Hélio Schwartsman
Hélio Schwartsman: A nova face do racismo
Racismo contemporâneo se materializa principalmente no chamado racismo implícito
O texto que escrevi sobre a possibilidade de o racismo ter contribuído para a queda do professor Carlos Alberto Decotelli do comando do MEC ensejou vários questionamentos de leitores, de modo que volto ao tema hoje.
O racista clássico, do tipo que xinga negros, diz que são uma raça inferior e veste um lençol na cabeça para caçá-los, é, felizmente, uma espécie em extinção —exceto, talvez, em alguns departamentos de polícia. Aliás, a rapidez com que, no Ocidente, passamos de um contexto em que a discriminação estava sacramentada nas leis de vários países para um em que é vista como falha moral intolerável representa uma grande conquista da civilização, que nem sempre é reconhecida como tal.
Não obstante, o racismo continua aí, como se pode verificar em uma miríade de estatísticas sociais e experimentos psicológicos. Uma explicação para o fenômeno é dada por Mahzarin Banaji (Harvard) e Anthony Greenwald (Universidade de Washington), autores do excelente “Blindspot” (ponto cego), que já comentei aqui.
Para a dupla, o racismo contemporâneo já não se materializa tanto em atos explícitos de discriminação (o que não significa que nunca ocorram), mas principalmente no chamado racismo implícito, que é aquele do qual os próprios autores não se dão conta, mas que pode ser acessado através de testes psicológicos.
Na vida prática, isso se traduz não numa rejeição aberta ao negro, mas em sua exclusão dos gestos de benevolência que as pessoas reservam àqueles aos quais se sentem de alguma forma próximas.
Estamos falando da professora que deixa de dar uma atenção extra ao aluno negro por percebê-lo, ainda que inconscientemente, como um caso perdido, ou do policial que não alivia as coisas para o adolescente negro pego com alguns cigarros de maconha, mas livra a barra do garoto branco flagrado na mesma situação. No agregado, esses detalhes fazem enorme diferença.
Hélio Schwartsman: O racismo contribuiu para derrubar Carlos Alberto Decotelli?
Meios acadêmicos têm justificado viés antibolsonarista e foram implacáveis com ele
O racismo contribuiu para derrubar Carlos Alberto Decotelli do comando do Ministério da Educação?
A essa altura não há dúvida de que ele inventou para si títulos que não obtivera, o que é um dos pecados mais graves que se pode cometer na vida acadêmica, além de ilícito penal, caso a mentira seja registrada em documentos públicos como a plataforma Lattes. E isso, creio, é mais do que suficiente para desqualificá-lo para o cargo, que nem chegou a assumir. Ainda assim, é possível que o chamado racismo institucional tenha dado uma ajudinha.
Como quase ninguém admite ser racista, a melhor forma de constatar o fenômeno é recorrer às estatísticas, em busca de desfechos diferenciados para negros e não negros que tenham logrado os mesmos êxitos ou incorrido nos mesmos erros. Trocando em miúdos, não negros que também falsificaram seus currículos tiveram o mesmo tratamento dispensado a Decotelli?
Numa análise perfunctória das histórias de políticos que pregaram mentiras curriculares, a resposta é negativa. O próprio governo Bolsonaro abriga dois ministros que já turbinaram seus CVs, Damares Alves e Ricardo Salles.
Se expandirmos um pouco mais o círculo, temos os casos do governador Wilson Witzel, da ex-presidente Dilma Rousseff e do ex-chanceler Celso Amorim. Nenhum deles chegou perto de ter sua carreira ameaçada pela imaginação fértil. Nosso número de casos é pequeno demais para autorizar conclusões científicas, mas basta para deixar a suspeita no ar.
Também seria possível argumentar que o que atrapalhou Decotelli, mais do que o fato de ser negro, é o fato de ser bolsonarista. Os meios acadêmicos têm um forte e justificado viés antibolsonarista e por isso foram implacáveis com o ex-quase-ministro. De qualquer forma, o embelezamento curricular é um fenômeno maciço.
Levantamento de 2019 da DNA Outplacement mostrou que 75% dos CVs enviados aos RHs de 500 empresas no Brasil continham informações distorcidas. Os pontos sobre os quais os candidatos mais mentem são salário (48%) e fluência no inglês (41%). Escolaridade e títulos acadêmicos são deturpados por 10% dos profissionais. Uma das razões por que se mente tanto, acredito, é que se checa pouco.
Que um RH de uma empresa pequena deixe essas coisas passarem é mais ou menos esperado. Mas, quando quem come mosca é um governo que conta com vários serviços de informação, civis e militares, já entramos no terreno da incompetência estrutural.
Hélio Schwartsman: Imunidade duradoura?
Talvez não viremos a ter a imunidade de rebanho nem no futuro
Causou preocupação o estudo chinês publicado na Nature Medicine que mostrou que pacientes contaminados pelo vírus Sars-CoV-2 experimentaram uma significativa redução nos níveis de IgG e de anticorpos neutralizantes entre dois e três meses após a infecção. Em alguns casos (40% dos assintomáticos e 13% dos sintomáticos), a doença se tornou indetectável pelos testes sorológicos.
O estudo, que precisaria ser replicado, tem uma série de implicações, todas inquietantes. A mais óbvia é que precisamos desconfiar dos resultados de testes para anticorpos, seja nos inquéritos sorológicos, seja para a emissão dos chamados passaportes de imunidade. Aqui, a própria ideia de liberar a circulação de pessoas que apresentem testes positivos se torna duvidosa, já que não há segurança nem de que os exames retratem adequadamente quem já teve contato com o vírus nem de que a imunidade propiciada por uma infecção prévia seja duradoura.
É esse último ponto que incomoda. Se a imunidade é mesmo de curta duração, não poderemos contar com a imunidade de rebanho nem no futuro, e até a possibilidade de desenvolvermos vacinas eficazes pode ser colocada em questão.
E não é só. Todos os modelos que usamos para projetar o avanço da epidemia são do tipo SIR, isto é, presumem que as pessoas que se recuperam permaneçam nessa condição por um tempo razoável. Se eles estão errados, deveríamos adotar modelos SIS, que trariam cenários mais sombrios.
Devemos, então, nos desesperar? Ainda não. Como dizem os médicos, a clínica é soberana. O vírus circula há mais de seis meses na China e ainda não vimos levas de pacientes recuperados voltando a ficar doentes. Quando isso acontecer, teremos uma resposta precisa sobre a duração da imunidade. Por ora, o que dá para dizer é que o enigma da resistência à Covid-19 é mais complexo e deve incluir, além de anticorpos neutralizantes, a imunidade inata e a celular.
Hélio Schwartsman: O segredo da democracia
Não faltam teorias românticas, quase religiosas, para justificar esse regime político
Por que a democracia é boa para nós? Não faltam teorias românticas, quase religiosas, para justificar esse regime político, que se consolidou nos países mais avançados a partir do século 20.
Uma delas, de forte apelo popular, diz que a democracia faz sua mágica ao promover escolhas conscientes por parte dos cidadãos. Quanto mais instruída for a população, melhores decisões ela tomará. Outra, mais comum nos meios acadêmicos, sustenta que a democracia funciona porque permite que os governantes sejam recompensados (reeleitos) ou punidos (postos para fora) de acordo com seu desempenho.
É bobagem, e há um bom número de obras de divulgação de que já tratei aqui, como “The Myth of the Rational Voter”, “Democracy for Realists”, “Democracy Despite Itself?” e vários títulos de Adam Przeworski, que desmontam, até com algum humor, essas e outras teorias. Mas, se não é isso, perguntar-se-á o leitor, o que é então.
Vem ganhando força a ideia de que a democracia funciona porque, sob determinadas condições, permite que as disputas políticas se resolvam sem recurso à força. Ela cria um ambiente em que é mais vantajoso, mesmo para quem perde eleições, esperar algum tempo para voltar ao poder do que impor-se pela violência.
Para que isso ocorra, é preciso assegurar que os vencedores não tenham como abusar do poder conquistado, o que implica a existência de um núcleo duro de direitos e garantias que não podem ser suprimidos em nenhuma hipótese, como incolumidade física, liberdade de expressão e a própria manutenção de eleições.
Przeworski vai ainda mais longe e afirma que, para funcionar bem, é importante que, ao longo do tempo, os resultados de eleições não façam muita diferença, isto é, não criem nada muito irreversível. Basicamente, a democracia dá certo porque ela limita as possibilidades de mudança diante de eleitores e de governantes. É paradoxal, mas faz sentido.
Hélio Schwartsman: Bandeiras esmigalhadas
É difícil vislumbrar um futuro tranquilo para o governo Jair Bolsonaro
O governo Bolsonaro é tão “sui generis” que deu férias para a oposição. Ele mesmo se encarrega de sabotar a si próprio. Mas, se tivéssemos uma oposição atuante, ela estaria agora empenhada em explorar ao máximo a notícia, divulgada pelo Ministério Público do Rio de Janeiro, de que Flávio Bolsonaro usou dinheiro vivo supostamente recolhido por Fabrício Queiroz em gastos pessoais.
É uma situação de puro simbolismo. Verbas públicas desviadas para o pagamento de despesas indisfarçavelmente pessoais como a escola das filhas e o plano de saúde da família são, no imaginário popular, a definição mesma de corrupção.
A confirmar-se uma denúncia sólida de envolvimento do filho número um num caso de desvio de dinheiro público, vai-se uma das últimas racionalizações ainda usadas pelo eleitor não arrependido de Bolsonaro: “pelo menos é honesto”. A honestidade, afinal, exigiria do primeiro mandatário, senão que denunciasse o próprio rebento, ao menos que não violasse princípios republicanos para protegê-lo.
Uma a uma, estão caindo todas as bandeiras defendidas por Bolsonaro durante a campanha eleitoral. A retórica antissistema se foi com a aliança com o centrão. O discurso liberal é cada vez mais escanteado, em parte porque a epidemia exige mesmo maior atuação do Estado, em parte porque a conversão de Jair nunca foi autêntica. A promessa de combater a corrupção, que já sofrera abalo com a demissão de Sergio Moro, vira agora migalhas.
É difícil vislumbrar um futuro tranquilo para o governo. Hoje, só temos duas certezas: a economia ainda vai piorar bastante e a epidemia vai fazer muito mais vítimas antes de refluir. Nenhuma delas sugere dias fáceis para Jair Bolsonaro.Hélio Schwartsman
*Jornalista, foi editor de Opinião. É autor de "Pensando Bem…".
Hélio Schwartsman: Liberdade na rede
Pretendo discutir hoje a regulação das redes sociais. O tema ganhou proeminência com o inquérito das “fake news” e a decisão de algumas empresas de apagar ou marcar como duvidosos posts dos presidentes Jair Bolsonaro e Donald Trump.
As redes sociais não realizaram o sonho de alguns visionários de tornar o mundo um lugar mais democrático e igualitário, mas também não me parece justo atribuir a elas a culpa por todos os males de nosso tempo. Mentiras e polarização são um problema, mas já existiam muito antes da internet. Os computadores apenas amplificaram seu alcance.
Os dilemas com os quais lidamos quando nos propomos a regular as redes não são, portanto, novidade. De um lado, temos a liberdade de expressão, que está no DNA do liberalismo democrático, e, de outro, os danos concretos que inverdades estrategicamente plantadas podem ocasionar, para indivíduos, empresas e para o próprio ambiente institucional.
A grande dificuldade é que não dá para simplesmente delegar a uma repartição pública o poder de decidir o que pode ser dito. Alguns Estados já fizeram isso e o resultado não foi bom. Não precisamos de um Ministério da Verdade. A terceirização dessa responsabilidade para agências de checagem também não funcionaria.
A ideia de tornar as empresas legalmente corresponsáveis pelos conteúdos postados também é complicada. Se a adotássemos, prevaleceriam os advogados, que, para evitar processos, vetariam tudo o que vá além de fotos de gatinhos.
Alternativas menos ruins são a responsabilização “a posteriori” dos autores na Justiça e colocar a pressão da opinião pública sobre as empresas para que elas próprias encontrem soluções. Isso já começou a acontecer e elas estão se mexendo, algumas mais rápido do que outras.
É preferível ver uma empresa privada levantando dúvidas sobre a palavra do presidente a um órgão de Estado calando o candidato da oposição.
Hélio Schwartsman: 50 mil mortos
Demos enorme realce a números que sabemos estarem errados
Todos os jornais deram com destaque que o Brasil ultrapassou a funesta marca de 50 mil mortos e 1 milhão de infectados.
Entendo perfeitamente a necessidade de transmitir para o público a dimensão da tragédia, especialmente quando as autoridades federais se empenham em diminuí-la, mas a iniciativa esconde uma contradição, que, penso, vale a pena explorar nesta coluna.
O problema básico é que demos enorme realce a números que sabemos estar errados, o que vai contra o ideal de precisão perseguido pela imprensa. Com efeito, dia sim, dia também, jornais publicam reportagens sobre o fenômeno subnotificação, que afeta tanto o total de infectados como o de óbitos.
No que diz respeito ao número de pessoas que já entraram em contato com o vírus, uma das melhores formas de estimá-lo são os inquéritos sorológicos, em que se testam os anticorpos de amostras representativas da população.
O estudo Epicovid-19 pretende fazer isso em nível nacional. Os resultados de sua segunda fase, com campo entre os dias 4 e 7 de junho, davam que 2,6% da população pesquisada em 83 municípios já haviam sido infectados. Extrapolando isso para o país, no início do mês corrente, o Brasil já tinha mais de 5,4 milhões de contaminados. Para as mortes, um bom jeito de calcular a subnotificação é a partir do excesso de óbitos verificados em certas categorias em relação a uma média de anos anteriores.
Marcelo Soares, num levantamento para O Globo, acaba de mostrar que podemos atribuir à Covid-19 mais 21 mil dos óbitos por SRAG (síndrome respiratória aguda grave) que foram registrados sem identificação do agente etiológico. E as mortes por SRAG são só parte da história.
Quadros respiratórios são a principal apresentação grave da Covid-19, mas não a única. Uma fatia dos óbitos por vasculopatias, que incluem infartos, AVCs, TEPs e insuficiências renais, também pode ser creditada ao vírus. A moral da história é que, a crer na própria imprensa, tanto a baliza de 50 mil mortos como a de 1 milhão de infectados foram atingidas um bom tempo atrás, ainda que não saibamos precisar quando. Por que, então, tanto destaque agora?
Minha hipótese é que fomos vítimas de um duplo viés humano. Nossa espécie tem fascinação tanto por contagens como por números redondos. O sinal mais eloquente de que uma criança se assenhorou da lógica que preside o sistema numérico surge quando ela se propõe a contar até cifras cada vez maiores: cem, mil… Não perdemos esse hábito na maturidade.
Sempre que um evento importante como uma Olimpíada está para ocorrer, uma das primeiras providências das autoridades é instalar em praça pública uma espécie de relógio que faz a contagem regressiva de quantos dias faltam para o início dos jogos. Nosso encanto com números redondos é ainda mais forte.
Apesar de todas as passagens de ano serem iguais e não significarem objetivamente nada, costumamos celebrar as mudanças de século com muito mais festividades do que as de anos regulares. E, como também somos uma espécie que adora batalhas em torno de símbolos, conseguimos transformar irrelevâncias em disputas.
Leitores com mais de 35 anos se lembrarão da celeuma em torno da comemoração do milênio, se deveria ser em 2000, como queriam os redondistas, ou em 2001, como cobravam os puristas. Essa veia polêmica nem sempre é divertida. Ela está na base da polarização que tanto nos atrapalha agora, quando precisaríamos dar uma resposta coordenada e firme à pandemia.
Hélio Schwartsman: Covid-19 é um rinoceronte cinza, já que era totalmente previsível
Infectologistas apontavam que era questão de tempo até que uma pandemia viral nos atingisse
Até o final do século 17, europeus, inspirados por versos do poeta Juvenal, usavam a expressão “cisne negro” para designar uma impossibilidade. Todos os cisnes até então avistados eram brancos.
Não foi sem assombro, portanto, que descobriram, a partir de relatos de exploradores, que havia cisnes negros na Austrália. O termo passou, então, a designar a falácia lógica da generalização apressada e, de maneira menos técnica, eventos surpreendentes.
Mais recentemente, o escritor Nassim Taleb popularizou a noção de cisne negro como um acontecimento raro, de enormes consequências e que não foi previsto pelos especialistas. Exemplos de cisnes negros incluem a dissolução da URSS, o surgimento da internet e o 11 de Setembro.
A Covid-19 entra nessa lista? Penso que não. Taleb também. Ele prefere chamá-la de rinoceronte cinza, já que era totalmente previsível. Com efeito, infectologistas afirmavam havia décadas que era uma questão de tempo até que uma pandemia viral nos atingisse em cheio. Havia dúvidas em relação ao “quando”, mas não quanto ao “se”.
Há outros rinocerontes cinza. Sabemos que um dia um megaterremoto vai devastar cidades da costa oeste dos EUA, mas, ainda assim, milhões de pessoas vivem nelas tranquilamente. Sabemos que, se não usarmos antibióticos com mais sabedoria, logo teremos um gigantesco problema com bactérias resistentes. Sabemos que o aquecimento global é uma realidade.
Por que não fazemos tudo o que está a nosso alcance para evitar desastres previstos? Eu receio que o conhecimento intelectual, que é o que a ciência é capaz de oferecer, não seja um grande motivador.
Nossos cérebros, afinal, são pré-científicos. É só ver que temos um medo irracional de cobras, que não matam quase ninguém em ambientes urbanos, mas não nos incomodamos em pular o exercício nem em comer além da conta, que respondem por um bom pedaço dos óbitos modernos.
Hélio Schwartsman: Racismo, passado e futuro
Não dá para interpretar o passado com os olhos de hoje.
O racismo é moralmente condenável porque atribui a um indivíduo particular características tidas como representativas da categoria a que ele pertence. O racista tira conclusões sobre pessoas sem conhecê-las, o que é profundamente injusto e frequentemente fatal, como se constata nas abordagens policiais de negros nos EUA ou no Brasil.
Nesse contexto, vejo com simpatia os protestos mundiais deflagrados pelo assassinato de George Floyd. Não sou tão panglossiano a ponto de acreditar que acabarão com o racismo, mas dão visibilidade ao problema e, numa nota mais prática, já estão provocando mudanças nos protocolos policiais que poderão reduzir a violência das forças de segurança.
Meu apoio a esses movimentos, porém, é crítico. Não creio que faça muito sentido se revoltar contra personagens históricos como Cristóvão Colombo e Winston Churchill e quebrar-lhes estátuas. Não dá para interpretar o passado com os olhos de hoje.
Vamos encontrar pérolas racistas não apenas em Churchill mas também em figuras muito mais identificadas com o chamado progressismo, como Abraham Lincoln, Che Guevara e Gandhi. E não precisamos parar aí. Shakespeare tem passagens nitidamente antissemitas, Eurípedes era um rematado misógino, e Aristóteles, um escravocrata de mão cheia. Vamos banir todos eles das bibliotecas em nome da luta contra o racismo e o preconceito? De minha parte, não gostaria de viver num mundo sem os clássicos.
A verdade é que, gostemos ou não, somos prisioneiros de nossas épocas. Em qualquer período que vivamos, há sempre um horizonte de possibilidades morais além das quais é muito difícil enxergar. Aposto que, em cem anos, o tratamento que dispensamos a animais e prisioneiros fará parte do rol de crimes do passado. Deixar de ver isso e exigir de todos aqueles que nos antecederam as atitudes morais que cobramos dos contemporâneos também é uma tremenda injustiça.
Hélio Schwartsman: Vírus tendem a ser inflexíveis
Quarentena meia-boca não basta para reduzir substancialmente a circulação do Sars-CoV-2
Não é que os planos de reabertura econômica dos governadores sejam irracionais. Eles se baseiam nos parâmetros cientificamente relevantes, como a evolução do contágio e a ocupação dos leitos hospitalares, e, mais importante, preveem a possibilidade de volta do isolamento social, caso os números piorem.
Receio, porém, que eles tenham deixado de levar em conta aspectos menos racionais do comportamento humano.
Num mundo ideal, em nome da previsibilidade, as discussões sobre como sair da quarentena precederiam a própria quarentena. Só que não vivemos num mundo ideal, mas sim em um no qual a simples menção a uma abertura futura faz com que muitas pessoas passem a comportar-se como se já tivéssemos voltado à normalidade, sabotando os esforços de distanciamento social.
Dada essa idiossincrasia humana, que é bem conhecida de psicólogos, psiquiatras e economistas comportamentais, não sei se foi muito inteligente falar em retomada num momento em que, em grande parte dos estados, ainda é forte a circulação comunitária do vírus. O risco é vermos as curvas voltarem a subir antes mesmo de as termos estabilizado.
Nesse quesito, o Brasil não está se saindo muito bem. Acho que nosso relativo fracasso tem algo a ver com o tão celebrado jeitinho brasileiro, definido como flexibilidade criativa em relação a regras. Um bom exemplo é o do empresário que, para poder abrir suas lojas de eletrodomésticos, passou a vender também arroz e feijão.
Não digo que o jeitinho seja sempre ruim. Há muitas situações em que jorros de flexibilidade são desejáveis. Mas a contenção de uma epidemia não é uma delas. Vírus tendem a ser inflexíveis. O resultado disso são quarentenas meia-boca, que não bastam para reduzir substancialmente a circulação do Sars-CoV-2 e, justamente por isso, vão prolongando os dolorosos efeitos da inatividade econômica. É uma espécie de pior dos mundos pandêmico.
Hélio Schwartsman: Quando o chefe é a crise
Donald Trump é o responsável por incendiar os protestos nos EUA
Os mais novos talvez não acreditem, mas, nos EUA dos anos 90, democratas e republicanos eram indistinguíveis em suas crenças sobre o aquecimento global. Naqueles tempos, vacinas e cesarianas não provocavam discussões políticas, e autores respeitáveis podiam escrever sem passar vergonha que não faria muita diferença se os EUA tivessem um presidente democrata ou republicano, desde que Alan Greenspan permanecesse no comando do Fed, o banco central daquele país.
Obviamente, não dá para dizer que nos anos 90 não existia ideologia. Ela estava lá, mas havia uma espécie de etiqueta comportamental observada por todas as pessoas educadas e, principalmente, pelas lideranças políticas.
Era inconcebível, por exemplo, que, num momento de grave crise, o presidente americano, fosse ele democrata ou republicano, não apelasse a um discurso de união nacional e recebesse apoio ao menos parcial da oposição e do público.
Hoje, o presidente americano é a crise. Donald Trump não é o responsável pelo assassinato de George Floyd, mas suas reações ao pavoroso episódio não só não contribuíram para pacificar a nação como ajudam a incendiar os protestos.
É difícil dizer até que ponto ele age assim por método ou por maldade. Trump pertence à escola de políticos populistas que busca sempre criar conflitos que explorem as divisões ideológicas para energizar sua base. Mas seguir esse roteiro não implicaria escolher sempre a posição mais imoral. Isso ele parece fazer por gosto mesmo.
O ponto central é que, ao longo das últimas décadas, houve uma brutal polarização na paisagem política dos EUA, que se manifesta em múltiplas facetas. Curiosamente, nos modorrentos anos 90, muitos cientistas políticos e jornalistas se queixavam da pouca diferenciação ideológica entre os dois principais partidos e cobravam mais polarização. Dizem que os deuses punem os mortais atendendo a seus desejos.
Hélio Schwartsman: Manifestos e manifestações
Ingrediente que faltava para o impeachment, a população nas ruas, pode estar começando a surgir
As coisas pioraram para o presidente Jair Bolsonaro. O ingrediente que faltava para o impeachment, a população nas ruas, pode estar começando a surgir. Os outros dois, a saber, crimes de responsabilidade e uma megacrise econômica, já estavam presentes e seguem com tendência de alta.
Bolsonaro conseguiu o que parecia impossível, que é unir as torcidas organizadas de clubes com rivalidades ancestrais e histórico de confrontos pela defesa da democracia. Louvo-lhes o gesto cívico, mas, diante de curvas pandêmicas ainda ascendentes, não me parece uma boa ideia que as pessoas vão literalmente para as ruas, quando podem fazê-lo virtualmente, através dos vários manifestos pró-democracia que estão aparecendo e ganhando signatários. Espero que o R0 desses abaixo-assinados seja maior que o da Covid-19.
É importante que a sociedade civil deixe claro que está mobilizada para defender as instituições. O alvo primário do recado é o centrão. Ninguém imagina que os políticos desse grupo pegarão em armas por Bolsonaro. Eles sempre se movem por oportunismo e sabem muito bem que, na hipótese de um autogolpe promovido pelo presidente, se dariam mal. Mas precisam de sinais mais ou menos inequívocos de como andam os humores do eleitorado para deflagrar um eventual processo de debandada.
Outros destinatários incluem chefes de Poderes, que devem sentir-se respaldados para traçar linhas que não podem ser ultrapassadas, e generais do Exército, que talvez precisem de um sacolejo para entender que não vale a pena sacrificar décadas de esforço para melhorar a imagem da instituição a fim de defender um ex-tenente fracassado e insubordinado que só pensa em livrar a cara da família cheia de rolos policiais.
Por falar em polícia, o governador João Doria deveria deixar a Polícia Militar nos quartéis no próximo domingo. As ruas ficam mais seguras sem a tropa engrossando as hostes bolsonaristas.