Hélio Schwartsman
Hélio Schwartsman: Viva a apropriação
Homem se apropria de inovações culturais e as aprimora, e é isso que o diferencia de outros animais
Basta alguém famoso fantasiar-se de índio para dar início à polêmica. Como o lança-perfume, o debate em torno da apropriação cultural já se tornou um elemento inescapável do Carnaval.
Não sou nem o maior fã nem o maior crítico do politicamente correto (PC). Penso que o fenômeno pode ser descrito como o efeito colateral de um movimento absolutamente desejável, que foi o esforço de sociedades liberais para conter seus impulsos racistas, sexistas, homofóbicos etc. A origem virtuosa não deve, porém, nos impedir de denunciar seus exageros.
E, se há um elemento da cada vez mais longa cartilha do PC que eu não engulo, é justamente a apropriação cultural. O raciocínio que fundamenta esse discurso é profundamente reacionário. Defender que objetos culturais, que, no fundo, são ideias, devem pertencer exclusivamente ao grupo que os criou equivale a decretar a morte da inovação.
Com efeito, tudo de bom que a civilização produziu —e algumas das coisas ruins também— tem origem em ideias importadas de outras culturas. Isso vale claramente para tecnologias, como é o caso da escrita alfabética, da imprensa e da internet, mas também para inovações políticas, como a democracia e os direitos humanos.
Um indivíduo ou povo lança a ideia-base, outro a melhora e um terceiro encontra uma aplicação diferente que lhe dá uma dimensão totalmente nova. A diversidade nas empresas tem valor justamente porque coloca diferentes pessoas, com diferentes perspectivas, para trabalhar sobre os mesmos problemas, na expectativa de que todos os aspectos da questão sejam considerados.
Se só o povo criador tivesse direito à ideia, a escrita estaria circunscrita ao Egito, e os direitos humanos, a uma pequena parte da Europa Ocidental. Se há algo que realmente diferencia o homem de outros animais, é a facilidade com que ele se apropria de inovações culturais e as aprimora.
Hélio Schwartsman: Greve ou motim?
Policiais militares nunca se limitam a ficar em casa sem comparecer ao serviço
Ao contrário da Constituição, do STF e de quase todo o mundo, não creio que a greve devesse ser vedada aos militares —pelo menos não em tempos de paz. A razão é doutrinária. Desde a abolição da escravidão, ninguém pode ser forçado a trabalhar contra a sua vontade. Assim, se os PMs se limitassem a ficar em casa sem comparecer ao serviço, que é a definição mais básica de greve, penso que estariam exercendo um direito legítimo. Mas eles nunca se limitam a isso.
Em suas campanhas salariais, eles se valem das armas que lhes são fornecidas pelo Estado para cometer ilegalidades como impedir colegas de trabalhar e obrigar comerciantes a fechar suas portas, sem mencionar a ocupação de espaços públicos contrariando ordens dos superiores. O nome disso já não é greve, mas motim —e como tal deveria ser tratado.
E o problema é que os líderes desses movimentos não apenas não são processados como sediciosos —males do corporativismo: oficiais também se beneficiam de aumentos— como também acabam recebendo ampla aceitação social nos meios em que circulam, a ponto de já formarem uma categoria identificável de políticos eleitos, como mostrou reportagem da Folha publicada na sexta (21). O próprio Bolsonaro é, se quisermos, o precursor desse tipo de parlamentar-sindicalista com penetração entre militares.
Parte da culpa pode ser atribuída a nosso sistema de voto proporcional puro, que facilita a eleição de parlamentares de nicho e com um discurso mais exaltado. Se o modelo fosse o distrital-majoritário, candidatos com bandeiras muito específicas tenderiam a ficar de fora. Não estou aqui advogando pela troca de sistema. O distrital também tem o seu quinhão de problemas. Mas, num momento de forte polarização como o que vivemos, o proporcional não se afigura como uma escolha particularmente feliz, já que ele tende a acirrar as divisões na sociedade.
Hélio Schwartsman: Um ferrabrás ferrando o Brasil
De baixaria em baixaria, Bolsonaro arrasta Presidência para o esgoto
Eu adoraria ver o presidente Jair Bolsonaro sofrendo impeachment, mas receio que isso não vá, pelo menos por ora, acontecer. E não porque ele não mereça. Bolsonaro age como um verdadeiro ferrabrás de botequim, que vai, de baixaria em baixaria, arrastando a Presidência para o esgoto.
Não seria difícil enquadrá-lo em vários dos artigos da lei n° 1.079, que regula o impeachment, uma peça que abusa de definições vagas e tipos abertos. No caso de Bolsonaro, porém, nem é necessário recorrer a interpretações criativas. O artigo 9°, 7, que tipifica como crime de responsabilidade "proceder de modo incompatível com a dignidade, a honra e o decoro do cargo", parece ter sido escrito para ele.
Com efeito, as impropriedades ditas e perpetradas pelo presidente são tantas que cada um dos 54 senadores necessários para decretar a perda do mandato poderia escolher um episódio diferente de quebra de decoro para justificar seu voto condenatório. O grosseiro ataque à jornalista Patrícia Campos Mello é só o mais recente de uma série que teve até exibição de vídeo com cena explícita de urofilia.
Não acho, contudo, que o impeachment seja provável. Encontrar a razão jurídica para o afastamento é a parte fácil do processo. Procurando bem, todo presidente faz alguma coisa que pode ser interpretada como violação a algum dos 65 tipos listados na 1.079. O difícil é arregimentar a maioria de 2/3 dos deputados federais para autorizar a cassação e de 2/3 dos senadores para decretá-la. Isso só costuma acontecer quando a economia se deteriora a olhos vistos, como vimos nos casos de Collor e Dilma.
Por enquanto, não há sinais de que um cenário desses esteja no horizonte. Mas o futuro é contingente e, se Bolsonaro e seus ministros, civis e militares, insistirem em dizer sempre a coisa errada na hora errada, não é impossível que produzam uma crise capaz de materializar o impeachment.
Hélio Schwartsman: O Bolsonaro do bem
Terá ele se convertido ao Iluminismo?
Jair Bolsonaro defendendo os direitos humanos e o garantismo judicial? O presidente criticou a polícia baiana por não ter preservado a vida de um foragido numa operação em que teria havido troca de tiros e sugeriu que todos devem ser considerados inocentes até que haja uma sentença judicial transitada em julgado. Terá Bolsonaro se convertido ao Iluminismo?
É pouco provável. Uma explicação bem mais verossímil para a mudança de tom está nas necessidades políticas imediatas do presidente. Ele agora precisa desvencilhar-se da suspeita de que teria mandado matar o miliciano Adriano da Nóbrega e ainda tem de justificar o fato de que, no passado, o elogiou e condecorou. Aí, nada mais conveniente do que tentar empurrar a responsabilidade da morte para a polícia de um estado governado pelo PT e se escudar numa interpretação forte da presunção de inocência.
A quem ele quer enganar, perguntar-se-á o leitor atento. A maioria das pessoas provavelmente percebe a contradição, mas é bastante provável que os militantes bolsonaristas processem a dissonância cognitiva na marra, isto é, dissolvendo a incongruência e comprando as pseudoexplicações presidenciais.
Num dos mais reveladores experimentos da neurociência aplicada à política, o psicólogo Drew Westen meteu militantes partidários em máquinas de ressonância magnética funcional e monitorou suas reações enquanto assistiam a cenas de seus líderes caindo em contradição. Westen não apenas foi capaz de detalhar os circuitos que o cérebro usou para apaziguar o conflito mas também descobriu que ele pode extrair sensações prazerosas desse exercício. Entre os mecanismos acionados estavam os sistemas de recompensa, os mesmos que se ativam quando o viciado em drogas toma uma dose de manutenção.
Daí a dificuldade que experimentamos quando tentamos afastar bolsonaristas ou lulistas fanáticos de suas narrativas de escolha.
Hélio Schwartsman: Guedes é bom?
Num governo funcional, ele talvez já estivesse no olho da rua
Tudo é relativo, de modo que, nos padrões da administração Bolsonaro, o Ministério da Economia desponta como uma ilha de racionalidade. Mas, se elevarmos um pouco a régua e utilizarmos critérios absolutos em vez de relativos, a avaliação de Paulo Guedes e sua equipe se torna bem menos efusiva.
É verdade que, ao longo do último ano, a paisagem econômica mudou para melhor, mas, sem prejuízo de algumas medidas acertadas, muito do desanuviamento se deu sem a participação direta do Executivo.
Parte da recuperação se deve à própria dinâmica dos ciclos econômicos. Embora Venezuelas sejam possíveis, o normal é que, depois de uma crise, venham mesmo dias melhores.
Um fator decisivo para o clima mais favorável foi a aprovação da reforma da Previdência. O Ministério da Economia decerto se esforçou para que ela ocorresse, mas quem preferir descrevê-la como uma obra tocada principalmente pelo Legislativo não estará errado. Houve até ocasiões em que o destempero verbal de Guedes atrapalhou. E ele continua sabotando a si mesmo quando impreca contra servidores públicos e domésticas.
Se voltarmos o olhar para as iniciativas do ministério propriamente ditas, o quadro que emerge é de hesitação e falta de prioridade. Num dia a reforma administrativa é fundamental, no outro já não é. O detalhamento de propostas prometidas para ontem nunca aparece. Agendas possíveis e necessárias como a abertura foram esquecidas. As privatizações, que na fala de campanha gerariam R$ 1 trilhão, andam infinitamente mais modestas.
Num governo funcional, Guedes talvez já estivesse no olho da rua.
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Sobre a campanha difamatória contra a jornalista Patrícia Campos Mello capitaneada por Eduardo Bolsonaro, só posso lamentar que o esgoto tenha chegado ao poder. O consolo é que os Bolsonaros passarão, e o jornalismo profissional bem-feito, do qual Patrícia é uma expoente, provavelmente permanecerá.
Hélio Schwartsman: Queima de arquivo?
Não há, por ora, elementos objetivos a sustentar essa tese no caso Adriano da Nóbrega
Não há, por ora, elementos objetivos a sustentar a tese de que a morte do miliciano Adriano da Nóbrega tenha sido uma operação de queima de arquivo para beneficiar o clã Bolsonaro. O chocante é constatar que essa hipótese é verossímil, a ponto de os principais órgãos de imprensa terem publicado textos em que ela é contemplada.
Não faz tanto tempo, seria inconcebível imaginar um presidente da República e seus filhos envolvidos nesse tipo de noticiário. Não que só tenhamos tido líderes impolutos, mas não era comum ver políticos de alto coturno com ligações tão abertas com a baixa criminalidade. Se as tinham, ao menos as escondiam.
Não os Bolsonaros. O próprio presidente fez, quando ainda era deputado federal, um discurso em que defendeu o miliciano de uma acusação de assassinato. O primeiro filho, Flávio, foi mais longe e, além de defendê-lo e condecorá-lo, contratou-lhe a mãe e a irmã. As familiares de Nóbrega só se desligariam do gabinete de deputado estadual de Flávio em novembro de 2018.
Pelo menos parte dessas ligações perigosas apareceu nos jornais antes do pleito e, apesar disso, Bolsonaro foi eleito. Como explicar isso?
No que talvez seja um subproduto da polarização, nós nos tornamos hipercéticos e passamos a aplicar categorias jurídicas mesmo onde elas não cabem. É claro que todos são inocentes até prova em contrário, mas isso vale na esfera penal, não na vida em geral. Não é porque ainda não houve trânsito em julgado, que você precisa oferecer um cargo de diretor de “compliance” ao suspeito de corrupção ou pedir em casamento a mulher acusada de matar seus quatro maridos anteriores.
Para a sociedade funcionar bem, precisamos, muitas vezes, nos fiar em juízos morais sumários. O risco de que cometamos injustiças é real, mas pior, me parece, é colocar em cargos-chave da República pessoas que não têm qualificação ética para ocupá-los.
Hélio Schwartsman: Missão impossível
Salta aos olhos a obsessão do protocensor de Rondônia com Rubem Fonseca
"Conteúdos inadequados às crianças e adolescentes" é uma frase impossível. Não há como um burocrata lotado num gabinete na capital saber de antemão o que indivíduos que ele nem sequer conhece estão aptos a compreender. Conheço jovens cuja capacidade cognitiva supera a de autoridades, eleitas, nomeadas e até concursadas. E não me venham falar em entendimento médio. Na média, a humanidade tem um testículo e uma mama.
Só isso já deveria bastar para afastar definitivamente qualquer pretensão do poder público de decidir a quais obras, espetáculos e outras manifestações culturais menores de 18 anos podem ter acesso. O máximo que o Estado pode fazer é exigir, no caso de exibições públicas, que tragam uma breve descrição da natureza do conteúdo para que os pais possam decidir.
Não obstante tais truísmos, essa turma que chegou recentemente ao poder insiste em promover uma cruzada para livrar a juventude de uma imaginada influência perversa de autores perigosos. Na mais recente emanação desse delírio censório, autoridades educacionais de Rondônia tramaram para recolher das escolas 43 títulos de livros que julgaram "inadequados". Depois que a maquinação foi revelada, recuaram, não sem tentar mentir sobre o ocorrido.
O que já era absurdo na forma torna-se ridículo no conteúdo. Quando se confere a lista de obras que seriam proscritas, o que salta aos olhos é a obsessão do protocensor com Rubem Fonseca, autor de 18 dos 43 títulos malditos. Mas sobrou também para o saudoso Cony, Kafka e Poe. Até "Macunaíma", leitura exigida nos principais vestibulares do país, teria sido banido.
Paradoxalmente, o "Putsch" cultural rondoniense faz avançar a causa liberal. Eles acabaram de me convencer da necessidade do Estado mínimo, desde que seja para livrar a molecada desse gênero de educateca. Ops, já ia esquecendo que a palavra "gênero" também precisa ser banida.
Hélio Schwartsman: O tamanho do perigo
Quando as pessoas não ficam muito doentes, circulam mais e são transmissores mais eficientes
Quão ameaçador é o novo coronavírus? Ainda é cedo para dizer com precisão, mas os dados vão se acumulando. Na manhã da terça-feira (4), o placar oficial apontava 20.679 casos confirmados e 427 mortes —uma letalidade de 2,06%. É o que temos, mas sabemos que não é isso.
Na fase inicial de uma epidemia, só portadores de quadros graves acabam sendo testados. Para ter uma ideia do número real de infectados, seria preciso testar também familiares e colegas dos pacientes, o que ainda não foi feito. Mas epidemiologistas como Joseph Wu e Kathy e Gabriel Leung não desistem fácil (https://www.thelancet.com/action/showPdf?pii=S0140-6736%2820%2930260-9). A partir do número de casos exportados de Wuhan para outros países e de posse da tabela da frequência mensal de voos ao exterior, eles inferiram o número de infectados na cidade. Concluíram que, nos últimos dias de janeiro, o total já era 13 vezes maior do que o número oficial, com a epidemia dobrando de tamanho a cada 6,4 dias. A taxa de reprodução do vírus (R0) foi por eles estimada em 2,68.
Na visão dos pesquisadores, mesmo com as quarentenas, seria difícil evitar surtos sustentados de transmissão em outras localidades da China. O ponto positivo é que a letalidade do vírus seria bem menor do que a sugerida pelos primeiros números. No cenário do trio, ela cairia para menos de 0,2%.
Em outro trabalho interessante, virologistas liderados por Vincent Munster especulam que o novo coronavírus possa produzir infecções mais leves do que a Sars por atacar as vias respiratórias altas e não as baixas. Um vírus menos patogênico é ótima notícia, mas, quando as pessoas não ficam muito doentes, circulam mais e se tornam transmissores mais eficientes.
Assim, paradoxalmente, podemos estar diante de um vírus que não representa perigo muito grande no plano individual, mas que poderá tornar-se um baita de um problema em escala populacional, devido ao impacto sobre os sistemas de saúde e a economia.
Hélio Schwartsman: Lula e a verdade
É dever da imprensa conferir a consistência de suas declarações
“Que é a verdade?”, inquiriu Pôncio Pilatos. Ninguém respondeu. A pergunta é difícil. Ouso dizer que encerra um dos problemas mais cabeludos da filosofia. Mesmo a mais simplesinha e formalista das definições, que equipara a verdade à “adequação da proposição ao objeto”, já consumiu enorme quantidade de tinta e de argumentos e não há sinal de que os filósofos possam chegar a um consenso.
Apesar disso, ao contrário de alguns pós-modernistas, penso que não devemos desistir. Dá para afirmar que a proposição “a Terra é o terceiro planeta a contar do Sol” é verdadeira. Com qualquer outro número ordinal, será falsa. Obviamente, esse critério vale apenas para alguns tipos específicos de juízo, que nem são os mais interessantes —mas é o que temos.
Analisemos, à luz dessas ideias, a polêmica do ex-presidente Lula com a Folha a respeito da veracidade de declarações que ele deu após sua libertação. Por razões de espaço, fixo-me num único caso, o da Globo. Lula tem todo o direito de criticar a cobertura que a emissora fez da Vaza Jato, mas deveria medir melhor as palavras. Se ele diz que a Globo só mencionou o Intercept duas vezes, e essa afirmação —cujo conteúdo empírico é claro e facilmente verificável— não corresponde aos fatos, é forçoso concluir que o ex-presidente falseou a verdade.
É só força de expressão, dirá a turma do deixa-disso. Se um anônimo tivesse afirmado o mesmo que Lula numa conversa de botequim, poderíamos deixar passar. Mas o ex-presidente é o principal líder do maior partido de oposição e disse o que disse no curso de uma entrevista formal ao UOL. É dever da imprensa conferir a consistência de suas declarações.
Não se trata de mero capricho. A democracia convive bem com a divergência de opiniões, mas ela precisa que haja consenso ao menos em relação a juízos que descrevem fatos —ou a própria possibilidade de diálogo fica comprometida.
Hélio Schwartsman: Como enfrentar a epidemia?
Em 2002-3, o democrático Canadá lidou melhor com a Sars do que a ditatorial China
Qual o melhor sistema político para enfrentar a epidemia provocada pelo novo coronavírus? O modelo centralizador-autoritário chinês, que faz as coisas acontecerem rapidamente, ou o das democracias ocidentais, que põem limites à atuação de autoridades e privilegiam o livre fluxo de informações?
Não há como não se impressionar com a capacidade de mobilização da China, que constrói um hospital de mil leitos em seis dias, ou com a assertividade de seus dirigentes, que não hesitam em pôr milhões sob quarentena. Mas o sistema chinês saiu em desvantagem. A forma arbitrária com que o poder é exercido ali estimula autoridades locais a esconderem problemas. Ao que tudo indica, foi o que fizeram inicialmente em Wuhan, retardando a percepção da gravidade do surto.
Quarentenas forçadas, embora sejam desde o século 14 a resposta automática de autoridades a epidemias, funcionam melhor ou pior dependendo das características da doença. Elas têm mais chance de conter a moléstia quando a capacidade do patógeno de gerar novas infecções a partir de um paciente (o R0, em epidemiologuês) é baixa e quando a transmissão só ocorre após o aparecimento dos sintomas.
O novo coronavírus, porém, vai dando indícios de ser contagioso mesmo em fase assintomática e espraiar-se com certa facilidade, provocando, na maioria dos doentes, quadros benignos ou até subclínicos. Aí, quarentenas tendem a ser inúteis, quando não contraproducentes.
A resolutividade chinesa seria útil num improvável cenário distópico, em que fosse preciso pôr tropas para caçar infectados e conter rebeliões. Mas, quando a perspectiva mais realista é a de que a epidemia não apresente letalidade muito maior do que a de uma má temporada de gripe, parece mais sensato apostar no bom fluxo de informações e num sistema de saúde no qual as pessoas confiem. Em 2002-3, o democrático Canadá lidou melhor com a Sars do que a China ditatorial.
Hélio Schwartsman: Ilusão de controle
Brexit alimenta a narrativa de que britânicos decidirão seu futuro sem a interferência de estrangeiros
Às 23h desta sexta-feira (31/1), o Reino Unido se separa oficialmente da União Europeia (UE), pondo fim a uma novela que se estendeu por mais de três anos.
No plano econômico, o divórcio é um tiro no pé. Os britânicos estão abrindo mão de acesso privilegiado a um mercado de mais de 500 milhões de pessoas e criando “ex nihilo” sérias dificuldades para suas empresas. A aventura custará ao Reino Unido entre dois e oito pontos do PIB até 2034, segundo estimativa do próprio governo.
Se é tão ruim assim, por que os britânicos decidiram sair? Europeístas até podiam afirmar que os eleitores foram enganados no plebiscito de 2016, no qual a campanha pelo brexit abusou das fake news. Mas não vejo como insistir neste argumento após a vitória de Boris Johnson em dezembro. O brexit foi o tema dominante na eleição, que teve lugar após anos de debates. A matéria estava madura para ir a voto.
Minha hipótese para explicar o fenômeno é o desejo de controle. Seres humanos somos obcecados por nos sentir no controle. Há um experimento bem maluco da psicologia em que voluntários são colocados diante de luzes que piscam num padrão aleatório e instruídos a apertar um botão, que não faz rigorosamente nada —embora as cobaias não saibam disso. Em pouco tempo, a maioria jura que controla as luzes.
Esse viés, creio, alimenta a narrativa de que, com o brexit, os britânicos decidirão seu futuro sem a interferência de estrangeiros e voltarão a ter domínio sobre suas fronteiras. É pura ilusão, porque o eleitor só tem controle de fato sobre o seu próprio voto, cujo peso é irrisório em qualquer pleito maior que o para síndico de prédio. Sob essa perspectiva, não faz tanta diferença se as políticas são definidas em Londres ou em Bruxelas.
Curiosamente, essa ilusão de controle é um dos elementos de legitimação da democracia, ao criar a sensação de que cada voto conta.
Hélio Schwartsman: Doenças infecciosas moldaram a história e a evolução humanas
Sucesso da ciência em controlar moléstias nos fez esquecer quão devastadoras elas podem ser
É preciso que surjam novos agentes patógenos como o coronavírus de Wuhan para que experimentemos uma pequena fração da angústia com doenças infecciosas que sempre acompanhou a humanidade. O sucesso da ciência em controlar as moléstias virais, bacterianas e parasitárias em vastas regiões do globo nos fez esquecer quão devastadoras elas podem ser.
A varíola, provavelmente a maior assassina da história, matou, só no século 20, entre 300 milhões e 500 milhões de humanos. A peste bubônica dizimou até um terço da população europeia no século 14. Uma parcela ainda maior dos grupos ameríndios sucumbiu ao blend de doenças infecciosas trazidas pelos europeus.
Aos que gostam de pintar as guerras como um flagelo comparável vale lembrar que, até a 1ª Guerra Mundial, a grande maioria dos soldados abatidos em conflitos morria por causa das doenças que acompanhavam as tropas e não devido à carga dos exércitos inimigos. Na Guerra Civil americana, dois terços dos 500 mil mortos foram vítimas primárias de patógenos. A situação só mudou depois que os militares incorporaram brigadas sanitárias, que, com barbeiros e serviços de lavanderia, limaram os ectoparasitas que transmitiam tifo e outras moléstias.
Doenças infecciosas moldaram a história e a evolução humanas. O vazio populacional deixado pela peste jogou o preço do trabalho nas alturas, desestabilizando o sistema feudal e abrindo caminho para o capitalismo. Ectoparasitas são a melhor hipótese para explicar a redução de pelos nos humanos. Isso para não mencionar a invenção do sexo, que também parece ser uma resposta a patógenos.
O curto e precário controle que conseguimos exercer sobre as moléstias infecciosas a partir do século 19 se deve exclusivamente à ciência —a mesma ciência que governos populistas ignoram quando desdenham especialistas e estudos técnicos. A população não faz melhor quando rejeita vacinas.