Hélio Schwartsman

Hélio Schwartsman: Viés de ranqueamento

O IDH não é uma corrida

A mídia foi mais ou menos unânime em anunciar os resultados do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) de 2018 destacando o fato de que o Brasil perdeu uma posição. Passou do 78º para o 79º lugar entre os 189 países e territórios avaliados pela ONU.

Isso é um fato e eu não sou do governo para brigar com fatos. Receio, contudo, que tenhamos aqui sido vítimas do viés de ranqueamento, que é a propensão humana a colocar em formato de ranking tudo aquilo que tem expressão quantitativa.

Não estou dizendo que rankings nunca façam sentido. Eles são uma exigência lógica em muitas situações. O problema com o IDH é que ele não é uma corrida. Se algum país que estava abaixo do Brasil melhorou mais que nós, só nos resta parabenizá-lo —e sinceramente, já que sua conquista em nada nos prejudica.

O procedimento mais correto com o IDH seria apresentar a evolução do indicador de cada país ao longo do tempo. Nessa métrica, o índice do Brasil de 2018 foi de 0,761, um crescimento de 0,001 em relação a 2017. Houve, portanto, melhora. O que preocupa é que nossos avanços têm sido homeopáticos, quando precisaríamos que fossem muito maiores.

A introdução do IDH, nos anos 90, foi importante para reduzir o peso excessivo que se dava à economia —o principal indicador que se usava então era o PIB per capita— e incluir outras dimensões. O IDH leva em conta, além do PIB, expectativa de vida e educação.

Ao legitimar o uso de outras dimensões, porém, o IDH abriu uma caixa de Pandora. Por que se limitar a economia, saúde e educação? O próprio IDH tem uma variante que considera a desigualdade. Críticos lamentam que ele ignore outros itens relevantes, como ambiente e felicidade.

Se ampliarmos demais a lista das coisas que valeria a pena medir num índice, logo chegaríamos ao paradoxo borgiano do mapa tão perfeito que tinha o tamanho exato do império e coincidia com ele ponto por ponto.


Hélio Schwartsman: A estridência vende

Mercado editorial brasileiro está dividido num fla-flu ideológico

Texto publicado na Ilustrada mostrou que a polarização tomou conta do mercado editorial brasileiro, que agora se divide num flá-flu ideológico em que autores de direita atacam os de esquerda, que veem manifestações de fascismo por todos os lados. Obras mais ponderadas não alcançam o mesmo sucesso de vendas.

A reportagem se baseia num estudo de Eduardo Heinen, Marcio Ribeiro e Pablo Ortellado que identificou os livros de não ficção mais vendidos na Amazon brasileira nas categorias de ciências sociais e política e analisou os títulos, encontrando o que na prática parecem ser dois mercados distintos, um de esquerda, outro de direita, cujos consumidores não se misturam. Os próprios autores se mostram mais interessados em vituperar uns contra os outros do que em encetar qualquer tipo de diálogo.

Constatar que a estridência vende não chega a ser uma surpresa, mas será que ela também é sinônimo de mais acertos? A questão é difícil até de delimitar, já que as ciências sociais, ao contrário das exatas, não comportam respostas unívocas, estando mais abertas à interpretação.

É o tipo de situação em que devemos procurar socorro em conjuntos mais robustos de dados. Foi o que fez o psicólogo Philip Tetlock. Ao longo de 20 anos, ele coletou 28 mil prognósticos feitos por 284 experts em economia e política e os comparou com os desfechos do mundo real. Na média, os cientistas se saíram um tiquinho melhor do que o acaso.

O ponto de interesse desse estudo publicado em 2005, contudo, é que nem todos os especialistas tiveram o mesmo desempenho. Os mais tonitruantes erraram mais, enquanto os mais comedidos, que em vez de certezas expressavam dúvidas e probabilidades, se saíram melhor.

Hoje, Tetlock se dedica a esmiuçar o que as pessoas que mais acertam têm em comum, não só nos métodos mas também nos hábitos e até nos traços de personalidade. A virulência nunca aparece.


dólar

Hélio Schwartsman: Vamos acabar com os bilionários?

Entre os argumentos em discussão está o de que ninguém precisa de mais de US$ 1 bilhão

A discussão começou em blogs de esquerda dos EUA, mas logo ganhou as páginas do jornal The New York Times, mais especificamente uma coluna de Farhad Manjoo. O argumento para acabar com os bilionários é simples. Ninguém precisa de mais de US$ 1 bilhão para viver (se o sujeito torrar US$ 10 mil por dia, levaria 274 anos para gastar tudo) e o acúmulo de tanta riqueza concentra poder político, cala o dissenso, enfim, acaba corrompendo.

Não discordo dos pressupostos, e ainda poderia acrescentar mais alguns bons motivos para não querermos tamanho ajuntamento de dinheiro. Mas, para responder à pergunta do título, precisamos definir como daríamos fim aos bilionários.

A ideia de enforcar o último burguês nas tripas do último papa está hoje restrita a diminutos grupos radicais. Usar a progressividade da tributação parece um caminho menos violento. E é de fato possível seguir nessa linha, mas só até certo ponto. Bilionários não têm dificuldade para transferir seu patrimônio para países tributariamente mais amigáveis, se julgarem que as alíquotas em sua terra natal se tornaram excessivas.

Outra rota é a da aprovação social. Pessoas querem acumular fortunas porque a sociedade valoriza isso e está estruturada de forma a permitir que alguns felizardos ganhem muito, muito dinheiro. Poderíamos mudar nossa atitude, deixando de glamorizar a vida dos super-ricos e revendo certas práticas econômicas. Mas será que queremos isso?

A tecnologia nos lançou num mundo cada vez mais interconectado cujas marcas são a concentração e a desigualdade —o Extremistão do escritor Nassim Taleb. Meia dúzia de escritores vendem milhões de cópias, enquanto milhões de escribas ficam com migalhas. E isso não vale só para a literatura, mas para tudo. Estamos mesmo dispostos a viver num lugar sem Google, mercado financeiro, Harry Potter, supermodelos ou astros de futebol?

O bilionário, receio, é o efeito colateral do planeta que construímos.


Hélio Schwartsman: Sirenes que não soam

Andar de bicicleta sem capacete só mudou após aprendermos mais sobre traumas

Nossa espécie é péssima em avaliar riscos. Um ser humano típico tem medo de cobras e tubarões, mas não hesita muito em fumar ou acelerar seu carro. Nos EUA, onde as estatísticas são mais confiáveis, cobras e tubarões matam, respectivamente, cinco e 0,5 pessoas por ano, enquanto o cigarro e os acidentes de trânsito geram 480 mil e 35 mil óbitos anuais.

Nossa sirene interna dispara diante de ameaças que perderam relevância no ambiente urbano, mas é cega para perigos produzidos pela modernidade, como morar a jusante de barragens ou construir cidades em zonas de terremoto.

Imagino que a fiscalização precária e sede de lucros contribuíram para a tragédia em Brumadinho, mas o ingrediente que mais me chama a atenção é que os dirigentes da Vale acreditavam que a barragem era segura, tanto que instalaram o refeitório da empresa bem abaixo dela. De algum modo, a noção de que todo projeto de engenharia carrega risco e a informação de que operavam com uma tecnologia ultrapassada, cuja avaliação de segurança está repleta de pontos cegos, não foram assimiladas pela cúpula da empresa —o que é assustador para uma companhia que lida essencialmente com problemas de engenharia.

Espero que o desastre sirva para arrefecer o clima de “liberou geral” que o governo Bolsonaro prometia levar à área ambiental. Olhando para a frente, seria importante desenvolver mecanismos para que empresas e a própria legislação não se acomodem com as tecnologias antigas e busquem continuamente aprimoramento na segurança, mesmo que a um sobrepreço.

A garotada da minha geração andou de bicicleta e skate sem capacete e isso era visto como normal. À medida que aprendemos mais sobre traumas, o comportamento foi reclassificado como de risco e hoje poucos pais deixam os filhos brincar sem proteção. Essa cultura de busca constante por mais segurança precisa ser disseminada.


Hélio Schwartsman: Reforma trabalhista

Se planejar todos os aspectos da vida econômica resultasse num ordenamento eficiente, os Estados comunistas teriam dado certo. Não deram.

Raciocínio análogo se aplica à Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), que, com mais de 900 artigos, pretende regular nos detalhes as relações entre patrões e empregados.

São reduzidas as chances de esse calhamaço de imposições legais, muitas delas concebidas para lidar com a realidade laboral dos anos 40, que não existe mais, produzir soluções satisfatórias para ambas as partes.

Um exemplo banal. Lembro de já ter sido forçado diversas vezes pela CLT a sair em férias em períodos em que fazê-lo não interessava nem a mim nem à empresa. Ora, uma legislação deixa os dois lados insatisfeitos e não traz nenhum benefício público não tem razão para existir.

É óbvio que nem tudo na CLT são firulas como essa. Alguns de seus artigos (poucos) estabelecem normas que efetivamente protegem o trabalhador, mas não há dúvida de que já passa da hora de promover uma rodada de desregulamentação que nos livre dos anacronismos, ingerências e aposte na capacidade das partes de resolver seus problemas sem a tutela do Estado.

A livre negociação, vale lembrar, está na base da democracia e é um dos principais elementos que explicam o melhor desempenho da economia de mercado sobre outras formas de organização social.

É difícil dizer se a reforma proposta pelo governo é a ideal. Ela até caminha na direção correta, mas só saberemos se não contém exageros depois que ela for colocada em prática e produzir resultados.

Se surgirem efeitos deletérios provocados pela mudança na legislação e não pela crise econômica (é fácil confundir as duas coisas), não será complicado voltar atrás. Parlamentares não hesitam muito antes de aprovar “direitos”. É em parte por causa dessa tendência que nos metemos na enrascada fiscal em que estamos.