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O Globo: 'Tudo o que me importa é isso: Derrotar Donald Trump', diz Hillary Clinton
Quatro anos após perder a disputa pela Presidência dos EUA, a ex-primeira-dama deixa a ‘aposentadoria’ de lado para divulgar documentário e se mostra disposta a trabalhar para impedir a reeleição do republicano
Carlos Helí de Almeida, de O Globo
BERLIM - Por mais de três décadas, Hillary Clinton esteve no centro da política americana. Foi primeira-dama, senadora, secretária de Estado e a mulher que chegou mais perto de se tornar presidente dos Estados Unidos, quando concorreu como candidata do Partido Democrata à Presidência em 2016, disputa que perdeu para Donald Trump. “Há todo um jogo cultural, político e econômico para manter as mulheres longe do poder”, disse ela à epoca.
Aos 72 anos, ela reconhece que subestimou o machismo de parte do eleitorado. Ela tem dedicado seu tempo à família e à divulgação de “Hillary”, série documental dirigida por Nanette Burstein, que em breve chegará ao Brasil. Mas está atenta às primárias democratas de onde sairá o candidato que disputará a eleição com o republicano. Ela não nega as críticas feitas no passado ao senador Bernie Sanders, um dos favoritos na disputa, mas diz que apoiará seja quem for o candidato do partido. “Será difícil, não importa quem for o escolhido. Mas acredito que possamos vencer. Farei todo o possível para isso”, disse ao GLOBO durante o 70º Festival de Cinema de Berlim, onde a série fez sua estreia europeia.
O GLOBO - “Hillary” mostra os duros comentários que a senhora fez sobre Sanders, com que disputou a candidatura em 2016 [“Ninguém gosta dele, ninguém quer trabalhar com ele. Ele não fez nada, é um político de carreira”]. Arrepende-se disso?
HILLARY CLINTON - Fiz esses comentários há cerca de um ano e meio. Não estava pensando em eleição. Apoiarei quem quer que seja o candidato democrata. Mas, obviamente, tenho as minhas opiniões e visões sobre aqueles que estão concorrendo e sobre quem é o mais forte para derrotar Trump. No final do processo, tudo o que me importa é isso: derrotar Trump. Quem for o mais forte será a minha esperança.
A série mostra a senhora, na campanha de 2016, se referindo a Trump como “Manchurian candidate” (referência ao livro homônimo de Richard Condon, que virou jargão político para fantoche). Ainda acredita nisso?
Não iria tão longe hoje. Mas poderia até dizer que ele admira [o presidente russo Vladimir] Putin e que está disposto a cumprir as ordens dele. O que vemos, infelizmente, é um homem enamorado por lideranças autoritárias. Ele adoraria poder mandar opositores para a cadeia, demitir à vontade e exigir que façam o que diz. Porém, mais importante é o que ele tem feito: prejudicou a relação com a Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) e com a União Europeia, pense no Acordo de Paris sobre as mudanças climáticas, no tratado nuclear com o Irã, no papel dos EUA no mundo... É muito a cartilha de Putin. Não posso afirmar que sabemos tudo sobre a relação entre os dois. Não sabemos porque nada é reportado. Vivemos um momento infeliz e perigoso da História, em que líderes autoritários têm sido encorajados pelo presidente americano, ao invés de serem contidos.
Temos que esperar para ver como o processo vai se desenrolar e quem, no final das contas, será o nosso indicado. Acho imperativo que o candidato democrata ganhe a eleição desta vez. Não há nada mais importante do que isso.
Que conselho daria para o candidato que enfrentará Trump em novembro?
Tive mais votos do que Trump. Três milhões a mais do que ele. Houve aspectos sem precedentes na eleição de 2016, que agora vemos se repetir, como a interferência russa. Tenho dito a cada candidato que temos que derrotar Trump, mas também que superar as interferências estrangeiras, a propaganda nas mídias sociais, o roubo de informações para ser usado como munição de campanha e a violação do direito de voto. Esta última é a estratégia preferida do Partido Republicano: querem impossibilitar o voto daqueles que possam não votar neles. Será difícil, não importa qual seja o escolhido. Mas creio que possamos e devamos vencer. Farei tudo o que for possível para que isso aconteça.
O mundo seria um lugar melhor se governado por mulheres?
Nos dê uma chance! [Risos.] Ouça, não digo que nós, mulheres, somos seres superiores. Não mesmo. Mas posso dizer que as experiências das mulheres e algumas de nossas lutas deveriam ser muito mais representadas em todos os aspectos da sociedade. Gostaria de ver o que aconteceria com as mulheres na liderança.
Estou na vida pública há muito tempo. Tenho visto tantos equívocos e distorções sobre mim, histórias ridículas a meu respeito, que, em algum momento, quis acertar as coisas. Está tudo ali, quem sou, no que acredito, o que eu defendo. Talvez seja a oportunidade de contar minha história de uma vez por todas.
Agora que o capítulo político da sua vida está encerrado, tem mais tempo para a vida pessoal?
Pessoalmente, estou me sentindo ótima. Tenho tempo para o meu marido, para a minha filha e, principalmente, para os meus três netos. É um prazer. Mas, como americana e cidadã do mundo, estou perturbada. É uma existência esquizofrênica. Porque, em família, vivemos um momento maravilhoso, de longas caminhadas, idas ao cinema. Mas acordo todo dia e vejo o que está acontecendo a nossa volta, que estamos cometendo erros sérios, e que isso trará consequências para os meus netos.
A democracia vive uma crise. As pessoas estão insatisfeitas, apáticas e não querem nem sequer votar. Mas não creio que sairemos dela com líderes que representam os extremos. É uma crise de descrença na democracia, uma rejeição de instituições e de lideranças. A política, como tudo no mundo hoje, é impulsionada pela tecnologia, mas o que os algoritmos priorizam? A nossa luta é para que as pessoas que querem voltar a tomar decisões consigam a atenção que precisam. Não sei a resposta. Mas, se não descobrirmos, os autoritários e os extremistas vão tomar as decisões.
O que o feminismo significa para a senhora?
Feminismo significa que as mulheres têm os mesmos direitos que os homens, que somos iguais na economia, na política e na sociedade. Não somos nem melhores nem piores e devemos nos esforçar por essa igualdade, na lei e na prática.
Consegue pesar o papel do preconceito de gênero na sua derrota em 2016?
O preconceito de gênero teve o seu papel, não há dúvidas. Pensei que pudesse ignorá-lo e superá-lo, mas não foi possível. Há uma parte do eleitorado — e isso se aplica aos EUA e a outros países — que não se sente confortável com uma mulher presidente ou primeira-ministra. No sistema presidencialista, essa parcela é maior porque o chefe de Estado e de governo é uma única pessoa. Acho que há muito viés inconsciente. Na campanha de 2016, as pessoas diziam coisas como “voto em mulher, mas não nela”, se referindo a mim. Temos que estar a par disso, mas não permitir que sejamos mutiladas por esse viés, e fazer o possível para superá-lo.