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Guilherme Amado: Brasil, país do passado

O currículo de contribuições para que o país do futuro passasse a ser visto como um palco do retrocesso é longo. Tudo isso não passa despercebido de quem observa o país

Daqui a algumas décadas, quando os livros (com muito texto, de preferência) tiverem a missão de discorrer sobre os anos Bolsonaro e os prejuízos por eles causados à imagem do Brasil no exterior, poucas cenas vão resumir tanto o período quanto a da quarta-feira 8, quando Bolsonaro ligou a câmera, postou-se de costas para ela e se deixou filmar para seus milhões de seguidores nas redes sociais. Em silêncio, assistiu por 8 minutos e 50 segundos ao pronunciamento de Donald Trump sobre os ataques do Irã, na véspera, a bases americanas no Iraque. Nada simbolizou mais até agora a vassalagem brasileira em relação aos Estados Unidos, uma postura que tem chocado gerações de diplomatas, de diferentes matizes ideológicos, não só por ir contra tudo que pregam as diretrizes da diplomacia mundial, mas também por trazer dividendos que o país conseguiria da mesma maneira. A mansidão para o lado de Trump seria só mais um traço da caricatura de um homem que se regozija de falar grosso para baixo e fino para o alto, se não viesse acompanhada por decisões e episódios que têm manchado uma reputação conquistada pelo Brasil — de alegria, esperança e boas perspectivas para o futuro —, fosse quem fosse o ocupante do terceiro andar do Planalto.

O currículo de contribuições para que o país do futuro passasse a ser visto como um palco do retrocesso é longo: a leniência diante do aumento das queimadas na Amazônia, a verborragia contra os direitos humanos de qualquer humano que não o apoie, a ideologização das relações bilaterais com países historicamente amigos, como a Argentina e a França, a mudança de posições antigas do Brasil de respeito à identidade de gênero, a ameaça de mudar a embaixada de Israel, gerando uma crise com países árabes, a obsessão olavista de que o Brasil esteve à beira de um regime comunista, a crise com o Irã por apoiar o assassinato americano ao general Qassem Soleimani. Tudo isso, ora gerando irritação, ora só deboches, não passa despercebido de quem observa o país.

Em outubro, o britânico Financial Times, principal jornal de economia do mundo, lido pelos grandes investidores internacionais, afirmou em uma reportagem que o vídeo gravado de madrugada pelo presidente, diretamente do Qatar, após o depoimento do porteiro do Vivendas da Barra ser noticiado pela TV Globo, “levanta questões sobre o estado mental de Bolsonaro”. “O Brasil tem se esforçado para aprovar a agenda de reformas, mas as frequentes explosões de Bolsonaro — que lhe deram o apelido de Trump Tropical — estão afastando apoios necessários para aprová-las”, afirmava o texto. O jornalão, de linha editorial conservadora, não está sozinho.

A coluna teve acesso a dezenas de telegramas diplomáticos enviados por postos na Europa ao longo de 2019, em que são feitas para Brasília análises do que está sendo publicado na mídia estrangeira sobre o Brasil. A deterioração da imagem nacional no exterior ganhou velocidade depois da crise na Amazônia. Um dos despachos, por exemplo, enviado da embaixada de Berlim, aponta um balanço trágico na imprensa alemã sobre o país.

Essa proporção seguiu, com algumas variações, ao longo do segundo semestre. No exterior, os avanços da política econômica são apagados por todo o resto, e nem o que sempre fez o Brasil brilhar tem surtido efeito. Em outubro, quando Sebastião Salgado recebeu o Prêmio da Paz do Comércio Livreiro Alemão, o prestígio do fotógrafo gerou algumas notícias positivas. Mas, dias depois, a bonança se mostrou passageira quando Salgado disparou críticas contra Bolsonaro. “Criticou que o presidente Jair Bolsonaro se referisse ao potencial econômico da Amazônia supostamente sem respeito pelas terras indígenas e sugeriu que os europeus estipulassem condições para a instituição do Acordo Mercosul-UE”, escreveu um diplomata lotado em Berlim.

A chegada de Ernesto Araújo ao comando do Itamaraty fez com que alguns dos mais experientes da carreira se afastassem ou fossem afastados de funções estratégicas. Os três ex-chanceleres brasileiros ainda no Itamaraty estão totalmente alijados. Antonio Patriota é o titular no Qatar. Luiz Alberto Figueiredo é o embaixador em Doha. O tratamento mais controverso tem sido dispensado a Mauro Vieira, que foi ministro no governo Dilma Rousseff e embaixador nos Estados Unidos, na Argentina e na ONU, assumirá nos próximos dias a inexpressiva embaixada de Zagreb, na Croácia. No Itamaraty, o comportamento de Araújo com Vieira tem sido considerado uma demonstração de ingratidão. Foi Vieira quem levou o atual chanceler para, em 2010, ser seu número dois em Washington, o maior posto da carreira de Araújo até ser alçado a número um do Itamaraty, menos pelo currículo e mais por seus predicados olavistas. O atual ministro também foi subchefe de gabinete de Mauro Vieira, quando foi ministro de Dilma.

Essa geração tem assistido ao desmonte de pilares que sempre distinguiram o Brasil, desde o Barão do Rio Branco, a exemplo do princípio de não intervenção em outras nações. Está na Constituição — Artigo 4º — que o Brasil “rege-se em suas relações internacionais” pela “não intervenção” na política interna de outros países. Não que se espere de Bolsonaro que ele conheça a Constituição — o jurista Conrado Hübner Mendes já conta pelo menos 17 episódios em que, em sua visão, Bolsonaro já cometeu crimes de responsabilidade (atos do Presidente da República que atentem contra a Constituição Federal). O comportamento do presidente nas relações internacionais pode configurar mais um. Bolsonaro vai contra a Constituição e assume sem constrangimento posições sobre política interna de outros países, a exemplo do que fez na eleição argentina, defendendo o voto em Mauricio Macri, e não em Alberto Fernández, ou ainda sobre a eleição americana deste ano, quando já afirmou até haver apoio divino a Trump. “Trump vai ser reeleito, alguém tem dúvida disso? Vai ser reeleito. Está o país indo muito bem, muito bem. Desemprego lá embaixo, a economia bombando, (ele) exercendo seu poder de persuasão no mundo todo, graças a Deus tem os Estados Unidos, que está fazendo tudo isso. Deus está no controle”, afirmou Bolsonaro, para quem talvez Deus e Trump sejam um só corpo.

Ernesto Araújo não está nem aí para os danos à imagem brasileira. A exemplo da Secretaria de Comunicação do Planalto, que até cancelou o contrato de clipping internacional, que era responsável por coletar e analisar tudo que sai sobre o Brasil na imprensa estrangeira, o Itamaraty também não tem nenhuma estratégia para conter o pessimismo que se tem hoje com o país. Esse papel, atualmente, tem cabido exclusivamente a Tereza Cristina. A ministra da Agricultura embarca neste mês para a Semana Verde, na Alemanha, com o objetivo de tentar mostrar que a sustentabilidade é de interesse do agronegócio. Ricardo Salles, a quem caberia o papel de defender o meio ambiente, não é ouvido. Na cúpula do Ministério da Agricultura, sabe-se que, hoje, ou ela faz isso, ou ninguém de peso no governo defenderá lá fora que, além de ser tech e pop, o Agro não mata a floresta.

“Bolsonaro tem de pensar no Brasil, nos interesses do Brasil, e não na visão pessoal dele sobre os fatos. Pouco importa se o presidente pensa A ou B, o importante são os interesses nacionais. E esses estão sendo sacrificados pela postura do presidente. Cada vez menos o Brasil é ouvido”, lamentou um ex-chanceler que deixou recentemente o posto. Ele está preocupado com os próximos anos: “Tudo isso foi no primeiro ano. E ainda faltam três. Não consigo imaginar quantos prejuízos mais teremos até 2022”.


Guilherme Amado: A aliança com os Cartórios

A futura sigla do presidente fez uma parceria com o Colégio Notarial do Brasil, que representa 9 mil notários em 24 estados do país, para que eles trabalhem por sua criação

Cem mil fichas de apoio em pouco mais de um mês de trabalho. O número divulgado em dezembro pelo Aliança pelo Brasil sobre o total de assinaturas coletadas para criar a sigla da família Bolsonaro impressiona: é mais de um quinto das 492 mil necessárias para criar uma legenda. Hoje, existem 80 aspirantes a partido na fila do Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Nenhum capitaneado por uma figura carismática, nenhum tendo à frente um presidente da República e nenhum que tenha a seu dispor uma estrutura formada pela capilaridade de igrejas evangélicas, associações militares e, agora, também dos cartórios de notas.

O Aliança fez uma parceria com uma entidade privada, o Colégio Notarial do Brasil (CNB), que representa 9 mil notários em 24 estados do país, cerca de 90% da classe, para que eles trabalhem pela criação do partido. Não há nenhum documento formal que estabeleça as diretrizes da coisa, e o CNB tem colocado sua estrutura para trabalhar pelo capitão. Em troca, os cartórios ganham mais do que só uma graninha — a taxa cartorial de reconhecimento de firma é uma mixaria, geralmente menos de R$ 20. Conquistam a proximidade com o partido do presidente e, claro, com o Planalto. Mas a empreitada, inédita na história da criação de partidos no Brasil, pode ter problemas no TSE. O Código Eleitoral não a prevê, e portanto o tribunal nunca disse se usar uma estrutura privada para criar um partido é legal ou não.

Aos olhos de procuradores eleitorais, pode ser até abuso de poder econômico. A todo-poderosa Karina Kufa, advogada de Bolsonaro e representante jurídica do Aliança, não vê ilegalidade. “O que não está na lei não é proibido, não é?”, justificou.

Essa não é a primeira jabuticaba da formação do Aliança. A primeira tentativa do partido foi tentar se viabilizar por meio da certificação digital, o que agilizaria o burocrático processo de reconhecimento presencial de firmas. Aventava-se até usar o sensor biométrico dos smartphones para que os apoiadores autenticassem seus apoios. O TSE deu OK, afirmando que era juridicamente aceitável a autenticação por meio eletrônico, mas não detalhou como seria feito ou quanto custaria. Esperar essa regulamentação emperraria os planos de Bolsonaro, que precisa de um partido robusto em 2022 e, no melhor dos mundos, gostaria de ter logo uma sigla para hospedar seus candidatos a prefeito em outubro.

A sede do CNB fica num amplo escritório na cobertura de um prédio comercial em Brasília, a quatro quilômetros do Congresso. Funciona como uma espécie de sede do Aliança: lá é possível receber em mãos uma ficha de apoio, com timbre do partido. No documento há instruções didáticas para o preenchimento dos dados eleitorais e o comando para ir a um cartório de notas.

Em seu site oficial, a entidade oferece com destaque para download três documentos específicos sobre o Aliança: a ficha de apoio, uma procuração, assinada pela própria Karina Kufa, autorizando nominalmente representantes da futura sigla a recolherem essas fichas autenticadas em cartório, e outro, também subscrito pela advogada, que traz nome e número do documento de cerca de 130 representantes do Aliança por cidades mineiras, estado onde a coleta está mais organizada. Há nomes desde Vila Bicas, com 13 mil habitantes, até, claro, Belo Horizonte.

Cabe ao CNB organizar sua rede de notários no país para que estejam preparados para atender aos interessados em apoiar o Aliança, organizar as fichas nos cartórios para serem retiradas pelos representantes indicados do partido e organizar eventos para o reconhecimento de assinaturas, como em hotéis, praças e igrejas. O serviço inclui ainda usar a rede interna de comunicação do Colégio para comunicar os pormenores das necessidades do Aliança. Segundo Kufa, o partido não pagará nada à entidade pelo trabalho.

Quem está à frente da “parceria” — as aspas aqui cabem porque, segundo as duas partes, o que há é um contrato de boca, um acordo de cavalheiros — é Andrey Guimarães Duarte, tesoureiro do Colégio e ex-presidente da organização em São Paulo. Ele contou que, no começo de dezembro, foi procurado pessoalmente por advogados do Aliança, interessados desde o começo em algo informal, sem a necessidade de qualquer documento.

A coluna ouviu dois procuradores do Ministério Público Federal com vasta atuação em eleições sobre a regularidade da dobradinha. De fato, não há nada dizendo que é ilegal. Por nunca ter sido feito, ainda deve ser alvo do escrutínio dos ministros. “Pode configurar em último caso até abuso de poder econômico, ainda que não exista a previsão dessa infração na constituição de partidos. O Código Eleitoral a prevê apenas nas eleições”, explicou um deles, sob a condição de anonimato.

O outro procurador viu, além do aspecto eleitoral, também problemas de natureza civil para a associação. “Há um possível desvio da finalidade da associação, e aí cabe ao Ministério Público de onde fica a sede da entidade avaliar isso. Me parece que há violação do estatuto”, explicou, também sob sigilo. O estatuto do Colégio Notarial afirma que “é vedado ao CNB participar, apoiar ou difundir, ativa ou passivamente, quaisquer manifestações de caráter político”. É exatamente o que vem sendo feito.

“Nunca havíamos feito isso para a criação de partido. Mas é uma atividade completamente apartidária. Nesse tempo de polarização, temos muito receio de ter um viés”, alegou Guimarães Duarte, o representante do CNB.

Quatro meses antes de o Aliança bater à porta do Colégio, o então presidente da entidade, Paulo Gaiger, foi escolhido por Bolsonaro para um mandato de dois anos no Comitê Gestor da Infraestrutura de Chaves Públicas, órgão subordinado diretamente à Presidência da República e a quem cabe definir as políticas de certificação digital — a mesma tecnologia que o Aliança queria usar para se viabilizar. Guimarães negou que o cargo dado por Bolsonaro tenha levado a entidade a vestir a camisa do partido.

Quando fez o trato, Andrey Guimarães disse ter vislumbrado apenas, além de um fluxo maior de clientes aos cartórios, um ganho na imagem do serviço. “Foi gratificante, porque queremos também demonstrar uma utilidade em nosso serviço, que às vezes é muito criticado. A gente brinca que tem pessoas felizes vindo reconhecer firma. Talvez seja a primeira vez que isso acontece.”

Perguntada por que apenas o partido que o presidente da República quer fundar ganha essa ajuda, Kufa foi lógica: “Só porque o Aliança os procurou, não é?”.

A dúvida é se o CNB teria o mesmo brilho nos olhos para trabalhar, por exemplo, pelo Unidade Popular, o mais recente partido autorizado pelo tribunal, no mês passado, e que prega em seu manifesto “apoiar a luta pelo socialismo no Brasil e promover a unidade das forças populares para intervir no processo político do país”. Sem uma estrutura dessa a sua disposição, demorou dois anos para coletar suas assinaturas.


Guilherme Amado: O ano de Rodrigo Maia

“O Brasil havia eleito um presidente que abdicara de ao menos tentar ter relação com o Congresso. Foi aí que nasceu o Maia parlamentarista”

Boa parte das investidas com tintas autoritárias de Jair Bolsonaro em seu primeiro ano foi esvaziada pelo sistema de freios e contrapesos que o Brasil construiu em seus 34 anos de democracia. Ora com mais, ora com menos sucesso, o Judiciário, a imprensa, a sociedade civil, o Ministério Público e até o Tribunal de Contas atuaram como saudáveis amortecedores para quem, em muitos momentos, atuou “no limite” — palavras do próprio Bolsonaro ao publicar a primeira leva de decretos pró-armas. Mas este foi um ano em que o Congresso, sobretudo, teve papel medular para amenizar o desmonte institucional que Bolsonaro tentou levar a cabo. Embora o presidente do Senado seja constitucionalmente o chefe do Legislativo, na prática esse papel foi desempenhado por Rodrigo Maia. O presidente da Câmara voou em 2019.

Foi quase sempre o primeiro a se pronunciar — quando não o único — diante de despautérios da base bolsonarista, como os flertes golpistas de um filho e um par de ministros. Conduziu a aprovação da necessária reforma da Previdência. Articulou a derrubada de atropelos legais de Bolsonaro e teve de fazer até a vez de chanceler. Com a roupa de primeiro-ministro, porém, também vieram as responsabilidades. E não houve só acertos no ano Maia.

Desde janeiro, foi ganhando forma o que seria o governo do capitão, com sua notável inabilidade para a articulação com o parlamento, o que gerou um vácuo sem precedentes na história recente da República.

Ele tomou para si a articulação das reformas e boa parte da agenda econômica de Paulo Guedes, lidando com o temperamento difícil do ministro da Economia e muitas vezes se dirigindo diretamente a outros integrantes da equipe econômica. Garantiu a aprovação do pacote anticrime, ainda que no fim do ano, e buscou preencher buracos deixados pelo Executivo, como a falta de uma agenda de políticas públicas num país assolado também por uma crise social.

Enquanto Jair Bolsonaro dispara contra outros países e mira até a ONU, Maia tem tentado limpar a barra. Em tom oposto ao beligerante capitão, visitou da Suíça ao Azerbaijão, passando por Estados Unidos, Líbano e Inglaterra, entre outros. Uma ação desastrosa do presidente levava a uma reação diplomática de Maia. Bolsonaro criticou o presidente argentino e ameaçou ignorar sua posse? Maia foi até Fernández para sentar e conversar. Bolsonaro fez pouco caso das queimadas na Amazônia e acusou os países europeus de interesses escusos? Maia foi à Europa para remendar o estrago. Bolsonaro atacou a ONU? Maia voou à Suíça para tratar com os organismos da entidade, inclusive de direitos humanos.

A última viagem mostrou sua importância nesse papel. Na sexta-feira 13, reuniu-se em Genebra com Michelle Bachelet, a alta comissária de Direitos Humanos da ONU, atacada pelo sempre diplomático Bolsonaro em diferentes situações. Nascido no Chile durante o exílio de seu pai, Cesar Maia, o presidente da Câmara tem muito em comum com Bachelet, cujo pai foi torturado e morto pela ditadura de Augusto Pinochet. Mais uma vez ocupando o vácuo deixado pelo governo, ele propôs à alta comissária a criação de um observatório parlamentar junto à ONU para acompanhar violações no Brasil.

Na mesma viagem, ouviu do presidente irlandês, Michael Daniel Higgins, um desabafo: ele, aos 78 anos, depois de inúmeras assembleias-gerais da ONU, surpreendera-se com o discurso de Bolsonaro nos Debates Gerais, em setembro. “Nunca pensei que fosse a uma assembleia da ONU para ser ofendido daquela maneira”, disse a Maia.

Essas posturas fazem parecer que Maia cumpre uma agenda de oposição a Bolsonaro. Afinal, por que o interesse em se contrapor ao presidente em tantos temas? Maia, ainda por cima, topou instalar duas CPIs que podem trazer problemas para o governo: a das Fake News, mista com o Senado, e a do Óleo, para investigar o vazamento no Nordeste e a lenta ação do governo para reagir à crise. Mas acreditar que ele é um opositor é um erro.

Maia tem um agenda própria e tem usado a cadeira para tocá-la. Deixa andar aquilo com que concorda — a agenda ultraliberal de Paulo Guedes, por exemplo — e freia os temas de que discorda, a exemplo das mudanças irresponsáveis na legislação sobre armas e os excessos do pacote anticrime.

O comportamento faz seus críticos o acusarem de estar confundindo o papel de presidente da Câmara com o de líder político. “Ele tem um discurso de que a direita e a esquerda são extremos e que o centro é o melhor, por ser capaz de aproveitar o melhor de cada lado. Mas o parlamento tem de dar espaço a todas as formas de pensar, e o presidente da Câmara não deve deixar andar apenas as matérias com que concorda. A pauta que ele está colocando para o parlamento é a pauta que ele acha boa. Isso não é democrático”, reclamou uma das principais lideranças da Casa.

Maia também é criticado por, em quatro anos na presidência da Câmara, ainda não ter conseguido fazer reformas administrativas na Casa. O inchaço contrasta com o discurso de austeridade pregado. Até dezembro, a Câmara já tinha custado mais de R$ 5 bilhões aos cofres públicos — em grande parte por causa de salários incompatíveis com a realidade do país.

Maia conseguiu um raro consenso entre esquerda e direita. O comunista Orlando Silva, seu amigo há anos, se derrete de maneira superlativa: “É um dos maiores políticos da história, o estabilizador da República”. Começa a trocar mensagens com os deputados em geral às 6 horas e vai quase todos os dias até depois das 23 horas. Mas é o centrão que está sempre na residência oficial, nos cafés da manhã de fim de semana ou nos jantares em dias úteis. A proximidade excessiva também gera críticas. “O centrão tem de ser como um judô. Você não pode ficar muito colado. Você tem de usá-lo”, ensinou um aliado.

Falar com os dois lados foi uma capacidade que Maia afiou já na primeira campanha pela presidência da Câmara, quando foi eleito a um mandato-tampão para suceder a Eduardo Cunha. No discurso de posse, fez uma menção elogiosa a José Genoíno. “Rodrigo tem caráter e cumpre palavra, o que, não querendo desmerecer meus pares, é algo raro”, disse um dos deputados mais próximos a Maia.

Além de cumprir sua palavra, Maia carrega também o traço da passionalidade. Chora com facilidade. Num levantamento recente, ÉPOCA contou pelo menos 11 vezes em que foi às lágrimas publicamente nos últimos três anos. Chorou até elogiando Eduardo Cunha na votação do impeachment de Dilma Rousseff. Reações mais quentes também são comuns, embora raramente públicas. Em 2019, boa parte dessa irritação foi causada por Carlos Bolsonaro e pelos ataques de sua tropa digital, que, se houver um terremoto no Japão, encontrará uma maneira de culpar Maia. Do gordofóbico Nhonho, como fazem com Joice Hasselmann, a Botafogo, alusão a seu suposto apelido na planilha da Odebrecht, Maia é achincalhado todo dia. Boa parte desses ataques foi iniciada e incentivada por Carlos.

O momento mais difícil na relação com Bolsonaro em 2019 foi em março, no dia em que o ex-ministro Moreira Franco, casado com a sogra de Maia, foi preso. O incendiário Carlos Bolsonaro correu para o Twitter e insinuou que o presidente da Câmara freava, com segundas intenções, a tramitação do pacote anticrime de Sergio Moro. Maia ameaçou abandonar as articulações da reforma da Previdência, que naquele momento já era deixada de lado pelo governo, e conseguiu um cessar-fogo temporário dos bolsonaristas. “Não uso as redes sociais para atacar ninguém”, disse. Todo mundo entendeu. Naquela semana, ficou irado e chegou a pensar em romper com a gestão Bolsonaro.

Maia tem uma visão mais negativa do governo do que a maioria do DEM e do centrão. Não gosta da família Bolsonaro, com exceção de Flávio, e, quando assume o Planalto no lugar do presidente e de Hamilton Mourão, não despacha do palácio, como sempre fez no período Temer. Diz que a energia atual do Planalto, com Bolsonaro, é “muito negativa”.

Por falar em energia, a coluna deseja um 2020 só de boas notícias. Assunto não vai faltar e, por isso, embora na versão impressa só estejamos de volta em janeiro, o site continuará a todo vapor, sem parar nenhum dia.
Postado por Gilvan Cavalcanti de Melo às 08:18:00


Guilherme Amado: Eduardo Bolsonaro anuncia que será herdeiro 'do brasil do pai' - 'vou rodar o país'

Em conversa com a coluna, o zero três revela que vai percorrer o Brasil na defesa do governo do pai, ‘fazendo trabalho de formiguinha e pregando o conservadorismo’

Nenhum Bolsonaro terá tantos motivos para comemorar o fim de ano como Eduardo. O mais jovem dos três filhos políticos do capitão e último a entrar na política encerra 2019 em êxtase.
Enquanto fantasmas pairam sobre seus irmãos, Eduardo é só festa. Flávio é investigado, sob a suspeita de ter ficado com parte dos salários de seus assessores durante anos, e Carlos é acusado por diferentes ex-aliados da família de comandar uma milícia digital, destruidora de reputações.

Eduardo não conseguiu os votos no Senado para ser embaixador, ok, mas a campanha para chegar lá o fez ser paparicado pela direita populista mundial ao longo do ano — posou com o americano Donald Trump, o italiano Matteo Salvini e o húngaro Viktor Orbán. Lidera o PSL e, tão logo decole o Aliança pelo Brasil, será o único dono em São Paulo do partido que sua família está montando. No Rio de Janeiro, há uma antiga rivalidade entre Carlos e Flávio. Mas, mais importante que tudo isso, Eduardo deu início neste ano à trajetória para ser o principal herdeiro do bolsonarismo. Agora, sabe, é hora de arregaçar as mangas.

Na quarta-feira 27, revelou à coluna quais são os próximos passos: em 2020, o zero três coloca o pé na estrada e, no melhor estilo candidato presidencial, “vai rodar o Brasil”. Visitará estado a estado, “fazendo um trabalho de formiguinha, pregando o conservadorismo e defendendo” o governo da família. Com 35 anos, Eduardo mira lá na frente: “Não sou candidato a nada, eu só poderia me candidatar a presidente em 2030. Aqui não é terra de Evo Morales. Não vou herdar o governo. Vou herdar o Brasil de meu pai”, disse, com ar decidido.

A pauta internacional não será mais prioritária. Eduardo quer se voltar para dentro. Embora vá continuar no PSL até a legalização do Aliança pelo Brasil, ele anunciou que deixará espontaneamente a liderança da sigla e não tentará presidir nenhuma comissão na Câmara. “A estratégia para me expulsar (do PSL ) é conseguir voltar a compor a maioria dessa ala, que está sendo chamada de bivarista, e assim retomar a liderança. Estou tranquilo. O que me preocupa é se eu andar na rua e for vaiado por meus eleitores. Mas quem está perdendo seguidores é a Joice ( Hasselmann ). #DeixeDeSeguirAPepa bombou”, cutucou, em referência à hashtag de mau gosto que compara Joice Hasselmann à porquinha Peppa Pig. “Para mim, é indiferente (se me expulsarem ). Virando o ano, não vou mais ser presidente da Comissão de Relações Exteriores”, disse, confirmando que não tentará se impor no PSL para presidir outra comissão.

Os planos para 2020 serão um avanço natural ao papel que vem desempenhando desde que o caldo com o PSL entornou de vez. Quando falou à coluna, Eduardo cumpria mais uma missão de primeiro soldado: havia ido à Comissão de Cultura para defender Ernesto Araújo, convocado para explicar o que o Itamaraty vem fazendo para divulgar o Brasil no exterior. Empenhou-se no microfone nos elogios a Araújo. “O melhor em décadas”, ainda tuitou, ao comentar mais tarde a performance do ministro, o mais próximo dele na Esplanada e o único que, a diferentes interlocutores, ele chama de amigo.

Eduardo está bem mais relaxado do que semanas atrás, quando teve de lidar com a tensa crise do PSL e ainda se desdobrar para criar uma narrativa positiva capaz de amenizar o fracasso da empreitada da embaixada — as projeções eram de que não conseguiria mais que 15 votos no Senado.

Bem-humorado, fazia piadas enquanto caminhava para a liderança do PSL, sala que ainda ocupa apesar do status transitório no partido, mas pela qual disse não ter apego: “Nem eu nem o presidente queríamos que eu fosse líder, mas ( fui líder porque ) meu nome angariou a maior parte do apoio dos deputados”, defendeu, ignorando a existência de um áudio, revelado pela coluna, em que o próprio Bolsonaro, gravado às escondidas, é flagrado articulando a derrubada do antigo líder, Delegado Waldir.

Atualmente, Eduardo lidera de verdade apenas os deputados que já confirmaram que vão para o Aliança — cerca de 26 dos 53 da bancada do partido. “Quem está perdendo são aqueles que mais me atacam. Eles que têm de explicar o motivo de estarem me atacando, indo contra a ordem do presidente da República. Gostaria muito que outro deputado assumisse a liderança do partido”, afirmou, apontando em seguida quem é sua tropa de confiança para sucedê-lo: “Bia Kicis, Carlos Jordy, Filipe Barros, Caroline De Toni podem assumir naturalmente”. Todos da ala comandada por Bolsonaro.

“Falar em conservadorismo, resgaste histórico, aproximar as pautas do governo da sociedade. O que foi reforma da Previdência? Como vai ser o pacote anticrime? Por que o governo fez assim e não assado? O presidente tem uma agenda muito complicada, muito corrida. Sou demandado em todo o Brasil, todo o Brasil bate na porta do gabinete. Só vou aproveitar os convites que me são feitos.”

Indagado sobre se quer suceder ao pai, Eduardo lembrou o impedimento. Ele esbarra numa questão legal. A legislação atual proíbe filhos de presidentes da República de se candidatarem a qualquer cargo. Só é permitido tentar a reeleição na posição que já ocupavam no momento em que um dos pais foi eleito à Presidência. Portanto, enquanto Jair estiver no Planalto, Carlos só poderia se candidatar à reeleição de vereador do Rio de Janeiro, Flávio só poderia tentar voltar ao Senado também pelo Rio, e a Eduardo só restaria a Câmara dos Deputados por São Paulo. Fora isso, antes de o pai deixar a Presidência, só síndico do prédio.

Como Bolsonaro já anunciou que tentará a reeleição, e a avaliação da família é de que será uma vitória mais fácil do que a de 2018, os filhos só poderão galgar novos cargos a partir de 2027 — quando, num cenário hipotético, um Bolsonaro reeleito desceria a rampa.

Eduardo disse não se preocupar com os processos que correm contra ele no Conselho de Ética — um deles sem chances de prosperar, por atacar Joice Hasselmann nas redes, e outro, mais forte, em virtude de seu flerte com o golpismo, ao defender um “novo AI-5” em caso de a esquerda se “radicalizar”.

“Me inspiro muito em meu pai. Ele já respondeu uns 30 processos no Conselho de Ética, nenhum por roubar, todos só por falar”, emendando numa nova tentativa de explicar o que disse: “Nosso sentimento (dele e de Paulo Guedes) não é retornar ao AI-5, não queremos fechar o Congresso. Longe disso. O que queremos dizer é que, se (acontecer o que defende) esse pessoal, por exemplo o Lula, que fica torcendo para vir para o Brasil isso que chamam de protesto, mas, na verdade, é quebra-quebra de dezenas de estações de metrô, fogo em ônibus, coquetel molotov em policial feminina. Esse tipo de coisa não é protesto, é esfera criminal. Precisa ter energia para poder responder. Não vai ser através de poemas ou rosas”, disse.

Confrontado com o fato de que nada disso é o que se vê nas ruas brasileiras em novembro de 2019, rendeu-se à realidade: “Todas são conjecturas. Estamos falando de Chile, mas já vemos isso acontecer na Colômbia, e o pessoal está doido para trazer para cá”, afirmou, para logo depois, como se reconectando-se com a realidade, se contradizer novamente: “Se bem que acho que vai ser difícil, porque a esquerda não tem tanta moral assim, porque foram muito desgastados com a corrupção que cometeram. Fica difícil para eles conseguirem angariar apoio, a não ser que paguem”.

O fantasma de Lula também seria, em sua visão, o fator que fez o dólar disparar. “Quando se solta o Lula, você traz uma insegurança jurídica para o Brasil. Estão tentando atribuir ao Bolsonaro algo (a alta do dólar ) que não foi ele quem fez. O presidente deu uma declaração para que o dólar subisse? Não”, disse, talvez esquecendo que foi a declaração de Paulo Guedes sobre o AI-5 o fermento da mais recente disparada.

Polido, Eduardo pediu para encerrar a conversa. Estava atrasado para uma reunião na liderança do PSL. “Dê tempo para o homem (o presidente ) trabalhar. É muita gente especulando. Se ele fosse um ditador, o dólar estaria nas alturas”.


Guilherme Amado: O decano a mil por hora

Desde 2018, Celso de Mello se tornou a mais altiva voz do Supremo ante investidas contra a democracia e os direitos fundamentais

Os 30 anos de Celso de Mello no Supremo Tribunal Federal (STF), recém-completados em julho, poderiam fazer com que os últimos meses do decano na Corte fossem de inabalável calmaria. Aos 74 anos — celebrados na sexta-feira 1º —, Mello não precisa mais provar nada a ninguém. Exatamente a um ano de deixar o tribunal, em 31 de outubro de 2020, nenhum colega ou analista do STF criticaria se Mello preferisse nestes últimos meses uma atuação discreta, sem protagonismo, mais preocupada em arrumar gavetas e planejar o que fará em seguida. Mas o Celso de Mello dos últimos dois anos tem sido o oposto.

Desde 2018, ele se tornou, menos pelo tom barítono e mais pelo acúmulo de experiência e pela previsibilidade de decisões, a mais altiva voz do tribunal ante investidas de militares ou do próprio presidente da República e de sua família contra a democracia e os direitos fundamentais. Agora, está nas mãos dele um dos votos mais esperados do tribunal: dizer se Sergio Moro foi ou não parcial ao julgar Lula. Tudo isso a 365 dias de se aposentar.

Promotor de Justiça em São Paulo e assessor jurídico do gabinete de José Sarney, Celso de Mello chegou ao STF indicado pelo próprio, em 1989, num tempo em que ministros da Corte não tinham um décimo dos holofotes que têm hoje. Durante três décadas, acostumou-se a viver sem eles. Nunca teve outro emprego ou fonte de renda de lá para cá. Não frequenta as rodas de poder de Brasília nem teve proximidade com qualquer presidente da República após Sarney. Evita encontrar advogados fora do gabinete e são raras suas entrevistas. Seu passeio nos fins de semana em São Paulo ou em Brasília é em livrarias. Entre goles generosos de café e uma dieta recheada de alguns Big Macs, é notívago e gosta de citar em seus votos as próprias decisões, ora textualmente, ora adaptando e melhorando trechos.

A repetição de suas teses e seus entendimentos, aliás, faz com que seus votos sejam, na maioria das vezes, previstos por quem tenta decifrar a matemática em torno dos 11 togados. Como anotaram os repórteres Felipe Recondo e Luiz Weber em Os onze , livro em que perfilam o tribunal e seus atuais ocupantes, os votos de Mello costumam dar uma sensação de déjà-vu. O respeito às regras e aos costumes do tribunal foi o que o fez, por exemplo, recusar a sondagem da então presidente do STF Cármen Lúcia para designá-lo relator da Lava Jato, o que atropelaria o algoritmo que distribui aleatoriamente os casos entre os ministros.

Mello viveu a ditadura e carrega a lembrança do preço pago pelo país com o arbítrio. Enquanto promotor, denunciou torturas e outras ilegalidades cometidas pelo regime. Talvez aí tenha se forjado a preocupação que o leva a ser o único a usar palavras duras para se referir ao que considera ameaças de fardados e de Bolsonaro ao tribunal.

Uma das manifestações mais fortes foi contra o então comandante do Exército, Eduardo Villas Bôas, que, na véspera do julgamento do habeas corpus de Lula, mandou um recado velado ao STF em uma mensagem publicada em sua conta do Twitter. Na ocasião, o decano se impressionou com o silêncio de seus colegas, especialmente os que costumam comentar publicamente fatos sem a mesma importância. A resposta veio na sessão: “Em situações tão graves assim, costumam insinuar se pronunciamentos ou registrar se movimentos que parecem prenunciar a retomada, de todo inadmissível, de práticas estranhas e lesivas à ortodoxia constitucional, típicas de um pretorianismo que cumpre repelir, qualquer que seja a modalidade”. Não foi o último embate com a turma verde-oliva.

No período eleitoral, com um crescente ataque ao STF e à Justiça eleitoral e diante do líder das pesquisas, Jair Bolsonaro, estimulando a desconfiança na lisura do processo, um coronel reformado ofendeu Rosa Weber, então presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Mello saiu em defesa da colega, afirmando que o ataque era “imundo, sórdido e repugnante” e que usava linguagem “insultuosa, desqualificada por palavras superlativamente grosseiras e boçais, próprias de quem possui reduzidíssimo e tosco universo vocabular, indignas de quem diz ser oficial das Forças Armadas”.

Ninguém pode rotular Mello de petista. Pelo contrário: condenou petistas no mensalão e na maioria de seus votos nos anos do PT foi contra as teses defendidas por Lula ou Dilma. Passado o julgamento no plenário sobre a condenação em segunda instância, deverá ser marcado o julgamento na Segunda Turma da Corte em que cinco ministros decidirão se Moro não teve isenção para julgar Lula. A decisão terá forte impacto político, a depender da modulação a ser feita pelos ministros. É possível até que todos os casos de Lula que tiveram o dedo de Moro retroajam para antes da aceitação da denúncia e algumas provas sejam para sempre invalidadas. Lula pode se tornar não só um cidadão livre, como retomar de imediato seus direitos políticos.

Mesmo antes da Vaza Jato, Gilmar Mendes e Ricardo Lewandowski já haviam acenado que votarão contra Moro. Cármen Lúcia e Edson Fachin, a favor do ex-juiz. E Celso de Mello?

Embora o decano não tenha afirmado nada nesse sentido, a aposta entre os ministros é que ele vote com Mendes e Lewandowski. Se o plenário tiver decidido que prisão é só após a condenação definitiva, Lula já estará livre, e a pressão sob Mello será menor.

Há pressões, entretanto, que têm inspirado Mello mais que intimidado. Em fevereiro deste ano, ele liderou a votação pela criminalização da homofobia, um tema cujo avanço a bancada evangélica freava no Congresso. Seu voto, que citou explicitamente a necessidade de ir contra a lógica do “menino veste azul e menina veste rosa”, dobrou ministros que tendiam a votar contra. O STF mostrava, logo no começo do ano, certa altivez diante de um governo que desde a campanha enviava mensagens estranhas à cúpula do Judiciário. Não seria assim ao longo dos dez meses de Bolsonaro.

Antes disso, ainda na campanha, o então candidato falou em aumentar o número de ministros da Corte, a exemplo do que a ditadura fez com o Ato Institucional nº 2. Quando veio à tona o vídeo de Eduardo Bolsonaro, numa aula preparatória para concursos, dizendo que bastaria um “soldado e um cabo” para fechar o STF, o decano decidiu falar e respondeu à Folha de S.Paulo , chamando a declaração de “inconsequente e golpista”.

Nesta terça-feira 29, Mello voltou novamente suas baterias a Bolsonaro, diante da postagem no perfil do presidente no Twitter do vídeo de um leão cercado por hienas — uma delas rotulada como o STF. Em sua mais dura nota, falou em “atrevimento presidencial”, que “parece não encontrar limites na compostura que um chefe de Estado deve demonstrar no exercício de suas altas funções”. Foi aí que Bolsonaro recuou.

Ainda há um ano de Celso de Mello no tribunal. Após sua saída, o decano será Marco Aurélio Mello, de comportamento excêntrico e votos imprevisíveis. Marco Aurélio Mello ficará na posição até 11 de julho de 2021. Depois, a função que até aqui teve o papel de apaziguar ânimos e muitas vezes serenar relações acaloradas estará nas mãos de... Gilmar Mendes.


Guilherme Amado: Os bolsonaros e os generais

Em meados de 2017, o general Augusto Heleno, hoje à frente do Gabinete de Segurança Institucional do Planalto, reuniu-se mais uma vez com um grupo de generais, da reserva e da ativa, em Brasília, com quem debatia havia já alguns anos os rumos da crise política sem fim em que o Brasil se meteu. Daquela vez, comentavam os últimos lances do “tem de manter isso, viu”, e faziam projeções para as eleições de 2018. Lula seria candidato? A direita teria chance? Geraldo Alckmin? João Doria? Luciano Huck? Jair Bolsonaro? Dos que estavam naquele encontro, ninguém se lembra com exatidão em que parte da conversa Heleno levantou-se e encarou os demais, mas todos têm fresca na memória o que ele disse: “Bolsonaro? Só se ele parar de falar m...”.

Dali a algumas semanas, Heleno cobraria Bolsonaro e ouviria dele a mesma explicação que o então deputado sempre dava a quem lhe perguntava o porquê de seu jeitão enfurecido, meio amalucado, na Câmara e nas redes sociais: “Senão, ninguém me notaria”. Foi naquela conversa, após Bolsonaro prometer que, eleito, seria mais moderado, que o general topou trabalhar pelo capitão.

Mas, no meio do caminho, tinha um filho. Três filhos, para ser preciso. Nenhum daqueles generais reunidos em 2017 imaginava que, em janeiro de 2019, estariam todos na Esplanada tendo de tocar a nona maior economia do mundo e tendo Flávio, Carlos e Eduardo como as principais ameaças ao governo.

“Sabe qual foi a última do Carlos?” A pergunta volta e meia atravessa os despachos entre generais do governo Bolsonaro, em referência ao zero dois, vereador no Rio de Janeiro e tuiteiro voraz e virulento, que, sabe-se lá por que, rifou uma candidatura praticamente ganha de deputado pelo Rio de Janeiro.

O fato é que Carlos não quis. Tampouco recebeu um cargo no Planalto, diante do temor de Bolsonaro de ser acusado de nepotismo ao nomear o filho. Preferiu a trincheira da briga, com ataques explícitos ao hoje secretário-geral da Presidência Gustavo Bebianno, presidente do PSL durante a campanha, e a outros aliados. No mais grave tuíte, entretanto, Carlos não teve coragem de dar nome aos bois. Acusou pessoas que estão “muito perto” de terem interesse na “morte de Jair Bolsonaro”. E mais não disse. Os fãs da teoria da conspiração enlouqueceram.

Eduardo Bolsonaro, o zero três, ora é alvo de piada, pelas brigas virtuais rocambolescas em que se meteu com uma ex-namorada, ora é visto com preocupação, por buscar um protagonismo nas relações internacionais que, na visão dos generais, caberia ao Itamaraty. Mas é Flávio Bolsonaro, o zero um, o filho que realmente tem tirado o sono da caserna.

Nenhum general saiu em apoio a Flávio. E nem deve sair. “O Flávio? Aquilo está mais assustado do que cachorro na beira da canoa. De olho arregalado, achando que vai ser engolido pelo mar”, debochou um dos generais, numa conversa privada na semana passada, arrancando gargalhadas de seus interlocutores. E depois completou: “Já passou da hora de explicar tudo”. A avaliação de Heleno, do vice Hamilton Mourão, de Carlos Alberto dos Santos Cruz, ministro da Secretaria de Governo, e de outros fardados da Esplanada vai na mesma direção.

Mas se em relação a Flávio os generais observam à distância, o oposto ocorreu com Carlos. Na segunda quinzena de janeiro, houve uma articulação deliberada entre alguns quatro estrelas para reduzir os danos que, na opinião deles, Carlos vem causando na relação com a imprensa, e para tentar neutralizar a influência dele na Secretaria de Comunicação, responsável pela propaganda e pela relação do governo federal com jornalistas.
A estratégia foi capitaneada pelo ex-comandante do Exército Eduardo Villas Bôas, que convenceu Bolsonaro a nomear o também general Otávio Rêgo Barros, ex-chefe do Centro de Comunicação Social do Exército, para ser o porta-voz da Presidência. Villas Bôas também conseguiu evitar que Carlos indicasse para a Secretaria de Imprensa (SIP) um nome seu, tal qual fizera na própria Secom, nomeando para o cargo o publicitário Floriano Barbosa, ex-assessor de Eduardo Bolsonaro na Câmara.

O titular da SIP agora é um tenente-coronel, que se orgulha de dizer que as diretrizes centrais de seu trabalho são a boa relação com os jornalistas e a tentativa permanente de passar uma imagem positiva do governo, em vez de apenas reagir e brigar. Tudo que Carlos não faz.

Mais que uma disputa por gabinetes, a disputa pela Secom é central no conflito de visões de mundo dos Bolsonaros com os generais. Enquanto os militares defendem a profissionalização da comunicação do governo, sem ataques à imprensa, a família Bolsonaro mantém o clima de campanha, quando, todo dia, no melhor estilo do PT, afirma ser vítima de uma conspiração midiática.

Ao longo de janeiro, ficou claro o descompasso entre os perfis dos Bolsonaros no Twitter e os discursos públicos dos generais.

No dia 2, enquanto Carlos Bolsonaro tuitava que a imprensa era “suja” e “podre”, e seu irmão Eduardo dizia que Carlos “se lixa” para os veículos de mídia, o general Fernando Azevedo e Silva, da Defesa, agradecia em seu discurso de posse a presença dos jornalistas, por “cobrarem quando é necessário” e “ajudarem a dar transparência” ao trabalho dos militares.

Dois dias depois, o ministro da Aeronáutica, Antonio Carlos Moretti Bermudez, tomava posse e dizia que “é determinante o papel da imprensa na conexão com a sociedade”. Já Carlos, também no dia 4, rebatia os questionamentos sobre por que ele, vereador, participara de uma reunião ministerial, e chamava jornalistas de “lixos da mídia” e “boçais”.

No dia 11, foi a vez de Villas Bôas agradecer em discurso aos jornalistas, “permanentemente vigilantes”, e que, com isso, “produziram o efeito de induzir o aperfeiçoamento institucional” do Exército. No Twitter, Eduardo dizia que a imprensa era “nojenta” por questionar o fato de Bolsonaro estar nomeando amigos para cargos públicos.

A visão sobre a imprensa não é a única discordância. Enquanto Eduardo trombeteia até nos Estados Unidos que a embaixada brasileira em Israel deve mudar de Tel Aviv para Jerusalém, alguns generais pensam diferente. Acham uma promessa de campanha tresloucada e preferem que a embaixada fique onde está.

Não só nesse episódio os generais têm atuado como força de moderação às alas do governo (e da família) que não entenderam que a campanha terminou. Coube a Mourão criticar o discurso de ódio contra Jean Wyllys, que renunciou ao mandato após anos de ameaças. Também têm sido os generais que têm se virado nos trinta para completar as lacunas da despetização de Onyx Lorenzoni, que, após demitir quase todos os arquitetos do Planalto, dificultou as primeiras semanas de trabalho por falta de pessoal para fazer as adaptações necessárias nas salas para acomodar o novo governo.

À ponderação dos militares, se soma a disciplina. Heleno chega todos os dias antes de Bolsonaro. Recebe o chefe pessoalmente na garagem. No elevador, já começa a despachar os assuntos do dia. Quando não é Heleno, o ritual cabe ao general Valério Stumpf, número dois do GSI. São esses despachos de elevador que têm dado norte ao governo e orientado Bolsonaro, cujo entorno sabe que, com exceções na Economia, na Justiça e em outras poucas pastas tocadas por civis, os melhores quadros do governo usam farda — hoje são pelo menos 18 generais só no Planalto.

Mas os generais sabem que de pouco adiantarão as grifes da equipe de Paulo Guedes ou de Sergio Moro se os três rebentos continuarem nesta toada. Na avaliação pragmática de um general, cada um dos quatro Bolsonaros tem uma missão pela frente. Flávio precisará explicar seus rolos no caso Queiroz. Carlos terá de decidir se quer ser vereador ou tuiteiro. Eduardo deverá aceitar que é deputado, e não chanceler. E Jair Bolsonaro precisará entender que, se não controlar os filhos, já existem generais que veem a necessidade de Heleno ter com o presidente uma nova conversa, nos mesmos moldes da que teve em 2017. Mas, desta vez, em vez de o próprio Jair ser enquadrado, o tema da conversa serão Flávio, Carlos e Eduardo.