Hernan Chaimovich
No Chile, uso da bandeira Mapuche pouco tem a ver com batalha contra capitalismo
Em artigo publicado na Política Democrática Online de novembro, Hernan Chaimovich explica cita ‘peso simbólico’ de bandeira de povo indígena em manifestações
Cleomar Almeida, assessor de comunicação da FAP
“O consistente uso da bandeira Mapuche como símbolo nas manifestações pouco tem a ver com a batalha contra o capitalismo agressivo que, sustentado pela Constituição de 1980, afeta a grande maioria da população chilena”. A análise é do professor do do Instituto de Química da USP (Universidade de São Paulo) Hernan Chaimovich, brasileiro, nascido no Chile, em artigo que publicou na revista Política Democrática Online de novembro, produzida e editada pela FAP (Fundação Astrojildo Pereira), sediada em Brasília.
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Todos os conteúdos da publicação podem ser acessados, gratuitamente, no site da FAP. No artigo, Chaimovich explica que a bandeira do povo indígena Mapuche foi um símbolo que fortaleceu ainda mais o registro da convulsão social que tomou o Chile desde o ano passado e já resulta na aprovação de processo constituinte neste mês.
De acordo com o professor da USP, a bandeira do povo Mapuche, chamada de Wenüfoye (canelo del cielo), é um dos símbolos mais usados pelos manifestantes no Chile. Ele lembra que os protestos de parte significativa da sociedade chilena tiveram início em outubro de 2019.
“Do peso simbólico, consta o reconhecimento da existência do povo Mapuche, que, apesar de perseguido, conseguiu resistir ao aparato estatal que, desde a conquista espanhola no século XVI, tentou persistentemente eliminá-lo, ou assimilá-lo. Wenüfoye é, pois, um símbolo de rebeldia, um grito que não aceita a institucionalidade existente, um estandarte de luta”, analisa.
No artigo publicado na Política Democrática Online de novembro, Chaimovich também lembra que, nos primeiros anos depois da independência em 1810, os republicanos chilenos se voltaram para o passado heroico dos Mapuches, chamados de “índios chilenos”. O objetivo, segundo o autor, era demonstrar simbolicamente que eles seriam a semente de um povo valente amante da liberdade, justamente o povo chileno.
“Esta visão durou pouco na República independente, pois o poder, formado por criollos (a denominação dos estratos dominantes na época), compreendia somente a burguesia mercantil, mineradora ou terratenente”, afirma, para acrescentar: “Este conjunto dominante visava construir e expandir um estado-nação cujas fronteiras deviam se estender até o sul do Chile, território ao sul do rio Biobío, terra dos Mapuches”.
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RPD || Hernan Chaimovich: A Bandeira Mapuche e as manifestações no Chile
Bandeira do povo indígena Mapuche foi um símbolo que fortaleceu ainda mais o registro da convulsão social que tomou o Chile desde o ano passado e já resulta na aprovação de processo constituinte em novembro de 2020
Uma parte da população que ainda se interessa, no Brasil da pandemia e do Bolsonaro, pelo que sucede em volta de nosso país, está sendo pouco esclarecida pelo fenômeno social ímpar em curso no Chile. Não é que a situação do Chile seja fácil de entender, embora os meios de comunicação teimem em simplificar, daí se equivocarem. Como exemplo, menciono o fato de que o consistente uso da bandeira Mapuche como símbolo nas manifestações pouco tem a ver com a batalha contra o capitalismo agressivo que, sustentado pela Constituição de 1980, afeta a grande maioria da população chilena.
Em uma das manifestações mais populosas que, de certa forma, mostraram o peso do comoção social chilena no ano passado, mais de um milhão de cidadãos clamando por mudanças profundas no sistema institucional, em uma praça central de Santiago. A foto abaixo mostra que, além das bandeiras chilenas, outra flâmula se destaca.[1]
Trata-se da bandeira do povo Mapuche, chamada de Wenüfoye (canelo del cielo), um dos símbolos mais usados pelos manifestantes no Chile. Com início em outubro de 2019, os protestos de parte significativa da sociedade chilena já resultam na aprovação, por ampla maioria, de processo constituinte em novembro de 2020.
Antes de analisar como e por que este símbolo passa a ser protagonista em um movimento social muito mais amplo, é necessário descrever sinteticamente sua origem e significado. No peso simbólico desta flâmula, consta o reconhecimento da existência do povo Mapuche, que, apesar de perseguido, conseguiu resistir ao aparato estatal que, desde a conquista espanhola no século XVI, tentou persistentemente eliminá-lo, ou assimilá-lo. Wenüfoye é, pois, um símbolo de rebeldia, um grito que não aceita a institucionalidade existente, um estandarte de luta.
O guerreiro-poeta espanhol do século XVI Alonzo de Ercilla y Zúñiga (1533 – 1594), depois de viajar ao Chile, onde participou na guerra contra os indígenas araucanos (denominados hoje Mapuches), escreveu um poema épico, chamado La Araucana.[2] Nele, o autor rompe com uma tradição dos conquistadores ao enaltecer a coragem e a capacidade militar dos adversários. Ercilla confere aos Mapuches a dignidade e a humanidade que os conquistadores, e a religião que os acompanhava, lhes negavam. [3] Segundo Ercilla, o conceito de liberdade, e não a pátria, seria para os Mapuches um bem supremo, e a afronta a sua liberdade e sentido de justiça os levaria à guerra contra os espanhóis. Os conquistadores espanhóis nunca conseguiram dominar o território Mapuche, e, em um fato inédito, assinam o tratado de paz “El Pacto de Quilin” em 1641. Nesse tratado, os espanhóis reconhecem a independência Mapuche e o rio Biobío como fronteira natural entre ambos os povos. Apesar deste tratado, e durante toda a colônia, os embates entre espanhóis e Mapuches são frequentes, e nunca os indígenas abandonam sua luta.
Nos primeiros anos depois da independência em 1810, os republicanos chilenos se voltam para o passado heroico dos Mapuches, chamados de “índios chilenos”, para demonstrar simbolicamente que eles seriam a semente de um povo valente amante da liberdade, justamente o povo chileno.
Esta visão durou pouco na República independente, pois o poder, formado por criollos (a denominação dos estratos dominantes na época) compreendia somente a burguesia mercantil, mineradora ou terratenente. Este conjunto dominante visava construir e expandir um estado-nação cujas fronteiras deviam se estender até o sul do Chile, território ao sul do rio Biobío, terra dos Mapuches. Muito cedo esta imagem do “índio valiente” desaparece do imaginário nacional para considerar o Mapuche um povo bárbaro, miserável, que se podia pilhar. Esta visão, de uma ou de outra forma, persiste até hoje, especialmente porque a resistência contra as consequências das políticas do liberalismo selvagem na região deu origem ao movimento Mapuche revolucionário, nas décadas pós-Pinochet.
Wenüfoye, símbolo complexo que representa os Mapuches como povo, nasce em outubro de 1992. A própria denominação Mapuche já pressupõe algo a respeito da relação com o território, pois “mapu” se traduz como gente, e “che”, como terra. Grupos representantes da diversidade de territórios ocupados pelos Mapuches no sul do continente americano (lafkenche, nagche, wenteche, nagche do Chile e inclusive puel mapu da Argentina) se reuniram e incorporaram nesta bandeira as propostas provenientes das distintas etnias Mapuches.
A bandeira é altamente simbólica, e o artista Jorge Weke, indígena que participou na reunião de criação de Wenüfoye, em entrevista dada em 2003, assim os descreve:
«El color negro y blanco representan el equilibrio o la dualidad entre el día y la noche, la lluvia y el sol, lo tangible y lo intangible, etc. El azul representa la pureza del universo; el verde nuestra mapu, el Wallmapuche o territorio de asentamiento de nuestra nación. Y el rojo la fuerza, el poder, la sangre derramada por nuestros ancestros. Al medio el kultrung y todos sus significados ya conocidos y en el extremo inferior y superior la representación de los kon«.
Em outras fontes, se percebe que “Cultrún (kultrung ou kultrug), o tambor Mapuche; em sua superfície plana, que representa a superfície da Terra, o desenho circular da cosmovisão Mapuche é traçado: os quatro pontos cardeais e entre eles o sol, a lua e as estrelas; símbolo do conhecimento do mundo. Guemil (ngümin), cruz escalonada ou estrela - semelhante à "cruz andina" ou chacana - ou losango com borda em ziguezague: representa a arte da manufatura, da ciência e do conhecimento; escrevendo prompt de comando.[4] "
O que a sociedade chilena vê hoje na Wenüfoye? Talvez mais democracia e resistência. Mas, também, um símbolo de libertação, de autorreconhecimento, de acreditar na unidade na diversidade, de respeitar e valorizar as contribuições que cada segmento pode aportar na construção de uma sociedade mais justa. É palpável que um novo contrato social é efetivamente necessário. Da mesma forma, é notável que a sociedade dita "de baixo" é mais multicultural do que a classe dominante, ou "de cima". É por isso que Wenüfoye se tornou o principal emblema do gérmen de uma nova sociedade que nasceu, e da luta pela democratização da cena política do país.
*Hernan Chaimovich é brasileiro, nascido no Chile, Professor Emérito do Instituto de Química da Universidade de São Paulo.
[1] Foto de Suzana Hidalgo tomada na manifestação da Praça Baquedano, Santiago, Chile (Plaza Dignidad) em 27/10/2019.
[2] Disponível na Biblioteca Digital Hispánica [http://bdh.bne.es].
[3] Leandro José Nunes (2010) Uma análise da Obra “La Araucana e a sua Crítica ao Colonialismo”, Tese de Doutorado da Universidade Federal de Uberlândia.
[4] Esta Nota se inspira em artigo do Fernando Paraican https://www.ciperchile.cl/2019/11/04/la-bandera-mapuche-y-la-batalla-por-los-simbolos.
Hernan Chaimovich: As carreatas da morte
O Brasil é, aparentemente, o único país do mundo onde carreatas que podem ser consideradas verdadeiras manifestações a favor da pandemia COVID-19 se realizam com certa frequência em várias cidades, sem que o Estado tome qualquer providência.
Poder-se-ia pensar que a única ação possível para os que induzem, organizam e participam dessas atividades, que, além de irem contra qualquer racionalidade, são um chamado à morte, seria a recomendação de tratamento ou de internação psiquiátrica. Além de serem medidas de difícil implementação, existem ações bem mais concretas, legítimas e legais, que, por serem de implementação bem mais realista, devem ser praticadas com urgência, sob o risco de a loucura imperar em nosso país.
Para começar, transcrevo aqui um tweet de um médico que eu, por não estar autorizado, não posso identificar, mas com o qual me identifico “Eu trabalho em dois dos hospitais pelos quais passou a carreata da morte em São Paulo hoje. Saí de um deles as 7h a caminho de outro plantão. Na frente da gente, nas UTI´s gente lutando para não morrer de COVID. Do lado de fora “gente” querendo ver mais gente morrer. É desesperador”. Simultaneamente, compartilho uma notícia recente: “Presidente foi em comitiva ao Setor Militar Urbano, e participa de ato contra a quarentena e pró-intervenção militar em frente ao Quartel Geral do Exército, em Brasília” (@reporterenato).
Perante esta situação, nada mais eficiente do que sugerir algumas ações que dizem respeito às pessoas e às Instituições.
Começo pelo indutor mor, Jair Messias Bolsonaro. Um dos pedidos de afastamento do Presidente da República foi encaminhado à Procuradoria Geral da República pelo Ministro Marco Aurélio Mello, do Supremo Tribunal Federal, onde cita diversas condutas de Bolsonaro que colocam em risco o país em relação à epidemia de COVID-19. Esse pedido, se a PGR aceitar, segue para o STF, que, se aceitar, pede autorização à Câmara para dar andamento. Como se pode perceber, esse procedimento é lento, e, no meio da pandemia, se requer ação rápida e processo pode não afetar tão cedo as carreatas da morte.
Outras ações que podem ser tomadas contra organizadores e participantes das carreatas estão em Leis e Decretos. O que chamo de “caravanas pró-pandemia” acontecem em cidades onde decretos estaduais e municipais impõem distanciamento social e uso de máscaras protetoras em público. Assim, burlar os Decretos estaduais de quarentena e de isolamento social deveria resultar em ação policial direta, pois o direito de ir e vir não colide com determinações legais que, por causa de uma emergência sanitária, limitam esses direitos.
Estas carreatas, com seus carros de som, fazem questão de se deter frente a hospitais e clínicas, afrontando as leis de Contravenções Penais além de diversas outras leis e decretos estaduais e municipais. A produção de sons acima de 50 dB no entorno de hospitais é passível de pena de reclusão. É evidente, pois, que existem condições onde o Estado está legalmente obrigado a coibir com força policial carreatas como a caravana a favor da pandemia.
Ora, se o Estado permanece inerte e as carreatas continuam, é dever dos indivíduos e das associações clamar contra o Estado na justiça. Desde os níveis mais básicos até o foro maior, o Supremo Tribunal Federal, se instâncias anteriores não forem efetivas, é imperioso recorrer contra um Estado que permite caravanas da morte. Por último, se nenhuma das instâncias nacionais aceitar que estas manifestações soturnas deveriam ser banidas, restam os foros internacionais que protegem os direitos humanos. Afinal de contas, dentro do rol dos diretos humanos, a vida é o direito mais fundamental.
Hernan Chaimovich, Professor Emérito do Instituto de Química da USP