Hélio Schwartsman

Hélio Schwartsman: Países muito mais pobres que o Brasil se saem bem melhor na pandemia

Países muito mais pobres que o Brasil se saem bem melhor na pandemia

É claro que um país pobre, repleto de favelas e com uma população pouco instruída como é o Brasil não poderia ter se saído muito bem no enfrentamento da Covid-19. Há algo de autocomplacente nesse raciocínio.

É verdade que alguns fatores pesam contra nós. O alto índice de informalidade da economia dificulta manter as pessoas dentro de casa. Muita gente se vê compelida a sair para conseguir renda para alimentar os filhos, que ficaram sem a merenda escolar. A grande densidade demográfica das favelas e suas condições precárias transformam o isolamento de doentes em um experimento natural de contaminação dos familiares.

Não são dificuldades pequenas. O fato, contudo, é que países muito mais pobres que o Brasil estão se saindo bem melhor.

Um caso modelo é o do Vietnã. Com uma renda per capita que é menos de 1/3 da brasileira e pouca disponibilidade de leitos hospitalares, o país asiático foi capaz de identificar rapidamente os doentes e isolá-los. No dia 29 de maio, contava com apenas 327 casos e nenhuma morte. Sua receita foi fazer um “lockdown” forte logo no início e testar ostensivamente. O Vietnã desenvolveu seu próprio sistema de teste, que já exporta para outros países.

Mas o Vietnã é uma ditadura comunista e sua população é asiaticamente obediente, dirá o cínico. Verdade, mas alguns países da América Latina e da África, onde se temia uma catástrofe, também estão em melhor posição que nós, apesar de Estados fracos e populações indisciplinadas.

A pandemia é uma maratona, não uma corrida de 100 metros. Até que tudo tenha acabado, é preciso cuidado com as comparações entre países. Ademais, fatores difíceis de ponderar, incluindo o acaso, exercem grande influência. Mas acho que já dá para afirmar que o Brasil cometeu erros graves. Seria bom tentar entendê-los, para evitar que se perpetuem ao longo dos meses ou anos em que ainda teremos de conviver com o vírus.


Hélio Schwartsman: Supremo tem o direito de errar por último

Democracia é o regime dos erros sucessivos

Faz bem o Supremo Tribunal Federal em impor limites a Jair Bolsonaro e a seus asseclas. Eles já deram repetidos sinais de que, deixados livres, não se deteriam diante de nada em seu intento de transformar o país em uma monarquia terraplanista.

A trupe bolsonarista tem o estranho dom de desmoralizar tudo de que se aproxima. Em alguns casos, o movimento é voluntário, como se vê nos esforços do grupo para erodir instituições como Legislativo, imprensa e o próprio Judiciário.

Em vários outros, a perversão não é pretendida, mas fruto de incompetência. É disso que foram vítimas a saúde pública, as perspectivas para a economia, que só pioram, e a própria Presidência da República, rebaixada a enredo de filme pastelão na reunião ministerial a que tivemos acesso por decisão do STF.

Institucionalmente, o ideal seria que fossem a PGR ou o Congresso a cortar-lhes as asinhas. Como Aras e Maia se acovardam, só resta mesmo o STF. Daí não decorre que o processo ocorra sem asperezas.

O chamado inquérito das fake news, que atinge em cheio a máquina de propaganda bolsonarista, surgiu como um teratoma, que desafia as melhores práticas do direito e caminha perigosamente perto de criminalizar opiniões. Ainda assim, é um expediente legal e válido. Por quê? Porque o STF diz que é.

De forma um pouco cínica, dá para definir a democracia como o regime dos erros sucessivos. O primeiro a errar são os eleitores, que tendem a escolher desqualificados para governá-los. Em seguida, vêm o Executivo, que invariavelmente faz enormes besteiras, o Legislativo, que só piora as coisas, e, por fim, o Judiciário, detentor da “ultima defaecatio”.

A democracia funciona porque assegura a paz social. E a paz social só é possível quando todos os agentes concordam que a palavra final nas disputas é a do STF. Na democracia, não existe hipótese de desobedecer ao Supremo. É ele que tem o direito de errar por último.


Hélio Schwartsman: Crime ou interferência

Mesmo perdido, um presidente tão pequeno promove desgastes institucionais

A PF fez buscas na residência do governador Wilson Witzel porque as suspeitas contra ele são sólidas ou para agradar a Jair Bolsonaro? Não me sinto ainda em condições de cravar nenhuma das opções.

Pandemias são o sonho de consumo dos corruptos. Da noite para o dia, processos licitatórios são dispensados e equipamentos médicos passam a ser disputados ferozmente por vários países, fazendo com que os próprios preços deixem de funcionar como valor de referência. Quanto se pode pagar por um ventilador nessas condições? Seria uma surpresa se as quadrilhas que sempre fraudaram as compras públicas não procurassem tirar vantagem dessa conjuntura.

Witzel está envolvido nisso? Não sei. Mas sei que, assim como ninguém deve ser considerado culpado antes de um julgamento, ninguém deve ser considerado acima de qualquer suspeita e blindado contra investigações —viu, general Heleno?

Isso significa que a operação da PF é legítima? É provável, mas há elementos que fazem soar sinais de alarme, a começar da própria existência de uma enorme polêmica em torno da interferência do presidente sobre a PF. É também estranho que uma deputada bolsonarista tenha praticamente anunciado a operação na véspera de sua realização.

E isso nos leva ao ponto central desta coluna. Muitos temiam que, no poder, Bolsonaro deflagraria um autogolpe. Nunca acreditei muito nisso. Faltam-lhe as condições políticas e a competência para fazê-lo. Raras vezes tivemos um governo tão fraco.

O problema é que, mesmo perdido, dedicando-se a questiúnculas pessoais e dando vazão a manias e paranoias, Bolsonaro promove desgastes institucionais. Sua fixação com a cloroquina minou a respeitabilidade técnica do Ministério da Saúde; suas dedadas na PF fazem com que duvidemos das motivações de uma instituição que vinha ganhando credibilidade. E a lista não acaba aí. É um belo estrago para um presidente tão pequeno.


Hélio Schwartsman: Salve-se quem puder

Se o despreparo de autoridades é resultado da democracia, precisamos rever alguns conceitos

Juro que a última coisa que quero são as hemorroidas do Bolsonaro. O que me impressionou no incrível vídeo da reunião ministerial não foram tanto os palavrões nem as posições antirrepublicanas, que já sabíamos que viriam, mas o completo despreparo das autoridades ali presentes.

A desinteligência começa na própria ideia de gravar o vídeo. Desde Richard Nixon, nenhum político com mais de dois neurônios manda imortalizar situações que revelem a intimidade do poder, a menos que esteja obrigado por lei. No caso de reuniões de gabinete, não existe essa obrigação. Mesmo quando os participantes não confessam nenhum crime, acabam mostrando as entranhas dos processos decisórios, que nunca são bonitas de ver.

No caso específico, porém, há, se não confissões, indícios abundantes de crimes de responsabilidade e até de delitos penais ordinários. Depende só de Rodrigo Maia e de Augusto Aras o início de processos que podem levar à destituição do presidente.

O que realmente preocupa é o alheamento dos hierarcas. O Brasil atravessa uma crise sanitária sem precedentes e que deixará um rastro de destruição econômica raramente vista. As autoridades, porém, não falam nada de aproveitável sobre economia e mal mencionam a saúde. Estão mais preocupadas em adular o chefe e antagonizar adversários políticos. Parecem viver numa realidade paralela na qual só o que importa é a escatologia vascular do presidente.

Se esse é o resultado da democracia, precisamos rever alguns conceitos. Exigir que candidatos a presidente sejam aprovados no Enem e no psicotécnico talvez seja excessivo, mas acho que faz sentido reforçar um desenho institucional no qual certas decisões especialmente sensíveis tenham de passar por órgãos técnicos mais difíceis de aparelhar. Em tese, as agências funcionam um pouco com essa filosofia.

Precisamos dar um jeito de não ficar na mão de gente desse quilate.


Hélio Schwartsman: A ciência da cloroquina

Insistir no uso do medicamento deixou de ser racional para se converter em opção ideológica

Idealmente, a ciência informa as decisões dos políticos e não é influenciada por eles. Gestores só adotariam medidas que já tivessem sido testadas em pesquisas e jamais interfeririam no trabalho de cientistas.

No mundo real as coisas são mais confusas. Não é que governantes nunca ouçam especialistas, mas frequentemente preferem fazer aquilo que acreditam que aumentará sua popularidade ou apenas seguem seus caprichos. A política também afeta a ciência por vários canais, dos mais concretos, como a disponibilidade de verbas, aos mais sutis, como a ideologia.

Como essas considerações se aplicam à cloroquina? Em março, quando o presidente Bolsonaro se tornou um entusiasta do medicamento no combate à Covid-19, sua posição não era absurda. Havia uma hipótese teórica para explicar sua possível ação e alguns poucos trabalhos (de má qualidade, é verdade) a sugerir eficácia.

A partir daí, a ciência fez o que tinha de fazer. Deu início a vários programas de teste, cujos resultados estão saindo. Sem surpresa, vai se constatando que a droga não funciona contra a nova moléstia. Um purista poderia argumentar que ainda falta uma boa metanálise para derrubar a última esperança na cloroquina, mas já há elementos de sobra para recomendar que ela não seja distribuída a grandes populações. Os riscos dos efeitos colaterais superam os cada vez mais improváveis benefícios.

Insistir no uso da cloroquina deixou de ser uma posição racional para converter-se numa opção ideológica. Que pessoas façam isso é da vida. Mas, quando governos tentam determinar o que a ciência diz, as consequências podem ser catastróficas. Há quem atribua o fracasso econômico da URSS em parte à figura de Trofim Lysenko, o manda-chuva da área biológica que, por razões ideológicas, militava contra a genética mendeliana. Ela seria antissocialista. Sem genética, a agricultura soviética ficou para trás.


Hélio Schwartsman: Solução para o Enem

Sem a redação, a prova poderia ser adiada até março ou mesmo abril

O Enem deve ser adiado devido à pandemia? Acho que sim, dentro de certos limites. O argumento é conhecido: como os alunos mais pobres têm mais dificuldades para seguir estudando neste momento de reclusão, a manutenção do calendário reforçaria ainda mais a desigualdade no acesso ao ensino superior.

Não vejo como discordar. O ponto, me parece, é que há um limite para quanto a prova pode ser adiada e ele é dado pelo ano letivo de 2021. O sistema de ensino é um fluxo. Para cada turma que sai, precisa entrar uma nova. Não faria sentido que as universidades ficassem um período sem alunos. Também não podem condensar demais os conteúdos do primeiro ano.

Num cenário de excepcionalidade, como será 2021, as aulas, que costumam ter início em meados de fevereiro, poderiam, sem prejuízo irrecuperável, começar em abril, talvez maio, se suprimirmos as férias de julho. Isso significa que o Enem poderia ser transferido de novembro para janeiro.

Tenho uma proposta que nos daria uns dois meses adicionais. Basta eliminar a redação do Enem. Sei que é polêmico. Todo mundo adora a ideia de prova dissertativa. Em teoria, não há nada melhor do que uma redação para avaliar o estudante. Ela permite, de uma vez só, averiguar o nível de conhecimentos do candidato, sua capacidade de articular ideias e seu domínio sobre a escrita.

O problema é que é impossível corrigir milhões de dissertações de modo objetivo. Sem a redação, o Enem seria menos suscetível às idiossincrasias dos corretores, mais barato e seus resultados sairiam quase instantaneamente, que é o que nos interessa aqui. Poderíamos adiar a prova até março ou mesmo abril.

E o que perdemos abrindo mão da redação? Não muito. Apesar de nossas intuições não concordarem, é alta a correlação entre o desempenho em questões de múltipla escolha e na dissertação. Quem vai bem nos testes costuma ir bem na redação, e vice-versa.


Hélio Schwartsman: O dever do impeachment

Temos a obrigação moral de deflagrar o processo, mesmo que não tenha êxito

Não sei se um impeachment contra Jair Bolsonaro tem condições de prosperar. Numa avaliação política, eu diria que, hoje, não. Mas acredito que temos a obrigação moral de deflagrar o processo, mesmo que não tenha êxito. Os crimes de responsabilidade cometidos pelo atual mandatário são tantos, tão ostensivos e tão graves que deixar de acusá-lo equivaleria a coonestar suas atitudes.

O impeachment tem dupla natureza. Ele é ao mesmo tempo um instituto político e judicial. Se o bom articulador só deve levar sua proposta a votação quando sabe que vai ganhar, o policial é em tese obrigado a entrar em ação sempre que flagra uma ilegalidade.

No mundo real, sabemos que o guarda muitas vezes precisa fechar os olhos para violações menores, ou as delegacias ficariam atulhadas em picuinhas, mas, quando o meliante passa a agir em plena luz do dia, cometendo delitos cada vez mais graves e de forma cada vez mais conspícua, a opção de virar a cara para o outro lado já não se coloca. A maior flexibilidade proporcionada pela faceta política do impeachment não muda isso. Os desatinos de Bolsonaro atingiram um grau tal que ignorá-los seria compactuar com o perpetrante.

Estamos aqui numa situação análoga à do Partido Democrata diante das transgressões de Donald Trump. Mesmo sabendo que não havia a menor chance de o presidente ser afastado —os republicanos têm folgada maioria no Senado— e que havia o risco de a absolvição fortalecê-lo eleitoralmente, a liderança democrata entendeu que tinha a obrigação moral de tentar o impeachment. Julgou que as violações eram de tal monta que fingir que elas não ocorreram significaria faltar com o compromisso do partido com a democracia.

Em termos práticos, a diferença relevante é que Trump podia contar com a fidelidade dos senadores de um Partido Republicano cada vez mais coeso por causa da polarização; já Bolsonaro está na mão do centrão.


Hélio Schwartsman: Safado, ineficiente e burro

Bolsonaro é responsável pela morte de muita gente

Cometo hoje um ato de nepotismo. Dedico esta coluna a um tio, Victor Nussenzweig. Victor, 91, é cientista. Deixou o Brasil nos anos 60, por causa da ditadura. Ele e a mulher, a também pesquisadora Ruth (1928-2018), radicaram-se nos EUA, onde tiveram uma linda carreira científica.

Em 1967, Ruth publicou um trabalho seminal, em que mostrou que era possível induzir em mamíferos imunidade contra o protozoário causador da malária irradiando-o com raios X. A partir daí, Ruth e Victor, cada um no comando de seu laboratório, somaram esforços para desenvolver uma vacina.

Nas décadas seguintes, conseguiram identificar a proteína do Plasmodium envolvida na resposta imune, a CSP, e produzi-la em laboratório.

A CSP está na base da vacina antimalárica GSK RTS,S, que foi aprovada para uso em humanos e, desde o ano passado, vem sendo utilizada num programa-piloto em países africanos. A vacina está longe de ser uma bala de prata. Sua eficácia é de apenas 30% a 50% e exige reforços periódicos. Ainda assim, diante do fardo que a malária representa, matando 580 mil pessoas por ano, ela poderá salvar inúmeras vidas.

Alguns dias atrás chegou-me o recado de que Victor queria dizer algumas palavras sobre Bolsonaro. Pedi que as colocasse no papel.

“Não vejo nenhuma resposta do Bolsonaro frente a essa emergência sanitária. Aqui [nos EUA] vivemos com um presidente safado [Trump], mas que não é burro. Na minha opinião, Bolsonaro é safado, ineficiente e burro! Está sendo responsável pela morte de muita gente! Saí do Brasil na época da ditadura militar. Não chamo militares de militares, eu os chamo de milicos. Os milicos são o oposto dos cientistas.

Querem obediência cega. Os cientistas, ao contrário, duvidam dos dogmas e trabalham para derrubar os dogmas, estabelecer a verdade e ajudar a população.”

Victor dedicou a vida a estudar patógenos e como enfrentá-los. Sabe do que fala.


Hélio Schwartsman: Passaporte para a felicidade

Em teoria, faz sentido testar pessoas e permitir que aquelas que apresentem anticorpos voltem a trabalhar

Se há pessoas que já são imunes à Covid-19, seria loucura não utilizá-las na prestação de serviços essenciais e para começar a reerguer a economia. Não ignoro que o Sars-Cov-2 é um vírus novo, sobre o qual existem mais dúvidas do que certezas. Ainda não sabemos ao certo se uma infecção prévia confere imunidade nem, em caso afirmativo, por quanto tempo. Há também dúvidas quanto à confiabilidade dos testes para anticorpos disponíveis.

Muita pesquisa está sendo feita, e essas questões deverão ser respondidas em breve. Pelo que sabemos de outros coronaviridae, a melhor aposta é que os recuperados desenvolvam ao menos uma imunidade transitória. Também já teve início um processo de validação dos testes que deverá excluir os que não prestam.

Assim, se essas hipóteses se confirmarem, faz sentido, pelo menos em teoria, implementar os passaportes de imunidade, isto é, testar pessoas e permitir que aquelas que apresentem anticorpos (mais especificamente as imunoglobulinas do tipo G) voltem a trabalhar.

Usei a expressão “pelo menos em teoria” porque a pandemia gera um ambiente em que até a aplicação de medidas do mais puro bom senso produz efeitos colaterais. Os passaportes criariam duas classes de cidadãos. Os imunes estariam autorizados a trabalhar e a circular, estariam dispensados de usar máscaras e poderiam frequentar bares e restaurantes (à medida que fossem reabertos), enquanto os não imunes ainda teriam de viver os rigores do distanciamento social ou mesmo do confinamento.

Não é preciso bola de cristal para perceber que muita gente se veria tentada a infectar-se de propósito para passar para a classe dos privilegiados. Dependendo do tamanho desse movimento, poderíamos ver a curva dos contágios acentuar-se. Ainda acho que é insano manter em isolamento quem não precisa estar, mas é necessário reconhecer que o mundo se tornou um lugar ainda mais paradoxal.


Hélio Schwartsman: O segredo de Bolsonaro

Se ele já teve a doença, não é mais transmissor ativo do vírus

Não penso que Jair Bolsonaro deva ser obrigado pela Justiça a mostrar os resultados de seus testes para a Covid-19. Não tenho aqui a intenção de defender o presidente. Já cheguei à fase em que aplaudo tudo de ruim que acontece a ele. O que merece defesa, creio, é o instituto do sigilo médico, que só pode ser suspenso excepcionalmente e por motivos muito precisos, que não incluem a curiosidade do público.

O sigilo médico visa a proteger a vida e a saúde. Ele existe, entre outras razões, para assegurar que ninguém tenha receio de procurar socorro, mesmo que o ferimento ou a doença que o acometem tenha resultado de um crime. Um bom exemplo é o do usuário de drogas ilícitas. Se a polícia tivesse acesso direto aos prontuários médicos, um pedaço não desprezível da população pensaria duas vezes antes de procurar um hospital —o que seria desastroso em termos sanitários.

Quando, então, é certo suspender o sigilo? De um modo geral, penso que o profissional deve estar autorizado a levantar o segredo apenas para prevenir (não para investigar) certos crimes ou danos à saúde de terceiros. Se um psiquiatra tem razões para acreditar que um paciente seu que disse que planeja matar o vizinho está falando sério, aí sim ele deve comunicar o fato às autoridades. De modo análogo, o médico pode alertar a mulher de um paciente de sífilis que se recuse a seguir o tratamento.

É disso que estamos falando, de prevenir infecções, dirá o leitor farto de Bolsonaro. Receio que não. Esse teria sido o caso se a discussão judicial tivesse ocorrido contemporaneamente ao exame. Agora, com bem mais de 14 dias da data do último teste, se ele já teve a doença, não é mais transmissor ativo do vírus. A divulgação do resultado não previne mais nada. Sua justificativa é descobrir se Bolsonaro mentiu ou não.

O fato de a sociedade já não acreditar na palavra do presidente da República dá bem a dimensão do buraco em que caímos.


Hélio Schwartsman: Salvar a democracia

País já falhou na epidemia; não pode falhar na democracia

Não gosto da ideia de adiar as eleições municipais previstas para o segundo semestre e considero golpe a proposta de esticar o mandato dos atuais prefeitos e vereadores até 2022.

No mês passado, num momento da pandemia ao que tudo indica mais agudo do que será outubro, sul-coreanos foram às urnas sem que o surto tenha recrudescido. É uma prova de princípio de que eleições podem ser realizadas sem pôr a população em perigo.

É claro que talvez sejam necessárias adaptações. O problema é que nossa legislação eleitoral é rígida, detalhista e não admite alterações que não tenham sido aprovadas ao menos um ano antes do pleito. Daí que sugiro aprovar desde já uma PEC que conceda à Justiça Eleitoral, em caráter excepcional, poderes discricionários para alterar prazos e eventualmente mexer em outros aspectos do pleito.

A principal dificuldade prática é o teste das urnas eletrônicas. Não me convence. Ainda há muito tempo até outubro, e não vejo motivo para não classificarmos o trabalho do pessoal dos cartórios eleitorais como essencial. Afinal, se padarias e centrais de atendimento telefônico podem funcionar, a conferência das urnas também pode.

No plano político, o obstáculo no cronograma são as convenções partidárias, que devem ocorrer entre 20 de julho e 5 de agosto. O receio é que elas produzam aglomerações. De novo, não me convence. Basta determinar às legendas que realizem seus encontros de forma remota. Há tempo de sobra para preparar isso.

Se o afastamento social ainda for necessário em outubro, a Justiça pode fazer com que a votação se estenda por mais de um dia, para evitar as filas. Obviamente, seria preciso também suspender a obrigatoriedade do voto, para que as pessoas que não se sintam seguras em expor-se ao vírus não sejam obrigadas a fazê-lo.

O Brasil já fracassou no controle da epidemia; não precisa fracassar também na manutenção da democracia.


Hélio Schwartsman: Voltamos ao normal

Fenômenos como Jair Bolsonaro são só manifestação paroxística dessa enfermidade coletiva

“Quando as coisas vão voltar ao normal?” é a pergunta que não quer calar. A palavra “normal” é traiçoeira, já que encerra tanto uma dimensão moral, designando algo nas proximidades de “aceitável”, como uma mais estatística, quando assume o significado de “corriqueiro”. Se nos centrarmos na segunda acepção, a resposta é: “acabamos de voltar”.

Doenças não apenas são uma constante na história da humanidade como também constituem uma das principais forças a modular a evolução das espécies. Elas estão por trás de algumas das mais dramáticas transformações da vida no planeta, como o advento da reprodução sexuada.

Se há uma parcial exceção a essa regra são as últimas sete ou oito décadas, quando uma feliz conjunção de desdobramentos da ciência —a difusão do tratamento de água e esgoto, das vacinas e de agentes antimicrobianos— fez com que os países desenvolvidos experimentassem a sensação de que as doenças infecciosas haviam sido derrotadas.

Com efeito, conseguimos extinguir a varíola e, nas nações mais avançadas, praticamente zerar as mortes por pólio, sarampo, raiva, arboviroses e helmintíases. Países em desenvolvimento iam na mesma trilha.

Essas poucas décadas de sucesso nos deixaram mal acostumados. Perdemos a sensação de angústia que as doenças infecciosas produziam em nossas mentes. Esquecemos que, oito décadas atrás —a geração de meus pais—, ainda se morria por causa de um corte bobo que infeccionasse e as diarreias faziam com que enterrar bebês fosse coisa absolutamente normal.

Paradoxalmente, essa dessensibilização para a gravidade das infecções nos leva a atitudes que ficam entre as suicidas, como deixar de vacinar as crianças, e as temerárias, como não investir em vigilância epidemiológica e no desenvolvimento de novas classes de antibióticos. Fenômenos como Jair Bolsonaro são só uma manifestação paroxística dessa enfermidade coletiva.