dinheiro que usam não traz memória de como foi adquirido ou de como é gasto. Só cédulas oferecem tal nível de anonimato. É claro que bandidos, pelo menos os mais sofisticados, poderiam correr para ativos como ouro e bitcoins.
Outra vantagem importante é a eliminação do custo do dinheiro, que começa com a impressão das notas, passa pelo transporte de valores, a instalação de caixas eletrônicos e culmina nos explosivos usados para roubá-los.
A desvantagem mais clara é a perda de privacidade. Num mundo de transações digitais, poderia em tese existir um registro completo de onde e como gastamos cada um dos centavos que acumulamos ao longo da vida. É bem mais que o Google, que guarda apenas nossas preferências.
Seja como for, não é uma surpresa ver, mais uma vez, o Brasil na contramão da história.
Ivan Alves Filho: A contribuição do PCB à vida brasileira
O ano de 1922 foi central para o entendimento do Brasil. Nele tivemos a Semana de Arte Moderna, o surgimento das reivindicações feministas, a formação do Centro Dom Vital, o início do que se convencionaria denominar por Tenentismo e, ainda, a criação da Seção Brasileira da Internacional Comunista. Um ano de cortar o fôlego. Provavelmente, o centenário da Independência obrigou o país a se repensar.
O Partido Comunista surgia como uma agremiação ao mesmo tempo nacional, isto é, buscando o enraizamento no país, e internacional, na esteira dos acontecimentos que sacudiam a Rússia em 1917.
Foi o único partido comunista no mundo saído diretamente do movimento anarquista.
O enraizamento interno tinha que ver com sua condição de partido da classe trabalhadora. Mas, rapidamente, já no final dos anos 20, o Partido percebia que não poderia praticar uma política de classe contra classe. O Brasil se diversificava, apresentando uma conformação social mais sofisticada e complexa. Ao lado da classe operária e do campesinato despontava uma nova camada, composta pelos setores médios. Eis o que abria a via para o diálogo com intelectuais e militares, por exemplo. Astrojildo Pereira foi o grande artífice dessa primeira grande mudança.
Outras viriam tão profundas quanto essa. Após atravessar a repressão do Estado Novo de Vargas e as vicissitudes da chamada Guerra Fria, os comunistas do PCB mudam novamente, acrescentando a seu ideário a questão democrática. Isso se deu com a Declaração de Março de 1958. Não por acaso, seu principal redator seria Armênio Guedes, o dirigente mais próximo de Astrojildo e de Giocondo Dias. Foi com esse espírito que o PCB evitou o esfacelamento por ocasião da ditadura militar. Apostando na aliança com os liberais e na luta de massas, o Partido apontou o caminho, jogando suas fichas na derrota e não na derrubada do regime. A História daria razão ao PCB.
Surgido no bojo das batalhas travadas pela Rússia Soviética, o PCB passaria por nova transformação após o esgotamento do chamado socialismo real, em 1991. Sabendo tirar as lições do fim da União Soviética e do processo iniciado em 1917, os comunistas brasileiros mudam o nome do partido e abandonam seu símbolo, a foice e o martelo. Mudaram o partido e não de Partido. Nascia o PPS em 1992. Ou seja, souberam preservar suas partes vivas, a saber a ética, a democracia e a noção de justiça social. Essa a maior herança do comunismo brasileiro. Mais do que qualquer outro partido, o PCB organizou o mundo do trabalho contra o grande capital, lutou pela cultura nacional e integrou o bom combate pela democracia. Este o seu grande legado.
Hoje, mais uma mudança. Surge, em cena, o Cidadania23. Se antes era soviets mais eletrificação, atualmente é Democracia mais automação. Em tempos de profundas alterações no aparato produtivo e no modo de vida das pessoas, o PPS estabeleceria vínculos com os movimentos surgidos nas ruas, em 2013, e nas redes sociais ativadas em computadores e celulares. Muitos eram de corte liberal. O Partido entendeu que o liberalismo político era uma conquista do processo civilizatório, afirmando o papel do indivíduo perante o Estado, o que não entrava em contradição com os direitos sociais que os comunistas sempre defenderam.
Terminei, recentemente, um novo livro: A saída pela Democracia. Em um dos seus últimos parágrafos, escrevo o que se segue: “Penso que um denominador comum possível seja a cidadania. Seu vínculo com o mundo do trabalho pode ser feito por intermédio da Constituição. Sua ligação com cada um de nós, individualmente falando, pode ser realizada por meio das lutas identitárias, incluindo aí a cultura como pertencimento. Seu elo com as liberdades pode se dar pela defesa dos direitos de ir e vir das pessoas. A cidadania pode ser o grande fator estruturante da participação popular pelas mudanças. Ela perpassa o sistema de classes; como conquista do processo civilizatório não é monopólio de classe alguma. É um patrimônio de todos”.
Sobre a singularidade do PCB na vida brasileira, desejo tecer ainda algumas considerações. Vamos lá.
Primeiramente, uma constatação: o PCB nunca esteve no poder central. Mas encarnou, como nenhum outro agrupamento político, a meu juízo, os interesses do povo brasileiro. Abaixo, alinho alguns pontos da atuação pecebista que marcaram a vida nacional:
1- O Partido contribuiu para a formação daquela que talvez tenha sido a primeira agremiação política de massas do país, a Aliança Nacional Libertadora, nos anos 30.
2- Empenhou-se, e isso desde os anos 20, no combate pela Reforma Agrária. Expressão disso são as lutas de autodefesa camponesa em Porecatu, no norte do Paraná, no final dos anos 40, e em Formoso e Trombas, em Goiás, no início dos anos 50. Destacaram-se aí as figuras de Agliberto Vieira de Azevedo, Gregório Bezerra, Hilário Pinha e João Saldanha, no caso de Porecatu, e Antônio Ribeiro Granja, Geraldo Tibúrcio e José Porfírio, no tocante às lutas em território goiano. Em fins de 1963, os comunistas foram responsáveis pela criação da Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (CONTAG) para representar os trabalhadores rurais, através das federações estaduais que, por sua vez, reúnem os sindicatos dos trabalhadores rurais de cada município. Seu primeiro presidente foi o comunista Lindolfo Silva. Esta importante entidade ainda existe até hoje.
3- O PCB deu apoio decisivo à memorável campanha do Petróleo é Nosso, um dos maiores e mais consequentes movimentos de massa do país. Aqui, temos de destacar a presença dos militares nacionalistas.
4- Atuou em defesa das terras indígenas, notadamente na criação do Parque Nacional do Xingu. Nesse sentido, foi fundamental a movimentação dos núcleos partidários ligados à problemática dos índios.
5- A Conferência Nacional do PCB publicou, no ano de 1934, um documento em defesa da questão negra e dos índios. A partir sobretudo desse momento, o Partido - que já havia lançado um operário negro, Minervino de Oliveira, como candidato à presidência da República, em 1930 - foi se sensibilizando cada vez mais com a questão negra. Nos anos 70, comunistas brasileiros atuaram na edificação dos novos Estados que se formavam na África de expressão portuguesa. O economista Gilson Leão trabalhou na Guiné Bissau e em Moçambique, e também neste contribuíram a geógrafa Arabela Pereira e o historiador Kunio Suzuki, assim como os aeronautas Mauricio Seidl e Íon Sá Weber. Kunio foi instrutor político da FRELIMO, antes mesmo da chegada desse partido ao poder, atuando nas zonas liberadas. O diretor de fotografia Antônio Luiz Mendes Soares ministrou cursos de cinema em Moçambique. O médico Davi Lerer militou profissional e politicamente em Angola. Na África subsaariana, mais precisamente na Argélia, nos primórdios da sua Independência, trabalharam, na área da educação e da construção de universidades, os comunistas e arquitetos Oscar Niemeyer, Edgar Graeff, Marcos Jaimovich e Oswaldo Cintra de Carvalho (Birunga), o médico e biólogo Luiz Hildebrando Pereira da Silva, o educador Heron de Alencar e o físico nuclear Ubirajara Brito. Essa participação dos comunistas no plano internacional se iniciou com a Guerra Civil Espanhola (1936-1939) e a Resistência Francesa (1940-1944), quando vários militantes combateram o antifascismo lá fora. Convém relembrar ainda, nesse período, o ingresso de vários comunistas na Força Expedicionária Brasileira, quando se engajaram contra os nazistas nos campos da Itália. Outro importante destaque: o bloco hoje Afoxé Filhos de Gandhy, criado por estivadores de Salvador, em 1949, teve a participação comunista. Formado unicamente por homens, inspirou-se nos princípios pacifistas do indiano Mahatma Gandhi e, dois anos mais tarde, introduziu músicas afros em seu repertório.
6- O PCB colaborou de forma efetiva para elaboração e aplicação do Plano de Metas do Governo JK, o qual abriria o caminho para a industrialização mais acelerada do país. O economista Ignácio Rangel, um veterano das lutas da década de 30 no Estado do Maranhão foi, ao lado de Celso Furtado, um dos artífices desse Plano.
7- Como abordar a cultura brasileira sem este Partido?
Como escrever a história da nossa literatura sem Aníbal Machado, Bandeira Tribuzi, Bernardo Élis, Ciro Martins, Dalcídio Jurandir, Dionélio Machado, Ferreira Gullar, Graciliano Ramos, Jorge Amado, Manoel de Barros, Orígenes Lessa, Oswald de Andrade, Patricia Galvão (Pagu), Paulo Leminski, Rachel de Queiroz, Rafael de Carvalho, Raimundo Sousa Dantas, Sábato Magaldi, Samuel Rawet e Solano Trindade?
Ou das nossas artes plásticas e cênicas sem Abelardo da Hora, Alex Viany, Alinor Azevedo, Anna de Holanda, Antonio Luiz Mendes Soares, Aparecida Azedo, Armando Costa, Bete Mendes, Bráulio Pedroso, Bruno Giorgi, Cândido Portinari, Carlos Scliar, Denoy de Oliveira, Di Calvalcanti, Edgar Graeff, Gisele Santoro, Iberê Camargo, Ítala Nandi, Jalusa Barcellos, Joacir de Castro, João Batista de Andrade, João Câmara, Joel Barcellos, José Pancetti, Leon Hirszman, Lima Duarte, Lina Bo Bardi, Mário Gruber, Nelson Pereira dos Santos, Oscar Niemeyer, Renina Katz, Rui Santos, Silvio Tendler, Siron Franco, Tarsila do Amaral, Villanova Artigas, Vladimir Carvalho, e Waldomiro de Deus?
Da nossa música sem Arnaldo Estrela, Camargo Guarnieri, Carlos Lira, Cláudio Santoro, Dolores Duran, Guerra Peixe, Jararaca, Jards Macalé, João do Vale, Jorge Goulart, José Carlos Capinam, José Siqueira, Noca da Portela, Noel Rosa, Nora Nei, Luiz Gonzaga Júnior (Gonzaguinha), Paulinho da Viola, Rildo Hora e Tom Zé?
Do nosso teatro e da televisão sem Bemvindo Siqueira, Dias Gomes, Dina Sfat, Fernando Peixoto, Flávio Rangel, Gianfrancesco Guarnieri, Glauce Rocha, José Wilker, Juca de Oliveira, Mário Lago, Oduvaldo Viana Filho, Paulo Gracindo, Paulo José, Paulo Pontes, Plínio Marcos, Procópio Ferreira, Raul Cortez, Stênio Garcia e Stepan Nercessian?
Do nosso movimento editorial sem Ênio Silveira, Moacyr Felix, Raul Mateos Castell e Renato Guimarães?
Do nosso jornalismo sem a presença de Aimoré de Paula Souza, Álvaro Moreyra, Amarílio Vasconcelos, Ancelmo Góis, Antonieta Santos, Antonio Morais Né, Antonio Romane, Aparício Torelly (Barão de Itararé), Arcelina Mochel, Aristélio de Andrade, Arthur José Poerner, Beatriz Bonfim, Carlos Eduardo Ullup, Carlos Jurandir, Célia Maria Ladeira, o cartunista Claudio de Oliveira, Danúbio Rodrigues, Davi Emerich, Derly Barreto, Dias da Costa, Domar Campos, Durval Aires, Elias Fajardo da Fonseca, Elio Gaspari, Eneida de Moraes, Eugênia Moreira, Eugênio Viola, Nilton Santos Fragmon Carlos Borges, Francisco Inácio de Almeida, George Duque Estrada, Hélio Contreiras, Henrique Caban, Henrique Cordeiro, Henrique Miranda, Ivan Alves, Jaime Miranda, Jairo Regis, Jarbas Marques, João Antonio Mesplé, João Batista Aveline, Justino Martins, Leo Guanabara, Lu Fernandes, Luciano Barreira, Luiz Carlos Azedo, Luiz Fernando Cardoso, Luiz Mario Gazzaneo, Marcelo Bairão, Marcus Miranda, Maria da Graça Dutra, Mariza Campos da Paz, Maurício Azedo, Mauro Malin, Mauro Santayana, Miguel Borges, Milton Coelho da Graça, Moacir Werneck de Castro, Narceu de Almeida Filho, Nilton Santos, Noé Gertel, Odalves Lima, Orlando Bonfim Júnior, Orlando Farias, Oswaldo Peralva, Otávio Malta, Paulo Markun, Paulo Motta Lima, Pedro Motta Lima, Raul Azedo, Raul Mateos Castell, Roberto Müller, Roberto Pontual, Rodolfo Konder, Roniwalter Jatobá, Sérgio Cabral, Sérgio Porto (Stanislaw Ponte Preta), Teixeira Heizer,Tibério Canuto, Vicente Dianezi Filho, Vladimir Herzog e Walter da Silveira?
Da nossa ensaística sem Aluísio Medeiros, Astrojildo Pereira, Carlos Nelson Coutinho, Elias Chaves Neto, Emílio Carrera Guerra, Fausto Cupertino, Ivan Pedro de Martins, José Paulo Paes, José Paulo Netto, Leandro Konder, Luiz Saia, Luiz Sérgio Henriques, Marco Aurélio Nogueira, Mário Pedrosa, Martin Cézar Feijó, Michel Zaidan, Paulo Mercadante, Paulo Ribeiro Cunha, Quirino Campofiorito e Rodrigo Patto Sá Motta?
E como escrever a história das nossas ciências sociais sem Alberto Passos Guimarães, Alcides Ribeiro Soares, Amaro Quincas, Caio Prado Júnior, Cícero Péricles de Carvalho, Clóvis Moura, Darcy Ribeiro, Décio Freitas, Dirceu Lindoso, Edison Carneiro, Jacob Gorender, Joel Rufino dos Santos, Leôncio Basbaum, Luiz Werneck Vianna, Marly Vianna, Nelson Werneck Sodré, Roland Corbisier, Rui Facó, Sérgio Faraco e Souza Barros?
Da Academia e dos organismos de pesquisa sem Abguar Bastos, Adão Pereira Nunes, Alexis Stepanenko, Aloísio Teixeira, Amílcar Baiardi, Antonio Carlos Máximo, Antônio Carlos Peixoto, Antonio Lousada, Antonio Paim, Aspásia Camargo, Caetano Araújo, Caiuby Alves da Costa, Celso Frederico, Cesar Maia, Edgar Carone, Eduardo Rocha, Elias Chaves Neto, Emílio Carrera Guerra, Eurico Figueiredo, Flávio Kothe, Gastão Weyne, Geraldo de Souza Tomé, George Gurgel de Oliveira, Gildo Marçal Brandão, Haiti Moussatché, Hamilton Garcia, Heron de Alencar, Horácio Macedo, Isaac Scheiwart, Ivan Pedro de Martins, Ivan Ribeiro Filho, Jacob Kligerman, Joel Teodósio, José Antonio Segatto, José Cláudio Barrighelli, José Nilo Tavares, Josué Almeida, Lúcia Hippólito, Luís Mir, Luiz Hildebrando Pereira da Silva, Manoel Martins Junior, Maria Amélia Hamburger, Maria José Feres, Mário Pedrosa, Mário Schemberg, Milton Lahuerta, Moisés Fuks, Osvaldo Evandro Carneiro Martins, Paulo César Nascimento, Paulo de Camargo e Almeida, Paulo Fábio Dantas Neto, Raimundo Jorge, Raimundo Nonato dos Santos, Raymundo de Oliveira, Rubem César Fernandes, Samuel Pessoa, Sérgio Bessermann Vianna, Sérgio Grando, Socorro Ferraz, Ubirajara Brito e Yara Brayner Mattos?
8- Da esfera jurídica sem Aluisio Gurgel, Américo Barreira, Arlindo Fernandes de Oliveira, Eros Grau, Félix Valois, Herman Baeta, Humberto Jansen, José Carlos Arouca, José Paiva Filho, Marcello Cerqueira, Modesto da Silveira, Paulo Saboia, Sinval Palmeira, Tarcísio Leitão, Vasco Damasceno Weyne e Wanda Sidou?
9- O que dizer dos embates travados na cena sindical sem a participação de comunistas como Agostinho Dias de Oliveira, Alberto Galeno, Alberto Santos, Aloisio Filgueiras, Aloísio Palhano, Aluisio Medeiros, Anário Batista de Carvalho, Antenor de Souza Caldas, Antogildo Paschoal Viana, Antonio Chamorro, Antonio Eurico de Queiroz, Antonio Pereira da Silva Filho, Apolonio de Carvalho, Arildo Dória, Armando Mazzo, Armando Ziller, Arnaldo Santos, Carlos Jatay, Chico Andrade, Claudino José da Silva, David Zaia, Demistóclides Batista (o Batistinha), Expedito Rocha, Francisco Gomes (Chiquinho), Francisco Pereira, Geraldo Rodrigues dos Santos, Gregório Bezerra, Hércules Corrêa dos Reis, Humberto Archibald Campbel, Itair José Veloso, Ivan Pinheiro, Jair Simões, João Farias de Souza (Caboclinho), João Massena Melo, José Augusto de Souza Rodrigues (Guto), José dos Santos Serra, José Ferreira da Silva (Frei Chico), José Francisco Oliveira, José Leandro, José Maria Bonfante, José Maria Platilha, José Pereira de Oliveira (Macarrão), José Raimundo da Silva, José Simões, José Viegas, José Waldir de Aquino, Laura Mangueira, Lauro Brígido Garcia, Lindolfo Silva, Luiz Antônio Martins (Gato), Luiz Tenório de Lima, Luiz Viégas da Mota Lima, Manoel Aeri Ferreira, Manoel Coelho Raposo, Manoel Fiel Filho, Marcos Andreotti, Maria Sallas, Mário Albuquerque, Mário Grazini, Moacir Longo, Moura Beleza, Nestor Veras, Odilon Niskier, Olympio Fernandes de Mello, Oswaldo Pacheco, Pedro Albuquerque, Rafael Martineli, Ramiro Lucchesi, Roberto Morena, Roberto Percinotto, Vicente Pompeu, Vulpiano Cavalcante e Waldir Cardoso?
Em abril de 1945, foi criado o Movimento dos Trabalhadores Unificados (MUT), que daria surgimento, no ano seguinte, à Confederação dos Trabalhadores do Brasil (CTB), à frente o PCB. Em 1963, formou-se o Comando Geral dos Trabalhadores (CGT). Todos esses movimentos sofreram dura repressão dos governos.
Como não recordar, por exemplo, que, na esteira da grande greve de 1957, o Partido proporia a adoção do 13º salário por intermédio de Roberto Morena? Como ignorar a ação dos comunistas na criação da União Nacional dos Estudantes (UNE), ainda nos anos 30, sob a ditadura Vargas? Ou do CPC (Centro Popular de Cultura) da própria UNE, nos anos 60?
10- Dos movimentos sociais e em defesa dos direitos das mulheres, dos negros e índios sem Abgail Páscoa, Adoração Vilar, Ailton Benedito de Souza, Alciléia Morena, Aldaísa Bonavides, Almira Rodrigues, Ana Montenegro, Antonieta Campos da Paz, Arabela Pereira, Barbara Feitosa, Beatriz Riff, Berta Ribeiro, Carlos Alberto Caó de Oliveira, Carlos Moreira, Chico e Apoena Meirelles, Eduardo Galvão, Elisa Branco, Guiomar Monteiro, Helena Bessermann Vianna, Heloneida Studart, Irina Storni, Jane Neves, Laudelina de Campos Mello, Leda Santos, Maria Aragão, Maria Brandão dos Reis, Maria Werneck de Castro, Marcos Terena, Naíde Teodósio, Nise da Silveira, Noel Nutels, Zuleika Alambert e Zulu Araújo?
11- Como desconhecer que, por sugestão do cientista paulista Luiz Hildebrando Pereira da Silva, deu-se a criação da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), provavelmente o mais importante órgão de pesquisa do Brasil?
12- É preciso lembrar sempre que a criação do Sistema Único de Saúde (SUS) foi, em boa parte, obra dos comunistas inscrita na Constituição de 1988. Tiveram um papel decisivo aí os médicos sanitaristas Sérgio Arouca e David Capistrano Filho.
13- Apesar de não ter usufruído de muitos anos de legalidade, o PCB também teve uma atuação parlamentar importante. Apresento nomes como Adão Pereira Nunes, Alberto Goldmann, Alberto Rajão, Alísio Mamede, Álvaro Ventura, Antonio Resk, Arnaldo Jordy, Arthur Virgílio, Augusto Carvalho, Byron Sarinho, Carlos Alberto Lima Torres, Carlos Marighella, David Lerer, Fabiano Villanova, Fausto Matogrosso, Fernando Sant’Anna, Giocondo Dias, Gregório Bezerra, Hugo Martins, João Falcão, Jorge Amado, José Júlio Cavalcante, José Marinho de Vasconcelos, José Pontes Neto, Lauro Brígido Garcia, Luiz Carlos Prestes, Luiz Paulo Velloso Lucas, Manuel Campos da Paz, Marcelo Cerqueira, Marco Antonio Coelho, Modesto da Silveira, Myrthes Bevilacqua, Otávio da Silveira, Roberto Freire, Roberto Morena, Sérgio Arouca e Sinval Palmeira. Todos deram digna contribuição ao campo legislativo.
14- O PCB marcou presença também no esporte, onde, para além da figura de João Saldanha que organizou a Seleção Brasileira de 1970, que foi campeã da Copa do Mundo naquele ano, posso citar ainda os nomes dos jogadores Leônidas da Silva (o Diamante Negro) e Didi, o criador da “folha seca”.
15- E é impossível não rememorar lutadores como Abelardo Caminha, Abílio Fernandes, Adalberto Timóteo da Silva, Admar Faria Lima, Agildo Barata, Alberto Aleixo, Alberto Negri, Almir Matos, Aloysio Nunes Ferreira, Amaro Valentim, Ana Baptista, Ananias Macedo, Ângelo Arroyo, Aníbal Bonavides, Anita Prestes, Anivaldo Miranda, Antonio Carlos Mazzeo, Antonio dos Santos Teixeira, Antônio Fausto do Nascimento, Antônio Gonçalves Filho, Apolônio de Carvalho, Aristeu Nogueira, Armando Sampaio, Armênio Guedes, Arnaldo Jordy, Augusto Schmidt Pinto, Calil Chade, Cândido Feitosa, Carlos Alberto Frank (Cabo Frank), Carlos Danielli, Carlos Eduardo Fernandes (Hepatite), Carmelino Resende, Célio Guedes, Cristiano Cordeiro, David Capistrano, David Capistrano Filho, Dina Lida Kinoshita, Dinarco Reis, Dinarco Reis Filho, Dino Gomes, Diógenes de Arruda Câmara, Dulce Rosa de Bacellar Rocque, Ederval Araújo Xavier (Poly), Edmilsa de Souza Costa, Eduardo José Santiago (Dida), Elson Costa, Eraldo Bulhões, Estevão Martins, Euvaldo Leda (Cabo Velho), Everardo Dias, Fernando Lacerda, Francisco Inácio de Almeida, Francisco José Pereira, Geraldo Campelo, Geraldo Campos, Gerson Mascarenhas, Gilson Leão, Gilvan Cavalcante, Givaldo Siqueira, Graziela Melo, Heitor Casaes, Heitor Ferreira Lima, Henrique Cordeiro, Hiram de Lima Pereira, Irun Santana, Isnard Teixeira, Ivan Ribeiro, Jackson Barreto, Jarbas de Holanda, João Amazonas, Joaquim Câmara Ferreira, Jocelyn Brasil, Jorge Espechit, José Ferreira de Almeida, José Maria Crispim, José Maria Monteiro, José Maximino de Amarante Neto, José Montenegro de Lima (Magrão), José Roman, José Sales, Juarez (Juca) Amorim, Juca Ferreira, Kunio Suzuki, Laurinha Mangueira, Lauro Gurgel de Oliveira, Lauro Reginaldo da Rocha (Bangu), Leivas Otero, Lícia Canindé (Ruça), Lincoln Oeste, Lourival Costa Vilar, Luiz Carlos Prestes Filho, Luiz Fernando Contreiras, Luiz Inácio Maranhão Filho, Luzia Ferreira, Márcio Araujo, Marcos Jaimovich, Maria Prestes, Mário Alves, Maurício Grabois, Mauricio Seidl, Milton Cayres de Brito, Minervino de Oliveira, Moisés Vinhas, Nelson Goulart, Octávio Brandão, Onofre da Costa Filho, Orestes Timbaúba, Orlando Bonfim Junior, Paulo Elisiário Nunes, Pedro Jerônimo de Souza, Pedro Pomar, Pretextato José da Cruz, Rafael Martinelli, Raimundo Alves de Souza, Raimundo Damásio (Dedé), Raimundo Jinkings, Raul Jungmann, Regis Cavalcante, Regis Fratti, Renato Oliveira da Motta, Robespierre Teixeira, Rogério ‘Senador”, Rolando Fratti, Romero Figueiredo, Rui Barata, Salomão Malina, Sérgio Augusto de Moraes, Sérgio Holmos, Sinhá Vera, Takao Amano, Tarcísio Leitão, Ulrich Hoffman, Valério Konder, Walter Ribeiro, Wellington Mangueira, William Moreira Lima, Zélia Magalhães e Zuleide Faria de Mello. Alguns ainda em plena atividade.
A lista é extensa, embora incompleta, sei disso.
O PCB teve milhares de militantes assassinados e torturados. Representante do que o nosso Humanismo teve de melhor, esta trajetória é parte integrante da construção de um Brasil mais fraterno, justo, próspero e democrático, sem as mazelas que tanto nos tem atingido. Precisamos, mais do que nunca, resgatar esta sua rica experiência.
O Partido cometeu, naturalmente, muitos equívocos. Demorou a se afastar da política obreirista. Organizou o Levante de 1935. Fechou os olhos para as limitações democráticas de países que se reivindicavam socialistas. Apoiou um Manifesto de Agosto anacrônico já nos anos 1950. Mesmo assim teve mais acertos do que erros.
Os comunistas nunca se envolveram em corrupção ou desvio de dinheiro público. Estiveram presentes em praticamente todas as frentes de luta. E ninguém pode tirar isso do Partido. Pertence à nossa História. O PCB compõe uma espécie de memória sensitiva do povo brasileiro. Uma escola política sem paralelo, talvez, no século XX, no país. Seus militantes buscavam o que era comum – os pontos de união - sem abrir mão do que lhes era peculiar. O Partido nos ajudou a desvendar o Brasil para melhor transformá-lo. Lutou obstinadamente contra todas as ditaduras que enlutaram o Brasil ao longo do século XX. Os comunistas apoiaram políticas aliancistas durante décadas a fio. E isso desde a formação do Bloco Operário e Camponês, no final dos anos 20, até a aliança com os liberais-democratas para derrotar a ditadura de 1964. Estou convencido de que precisamos novamente da sensibilidade que o PCB sempre dedicou ao mundo do trabalho. Um mundo que não se restringe mais ao chão das fábricas, ganhando literalmente o chão das ruas das cidades. É fundamental reunir os trabalhadores incluídos e os excluídos, colocados à margem dos direitos sociais. Até para evitar que sirvam de massa de manobra para demagogos ou fascistas e populistas de todo tipo. É aí que a cidadania tem um grande papel histórico a cumprir. O velho comunista Salomão Malina chamava constantemente a atenção para isso.
As mudanças dependem do processo histórico, isto é, estão alicerçadas em relações sociais precisas. Isto vai além da vontade de personalidades ou mesmo de partidos. As condições objetivas existem. Mas, no limite desse processo ou dessas condições objetivas, os comunistas não mediram esforços para mudar o Brasil.
Apesar de nunca terem estado no poder central, os comunistas fizeram muito mais do que isso: arejaram a sociedade com suas ideias e ações. Tiveram o Brasil como missão. Sempre ficaram ao lado do povo nas lutas pela cidadania. Caminharam da sociedade para o Estado. Este o seu ponto de partida. E a sociedade é sempre maior que o Estado. Outros grupos empalmaram o Estado e pouco fizeram pela sociedade. A trajetória do PCB nos lembra que hegemonia é condução de processo. As bandeiras desfraldadas inicialmente pelo Partido tornaram-se bandeiras nacionais. Apesar das perseguições que sofreu e das inúmeras divisões internas que teve, o Partido deixou uma marca incontestável na vida nacional.
Como disse o poeta Ferreira Gullar, não se pode escrever a história do Brasil sem o PCB ou estaríamos mentindo.
*Ivan Alves Filho é historiador, autor de mais de uma dezena de livros em que se destacam O Memorial de Palmares e O caminho do alferes Tiradentes
Política Democrática || José Vicente Pimentel: O plano de Trump para o Oriente Médio
Esquema anunciado pelo presidente norte-americano em 28 de janeiro último, após três anos de mandato e a dez meses das eleições presidenciais de 2020, decepcionou os que esperavam alguma sutileza política ou criatividade diplomática
A questão da Palestina está na agenda internacional desde o Acordo de Sykes-Picaut de 1916. O primeiro plano de paz foi aprovado pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 1947. Desde então, é comum ver os presidentes americanos envolverem-se diretamente nos problemas do Oriente Médio. As guerras de 1948, 1967 e 1973 entre árabes e israelenses, vencidas sempre por estes últimos, aumentaram a pressão para que os EUA se engajassem nas negociações de paz, por serem o único honest broker que as partes reconheciam como capaz de negociar soluções pacíficas para os conflitos.
A resolução 242 do Conselho de Segurança da ONU (CSNU), aprovada após a Guerra dos Seis Dias, e reafirmada pela resolução 338, adotada após a Guerra do Yom Kipur, tornou-se um marco nas negociações. O texto preconiza a “retirada das forças armadas de Israel dos territórios ocupados durante o recente conflito”. Mas a delimitação desses territórios é foco até hoje de disputas. Para os palestinos, seriam suas a Cisjordânia e a Faixa de Gaza, além de Jerusalém Oriental. Israel contesta os limites entre a Jordânia e a Cisjordânia e quer uma Jerusalém unificada sob seu controle. Há outros itens espinhosos, como a retirada israelense do sul do Líbano, os territórios ocupados e os assentamentos neles erguidos por Israel.
Esses temas permaneceram na pauta ao longo dos anos, gerando belos momentos diplomáticos, como os Acordos de Camp David, impulsionados por Jimmy Carter; os três pontos reconhecidos por Yasser Arafat em seus encontros com Ronald Reagan (reconhecimento de Israel, aceitação da resolução 242 e renúncia ao terrorismo); a primeira Conferência Internacional de Madri, organizada por George Bush pai, em 1991, que ensejou o histórico aperto de mão entre Arafat e Yizhak Rabin, e os Acordos de Oslo, impulsionados, em 1995, por Bill Clinton. Esses esforços criaram muita expectativa, a que se seguia desalento diante das intifadas de 1987 e 2000, bem como dos sucessivos assentamentos israelenses em territórios ocupados. Mas assim como a medicina não pode se abater ante a reincidência de um câncer, a diplomacia precisa encontrar nos insucessos motivação para renovar energias, buscar saídas e evitar o mal maior de uma ampliação do teatro de guerra. Nesse contexto, aguardava-se a contribuição de Donald Trump, aquele que ganhou as eleições autodeclarando-se “o grande negociador”.
O esquema anunciado por Trump em 28 de janeiro último, após três anos de mandato e a dez meses das eleições presidenciais de 2020, foi uma decepção para os que esperavam alguma sutileza política ou criatividade diplomática. O plano favorece Israel em todos os temas em disputa. Mediações anteriores haviam feito progressos na negociação de medidas para assegurar segurança na fronteira da Jordânia, a fim de que terroristas não atravessassem a Cisjordânia e ingressassem em território israelense. Trump resolveu a parada presenteando Israel com todo o Vale do Jordão. Dessa maneira, Jericó se transformaria num enclave, cercada por Israel por todos os lados. Os palestinos manteriam apenas 30% da Cisjordânia.
Por sua vez, a soberania sobre Jerusalém Oriental foi integralmente entregue a Israel, que passaria a ter inclusive direitos sobre o Monte do Templo, ou Haram al-Sharif, e sobre a mesquita de al-Aqsa. Como compensação, os árabes receberiam um centro turístico ao norte de Jerusalém e acesso, controlado por Israel, aos lugares santos.
O resto segue o padrão desequilibrado de um diktat, negociado pelo genro de Trump apenas com diplomatas israelenses, sem participação da Palestina. O caráter impositivo ficou patente na cerimônia de anúncio do plano, feita em conjunto por Trump e Benjamin Netanyahu, com a notória ausência de palestinos. Por isso, não causou surpresa que tenha sido de pronto rejeitado pela Liga Árabe e pelas principais Chancelarias mundo afora.
O Governo Bolsonaro preferiu distanciar-se da maioria e manter a tendência de alinhamento integral a Donald Trump, assim modificando mais uma posição tradicional da diplomacia brasileira. Vale lembrar, por exemplo, que o governo Geisel se posicionou a favor da retirada das tropas israelenses dos territórios árabes ocupados em seguida à guerra de 1967 e reconheceu o direito do povo palestino à autodeterminação e à independência. Militava em favor dessa postura equilibrada a importância concedida, desde os tempos do Barão do Rio Branco, à diplomacia multilateral; o reconhecimento de que o Oriente Médio é uma região importante para a manutenção da paz e para a estabilidade da economia mundiais e, ainda, em manifestação de respeito pela notável contribuição que as comunidades árabe e judaica deram e precisam continuar dando à harmonia da sociedade e ao progresso econômico do Brasil.
Luiz Sérgio Henriques: Quando os bárbaros bateram em retirada
Um desafio global, sistêmico, como o do comunismo histórico, é improvável que se repita...
No tempo em que a luta final parecia ser entre sistemas irremediavelmente contrapostos, a cultura bolchevique, tradução arriscada para o “Oriente” político de um pensamento claramente ocidental, como o de Marx, protagonizou não poucos episódios de fechamento sectário sobre si mesma. Exemplar, nesse sentido, o combate prioritário que em certo ponto os partidos comunistas deram aos “social-fascistas” – rótulo infame dado à esquerda social-democrata –, mesmo diante do avanço do nazismo e do fascismo. Ou, ainda nos anos 1930, a política interna da URSS stalinizada, que proclamava estar a caminho do socialismo e contraditoriamente apregoava o acirramento incessante da luta de classes, com processos falsificados, fuzilamento de velhos bolcheviques e afirmação de uma implacável estrutura verticalizada de mando.
Evidentemente, esse poder monolítico não duraria para sempre. Em face da vida política do capitalismo avançado, muito mais articulada e complexa, mesmo a versão atenuada do comunismo no poder, com a queda do ditador e a denúncia (parcial) dos seus crimes em 1956, mostrava-se primitiva e destituída de atração. Como no poema de Kaváfis, aquela constelação de partidos-Estado era como que a fonte e a razão de ser dos bárbaros à porta da cidade, que ameaçavam invadi-la e só provocavam reações irracionais, como a dos macarthistas e demais anticomunistas de profissão. Em 1989, por isso, entre esses setores atrasados da “cidade” capitalista viria a instalar-se um sentimento de frustração: para tais setores, os bárbaros eram uma “solução”, uma motivo de viver, um pretexto para cerrar fileiras e golpear os fantasmas prediletos. E agora batiam em retirada...
Ainda na última década do século 20 um novo e estridente grito de guerra se faria ouvir. É que o inimigo, sempre igual a si mesmo, mas ainda mais insidioso, teria passado a disputar corações e mentes com as armas mais lentas e, decerto, mais letais da cultura. Em consequência, gente treinada na linguagem da guerra fria reciclou-se rapidamente, apetrechando-se para ruidosas e intermináveis “guerras culturais”. Uma situação, aliás, que se agravaria exponencialmente no novíssimo ambiente das redes “sociais”, com sua capacidade inaudita de dinamitar pontes, criar tribos irascíveis e minar o terreno comum da convivência civilizada. E isso a ponto de se poder prever que minas potentes continuarão a explodir e causar danos no futuro, ainda depois de os guerreiros culturais ensarilharem as armas ou deixarem de fazer parte da corrente principal dos acontecimentos, ao contrário do que acontece hoje.
O alvo de tais guerreiros – que dão cobertura ideológica ao “populismo”, palavra ambígua e escorregadia, mas cujo conteúdo essencial consiste num ataque à democracia representativa tal como a conhecemos – deslocou-se: o comunismo perde a dimensão de desafio estatal e identifica-se sumariamente com o legado de 1968 e com a New Left multicultural. O ano que faz questão de não terminar, na frase de Zuenir Ventura, aparece agora como um nó a atar coisas díspares, mas todas muito “perigosas”: a rebelião antiautoritária, o feminismo, o pacifismo, o ambientalismo, tudo isso reunido numa crítica aos modelos de vida e consumo das sociedades desenvolvidas. Para os populistas de direita, eis a nova face do comunismo, empenhado como sempre em destruir a propriedade, mas desta vez, sobretudo, preocupado em corroer os valores familiares e os da tradição.
Como se trata de uma visão marcadamente ideológica, construída para organizar uma extrema direita de cunho anti-institucional, nada importa que o nó representado por 1968, no contexto real das coisas, não tenha muito em comum com a antiga posição comunista. Afinal, a Primavera de Praga também incendiou a imaginação de 1968. No clima da época, o velho ascetismo revolucionário sofreu golpes fatais. E num sentido que, na verdade, os enaltece, os comunistas da tradição se chocaram com uma derivação marginal, mas extremamente problemática, do espírito soixante-huitard, a saber, a trágica sedução da violência política.
Numa avaliação mais realista, um desafio global, sistêmico, como o do comunismo histórico, é altamente improvável que se venha a repetir num mundo interdependente em termos não mais só econômicos. E a New Left “multicultural”, mesmo quando vocaliza exigências essenciais, como o combate ao racismo e a defesa do ambiente, muitas vezes reproduz a própria superfície fragmentada da vida, sem estabelecer conexões entre os variados grupos que poderiam expressar alguma hipótese de ruptura. Se este diagnóstico sumário fizer sentido, então o agressivo populismo de direita dos nossos dias aparecerá como o que de fato é: um desses fenômenos regressivos que de tempos em tempos reagem virulentamente a mudanças havidas na estrutura do mundo e tentam restaurar um passado de papelão pintado. Para quem não aceita tal regresso, trata-se de uma oportunidade e tanto para alianças que defendam e aprofundem a experiência democrática em toda a sua plenitude.
Brexit e União Europeia: o que muda? Veja análise de Joan del Alcázar
Em artigo publicado na revista Política Democrática online, historiador diz que bloco deve buscar unidade
Cleomar Almeida, assessor de comunicação da FAP
“Há importante déficit de liderança na Europa, sobretudo se recordarmos os líderes que tivemos no passado”. A avaliação é do historiador Joan del Alcázar, catedrático em História Contemporânea da América Latina da Universidade de Valencia, na Espanha. Em artigo produzido exclusivamente para a nova edição da revista Política Democrática online, ele analisa o Brexit, que é a saída do Reino Unido da União Europeia, e diz que os europeus deverão tomar medidas para reforçar as instituições continentais.
» Acesse aqui a íntegra do artigo na 15 edição da revista Política Democrática online
Com colaboração de renomados especialistas e pesquisadores, revista mensal Política Democrática online é produzida e editada pela FAP (Fundação Astrojildo Pereira), vinculada ao partido político Cidadania. Todos os conteúdos podem ser acessados de forma gratuita no site (www.fundacaoastrojildo.com.br
De acordo com Alcázar, em momentos como o atual, os cidadãos devem assumir suas responsabilidades e saber transmitir aos mais variados dirigentes políticos que não resta outra opção, a não ser reforçar a União Europeia. “A Europa, mais concretamente o território da União Europeia, é a região mais habitável do planeta Terra, e com diferenças, como verificaram todos e cada um dos que viajaram a qualquer outro continente nas últimas décadas”, analisa o autor, em outro trecho.
Considerando a segurança na cobertura social e a cultura de liberdades individuais como parâmetro, conforme o artigo publicado na revista Política Democrática online, a Europa permite uma qualidade de vida a seus cidadãos superior à de qualquer outra região. “Infelizmente, como deixou patente nas últimas eleições britânicas – além dos resultados tanto para a Escócia como para a Irlanda do Norte –, a ideia da unidade europeia não é tão hegemônica como nos conviria”, afirma o historiador.
Segundo o autor, essa unidade é necessária, imprescindível, e não só para os cidadãos. “Fez-se evidente na Cúpula do Clima, reunida em Madri, apesar dos desacordos sobre a obrigação de endurecer a redução de emissões”, escreve ele.
Alcázar também é autor de diversos livros, dentre os quais Política y utopia en América Latina - las izquierdas en su lucha por un mundo nuevo (Tirant humanidades, València, 2019). Além disso, ele é responsável pelo blog El cronista periferico (elcronistaperiferico.
Todos os artigos desta edição da revista Política Democrática online serão divulgados no site e nas redes sociais da FAP ao longo dos próximos dias. O conselho editorial da publicação é composto por Alberto Aggio, Caetano Araújo, Francisco Almeida, Luiz Sérgio Henriques e Maria Alice Resende de Carvalho.
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‘Bach fez nosso planeta soar de outra maneira’, escreve Ivan Alves Filho na Política Democrática de dezembro
Historiador diz, em artigo publicado na revista da FAP, que músico alemão era ‘homem de luta’
Cleomar Almeida, assessor de comunicação da FAP
“Johann Sebastian Bach é, para muitos, o maior nome da música em todos os tempos. Mestre do contraponto, o músico alemão fez nosso planeta soar de outra maneira”. A análise é do historiador Ivan Alves Filho, em artigo de sua autoria publicado na revista Política Democrática online de dezembro. Todos os conteúdos da revista podem ser acessados, gratuitamente, pelo site da FAP (Fundação Astrojildo Pereira).
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De acordo com o historiador, Bach era um fervoroso protestante, originário de uma família de músicos. “Religião e arte faziam parte do seu corpo, como sangue e ossos”, afirma. “A darmos crédito a um depoimento, a tocar órgão, Bach corria sobre os pedais como se seus pés tivessem asas, fazendo o instrumento ressoar de tal maneira que quase se diria ouvir uma tempestade”, acrescenta.
Bach, segundo Ivan, era “um homem de luta”. “O Duque de Weimar chegou a mandar prendê-lo, porque o músico insistia em deixar a cidade em busca de melhores condições de trabalho. Obstinado, Bach não cedeu às pressões do Duque e ainda concebeu, na prisão, o Peque no Livro do Órgão”, lembra.
Ivan diz que, toda vez que ouve algo de Johann Sebastian Bach, firma a convicção de que sua música - de tão tensa, retorcida, obcecada até - não cabe completamente nos limites das notas musicais. “Na verdade, Bach nos remete a um som que extrapola ou atropela tudo”, afirma.
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Cristovam Buarque: As curvas da história
A história da humanidade e de cada país segue rumo, com avanços e retrocessos, em direção à eficiência e à justiça. O papel dos políticos conservadores é dificultar essa marcha, como fizeram adiando a Abolição da Escravatura. O papel dos políticos progressistas é apressar a marcha em direção ao futuro. Mas a história faz curvas, independentemente da vontade dos políticos. Nos últimos anos, o avanço técnico forçou uma curva com o surgimento do computador, da inteligência artificial, da robótica e das comunicações instantâneas. Outros movimentos fizeram o mundo ficar global na economia e a sociedade ficar corporativizada na defesa de interesses individuais; o cidadão virou consumidor; o crescimento econômico ficou limitado pela ecologia. Mas, apesar da clareza dessas mudanças na realidade, muitos ainda não percebem a curva feita pela história; continuam prisioneiros de ideias anteriores, querem o avanço em uma linha reta que já não existe.
Não entendem, por exemplo, que o Estado gigante defendido pela esquerda soviética e social-democrata ficou ineficiente na gestão e insensível às necessidades do povo, criou uma classe privilegiada entre seus dirigentes; e tem custo que rouba recursos da sociedade obrigada a pagar impostos elevados; e, ainda, incentiva a corrupção. A curva da história fez o Estado gigante ser um dinossauro político, apesar disso, muitos dos que se dizem progressistas continuam presos à ideia do Estado burocrático, caro e divorciado do povo.
Tampouco entendem que a justiça social e o bem-estar só podem ser construídos sobre economia eficiente. Até recentemente, a justiça se fazia dentro da economia, na repartição entre salário e lucro. Hoje a maior parte da população está fora da chance de ser incluída na economia formal, porque a curva da história eliminou empregos e exige formação profissional dos empregados. O desafio dos que buscam justiça social é desfazer a apartação, que separa de um lado os incluídos e, de outro, os excluídos. O caminho para isto está na educação de qualidade igual para todos, o filho do pobre na mesma escola do filho do rico. Mas os que não perceberam a curva da história esquecem os analfabetos e os que não terminam o ensino médio com qualidade, defendem a ilusão de universidade para todos, sem lutar pela erradicação do analfabetismo, pela educação de base de qualidade igual para todos e por uma reforma na universidade para que seus formandos estejam preparados para o dinâmico mundo do conhecimento em marcha.
A curva na história, que reduziu drasticamente a taxa de natalidade e aumentou a esperança de vida, exige reforma no sistema previdenciário; a velocidade do avanço técnico exige reforma nas regras das relações entre o capital e o trabalho. Mas os progressistas amarrados nostalgicamente às ideias do passado, no lugar de propostas progressistas que construam sustentabilidade para as próximas gerações, que eliminem privilégios de alguns grupos e colaborem para dinamizar a economia, preferem ficar contra as reformas que a curva da história exige. Estes progressistas não entendem ainda a verdade dos limites ecológicos que impedem a promessa de igualdade com alto consumo para todos.
O socialismo soviético acabou porque o Partido Comunista não entendeu a curva na história, ficou prisioneiro de ideias que se divorciaram da realidade na segunda metade do século XX. O mesmo acontece com a velha e tradicional esquerda brasileira, que não percebeu ainda a nova revolução tecnológica e social do mundo global e informatizado, com o agravante de se comportarem assim pelo reacionarismo de ideias superadas, mas também pela forte atração oportunista pelos votos dos eleitores seduzidos com falsas promessas. Neste ponto, esquerda e direita se unem, caindo na tentação populista, por oportunismo eleitoral ou por falta de conhecimento e de percepção da história e suas curvas. Foram muitos os erros que levaram os democratas-progressistas brasileiros a sofrerem a derrota na última eleição, mas o maior foi não perceber a curva da história nas últimas décadas no mundo.
O discurso de uma nova esquerda deve aceitar a desigualdade dentro de limites que ofereçam o mínimo para uma vida digna a todos, impeça o consumo que destrói o meio ambiente; aceite os limites do Estado e da Natureza, entenda a realidade da globalização e do potencial do avanço técnico; e adote o compromisso com a educação de máxima qualidade e igual para todos. (Correio Braziliense – 12/02/2019)
Cristovam Buarque, professor emérito da UnB (Universidade de Brasília) e ex-senador
http://www.pps.org.br/2019/02/12/cristovam-buarque-as-curvas-da-historia/
Paulo Roberto da Silva Gomes Filho: O passado como prólogo
Líderes que ignoraram a História desperdiçam tempo, recursos e a paciência dos afetados
“Tolhidos pela mudança
acelerada, os líderes
importantes atuais parecem
não ter tempo ou inclinação
para olhar para o
passado para pedir ajuda”
A citação acima é de autoria de Williamson Murray e Richard Sinnreich. Os autores da obra O Passado como Prólogo (Bibliex, 2017) alertam para o fato de que líderes responsáveis por decisões de segurança nacional teriam a convicção de que a História tem pouco a oferecer ao elaborador de políticas nos dias de hoje. Isso se deveria à velocidade com que os eventos se sucedem. Ao lidarem com um presente exigente e um futuro ameaçador, poucos líderes, civis e militares, estariam dispostos a cair numa reflexão sistemática sobre o passado.
Na verdade, não creio tratar-se de um problema exclusivo das chamadas “lideranças”. Formadores de opinião – aqui incluídos os presentes nas novas mídias, chamados de “influenciadores digitais” –, analistas, acadêmicos e jornalistas, além da famosa categoria dos “intelectuais e artistas”, despejam opiniões diariamente, aparentemente, como escrevem Murray e Sinnreich, sem olhar o passado para pedir ajuda.
O grego Tucídides, que, 2.400 anos atrás, escreveu a monumental História da Guerra do Peloponeso, disse tê-lo feito para informar “àqueles que quisessem entender com clareza os eventos que ocorreram no passado e que, sendo a natureza humana como ela é, em algum momento e das mesmas formas, repetir-se-iam no futuro”. O caminhar da humanidade ao longo dos séculos confirmou a previsão.
Como anteviu o grego, talvez o maior de todos os historiadores militares, a história das guerras é particularmente rica em casos em que o estudo do passado talvez tivesse evitado fracassos e mudado o curso da História. O episódio mais emblemático é o da Operação Barbarossa (1941), a invasão nazista da União Soviética. É claro que, depois dos fatos acontecidos e sabedores do fracasso da invasão, é inevitável lembrar que invasões anteriores, tentadas por Carlos XII (1700) e Napoleão (1812), já haviam fracassado. Será que os planejadores nazistas se detiveram com necessário cuidado sobre o passado antes de decidirem pela invasão?
E as atuais lideranças globais? Será que estão atentas às lições da História? Para ficar num exemplo óbvio, no campo das relações internacionais: seria o surgimento de uma potência global emergente, desafiando a potência dominante, um fato inédito na História do mundo? Certamente que não. Desde Atenas desafiando Esparta, passando pela Espanha ultrapassando Portugal na época dos grandes descobrimentos, pelos Estados Unidos suplantando a Inglaterra após a 1.ª Grande Guerra e a Alemanha desafiando a Europa, na 2.ª Guerra Mundial, o mundo já viu muitas vezes situações como esta em que a ascensão da China desafia os Estados Unidos.
Como esses atores se vão comportar, quais serão as consequências políticas, econômicas, sociais e científico-tecnológicas de tais comportamentos para o mundo, inclusive para nós, aqui, na periferia global? Haverá crise? A crise evoluirá para uma guerra? Como isso nos vai afetar? Certamente o estudo da História não traria todas as respostas. Afinal, causas semelhantes nem sempre produzem efeitos similares e essas causas também interagem de maneira imprevisível em cada momento histórico. Mas, certamente, do passado podem surgir modelos que levem a suposições de potenciais desfechos para as situações presentes.
E os nossos planejadores, professores, analistas, formadores de opinião? Estão hoje se detendo sobre os acontecimentos humanos passados, na busca da compreensão global de todo o fluxo de eventos que nos trouxeram ao ponto em que nos encontramos? Ou são reféns dos preconceitos aos quais servem, procurando encontrar justificativas para reforçar visões preconcebidas, comprometidas pela ideologia ou pelo posicionamento político que adotam?
Líderes e formadores de opinião que ignoram a História, que não têm a intenção de consultar o passado e de escutar os seus ecos, abrem mão de decidir com base em rica experiência anterior. Ignoram de antemão circunstâncias similares, relações de causa e efeito, tradições. Tratam repetidamente de “reinventar a roda”. Desperdiçam tempo, recursos e a paciência de tantos quantos são os afetados por suas decisões.
No Brasil “até mesmo o passado é incerto”. A frase, atribuída a um famoso economista, teria sido dita levando em conta a incerteza jurídica que atrapalharia o ambiente econômico do País. Ela demonstra, em seu tom jocoso e algo cínico, toda a problemática do estudo deficiente dos acontecimentos humanos do passado, que tento demonstrar neste artigo.
O País vive um momento de acirramento de ânimos, fruto de uma grave crise política e econômica, acompanhada de uma perigosa perda de legitimidade de alguns atores políticos, flagrados em casos de corrupção. Este acirramento inclui uma disputa pela preeminência de uma narrativa favorável ao posicionamento político/ideológico do autor. Informações mentirosas, as tristemente famosas fake news, são tomadas por verdades, contanto que estejam alinhadas e contribuam para o fortalecimento da narrativa defendida. Neste ambiente tóxico, em que a verdade é a primeira vítima, falar em estudo sistemático dos acontecimentos do passado parece pregar no deserto...
É urgente a superação deste momento. Se o ambiente interno do País está conturbado, o cenário geopolítico externo não parece animador. Não há tempo a perder. Que os decisores consultem o passado e ouçam seus ecos no presente, evitando que os mesmos erros sejam repetidos.
*CORONEL DE CAVALARIA. EMAIL: PAULOFILHO.GOMES@EB.MIL.BR
BBC Brasil: 'Tecnologia permite destruir Amazônia mais rápido do que fizemos com a Mata Atlântica'
Só 3% da madeira derrubada na Mata Atlântica para dar lugar a fazendas foi aproveitada; em geral, matas eram incendiadas e transformadas em pastos para prepará-las para a agricultura, assim como hoje ocorre na Amazônia
Por João Fellet, Da BBC News Brasil em São Paulo
Em 2005, então recém-formado na faculdade de Biologia da USP, o botânico Ricardo Cardim teve a ideia de percorrer áreas desflorestadas da Mata Atlântica atrás de árvores gigantes que haviam sobrevivido isoladas no meio de plantações e pastagens.
A pesquisa ganhou corpo ao longo dos últimos 13 anos e se transformou numa das maiores investigações sobre a história da destruição de uma das regiões mais biodiversas do planeta.
Em "Remanescentes da Mata Atlântica: As Grandes Árvores da Floresta Original e Seus Vestígios" (ed. Olhares), livro lançado em novembro, Cardim documenta a vertiginosa expansão econômica sobre o bioma, que, em pouco mais de um século, o fez perder 90% de sua vegetação original e dividiu as áreas sobreviventes em 245 mil fragmentos.
Ao lado do fotógrafo Cássio Vasconcellos e do botânico Luciano Zandoná, Cardim também elaborou um inventário de tesouros que resistiram às derrubadas - entre os quais exemplares centenários de figueiras, perobas e paus-brasil, retratados em expedições por seis Estados das regiões Sul, Sudeste e Nordeste.
A árvore mais alta identificada, numa antiga fazenda de cacau em Camacã (BA), foi um jequitibá com 58 metros de altura e tronco com 13,6 metros de circunferência - dimensões extraordinárias, mas aquém das árvores gigantes do bioma no passado, como um jequitibá na região de Campinas (SP) cujo caule alcançava 19,5 metros de circunferência no início do século 20.
Em entrevista à BBC News Brasil, Cardim diz que as condições que permitiram o desenvolvimento das árvores gigantes da Mata Atlântica não existem mais. Compartimentadas e cercadas por lavouras, muitas áreas de floresta sobreviventes se despovoaram de animais - essenciais para a renovação das plantas - e sofrem com a invasão de espécies exóticas e alterações climáticas.
Ele diz acreditar, porém, que as próximas gerações conseguirão reconectar os fragmentos da floresta e trazer os bichos de volta, garantindo a sobrevivência do bioma, ainda que sem a mesma riqueza original.
Cardim não nutre o mesmo otimismo em relação à Amazônia - que, segundo ele, vive hoje, passo a passo, o mesmo roteiro da destruição da Mata Atlântica. Segundo o botânico, enquanto o desflorestamento da Mata Atlântica parece ter sido contido, a Amazônia sofre com a ação "de um arco de aventureiros que são incontroláveis" e fragmentarão o bioma antes que a sociedade se conscientize sobre sua importância. "Hoje a tecnologia permite que a gente faça a destruição da Amazônia com a mesma velocidade, ou até mais rápido, do que fizemos na Mata Atlântica. Com nossas estradas, caminhões, motosseras, o ganho de escala é absurdo".
Confira os principais trechos da entrevista.
BBC News Brasil - O livro mostra que, ao contrário do que muitos pensam, a destruição da Mata Atlântica foi um processo bem recente. Como o bioma foi aniquilado tão rapidamente?
Ricardo Cardim - Até 1890, o que estava mexido no Brasil era um pedacinho de Pernambuco, por causa do ciclo do açúcar no século 17, e do Rio de Janeiro, por causa das fazendas de café. O resto era mata fechada, com índios dentro.
Parece incrível, mas a destruição da Mata Atlântica se deu mesmo no século 20. A grande cobiça era pelos húmus que fertilizaram o solo da Mata Atlântica ao longo de milênios. A madeira era muito mais um empecilho do que um benefício. Só no final do processo, quando já tínhamos muito caminhão e transporte facilitado pelas ferrovias, que a madeira começou a ser aproveitada. Mesmo assim, o índice de aproveitamento da madeira foi de cerca de 3% de tudo o que foi derrubado.
A ordem era "limpa logo para a gente começar a colher o ouro verde", que era o café. Fizemos como aquele cara que herda uma fortuna e na mesma noite vai gastar tudo em farra, e acorda pobre. Demoramos milhares de anos para formar aquele solo, criar aquelas condições perfeitas, e em cinco ou dez anos, aquilo não existia mais. Os solos que a gente cultiva hoje só são cultiváveis por causa da tecnologia, porque já foram exauridos.
BBC News Brasil - Você destaca no livro a destruição das matas de araucárias, na porção sul da Mata Atlântica. O que houve de peculiar nesse processo?
Cardim - A velocidade com que ocorreu. Essa é uma floresta que passa do século 19 ao 20 praticamente intacta. Brincava-se que era possível atravessar os Estados do Paraná e de Santa Catarina nos galhos das araucárias, de tão grudadinhas que elas estavam.
Até a Primeira Guerra Mundial (1914-1918), o Brasil importava madeira - o que era surreal para um país que estava destruindo florestas adoidado para plantar café. Mas, quando a Primeira Guerra impede esse comércio, o mercado começa a lembrar a araucária - um pinheiro maravilhoso, muito fácil de cortar. Começa um saque da floresta voltado para a madeira como se nunca viu.
A araucária vira uma grande divisa. Todo mundo que quer ficar rico vai para a floresta de araucária montar sua serrraria. Isso chega no auge nos anos 1950 e 1960. Cortavam tanta madeira que boa parte dela apodrecia antes de ser escoada para o mercado. Nos anos 1970, a floresta acabou. Houve uma quebradeira geral nas serrarias. Famílias que eram riquíssimas ficaram pobres.
A araucária simplesmente acabou. O que temos hoje são araucárias rebrotando, pequenas. O que sobrou hoje é uma sombra.
BBC News Brasil - O quão virgem era a Mata Atlântica antes de 1500?
Cardim - (O antropólogo) Darcy Ribeiro falava que havia entre 4 e 6 milhões de índios vivendo aqui no território. Acho possível, mas não acho que o impacto deles na floresta foi tão grande quanto o historiador americano Warren Dean falou em "A ferro e fogo: a história da devastação da Mata Atlântica brasileira" (1996). Ele diz que não existia floresta intocada, porque os índios já tinham cortado aquilo pelo menos uma vez em um milênio.
Eu acredito que os índios tinham capacidade de alterar o meio, mas com ferramentas muito primitivas - machados de pedra, fogo -, e também tinham populações muito pulverizadas. As coivaras que eles faziam para queimar e plantar roças não eram suficientes para gerar uma extensa derrubada. Acho que os índios deixavam as árvores grandes no meio da coivara e plantavam embaixo delas. E não acho que tenham conseguido trabalhar todo o território a ponto de alterá-lo.
BBC News Brasil - Qual o cenário hoje para as árvores gigantes remanescentes da Mata Atlântica?
Cardim - É terrivelmente ameaçado. A Mata Atlântica virou uma colcha de retalhos. Sobrou um décimo do que ela era, e ainda por cima esse décimo é formado por vegetação secundária - por florestas que já foram queimadas, exploradas, derrubadas - e dividido em 245 mil fragmentos de diferentes tamanhos. As árvores gigantes que sobraram nesses pedacinhos, especialmente nos menores, estão superameaçadas.
O clima local altera quando se derrubam florestas - basta lembrar que São Paulo era a terra da garoa, e hoje não temos mais garoa porque sumiu o verde dentro e no entorno da cidade. Os ventos, alterações ecológicas como a infestação de cipós, uma série de desequilíbrios ecológicos causados pela invasão do homem na floresta estão colocando em risco as poucas árvores gigantes que sobreviveram no bioma - tanto dentro da floresta quanto aquelas que estão isoladas em pastos, plantações, meios urbanos.
Nossa geração talvez seja uma das últimas a conseguir enxergar essas árvores gigantes, porque elas estão desaparecendo. E acho difícil que novas árvores desse porte surjam se a gente não reconectar os fragmentos de floresta.
BBC News Brasil - É viável reconectar esses fragmentos, considerando as forças econômicas e políticas atuais? As paisagens na região parecem estar muito consolidadas.
Cardim - Nasci em 1978 e cresci numa casa que tinha telefone de disco, uma TV com bombril espetado em cima e meu pai assinando jornal. O mundo mudou muito, e não só em tecnologia, em visão do planeta, sociedade. As crianças estão vindo com outro olhar sobre a natureza. Tenho muita fé de que elas vão causar uma revolução, e a tecnologia vai resolver muitos problemas, produzindo muito alimento sem precisar de grandes territórios. Vai chegar o momento em que vamos conseguir ter a harmonia entre o conforto moderno e o modo de produção econômico, e conseguiremos restabelecer parte do território natural.
Em 2100, teremos a Mata Atlântica reconectada, sobrevivendo, em harmonia com as cidades e as atividades agrícolas. Sou otimista.
BBC News Brasil - A Mata Atlântica será capaz de se regenerar sozinha?
Cardim - Se o ser humano desaparecesse da Terra neste instante, a Mata Atlântica iria recompor todo seu espaço. O que a atrapalharia são as plantas invasoras. Trouxemos muitas plantas estrangeiras. Quando você traz algo de fora, isso pode prejudicar enormemente quem já estava aqui antes. Vemos isso no parque Trianon (em São Paulo) e na Floresta da Tijuca (no Rio de Janeiro).
A floresta abandonada, sem ser manejada, iria virar um híbrido de Mata Atlântica com Pinus elliotti (pinheiro nativo da América do Norte), com palmeira seafortia (espécie australiana), com jaqueiras (oriundas da Ásia), e isso poderia comprometer grande parte da bidiversidade até chegar num ponto de equilibrio. Teríamos uma floresta mais pobre do que aquela que os portugueses encontraram em 1500.
BBC News Brasil - O geógrafo Altair Sales costuma dizer que os trechos remanescentes de Cerrado são como fotografias do passado, porque muitas das interações entre insetos, plantas e animais que permitiram o desenvolvimento daquelas paisagens deixaram de existir à medida que o bioma foi sendo degradado - e que no futuro aquelas paisagens desaparecerão. Isso se aplica à Mata Atlântica?
Cardim - Sim. Temos hoje na Mata Atlântica florestas que são relíquias, restos de uma era quando tínhamos macacos muriquis andando de galho em galho do Rio Grande do Norte ao Rio Grande do Sul, quando tínhamos antas, varas de queixadas e catetus, onças em todos os lugares.
Os bichos são fundamentais para plantar e polinizar a floresta. Nos anos 1930, o homem chegou à mata metralhando os bichos, caçava tudo o que via por ali. A vegetação tropical é intimamente ligada a seus bichos, uma evoluiu com o outro, com complexas interações que a gente nem imagina ainda.
Na Mata Atlântica, temos hoje a figura da floresta vazia, da floresta zumbi, como a do Parque Trianon, que não tem como se renovar. Para que a semente de um jatobá germine, ela tem de ter a dormência quebrada pelo intestino da anta. Sem anta, isso não acontece mais, a semente cai no chão e não germina. Os mecanismos estão profundamente comprometidos tanto no Cerrado quanto na Mata Atlântica.
Por isso, quando formos investir para reconectar os fragmentos, precisamos procriar os bichos para que eles possam voltar a transitar e reabilitar a floresta.
BBC News Brasil - Em vez de homogênea, a Mata Atlântica é descrita no livro como um bioma com múltiplas faces. O quão diversa é a formação?
Cardim - As pessoas tendem a pensar que a Mata Atlântica é aquele tapetão de floresta, como na Serra do Mar. Pensam que só ocorre no litoral, sem saber que ela vai até o Paraguai. Ela era realmente extensa. Outra coisa interessante é a diversidade de paisagens.
Na Mata Atlântica, podemos encontrar desde a restinga arenosa, um areial com ilhas de bromélias, cactos, pequenos arbustos, pitangueiras, verdadeiros jardins prontos - não é à toa que Burle Marx se inspirava nessas paisagens -, a campos de altitude, como em Itatiaia, ou na Serra dos Órgãos, que são campos com plantinhas no topo, até florestas monstruosas como as que existiram no norte do Paraná e no sul da Bahia.
Ela tem maior biodiverisade, comparativamente, do que a Amazônia, porque ela concentra diversas paisagens e espécies num território relativamente pequeno, graças à proximidade do oceano em alguns pontos e do relevo, que é bastante movimentado e cria diferentes condições para a vegetação.
BBC News Brasil - Já tivemos perdas irreparáveis de espécies de árvores gigantes na Mata Atlântica?
Cardim - Suspeito que sim. Por exemplo, a peroba-rosa encobria centenas de quilômetros de florestas. Ela foi tão cortada, sobrou tão pouco, que nos faz questionar o quanto sofreu de ersoão genética a ponto de se tornar viável. Uma doença talvez seja capaz de matar todas as restantes. São os últimos moicanos. Tenho a sensação de que muitas árvores da Mata Atlântica são os últimos moicanos.
Nas expedições que fiz durante a produção do livro, tinha o objetivo de ver a floresta original, mas acho que não consegui. A grande verdade é essa. Eu vi florestas que podem ter sido próximas daquilo, mas fiquei com a sensação de que não existe mais a floresta original, que meu tataravô possa ter visto quando estavam abrindo as fazendas.
BBC News Brasil - Quando se critica o desmatamento no Brasil, alguns representantes do agronegócio costumam citar a destruição das florestas na Europa e reivindicar o direito de fazer o mesmo por aqui. Como seria nossa sociedade se a Mata Atlântica não tivesse sido destruída?
Cardim - Esse argumento é tão hediondo como falar que, já que houve o Holocausto na Alemanha, podemos fazer um aqui também. A Europa hoje está preocupadíssima em restabelecer suas florestas e nunca mais vai restabelecer do jeito que era, porque as matas lá vêm sendo derrubadas desde a época romana.
Se tivéssemos encontrado outros meios de produzir riqueza, através da educação, da tecnologia, teríamos agora um patrimônio maravilhoso. Não sou contra a exploração de madeira. Sem a madeira, não teríamos orquestras, por exemplo. Eu adoro móveis de madeira nobre. Mas, se tivéssemos explorado de forma sustentável, poderíamos ter móveis de jacarandá pelo resto da vida.
Teríamos um potencial gastronômico inacreditavelmente grande, como alguns já começaram a perceber, como (o chef) Alex Atala. Teríamos muito potencial no ramo da biotecnologia, de medicamentos. E também de turismo, pois é impossível ficar indiferente diante dessas árvores gigantes. É como alguém diante da pirâmide de Queóps.
BBC News Brasil - O processo de destruição da Mata Atlântica é comparável ao que hoje enfrenta a Amazônia?
Cardim - A grande sacada desse livro é mostrar que fizemos uma coisa na Mata Atlântica nos últimos 100 ou 150 anos que é exatamente igual ao que estamos fazendo hoje na Amazônia. O que muda é a proporção, por causa da extensão da Amazônia e a tecnologia. Hoje a tecnologia permite que a gente faça a destruição da Amazônia com a mesma velocidade, ou até mais rápido, do que fizemos na Mata Atlântica. Com nossas estradas, caminhões, motosseras, o ganho de escala é absurdo.
BBC News Brasil - Quais foram as etapas da destruição da Mata Atlântica que agora se repetem na Amazônia?
Cardim - Primeiro, criar uma motivação econômica para um acesso à floresta. Na época (dos presidentes) Costa e Silva e Médici, nos anos 1970, começa a surgir a ideia da terra sem homens da Amazônia para o homem sem terras do Nordeste. Esse caminho para o interior da Amazônia, que começa com a rodovia Transamazônica, tem como paralelo a entrada das ferrovias no seio da Mata Atlântica por causa do café. A ferrovia entrava e rasgava a Mata Atlântica - vem o eixo de penetração, saem estradas vicinais para saquear a floresta e aproveitar a terra.
É o que está ocorrendo hoje na Amazônia: primeiro vem o cara saquear madeira, depois se faz a queimada para aproveitar o solo, o fogo fertiliza aquela terra e planta-se capim para que o gado pisoteie os entulhos da floresta. Com dois ou três anos, aquela floresta desaparece e vira carbono, e aí entra a soja. No nosso caso, era o café que entrava. Temos registros em Campinas (SP), em 1840, da presença do gado entre ruínas de árvores colossais da Mata Atlântica. Era um modo de domar a terra para o café.
BBC News Brasil - Seremos capazes de frear o desmatamento na Amazônia?
Cardim - Sou otimista quanto à Mata Atlântica, mas não quanto à Amazônia. Acho que não vai dar tempo. A Amazônia vai ser fragmentada antes que as gerações futuras consigam entender a importância dela.
Existe lá um arco de aventureiros -políticos, grileiros - que são incontroláveis. Eles vão fragmentar a floresta antes que a gente consiga mudar a sociedade.
BBC News Brasil - As tecnologias e a legislação para evitar o desmatamento também não avançaram?
Cardim - Com certeza, mas ainda acho que são fracas perante o que está acontecendo lá. O que houve em Rondônia é emblemático. A floresta do Estado sumiu em dez anos. E hoje a última fronteira é o Estado do Amazonas, porque o Pará já foi muito detonado.
Estão derrubando por mais que coloquemos multas. Tem muita gente lá que não tem nada a perder e vai fazer isso acontecer. Talvez, daqui a 40 anos, alguém faça um livro como este que eu fiz contando como a Amazônia foi destruída.
Mauricio Huertas: Como nunca antes na história deste País…
Faltam exatos cinco meses para as eleições de 7 de outubro, com pelo menos 23 pré-candidatos à Presidência da República, inclusive um ex-presidente preso. Não por muito tempo, ao que parece: tanto essa quantidade exagerada de candidatos quanto o regime fechado para Luiz Inácio Lula da Silva, que terá seu destino julgado pela turma da bagunça, a 2ª turma do Supremo Tribunal Federal. De qualquer modo, já podemos parodiar Lula e dizer que vivemos uma situação “como nunca antes na história deste país”.
Um ex-presidente preso e 23 presidenciáveis. E a vida segue. Quem diria? Dentro de uma semana, o técnico Tite deve anunciar os 23 jogadores convocados para a Copa do Mundo da Rússia. Pela primeira vez na história do Brasil, os 11 titulares serão menos conhecidos da população que os 11 ministros do Supremo Tribunal Federal. Uma situação absurda e impensável até uns anos atrás. Beira o ridículo, graças à bandidagem que tomou conta da política (e do futebol, diga-se).
Afinal, não é todo mundo que identificaria Alisson, Marquinhos, Casemiro, Firmino ou Douglas Costa andando do outro lado da rua. Mas você certamente já cansou de ver e ouvir falar nos últimos tempos sobre Edson Fachin, Celso de Mello, Gilmar Mendes, Ricardo Lewandowski e Dias Toffoli (a 2ª turma que definirá se Lula deve seguir preso), ou ainda Cármen Lúcia, Alexandre de Moraes, Marco Aurélio, Luiz Fux, Rosa Webere Luís Roberto Barroso.
Não que o Brasil da camisa amarelinha vá se tornar o país da toga preta. Mas que a paixão pelo futebol está perdendo espaço no coração do brasileiro para o ódio à política parece indiscutível. Fala-se menos da Copa, com início marcado para 14 de junho, que da Operação Lava Jato. Nas ruas você vê mais referências a políticos e juízes do que a tradicional decoração verde-amarela ou a eterna reverência aos craques da seleção. Sinal dos tempos.
Enquanto não saem os 23 convocados do Tite, temos os seguintes 23 presidenciáveis, em ordem alfabética: Aldo Rebelo (Solidariedade), Álvaro Dias (Podemos), Cabo Daciolo(Avante) Ciro Gomes (PDT), Fernando Collor (PTC), Fernando Haddad (PT), Flávio Rocha (PRB), Geraldo Alckmin (PSDB), Guilherme Boulos (PSOL), Henrique Meirelles (MDB), Jair Bolsonaro (PSL), Jaques Wagner (PT), João Amoêdo (Novo), João Vicente Goulart (PPL), Joaquim Barbosa (PSB), José Maria Eymael (PSDC), Levy Fidelix(PRTB), Lula (PT), Manuela D’Ávila (PCdoB), Marina Silva (Rede), Michel Temer (MDB), Paulo Rabello de Castro (PSC), Rodrigo Maia (DEM) e Vera Lúcia (PSTU).
Destes 23, tirando os figurantes folclóricos (Eymael, Levy Fidelix, Collor), os candidatos ideológicos (Manuela, Vera Lúcia, Amoêdo) e as figurinhas repetidas, como Temer ou Meirelles (ou ninguém) pelo MDB, ou ainda Haddad ou Jaques Wagner para substituir o inelegível Lula pelo PT, sobra muito pouco de aproveitável nesse extrato eleitoral.
À esquerda, todos brigam pelo espólio de Lula. Porém, é improvável que qualquer nome do PT chegue ao eventual 2º turno, muito menos algum herdeiro mais à esquerda, como Guilherme Boulos (PSOL), único que desponta como “novidade”, apenas por ser oriundo dos movimentos sociais. O presidenciável Ciro Gomes (PDT) sonha com os votos lulistas (muito além do PT), mas quem tem alguma identidade e afinidade para dividir esse eleitorado são Marina Silva (Rede) e Joaquim Barbosa (PSB).
À direita, a preferência disparada é mesmo por Jair Bolsonaro (PSL), embora Flávio Rocha (PRB), com maior quantidade de neurônios funcionando, tente se apresentar como o mais credenciado para ocupar um vácuo que, imaginava-se (e há quem continue desejando), seria preenchido pela candidatura de João Doria, que por enquanto segue como candidato do PSDB ao Governo de São Paulo (mesmo batendo de frente com Marcio França, do PSB, e Paulo Skaf, do MDB)
É no entendimento deste centro político que está a fórmula possível para definir os rumos da eleição. A maioria ainda aposta na decolagem do nome de Alckmin (PSDB), embora a profusão de pré-candidatos do mesmo campo (DEM, MDB, PRB, PSC e Podemos) dificulte mais o que já não seria tarefa simples e se complica dia a dia (principalmente vencer a rejeição do eleitorado fora do eixo sul-sudeste aos tucanos e fazer crescer a intenção de votos a ponto de consolidar uma candidatura vitoriosa).
Claro que, a essa altura e diante de múltiplos cenários possíveis, é tudo tentativa de adivinhação. Mas quanto maior a fragmentação de votos deste chamado “campo democrático”, distanciado das opções mais extremadas e intolerantes, maior também a distância do 2º turno e maiores as chances de Bolsonaro estar lá. Contra quem? Não seria impossível ou improvável uma eleição JB x JB, seria? Jair Bolsonaro x Joaquim Barbosa? Será esse o destino do Brasil? Faltam 69 dias para a final da Copa e 153 dias para as eleições. Boa sorte para todos nós. E que só a contagem seja regressiva.
Mauricio Huertas, jornalista, é secretário de Comunicação do PPS/SP, diretor executivo da FAP (Fundação Astrojildo Pereira), líder RAPS (Rede de Ação Política pela Sustentabilidade), editor do Blog do PPS e apresentador do #ProgramaDiferente
El País: Raiva, medo, orgulho.... As emoções que movem a história
Ensaio analisa o papel dos indivíduos nos acontecimentos e dos sentimentos diante de decisões cruciais
É possível que a influência da economia sobre a história, assim como das demais ciências sociais e humanidades, seja o motivo de os historiadores às vezes se incomodarem com o papel que a personalidade e as emoções desempenham sobre os acontecimentos. Sou da opinião de que é preciso prestar atenção a ambos. Se na década de 1930 outra pessoa estivesse à frente da Alemanha que não fosse Hitler, esse homem ou mulher tivesse arriscado tudo em uma guerra contra a França e o Reino Unido, e depois contra a União Soviética e os Estados Unidos? Se o militarismo japonês não estivesse tão obcecado diante da ameaça de os Estados Unidos se tornarem fortes para que se pudesse derrotá-los, o Japão teria ido à guerra em 1941, quando ainda tinha chance de sair vencedor? O medo, o orgulho e a ira são emoções que proporcionam atitudes e decisões, tanto ou talvez mais do que o cálculo racional.
E isso nos leva a perguntas do tipo “E se...”. E se Hitler tivesse morrido em uma trincheira durante a Primeira Guerra Mundial? E se Winston Churchill tivesse sido mortalmente ferido quando um veículo o atropelou na Quinta Avenida nova-iorquina em 1931? Ou se Stálin tivesse morrido durante a operação de apendicite que sofreu em 1921? Podemos realmente analisar a história do século XX sem colocar esse tipo de personagens em algum lugar do relato? Chama a atenção que alguns historiadores, como Ian Kershaw ou Stephen Kotkin, que começaram pesquisando e escrevendo sobre os nazistas e sobre a sociedade soviética, tenham passado a escrever biografias dos dois homens que serviram de eixo para essas sociedades. Os especialistas em ciência política nunca se mostraram muito dispostos a considerar o papel desempenhado pelo indivíduo, mas já começam a aparecer artigos em suas revistas profissionais com títulos como “Elogiemos agora homens famosos: que volte à cena outra vez o estadista”.
Quando tentamos avaliar o impacto dos indivíduos ou dos fatos isolados na história estamos, apesar de não nos darmos conta, pensando em um desenlace alternativo ao que ocorreu. Vamos imaginar outro desfecho possível posterior àquela manhã de verão de junho de 1914 em Sarajevo. O herdeiro do trono austríaco, o arquiduque Francisco Ferdinando, cometeu a besteira de visitar a cidade bósnia. Muitos nacionalistas sérvios, entre eles os que viviam na Bósnia, continuavam ainda indignados porque o império austro-húngaro tinha anexado a Bósnia, arrancando-a do império otomano, apenas seis anos antes. Sua província, acreditavam, pertencia à Sérvia. E em 28 de junho era um dia particularmente complicado para essa visita do arquiduque, uma vez que era a festa nacional sérvia, o dia em que o país comemorava a grande derrota sofrida na batalha de Kosovo. Também não ajudava o fato de que a segurança austríaca estivesse bem descuidada, apesar dos alertas sobre possíveis conspirações de grupos terroristas obscuros. Naquela manhã, vários homens jovens e decididos tinham se postado em toda a cidade, armados com pistolas e bombas, esperando o arquiduque. Um deles até tinha conseguido jogar um explosivo contra o cortejo em sua chegada, mas sem acertar ninguém. A polícia, por sua vez, tinha efetuado batidas atrás de possíveis assassinos, e os demais não tiveram coragem de agir. Só um — Gavrilo Princip — continuava cheio de energia, decidido a fazer algo. Princip primeiro deu voltas pela rua principal, junto ao rio, esperando chegar a oportunidade de cumprir sua missão, e acabou sentando-se para descansar junto a um famoso café da cidade. Suas oportunidades pareciam escassas, até que de repente apareceu o carro aberto do arquiduque: o motorista tinha errado o caminho e foi dar na ruazinha onde Princip tinha se postado. Ele se levantou e disparou à queima-roupa contra o casal imperialenquanto o motorista tentava dar marcha a ré. A morte do arquiduque se transformou na desculpa de que o Governo austríaco precisava para agir contra a Sérvia, submetendo-a ou destruindo-a. E isso, de sua parte, precipitou a decisão alemã de respaldar o império austro-húngaro, enquanto a Rússia fazia o mesmo com a Sérvia. Se aquele assassinato não tivesse sido cometido, teria sido muito pouco provável que a Europa fosse à guerra em 1914. Uma guerra mundial talvez nunca tivesse sido desencadeada. Nunca saberemos, mas podemos imaginar.
Quando tentamos avaliar o impacto dos indivíduos ou dos fatos isolados na história estamos pensando em um desenlace alternativo ao que ocorreu
As coisas que não aconteceram, os contrafactuais, são ferramentas muito úteis para a história porque nos ajudam a entender que uma única decisão ou ação produz consequências. Júlio César enfrentou seu próprio Governo quando decidiu cruzar o rio Rubicão com suas tropas e se dirigir a Roma no ano 49 a.C.. Esse rio delimitava a fronteira entre a província que ele governava e os territórios italianos regidos diretamente por Roma. Esse ato de Júlio César era considerado uma traição e era punível com a morte ou com o exílio. Mas ele triunfou, e isso representou a morte da República de Roma e o nascimento da Roma imperial. Em 1519, Hernán Cortés correu um risco quase inimaginável ao adentrar pelo México. Tinha 600 soldados, 15 cavaleiros e 15 canhões, e com isso iria enfrentar os reinos poderosos e bem armados do país. E se aqueles homens tivessem se unido contra o diminuto bando de invasores, em vez de se deixarem dividir e acabarem conquistados? Poderia ter sido muito possível que o México sobrevivesse como um Estado independente, assim como fez o Japão no período da Restauração Meiji, quando conseguiu se transformar para fazer frente aos estrangeiros. A história da América do Norte teria sido muito diferente caso tivesse existido uma potência indígena forte e independente.
As coisas que não aconteceram, os contrafactuais, são ferramentas muito úteis para entendermos que uma decisão produz consequências
Os contrafactuais servem para que tenhamos em mente que na história as contingências e os acidentes pesam. Mas, dito isso, também é preciso manejá-los com precaução. Se mudamos coisas demais do passado, as versões alternativas da história se tornam cada vez mais implausíveis. Tampouco podemos esperar que ocorresse o impensável, ou sequer o improvável. Com a história não podemos fazer aquilo ao que recorriam os antigos dramaturgos gregos para resolver as situações impossíveis: introduzir o deus ex machina. Nem podemos contar com que os personagens do passado pensem ou reajam de uma forma que não corresponde com seu caráter nem sua época. Por exemplo, querer que a rainha Elizabeth I da Inglaterra tivesse se comportado como uma feminista do século XXI. E quando tentamos entender por quê os personagens históricos fizeram o que fizeram, temos o dever de avaliar sempre que opções plausíveis, e próprias deles, tinham diante de si.
Sérgio Augusto: O século vermelho
'Uma História Cultural da Rússia' é um monumental estudo do inglês Orlando Figes
Alexander Herzen, filósofo e escritor russo do século 19, não só acreditava no advento do socialismo como tinha certeza de que a Rússia o implantaria na Europa. Os alemães Marx e Engels duvidavam da segunda hipótese. Na avaliação da dupla, a Rússia agrária e atrasada não reunia as condições necessárias a uma revolução. De todo modo, Engels, precavido, começou a estudar russo para enfrentar em pé de igualdade a influência crescente do líder anarquista Mikhail Bakunin, que já nascera falando o idioma de Herzen. Depois que a coroação do czar Alexandre II, em 1855, incendiou o campo e incomodou a nobreza, Marx e Engels recuaram de sua descrença.
Marx ficou surpreso ao descobrir que o primeiro volume de O Capital fora traduzido para o russo e editado em São Petersburgo só um ano depois de seu lançamento por uma editora de Hamburgo. Mais surpreso ficaria se pudesse ter sabido que um jovem russo chamado Vladimir Ilyich Ulyanov elegera O Capital o seu vade-mécum revolucionário, após devorá-lo encarapitado no fogão da casa paterna.
A Rússia ganharia o devido destaque no segundo volume de O Capital. Pois Herzen estava correto: a tirania czarista um dia cairia de podre, abrindo caminho para a implantação dos ideais socialistas, mas não em toda a Europa. Fazia bastante tempo que os russos consideravam a pobreza uma virtude cristã, o excesso de riqueza imoral e o trabalho, a única fonte verdadeira de valor.
Se era débil o potencial “revolucionário” da população rural e pouco confiável a insatisfação da aristocracia, forte era a tradição de rebeldia da intelligentsia urbana e de perseguição aos seus mais inquietos criadores. O censurado Pushkin participou do levante dezembrista de 1825, que peitou a sucessão de Nicolau I. Gogol satirizou a opressão imposta aos servos pelo feudalismo czarista. Tolstoi combateu o absolutismo. Dostoievski chegou a flertar com o anarcoterrorismo.
Mesmo escritores apolíticos não conseguiam ocultar seu desgosto com a monarquia czarista. Exemplo clássico: Ivan Goncharov, criador de Oblomov, o suprassumo da inércia, da indolência e do vazio da aristocracia, personagem-título de um romance que se revelou premonitório, pois o oblomovismo contaminou não só a burocracia imperial como os apparatchiks bolcheviques.
Ocupando o vazio deixado pelo parlamento e a imprensa livre, as artes na Rússia czarista serviram de arena para o debate político, filosófico e religioso. Em lugar nenhum o artista foi mais sobrecarregado com a tarefa de liderança moral de seu povo, nem mais perseguido pelo Estado – e não apenas durante o ancien régime. Alienados das massas rurais pela distância e o analfabetismo (em 1920, três em cada cinco camponeses não sabiam ler), os artistas russos tomaram a si criar uma comunidade de valores e ideias por meio da literatura, do teatro, do cinema, das artes plásticas e da música, beneficiando-se do “espírito patriótico” e do “orgulho nacionalista” dos servos explorados pelos Romanov.
“Vista como guerra contra os privilégios, a ideologia prática da Revolução Russa devia menos a Marx – cujas obras mal era conhecidas pelas massas semianalfabetas – e mais pelos costumes igualitários e anseios utópicos do campesinato”, argumenta o historiador inglês Orlando Figes em seu monumental estudo sobre a cultura russa, recém-traduzido pela Record.
Com 880 páginas, Uma História Cultural da Rússia não é um “livro de hepatite”, mas de tendinite no punho. Figes remonta ao início do século 18, mas o que talvez mais interesse aos leitores, às vésperas do centenário da revolução soviética, seja o que se desenrola a partir da página 523, com a chegada da poeta Anna Akhmatova (1889-1966) ao palácio dos Sheremetev, transformado em santuário contra a destruição da guerra e da revolução, em 1918.
Akhmatova, cujos poemas Trotski desdenhou como “irrelevantes”, no Pravda, sentia mais temores do que esperanças na Revolução. Sustentou-se cuidando da tapeçaria oriental do Museu Hermitage e do acervo de uma biblioteca de Petrogrado, passou necessidades, como, aliás, todos ou quase todos os artistas e intelectuais da época, mas nem quando seu ex-marido, Nicolai Gumilev, foi fuzilado sem julgamento, acusado de conspirar pela volta da monarquia, parou de defender a permanência de seus pares no país. Ela sobreviveu ao sectarismo literário dos comunistas, ao stalinismo, e é, com justiça, uma das figuras de maior destaque no livro.
Todos os heróis e vilões do Outubro Vermelho lá estão: Vladimir Maiakovski (o “poeta da Revolução”), Eisenstein, Zamiatin, Meyerhold, Babel, Mandelstam, Blok, Shostakovich, Prokofiev, o comissário da cultura Andrei Jdanov, o supercensor de Stalin, além do próprio ditador, que, por incrível que pareça, era ultraletrado e cinéfilo. Sob a sua batuta (ou férula, se assim preferir), a deplorável doutrina do Realismo Socialista foi formulada, em outubro de 1932, numa reunião na casa de Gorki, que mantinha relações amistosas com o Kremlin.
Talvez a mais fulgurante e trágica vítima do revertério stalinista, Maiakovski, que fazia de tudo: poemas, panfletos, slogans, programas radiofônicas, jingles, textos para teatro e roteiros para cinema, suicidou-se ou foi suicidado em 1930. Não sem antes escrever uma sátira futurista (O Percevejo), gozando o modo de vida e a burocracia soviéticos dali a 50 anos. “Somos levados a concluir que a vida social sob o socialismo será muito maçante em 1979”, comentou um crítico da época, consagrando Maiakovski, involuntariamente, como um acurado profeta da era Brejnev.