Hélio Schwartsman

Hélio Schwartsman: Bolsonaro, um risco ambulante

Despreparo do presidente é não só intelectual como emocional

Que Jair Bolsonaro não tem nenhum preparo para ser presidente nós já sabíamos desde antes da eleição. Mas, como o povo é soberano e o povo o escolheu para nos liderar, restava a esperança de que seu mandato transcorresse sem maiores regressões.

Ele tentaria impor sua agenda obscurantista, mas as instituições resistiriam. Alguns retrocessos seriam inevitáveis, mas ao menos as ideias mais aparvalhadas não chegariam a materializar-se no nível de leis e emendas constitucionais. Mesmo a regulamentação infralegal, que depende só da caneta presidencial, poderia ser desfeita pela Justiça nos casos mais gritantes, como de fato ocorreu.

Isso, porém, é passado. Agora, tudo mudou. Topamos com um cisne negro —a Covid-19 e seus desdobramentos econômicos— que exigiria um governante à altura dos desafios. Alguns líderes crescem na crise. Bolsonaro não é um deles.

A pergunta que se coloca é como vamos neutralizá-lo. A solução definitiva seria o impeachment. Até o mês passado, o que o protegia do afastamento era a inexistência de uma forte piora da economia. Bem, a crise chegou.

A dúvida é se, em meio ao turbilhão que se instalou, o Congresso vai ter energia para dedicar-se a um impeachment. Pelo menos por ora, creio que não. O que deve ocorrer, agora que até ministros já perceberam que não dá para confiar em Bolsonaro, é uma articulação informal para fazer um “by-pass” do presidente. Os chamados adultos da sala deixariam o homem falando para o núcleo cada vez mais reduzido de apoiadores e se entenderiam para tomar as decisões importantes.

Pode funcionar, mas não sem incertezas. O despreparo de Bolsonaro é não só intelectual como emocional, o que o transforma num risco ambulante. Nada impede que amanhã ele rompa com a China ou, num surto de ciúmes, demita o ministro da Saúde, que comanda uma das poucas áreas racionais do governo.

O voto tem consequências.


Hélio Schwartsman: Escolhas de Sofia

É preciso definir critérios a serem utilizados se a situação ficar realmente ruim

Eu provavelmente pegarei a covid-19 em breve. É que minha mulher, que é médica intensivista e cardiologista, foi convocada para atuar numa das UTIs do SUS que receberão pacientes críticos com a nova moléstia.

Considerando que a taxa de infecção dos profissionais de saúde é relativamente alta e que boa parte das transmissões ocorre dentro de casa, a sorte da família está lançada. Espero que sejamos todos tão hígidos quanto penso que somos para passar pela doença sem problemas.

O que gostaria de discutir hoje, porém, não é o discreto aumento do risco de minha família, mas um pepino ético com o qual teremos de lidar.

Pelo menos por enquanto, não há nada que permita afirmar que nossa curva epidêmica será muito diferente da da Itália. Adoraria ser desmentido pelos fatos, mas não podemos descartar a possibilidade de vivermos uma situação semelhante à dos italianos, que, diante da falta de vagas em UTI, tiveram de definir à beira do leito quem iria para o ventilador e quem receberia cuidados paliativos —uma das piores situações por que um médico pode passar.

Ali, a pressão sobre os profissionais foi tanta que a associação de medicina intensiva se viu obrigada a divulgar um documento com as diretrizes éticas para a tomada de decisões “em condições excepcionais”.

O texto não traz, é claro, nenhuma inovação filosófica. Reafirma princípios bioéticos clássicos que recomendam dar preferência a pacientes com maior probabilidade de sobreviver e que tenham mais anos de vida saudável pela frente, além de detalhar os procedimentos a serem adotados pelas equipes.

No espírito de antecipar dificuldades, penso que caberia a algum órgão como os conselhos de medicina ou o Ministério da Saúde repassar os critérios a ser utilizados se a situação ficar realmente ruim. Escolhas são inevitáveis. Podemos até fingir que o problema não existe, mas isso não o faz ir embora.


Hélio Schwartsman: Como uma epidemia acaba?

Precisamos agora aplainar a curva de novas infecções

Depois que a pandemia se instalou, a forma “natural” de interromper o ciclo de transmissões é o chamado esgotamento dos suscetíveis, que ocorre quando uma parcela considerável da população adquire a moléstia e desenvolve defesas contra ela.

No início de uma epidemia causada por um vírus contra o qual ninguém tem imunidade, como o Sars-Cov-2, as transmissões ocorrem de forma explosiva. Se cada infectado passa a doença para, digamos, duas pessoas, no ciclo seguinte teremos 4, que se tornarão 8 e assim por diante. Esse processo, obviamente, não dura para sempre.

No pior cenário, o ciclo de infecção acabaria quando 100% da população tivesse sido infectada. Na prática, termina antes. A uma dada altura, o paciente que está propagando o vírus passa a encontrar mais pessoas imunes do que suscetíveis, e a doença já não consegue progredir no mesmo ritmo. Aí, ou ela desparece ou se torna endêmica, ressurgindo sazonalmente.

Quarentenas e medidas de distanciamento social ajudam a modular a curva da epidemia, mas não alteram o status dos suscetíveis. Quem não pegou a doença numa primeira leva, pode pegar mais adiante.

É nesse contexto que a chanceler Angela Merkel afirmou que até 70% dos alemães acabariam infectados. Marc Lipsitch, epidemiologista de Harvard, calculou, em fevereiro, que entre 40% e 70% da população mundial seria contaminada nos 12 meses seguintes. Mais recentemente, revisou a conta para baixo: entre 20% e 60%.

Essas estimativas, vale lembrar, estão sujeitas às incertezas do mundo real. O vírus da Sars, que também prometia grandes desastres, sofreu uma mutação e sumiu.

O que precisamos agora é aplainar a curva das novas infecções, de modo que elas ocorram o mais lentamente possível. A ideia é preservar os sistemas de saúde de picos de demanda inadministráveis e dar aos médicos tempo para aprender a tratar os casos graves.


Hélio Schwartsman: Palavra de presidente

Bolsonaro mente ou perde a oportunidade de ficar calado

Qual o valor da palavra de Jair Bolsonaro? Julgue você mesmo.

Ao longo da última semana, o presidente abordou quatro assuntos principais: manifestações contra o Congresso, Orçamento impositivo, fraude eleitoral e coronavírus. Em duas dessas ocasiões, Bolsonaro mentiu e, nas outras duas, deveria ter ficado quieto.

As mentiras são facilmente demonstráveis. Na quarta (11), ele disse que não convocou ninguém para as manifestações que ocorreriam neste domingo (15). Mas há um vídeo, gravado em Roraima no sábado (7), em que o presidente fala da manifestação e instrui seus simpatizantes a participarem.

Na terça (10), ele voltou a afirmar em suas redes sociais que não havia negociação entre o governo e o Parlamento em torno da verba do Orçamento disponível para investimentos. Mas há farta documentação mostrando que o governo negociou, sim, e longamente, para ter acesso a ao menos parte do dinheiro.

Passemos às oportunidades perdidas. Na segunda (9), Bolsonaro veio com a história de uma suposta fraude eleitoral que o teria impedido de vencer no primeiro turno. Aqui ele se põe na fronteira do Código Penal. Se tem mesmo provas e não as exibe, comete prevaricação; se não tem e diz que tem, só conta mais uma mentira.

É no coronavírus, porém, que Bolsonaro se supera. Enquanto a maior parte dos líderes mundiais já se decidia por medidas duras para conter a progressão da Covid-19, nosso presidente, talvez por julgar que um ser tão pequenininho como um vírus não pode causar grande mal, passou boa parte da semana denunciando um suposto exagero da mídia e dizendo que a epidemia tinha muito de fantasia. Foi só quando a doença bateu à porta de sua casa que ele passou a agir de forma menos exótica.

O discurso de governantes não costuma mesmo ser exemplo de precisão e objetividade, mas o nível de deterioração que Bolsonaro impôs à palavra presidencial impressiona.


Hélio Schwartsman: Distanciamento medicinal

É preciso 'descriminalizar' as teleconsultas

Há pouco mais de um ano, o Conselho Federal de Medicina (CFM) baixou uma resolução regulamentando a telemedicina. A norma foi tão atacada pelos profissionais, que temiam ser "uberizados", que o CFM optou por revogá-la dias depois. Isso significa que, pelas regras hoje vigentes, realizar consultas à distância pode configurar, em muitas situações, uma infração ética. O problema é que agora enfrentamos um surto epidêmico de covid-19, no qual a telemedicina teria um papel valioso a desempenhar.

A covid-19 deverá pôr muita pressão sobre os sistemas de saúde de vários países. O que mais chama a atenção nessa nova moléstia é a forma desigual com que ela afeta diferentes grupos etários. Um estudo chinês com 72 mil pacientes estimou uma taxa de mortalidade de 0,2% para aqueles com menos de 39 anos, mas que vai a 8% para a população que tem entre 70 e 79 anos e chega a impressionantes 14,8% para os com mais de 80.

Diante desses números, o último lugar para o qual se deve levar um idoso que ainda não tenha contraído a covid-19 é um pronto-socorro apinhado de portadores do vírus Sars-Cov-2. O risco é tão grande que a recomendação técnica é a de só procurar serviços de saúde em casos graves. Mas como saber se um caso é grave?

Aqui há duas opções. Temos algoritmos genéricos do tipo "só vá ao hospital se tiver febre persistente e desconforto respiratório". Na maioria dos casos, eles funcionam bem. Mas, especialmente para os mais vulneráveis, passar por uma consulta remota pode fazer toda a diferença.

É provável que ainda tenhamos de esperar o 5G para que uma telemedicina indistinguível da consulta presencial se viabilize. Mas, enquanto a tecnologia não chega, deveríamos pelo menos instalar "hot lines" com médicos na ponta para que as pessoas fiquem mais tranquilas em relação à decisão de não ir para o hospital, além, é claro, de "descriminalizar" as teleconsultas.


Hélio Schwartsman: Covid-19, a solução darwiniana

Até o ponto de inflexão, epidemias progridem em ritmo avassalador

Respondo hoje à provocação do leitor Claudio Rangel: "Começo a achar cada vez mais que há um dramático exagero na reação ao coronavírus. Talvez dar 'shutdown' no mundo como estamos fazendo acarrete muito mais externalidades (mortes) do que se 'deixássemos a coisa rolar'. Numa visão utilitarista, não seria melhor assumir que o vírus é um elemento de seleção natural e levar a vida (quase) normalmente? Haveria um colapso maior nos sistemas de saúde por 1, 2, 3 meses, mas depois voltaria ao normal e o resto do mundo seguiria funcionando".

Eu penso que não. Mesmo na visão utilitarista, é importante que nos esforcemos para reduzir o ritmo dos contágios. O problema de fundo aqui é que, na fase inicial da epidemia, nós lidamos com uma função exponencial —algo que a intuição humana tem dificuldade em processar. Se você lembrou da história do grão de trigo e o tabuleiro de xadrez popularizada por Malba Tahan, acertou.

Até atingir o ponto de inflexão, epidemias progridem em ritmo avassalador. Um exemplo calculado por Grant Sanderson, do canal 3Blue1Brown, dá bem a dimensão do problema. Se você tem 21 mil infectados e a epidemia cresce a uma taxa de 15% ao dia, haverá, dentro de 61 dias, 105.873.570 infectados.

Se, porém, você baixar o ritmo de crescimento de 15% para 5% durante esse período "inflacionário" —o que não é impossível com a adoção de medidas duras de afastamento social—, seu total de pacientes ao cabo de 61 dias despencará de mais de 100 milhões para 411.876.

Obviamente, essa escala de diferença faz toda a diferença para um sistema de saúde. Como, devido a outra armadilha matemática, a taxa de mortalidade da covid-19 varia muito em função da sobrecarga a que os hospitais estão submetidos, eu não recomendaria a solução darwiniana. Detalhe, não é só a mortalidade da covid-19 que aumenta quando o sistema entra em colapso, mas a de todas as doenças.


Helio Schwartsman: Os planos maquiavélicos de Bolsonaro

Mesmo sem força para mudanças profundas, suas ações já pioraram a democracia

A estratégia protogolpista do presidente Jair Bolsonaro é perfeita, exceto pela falta de um ingrediente essencial, que são os índices elevados de popularidade. Para que a tática de jogar o povo contra os outros Poderes funcione, é preciso que o Executivo conte com o apoio decidido da maioria dos cidadãos —e isso Bolsonaro não tem.

Com efeito, líderes populistas que lograram enfraquecer as instituições incumbidas de controlá-los, como Vladimir Putin, Viktor Orbán, Recep Tayyp Erdogan e Hugo Chávez, tiveram força política para enquadrar outros Poderes e até reescrever as constituições de seus países graças a bons resultados econômicos que, durante algum tempo, entregaram a seus eleitores.

Bolsonaro não chegou nem perto disso. As pesquisas de popularidade lhe dão algo em torno dos 30% de avaliações positivas, contra 36% de negativas. E é remota a chance de ele vir a surfar numa onda de pujança econômica. Se, no final de 2019, economistas ainda viam a possibilidade de o Brasil crescer uns 2% em 2020, as perspectivas pioraram no último par de meses. Agora, com o coronavírus, já há quem fale em recessão global, um cenário que seria mais compatível com rejeição nas urnas e impeachment do que com reeleição e remodelamento constitucional.

Daí não decorre, obviamente, que não precisemos nos preocupar com o estado de nossa democracia nem resistir às investidas autoritárias do presidente. No mundo contemporâneo, as ameaças à democracia já não vêm tanto na forma de tanques, mas de perda de higidez. Ficam cada vez mais raras as rupturas formais e se tornam mais presentes arranjos híbridos, em que figuras sombrias instaladas no Executivo desequilibram o balanço institucional para abocanhar mais poder. Mesmo que Bolsonaro não tenha força para introduzir mudanças profundas no sistema, muitas de suas ações mais ordinárias já pioraram a qualidade de nossa democracia.


Hélio Schwartsman: Volta à normalidade?

Qual seria o melhor democrata para governar os EUA?

Joe Biden renasceu das cinzas e disputa, já na condição de favorito, com Bernie Sanders a indicação do Partido Democrata para concorrer à Presidência dos EUA. Qual dos dois tem mais chance de derrotar Trump? E qual o melhor para governar, caso se sagre presidente?

Até algumas semanas atrás, Trump era tido como um candidato quase imbatível à reeleição. Desfrutava da vantagem de já ocupar o cargo e de comandar o país em tempos de bonança econômica, com níveis confortáveis de crescimento e baixo desemprego. Ele continua a gozar do bônus de ser o "incumbent", mas a emergência da covid-19 lança incertezas sobre o estado da economia nos próximos meses. Uma desaceleração já é certa; a dúvida é se virá a recessão. Em qualquer caso, a mudança de curso joga a favor dos democratas.

A sabedoria convencional reza que moderados (Biden) levam vantagem sobre os mais radicais (Sanders) num pleito nacional. Penso que, em alguma medida, a assertiva é correta, especialmente neste caso, já que Sanders se declara socialista, o que é anátema para um bom pedaço da população americana. Mas, nos últimos tempos, a política tem dado mostras de que a normalidade nem sempre triunfa.

E para governar? Biden ou Sanders? Sanders tem algo de Trump com sinal invertido. Ao contrário do atual presidente, ele parece ser uma pessoa decente, mas seus planos flertam com o pensamento mágico de esquerda, como a proposta de perdoar todas as dívidas estudantis (US$ 1,6 trilhão) e assegurar universidade gratuita para todos. Isso só no campo da educação superior. De onde virá o dinheiro para tocar todos os megaprojetos de Sanders ao mesmo tempo?

Já Biden é um "insider" de Washington. Aposta em planos mais pé no chão e em retomar o diálogo com os republicanos. É bem menos emocionante, mas a volta à normalidade democrática que vigorou nas décadas anteriores à atual pode ser aquilo de que o mundo precisa.


Hélio Schwartsman: Êxito chinês

Surpreende o sucesso do país em conter o alastramento da covid-19

O que surpreende no ritmo de propagação da covid-19 não é a cada vez mais extensa lista de países atingidos, mas o sucesso da China em conter o alastramento da doença.

Se algumas semanas atrás os hospitais chineses estavam apinhados de pessoas infectadas pelo novo coronavírus, agora sobram leitos. Cientistas que conduzem ensaios clínicos de drogas para tratar a doença já não conseguem recrutar pacientes para os testes, como mostrou recente relatório da OMS.

Entender o que está acontecendo pode trazer lições valiosas para autoridades sanitárias de todo o planeta.

A primeira conclusão a tirar é que as brutais medidas de quarentena e isolamento impostas pelo governo funcionaram. Daí não decorre que as técnicas chinesas possam ou devam ser replicadas em países democráticos, mas não dá para fingir que não surtiram efeito ao menos nessa primeira fase da epidemia.

A prova final virá agora, quando as medidas de exceção mais draconianas forem revogadas. Se o contágio sustentado voltar, é porque estamos lidando com um vírus realmente difícil. Se o pior já tiver ficado para trás, é sinal de que vale a pena insistir em tentar isolar cada cadeia de transmissão.

O êxito nos esforços de contenção também é um indicativo de que a proporção de casos assintomáticos e leves que não são detectados é menor do que se especulava. O relatório da OMS traz indícios disso. Em Guangdong, por exemplo, autoridades testaram uma amostra de 320 mil pessoas e apenas 0,14% delas apresentaram resultado positivo para a covid-19. A má notícia aí embutida é que a letalidade do vírus também será um pouco maior.

Outro dado interessante em relação à letalidade é o quanto ela pode variar. Ela foi de 5,8% em Wuhan, onde a epidemia apareceu primeiro e causou mais disrupção, contra 0,7% em outras áreas da China, o que sugere que o caos nos hospitais foi um fator decisivo para o maior número de mortes.


Hélio Schwartsman: Ciência contra a epidemia

Torçamos para que os terraplanistas do governo continuem longe do Ministério da Saúde

A essa altura, parecem inúteis os esforços para manter o vírus que causa a covid-19 fora de fronteiras nacionais. A progressão da epidemia pelo mundo mostra que a doença, por provocar muito mais quadros leves do que graves, se espalha com facilidade e não será contida por quarentenas.

E o fato de o risco que cada indivíduo corre de morrer por causa da covid-19 ser baixo não significa que ela não vá causar estragos coletivos. No plano sanitário, o que preocupa é a pressão sobre os sistemas de saúde. O objetivo central das autoridades a partir de agora deve ser o de impedir que a curva de novas infecções suba muito rapidamente. Se conseguirmos espaçar o ritmo de contágio, será menor o pico de demanda sobre os hospitais, o que poderá evitar mortes por falta de ventiladores, por exemplo.

E como se faz isso? É preciso conquistar a confiança da população, que terá de ser convencida a mudar comportamentos. É importante, por exemplo, que as pessoas evitem correr para o hospital devido a quadros respiratórios leves. Também devem reforçar a lavagem de mãos e alterar a etiqueta de cumprimentos. Se a situação ficar ruim, deve-se cogitar de medidas mais drásticas como suspender aulas, eventos esportivos e culturais e adotar o trabalho remoto.

O problema é que há muita coisa sobre a biologia do vírus que ignoramos. Ele se espalha com menos eficiência no verão? Pacientes assintomáticos são bons transmissores? Quem já teve a doença se torna imune? Por quanto tempo? Cada resposta pode fazer muita diferença na hora de definir políticas públicas. Se uma infecção prévia não confere imunidade (ou só o faz de forma muito transitória), o modelo epidemiológico a orientar as ações muda substancialmente.

São questões a ser abordadas pela ciência e não pela ideologia. Resta torcer para que o núcleo terraplanista do governo continue com as garras longe do Ministério da Saúde.


Hélio Schwartsman: Bolsonaro, o pior do sistema

Conjuntura política excepcionalíssima permitiu que ele chegasse à Presidência

O presidente Jair Bolsonaro gosta de apresentar-se como um político antissistema, mas isso é "fake news". Parece mais preciso descrevê-lo como uma das piores coisas que o sistema já produziu.

Com efeito, Jair Bolsonaro não é uma flutuação quântica que se materializou do nada. Ele passou quase três décadas na Câmara, onde teve atuação apagadíssima. Apenas dois projetos de lei de sua autoria foram aprovados —média de um a cada 14 anos. Ainda que inevitáveis —não dá para pôr meta de produtividade para parlamentares—, situações como essa não configuram uma das virtudes do sistema.

E é interessante reparar que Bolsonaro só chegou ao Parlamento devido a outras vulnerabilidades do sistema. Depois de ter sido quase expulso do Exército, conseguiu, graças à votação proporcional, eleger-se para postos no Legislativo defendendo a pauta corporativista das carreiras militares. Mais tarde, ampliou seu eleitorado, agregando os votos de cidadãos que, por motivos variados, aplaudiam sua incontinência verbal e agressões calculadas.

Arrastou três filhos para a política e há indícios de que a família não só se envolveu com a pior criminalidade, que é a dos milicianos, como também de que explorou esquemas típicos do baixo clero parlamentar, como "rachadinhas" e funcionários-fantasmas. Não é, portanto, por fibra moral que Bolsonaro não apareceu nos grandes escândalos de corrupção. Falta de oportunidade/inventividade parecem explicações mais plausíveis.

Uma conjuntura política excepcionalíssima impulsionada por um atentado permitiu que uma figura assim medíocre chegasse à Presidência, onde não decepcionou. Praticamente todas as suas manifestações revelam que ele não está à altura do cargo. Sua falta de decoro já não se consubstancializa só no nível escatológico, quando ataca desafetos, mas também no institucional, quando incita seus simpatizantes contra outros Poderes.


Hélio Schwartsman: O vírus da democracia?

Se a covid-19 causar grande estrago, poderemos ver chineses se rebelando contra o sistema

Não há nada mais vexatório para certa vertente de ideólogos do liberalismo do que o caso chinês. Durante décadas eles disseram que sociedades capitalistas avançadas teriam necessariamente de ser abertas e democráticas. Mas a China está se tornando uma nação avançada sem dar sinais de que caminha para a democracia.

A covid-19 oferece aos ideólogos liberais uma esperança de provar que tinham razão. Para esses teóricos, havia dois argumentos principais para defender a vinculação entre desenvolvimento e democracia liberal. O primeiro dizia respeito às inovações.

Um regime tirânico não teria dificuldade para crescer enquanto se limita a utilizar tecnologias geradas em outros países. Mas a manutenção da prosperidade por períodos maiores dependeria de um fluxo constante de inovações, que é inibido quando as pessoas não podem trocar informações livremente.

Haveria, portanto, uma incompatibilidade intrínseca entre ditadura e crescimento duradouro.

Não foi, porém, o que vimos. A China vai se tornando uma potência educacional e científica mesmo com rígida censura.

O outro canal pelo qual a democracia se insinuaria é o avanço social. Quanto mais rica fica uma nação, mais exigente se torna a sua população. Para os liberais, o surgimento de uma grande classe média chinesa criaria uma irresistível pressão por abertura política.

É aí que os ideólogos liberais ainda podem ter um trunfo. Os chineses ainda não pararam para cobrar seus líderes porque estão satisfeitos com os resultados econômicos. Se a covid-19 não produzir mais do que uma ferida econômica, o “statu quo” deve seguir inalterado. Mas, se ela causar um estrago maior, poderemos ver os chineses se rebelando contra o sistema. Vale lembrar que o regime chinês, que extrai sua legitimidade do crescimento, ainda não experimentou nada parecido com uma recessão desde que aderiu ao capitalismo no final dos anos 70.