Hélio Schwartsman

Hélio Schwartsman: O tribalismo inviabiliza a democracia?

Ele não impede um país de se democratizar, mas exige adaptações

Hélio Schwartsman / Folha de S. Paulo

Li em vários artigos que os EUA fracassaram em implantar uma democracia viável no Afeganistão porque desconsideraram o caráter tribal do país. Não afirmo que essa análise esteja errada, mas é preciso qualificá-la.

Socorro-me aqui de "The WEIRDest People in the World", de Joseph Heinrich, livro que já comentei. São poucas as nações que lograram desenvolver uma psicologia não tribal, isto é, mais pautada pela crença no individualismo, no livre-arbítrio e na universalidade das leis do que ditada por sistemas de lealdades familiares. O fenômeno, também designado como psicologia "weird" (acrônimo inglês para "ocidental, educado, industrializado, rico e democrático"), é característico da Europa ocidental e de algumas de suas ex-colônias e pouco representativo da média da humanidade.

Não é difícil identificar indivíduos e populações "weird" através de testes como um em que se pergunta se a pessoa testemunharia contra um amigo que tivesse cometido um crime. Povos "weird" aceitam essa ideia. A lei, afinal, é para todos. Já os de mentalidade mais tribal tendem a vê-la como uma traição aos deveres da amizade. A psicologia "weird" está na base de instituições como a democracia, além do avanço das ciências e o rápido crescimento econômico.

As coisas se complicam quando verificamos que alguns países, como Japão e Coreia do Sul, embora conservem a psicologia não "weird", se tornaram democracias ricas. A China não pegou a parte da democracia, mas é potência econômica e científica. Como explicar isso? Segundo Heinrich, esses países já tinham uma longa experiência com Estados fortes, que estimulavam a educação formal. Também não tiveram pruridos em adotar hábitos e instituições copiados do Ocidente, que serviram, se não para eliminar, ao menos para reduzir a influência da lógica de clãs em suas sociedades.

O tribalismo não impede um país de se democratizar, mas requer adaptações.

Fonte: Folha de S. Paulo
https://www1.folha.uol.com.br/colunas/helioschwartsman/2021/10/o-tribalismo-inviabiliza-a-democracia.shtml


Hélio Schwartsman: É preciso agir contra os ataques de Bolsonaro

Num país mais decente, Bolsonaro já teria sofrido impeachment há tempos

Hélio Schwartsman / Folha de S. Paulo

O tão temido 7 de Setembro de Bolsonaro não produziu mais do que discursos delirantes e incidentes isolados, como era mais ou menos esperado. O problema é que a coisa não acabou. O capitão reformado segue à frente do Executivo e continuará a investir contra os outros Poderes. Nesse contexto, o Dia da Pátria foi uma escalada, precipitada pelo desespero de quem vê suas chances de reeleição minguarem, mas ainda assim uma escalada. Devemos esperar mais ataques à democracia.

Num país mais decente, Bolsonaro já teria sofrido impeachment há tempos. Ao nem sequer abrir um processo para avaliar se o presidente comete crimes de responsabilidade, a Câmara dos Deputados normaliza suas atitudes antidemocráticas. Felizmente, a resistência ao golpismo presidencial não está limitada ao Parlamento. A cúpula do Judiciário, alvo dos principais ataques de Bolsonaro, sentiu na pele a pressão e resolveu reagir.

A capacidade de resposta do STF e das cortes superiores, porém, é limitada, porque a Constituição blinda o presidente contra ações penais. Elas só podem ser iniciadas com o aval do procurador-geral da República e de 2/3 dos deputados. Mas é possível tentar frear o presidente por outras vias. O TSE já tem os elementos para considerá-lo inelegível em 2022. Também é possível encarcerar os aliados mais exaltados do capitão reformado e até algum dos filhos. No limite, o STF poderia determinar medidas cautelares contra um presidente que comete crimes inafiançáveis e imprescritíveis descritos na Constituição.

Esses são remédios de emergência que talvez se façam necessários. A resposta correta, contudo, como venho insistindo aqui há mais de um ano, teria sido o impeachment. Um observador benigno pode até achar que a população foi enganada pela campanha mentirosa de Bolsonaro quando o elegeu. Mas não há desculpa para a sociedade que tolera ver ataques constantes à democracia sem tomar uma atitude.

Fonte: Folha de S. Paulo
https://www1.folha.uol.com.br/colunas/helioschwartsman/2021/09/e-preciso-agir-contra-os-ataques-de-bolsonaro.shtml


Ruas foram espuma, projeto de golpe continua, elite ainda é conivente com Bolsonaro

Não houve putsch das falanges bolsonaristas, mas mais um dia de progresso do golpe

Vinicius Torres Freire / Folha de S. Paulo

No 7 de Setembro, Jair Bolsonaro cometeu mais alguns crimes de responsabilidade, motivo de processo de impeachment, entre outros que podem se tornar objeto de inquérito e condenação no STF. Na noite desta terça-feira (7) lúgubre, uns senadores haviam decido ir ao Supremo pedir a investigação por meio de uma “notícia-crime”. Os ministros, por sua vez, por ora ainda discutiam a elaboração de uma “mensagem dura” (hum...), apesar de Bolsonaro ter chamado alguns deles de “canalhas” e de dizer, aliás outra vez, que pode ou não obedecer a decisões do tribunal maior.

Vai ter consequência? Uns governadores, uns gatos pingados do PSDB e um ou outro partido centróide passaram a sussurrar a palavra “impeachment”. Um tucano manco, aliás meio bolsonarista, umas andorinhas depenadas e um monte de galinhas gordas de emendas não fazem um verão neste tenebroso inverno de Bolsonaro. As elites precisam tomar vergonha na cara (...), pois o tirano não vai parar a não ser que seja confrontado objetivamente. Se não o fazem, estão a dizer, na prática, que essa alternativa ou qualquer outra são piores do que Bolsonaro. Em geral, o mundo político se ocupa apenas e mal e mal de eleição, sem que ao menos exista oposição organizada, menos ainda da “terceira via”.

Que mais aconteceu em mais um dia de golpeamento da República e do projeto dos Bolsonaro de fugir da polícia? A espuma das ruas.

Sim, Bolsonaro até que juntou muita gente em São Paulo, cerca de 125 mil pessoas na Paulista, na conta razoável da Polícia Militar (este jornalista esteve lá), o equivalente a 1% da população da cidade. Sim, poderia ter acontecido algo de muito mais grave, mortes, depredação das sedes dos Poderes etc. No essencial, foi o de sempre.

Grosso modo, nas ruas houve a espuma de aglomerações covidárias em São Paulo e uns arreganhos de falangistas mais organizados em Brasília, financiados pelo agro ogro e por outros empresários bolsonaristas. No entanto, o Domingo no Parque autoritário paulista foi uma reunião meio cansada e não muito sensacional de gente convertida, não de batalhões fascistas prontos para a marcha (ainda reclusos em certos quartéis, clubes de tiro e milícias).

Bolsonaro falou para o “público interno” e não tratou de assunto real do país, nem para fazer demagogia: fome, inflação, falta d’água e luz, de emprego. Em Brasília, disse ao público que chamaria o “Conselho da República”, a quem mostraria fotos da sua força nas ruas. Era uma bravata para a galera e uma ameaça avacalhada e inviável de decretar um estado de sítio ou algo assim.

A espuma fez borbulha em mais um dia de trabalho do bolsonarismo: a normalização do golpe e a tentativa de espalhar medo, de intimidação física, um tanto frustrada. O problema está aí: Bolsonaro continua a tocar o seu projeto sem que seja impedido de maneira decisiva, um sucesso relativo. Normalizou a discussão de golpe. Sujeitou o país à tutela militar: gente da política e dos Poderes vai até os quarteis perguntar se vai haver golpe.

Na prática, conseguiu fazer com que a maior parte da elite política e econômica aceitasse seu programa de destruição do “sistema”, elite que apenas se moveu diante da ameaça explícita e reiterada do golpe de Estado. Até agora, a degradação selvagem do país havia sido tolerada: saúde, educação, desumanidade, preconceito, cafajestagem, “rachadinha”, administração comezinha do governo, desprezo internacional, em parte e por alguns justificada pelos 30 dinheiros de meia dúzia de “reformas”, muitas delas porcas.

Fonte: Folha de S. Paulo
https://www1.folha.uol.com.br/colunas/viniciustorres/2021/09/ruas-foram-espuma-projeto-de-golpe-continua-elite-ainda-e-conivente-com-bolsonaro.shtml


Hélio Schwartsman: A revanche do cabo e do soldado

A seguir nessa toada, bastarão um cabo e um soldado da PM munidos de ordem judicial para apear Jair Bolsonaro da Presidência. O governo enfrenta batalhas em vários fronts —e está perdendo todas.

O teatro de operações mais vistoso é a CPI da Covid. Os depoimentos vêm não apenas escancarando o completo despreparo do governo para lidar com a crise como o seu descaso para com o que se convencionou chamar de verdade. Para proteger o presidente, ex-ministros não hesitam em cair em contradições flagrantes e sustentar o insustentável.

O campeão foi o ex-ministro Eduardo Pazuello. Para tentar conciliar as declarações do presidente sobre a Coronavac com a tese de que ele não atrapalhou a política do Ministério da Saúde de aquisição de vacinas, Pazuello basicamente defendeu que o que Bolsonaro diz não pode ser levado a sério.

Outra esfera em que o governo vem sofrendo desgastes é a da corrupção. A operação da PF no Ministério do Meio Ambiente, autorizada pelo STF, mostra que há indícios fortes de corrupção nos altos escalões da administração.

Igualmente comprometedor é o chamado “tratoraço“, o esquema, revelado pelo jornal O Estado de S. Paulo, pelo qual o governo Bolsonaro compraria apoio parlamentar liberando emendas num orçamento paralelo e superfaturado. O brocardo bolsonarista “pelo menos não tem corrupção” fica cada vez mais insustentável.

Só o que pesa a favor do governo é que a economia sofreu menos do que se esperava com a segunda onda da epidemia. Mesmo assim, inflação e desemprego seguem em alta.

Não sei se o cabo e o soldado serão chamados a agir. Razões jurídicas e morais para fazê-lo não faltam. O que falta é romper a inércia política. Mas receio que Bolsonaro já tenha cometido tantos despautérios que anestesiou a sensibilidade pública. Nada mais que ele faça vai parecer chocante o bastante para motivar as pessoas a exigir sua destituição.

Fonte:

Folha de S. Paulo

https://www1.folha.uol.com.br/colunas/helioschwartsman/2021/05/a-revanche-do-cabo-e-do-soldado.shtml


Hélio Schwartsman: No Oriente Médio, uma guerra sem saída

Já acreditei que o processo de paz entre israelenses e palestinos baseado na ideia de dois Estados teria sucesso. A ducha de água fria não foram as negociações frustradas de Camp David (2000) ou Annapolis (2007), mas a leitura de “The Two-State Delusion” (a ilusão dos dois Estados, de 2015), de Padraig O’Malley.

Uma nota biográfica é necessária. O’Malley é um especialista em negociações de paz. Ele não só estuda conflitos que um dia pareceram insolúveis como ajuda a encontrar uma saída para eles. Participou dos processos de pacificação na Irlanda do Norte e na África do Sul. Depois, se debruçou sobre o conflito israelo-palestino —e foi derrotado por ele. As conclusões a que chegou estão no livro, que é bem lúgubre.

O ponto central de O’Malley é que as narrativas israelense e palestina são inconciliáveis. Ambos os lados se veem como vítimas em um embate imemorial e não admitem que outros possam ter uma visão diferente, a menos que estejam mal-intencionados. Pior, o conflito virou um modo de vida para lideranças locais e uma espécie de vício para as populações.

Uma ilustração banal e significativa disso ocorreu quando respeitados educadores israelenses e palestinos tentaram elaborar um livro didático de história que pudesse ser usado nas escolas dos dois lados. Não conseguiram. Não havia como desarmar e aproximar as narrativas.

Penso que situação até piorou de 2015 para cá. Até alguns anos atrás, a paz ao menos era um tema importante em pleitos israelenses, dividindo o eleitorado. Não é mais. Os israelenses simplesmente deixaram o assunto de lado. E não só os israelenses. Vários países da região também abandonaram a ideia de unidade árabe e o apoio à causa palestina para firmar acordos de cooperação com Israel.

Não digo que seja impossível mesmo no futuro distante, mas ninguém jamais perdeu dinheiro por apostar contra ela no conflito israelo-palestino.

Fonte:

Folha de S. Paulo

https://www1.folha.uol.com.br/colunas/helioschwartsman/2021/05/no-oriente-medio-uma-guerra-sem-saida.shtml


Hélio Schwartsman: A Câmara deve ter cota de gênero?

Devemos adotar uma cota de gênero para a Câmara dos Deputados? Eu adoraria ver um Congresso Nacional mais feminino —assim como gostaria de vê-lo mais negro e mais homossexual— mas não creio que a reserva de assentos seja o melhor caminho.

Se nosso sistema eleitoral fosse baseado em listas fechadas, não veria muito problema em aprovar uma regra que exigisse que os partidos alternassem homens e mulheres em seu rol de candidatos, o que levaria a um Parlamento com maior equilíbrio de gênero.

O Brasil, porém, adota as listas abertas, sistema no qual cabe ao eleitor definir a ordem das candidaturas de cada legenda. Fica complicado interferir nisso sem passar por cima de elementos básicos da democracia, como o de que a quantidade de votos importa. Para a cota funcionar, mulheres seriam eleitas mesmo tendo menos sufrágios do que seus colegas de partido.

A lista aberta não é o único mecanismo difícil de conciliar com a reserva de vagas. No sistema distrital o desafio seria ainda maior, já que ali a disputa pelo assento parlamentar é travada como um pleito majoritário. E seria estranhíssimo definir de antemão que a população precisa eleger necessariamente uma mulher. Eu diria até que fazê-lo seria antidemocrático.

Acredito que haja uma certa confusão em torno do conceito de democracia representativa. Para muitos, ela só se materializa quando as instituições refletem a demografia do país como um espelho. Idealmente, se o Brasil tem 54% de negros, então a Câmara precisaria ser 54% negra.

Prefiro pensar o “representativo” como a licença para que o eleitor escolha livremente quem irá representá-lo. E, quando vai às urnas, em geral o cidadão não vai com o objetivo de eleger alguém que seja parecido consigo, mas sim um candidato que, a seu ver, defenderá seus interesses e os do país. Como ele faz essa escolha é um dos grandes enigmas da ciência política e da psicologia.

Fonte:

Folha de S. Paulo

https://www1.folha.uol.com.br/colunas/helioschwartsman/2021/05/a-camara-deve-ter-cota-de-genero.shtml


Hélio Schwartsman: Operação no Jacarezinho é chocante até para os padrões do Rio

Como já escrevi aqui, polícia é civilização. O surgimento de Estados fortes com suas milícias e o monopólio do uso da violência, no século 16, fez, nas contas de Steven Pinker, as taxas de homicídio despencarem para algo entre um décimo e um quinquagésimo dos valores anteriores. Considerada isoladamente, foi a medida que mais fez reduzir a violência inter-humana.

Mas, se a criação da polícia foi o grande passo, o controle do aparato policial para que ele não ocupe o lugar do assassino de plantão é o segundo grande passo. Este o Brasil ainda não deu.

A ação policial na favela do Jacarezinho que deixou 29 mortos é mais uma prova disso. A operação, que tem todas as marcas de uma chacina, é chocante mesmo para os padrões do Rio de Janeiro.

Em 2019 (último ano de normalidade pré-pandêmica), a taxa de letalidade da polícia fluminense foi de 10,5 por 100 mil habitantes, o que corresponde a 30% do total de homicídios no estado. A letalidade policial brasileira naquele ano foi de 3 por 100 mil, o que representa 13% dos homicídios no país.

A título de comparação, a letalidade policial nos EUA, a mais violenta das nações industrializadas, é de 0,34, e a japonesa, de 0,002. Basicamente, a polícia do Rio mata 3,5 vezes mais que a média nacional, 31 vezes mais que a americana, e 5.250 vezes mais que a japonesa.

O que talvez seja mais perturbador é que o ímpeto assassino da polícia fluminense é inútil no que diz respeito à segurança pública. Homicídios e outros indicadores de criminalidade vinham em queda no Rio em 2020. Em junho, o STF proibiu a polícia local de realizar operações nas favelas senão em casos excepcionais. A partir daí, a letalidade policial caiu e os outros indicadores não subiram.

Isso nos faz perguntar o que têm na cabeça as autoridades que celebram os cadáveres de ações como a do Jacarezinho. É uma pergunta retórica; não precisam responder.

Fonte:

Folha de S. Paulo

https://www1.folha.uol.com.br/colunas/helioschwartsman/2021/05/operacao-no-jacarezinho-e-chocante-ate-para-os-padroes-do-rio.shtml


Hélio Schwartsman: Um problema patente

A decisão do presidente Joe Biden de apoiar a suspensão de proteções patentárias a vacinas durante a pandemia mostra que os EUA agora apostam no multilateralismo e estão atentos para as questões humanitárias. É um belo gesto político. No plano prático, porém, mesmo que a medida seja aprovada, terá papel limitado sobre a oferta de imunizantes no curto prazo.

O principal entrave à produção de vacinas hoje não são as patentes, mas a capacidade produtiva. O Brasil é um bom exemplo. Já temos em princípio acordos de transferência de tecnologia que nos permitirão fabricar por aqui dois imunizantes, mas ainda não conseguimos pôr de pé a estrutura fabril para fazê-lo.

De todo modo, penso que o instituto das patentes precisa mesmo ser repensado. Ele é menos eficaz do que se imagina para estimular a inovação e, nas últimas décadas, tornou-se em alguns casos fator de desestímulo. Isso fica claro no fenômeno da grilagem de patentes em biotecnologia, pelo qual grupos vão patenteando tudo o que de algum modo se relacione a uma área de pesquisa, não tanto para assegurar legítimos lucros futuros, mas para evitar que possíveis competidores se interessem pelo assunto.

Mesmo assim, há situações em que a patente parece ainda ser importante. É o caso da indústria farmacêutica, não porque a inovação aqui siga outras regras, mas pelo elevado custo para desenvolver e licenciar drogas. Se não houver um mecanismo que assegure o retorno desses investimentos, dificilmente alguém se arriscaria nesse tipo de empreendimento.

Já vemos um pouco disso na área de antibióticos. Como não são drogas que deem muito retorno financeiro, há muito tempo não aparecem novas classes desses quimioterápicos —o que poderá mostrar-se um seriíssimo problema de saúde pública no futuro próximo.

Independentemente de pandemia, chegou a hora de reavaliarmos as patentes, buscando aperfeiçoamentos no sistema.

Fonte:

Folha de S. Paulo
https://www1.folha.uol.com.br/colunas/helioschwartsman/2021/05/um-problema-patente.shtml


Hélio Schwartsman: Pazuello, covarde ou herói?

general Pazuello fugiu do depoimento que daria à CPI da Covid. Isso é fato. Resta determinar se o fez por covardia ou bravura. É claro que estou sendo irônico, mas menos do que o leitor imagina. A relação entre covardia e bravura é irredutivelmente paradoxal.

O guerreiro que nada teme não faz nada de extraordinário quando enfrenta a morte no campo de batalha. Para que sua atitude tenha algo de heroico, é preciso que ele tenha medo, se não de perder a vida, dos chamados destinos piores que a morte, como viver em desonra ou ver seus familiares e compatriotas reduzidos à escravidão. E basta admitir que o medo é indissociável da bravura para gerar situações contraditórias.

Gosto de uma observação do marechal Georgi Jukov: “No Exército Vermelho, é preciso ser muito valente para ser covarde”. É que os soviéticos punham em campo as temíveis companhias penais, que fuzilavam imediatamente qualquer soldado que parecesse recuar. Estima-se que centenas de milhares tenham sido mortos por esses pelotões.

Num exemplo mais literário e mais doméstico, Gonçalves Dias cria um I-Juca Pirama tão valente que não teme passar por covarde para cumprir suas obrigações filiais, sendo rejeitado até mesmo pelo pai pelo qual sacrificara a honra aparente.

Em qual contexto a fuga de Pazuello da CPI poderia ser interpretada como um ato de bravura? Lealdade. O general é tão leal ao comandante em chefe que não hesita em passar por covarde para protegê-lo. O fato de Pazuello ser um militar, carreira em que a covardia é o pior anátema que pode ser pespegado a alguém, torna seu sacrifício ainda mais trágico.

Só o que impede o general de ter seu destino imortalizado em versos são as motivações do chefe. Elas são tão mesquinhas que apequenam qualquer heroísmo. Se Pazuello não é covarde por ter fugido da CPI, o é por não ter denunciado os crimes de Bolsonaro.

Fonte:

O Globo

https://www1.folha.uol.com.br/colunas/helioschwartsman/2021/05/pazuello-covarde-ou-heroi.shtml


Hélio Schwartsman: Suborno vacinal

Enquanto a maior parte dos países ainda se esforça para conseguir doses de vacinas contra a Covid-19 para cidadãos ávidos por tomá-las, os EUA já começam a ter de lidar com o problema das pessoas que resistem a imunizar-se. Não é uma questão trivial.

Pelo que leio na imprensa americana, especialistas agora estão dizendo que, diante da resistência vacinal, das variantes, das reinfecções e da porosidade das fronteiras, o mais provável é que jamais antinjamos a famosa imunidade de rebanho —o limiar de indivíduos vacinados ou recuperados a partir do qual o vírus já não conseguiria circular numa dada população.

Isso significa que a doença deve continuar entre nós, causando hospitalizações e mortes —mais ou menos como ocorre com a gripe. O que se espera é que, com a vacinação e revacinações periódicas, consigamos diminuir drasticamente a ocorrência de quadros mais graves, de modo que possamos retomar a normalidade (ainda que com modificações).

Nesse contexto, é importante tentar reduzir tanto quanto possível a resistência à imunização. Pragmáticos, os americanos estão testando ideias para isso. Uma delas, pagar as pessoas para serem vacinadas, pode funcionar. Uma pesquisa da UCLA com americanos ainda não vacinados mostrou que um incentivo de US$ 100 deixaria 34% deles mais propensos a dar o braço à seringa. Se o prêmio for de US$ 50, a proporção cai para 31% e, se for de US$ 25, para 28%.

Será que é ético pagar um indivíduo para fazer o que é melhor para si, como tomar vacinas, parar de fumar, perder peso, tirar boas notas? Muita gente torce o nariz para isso. Vê aí um tipo de corrupção, não apenas dos agentes mas também da própria atividade. Se eu “suborno” alguém para ler um livro, desvirtuo o sentido da educação. Penso exatamente o contrário. Se existe um atalho, ele funciona bem e produz resultados que têm relevância pública, é tolice não utilizá-lo.

Fonte:

Folha de S. Paulo

https://www1.folha.uol.com.br/colunas/helioschwartsman/2021/05/suborno-vacinal.shtml

 


Hélio Schwartsman: O futuro é sombrio

CabifyFord, Sony, LG, Lafarge Holcim. Nas últimas semanas, várias multinacionais anunciaram que deixarão de produzir no Brasil. Dificuldades setoriais específicas decerto contribuíram para as decisões dessas empresas, mas sua confluência temporal torna inevitável perguntar se não está havendo uma perda de confiança no futuro do país. E eu receio que a resposta seja afirmativa.

O ambiente de negócios brasileiro nunca foi fácil. Anos e anos de hiperinflação, complexidade tributária, instabilidade regulatória e morosidade da Justiça destacam-se entre os fatores que já fizeram com que muitas firmas globais desistissem do Brasil.

Entre meados dos anos 90 e a primeira década do novo milênio, porém, pareceu que o país estava encontrando seu caminho. Principalmente sob as gestões de FHC e Lula, logrou-se controlar a inflação, melhorar o sistema de contas públicas e a regulação em geral, universalizar o ensino básico, expandir o acesso ao terceiro grau e ampliar a renda de vários grupos sociais. Não durou muito.

Os avanços não se fizeram acompanhar de outras medidas que teriam sido necessárias para manter o círculo virtuoso em operação. Tentativas de prestidigitação econômica sob Dilma escancararam e acentuaram nossa precariedade fiscal e depois vieram Bolsonaro e a pandemia, ambos aniquiladores.

Não há dúvida de que, no momento, é preciso gastar para que sobrevivamos à epidemia, mas isso apenas reforça a necessidade de nos prepararmos para o pós-crise. Não se percebe, nem no governo nem no Parlamento, nenhum sentido de urgência para lidar com essas questões.

O buraco fiscal em que estamos metidos ficou bem mais fundo, a economia está muito mais desorganizada, com falências e desemprego em alta, teremos problemas sérios e duradouros na educação e as velhas dificuldades não foram embora.

Se eu fosse uma multinacional também estaria pensando seriamente em cair fora.

Fonte:

Folha de S. Paulo

https://www1.folha.uol.com.br/colunas/helioschwartsman/2021/04/o-futuro-e-sombrio.shtml


Hélio Schwartsman: Viés de imunidade

Contra os vieses lutam os próprios deuses em vão. Uma das ilusões cognitivas mais danosas e esquisitas de que se tem notícia é a falácia do planejamento, que pode ser definida como a tendência de pessoas e instituições de subestimar o tempo e os recursos necessários para a realização de um projeto.

Ela é danosa porque leva governos, empresas e indivíduos a comprometer-se com orçamentos e cronogramas que não conseguirão cumprir, incorrendo em custos adicionais. E é esquisita porque, mesmo sabendo que o viés existe —qual governo ignora que orçamentos estouram e obras atrasam?—, temos enorme dificuldade para compensá-lo —e é por isso que orçamentos continuam estourando e obras atrasando.

Algo parecido ocorre em relação à Covid-19. Ao menos desde outubro, quando países europeus começaram a apresentar expressivos aumentos de casos, sabíamos que segundas ondas eram possíveis. Aqui no Brasil, mesmo cientes desse perigo, escolhemos ignorá-lo e relaxamos os cuidados assim que os números da primeira onda trouxeram um alívio.

Não somos só nós. Os indianos, mesmo tendo assistido ao que aconteceu na Europa, nos EUA e no Brasil, julgaram-se imunes ao problema e decretaram a volta à normalidade antes da hora. O resultado é a tragédia numa escala que ainda não havíamos visto.

A falácia do planejamento foi identificada pela dupla de psicólogos Daniel Kahneman e Amos Tversky e é uma das modalidades do viés de otimismo que afeta nossa espécie quando julgamos nossas próprias capacidades. Mesmo sabendo que não há razões objetivas para tal, nos comportamos como se operássemos sempre acima da média e não precisássemos nos preocupar com os cenários mais negativos.

O melhor modo de escapar ao excesso de otimismo é incorporar o princípio da mediocridade. Não temos nada de especial. Se em algum lugar do mundo houve terceira onda, temos de estar prontos para ela.

Fonte:

Folha de S. Paulo

https://www1.folha.uol.com.br/colunas/helioschwartsman/2021/04/vies-de-imunidade.shtml