GUERRA NA UCRÂNIA

scritório de Direitos Humanos/Anthony Headley Crianças passam por veículos destruídos durante o conflito em Bucha, na Ucrânia

Chefe de direitos humanos da ONU fala de impacto arrasador da guerra na Ucrânia

O alto comissário de Direitos Humanos da ONU encerrou, nesta quarta-feira, uma visita de quatro dias à Ucrânia. Em Kyiv, Volker Turk, participou de uma entrevista a jornalistas.

Ele se disse preocupado com a chegada de um “inverno longo e sombrio” no país e destacou o impacto arrasador da guerra nos direitos humanos.

Falta de alimentos

Turk disse que nestes quatro dias, com temperaturas abaixo de zero, ele testemunhou “os horrores, o sofrimento e o preço diário que esta guerra da Rússia contra a Ucrânia” tem sobre o povo.

Ele alertou que cerca de 17,7 milhões de pessoas precisam de assistência humanitária e 9,3 milhões de assistência alimentar e subsistência. Um terço da população foi forçado a fugir de suas casas. Cerca de 7,89 milhões deixaram a Ucrânia, a maioria mulheres e crianças, e 6,5 milhões de pessoas estão deslocadas internamente.

O chefe de direitos humanos disse que, todos os dias, seu Escritório recebe informações sobre crimes de guerra, um aumento no número de civis que são atingidos, além dos danos e da destruição, que incluem hospitais e escolas, como ele mesmo viu em Izium.

Volker Turk ressalta que, durante o inverno, isso tem consequências terríveis para os mais vulneráveis, que estão lutando contra apagões, sem aquecimento ou eletricidade, que duram horas.

Ataques a civis

Na segunda-feira, durante a visita, Volker Turk precisou passar um tempo em um abrigo subterrâneo, quando pelo menos 70 mísseis foram lançados na Ucrânia, novamente atingindo a infraestrutura essencial e desligando a energia.

O representante também alertou que continuam surgindo informações sobre execuções sumárias, tortura, detenções arbitrárias, desaparecimentos forçados e violência sexual contra mulheres, meninas e homens.

O alto comissário conversou com as famílias dos prisioneiros de guerra, ouviu a dor dos pais daqueles que estão na linha de frente e soube da situação de pessoas com deficiência e idosos que não conseguem chegar a um abrigo seguro quando as sirenes de ataque aéreo disparam.

Turk visitou o local onde ficava um prédio de apartamentos que foi bombardeado em Izium, em Kharkiv, deixando mais de 50 pessoas enterradas sob os escombros. Ele também conversou com uma senhora que mostrou o prédio onde morava, agora destruído. Todos os seus vizinhos morreram.

Crimes de guerra

O chefe de Direitos Humanos da ONU afirma que os prisioneiros de guerra devem ser sempre tratados com humanidade desde o momento em que são capturados, e que esta é uma obrigação clara e inequívoca sob o direito humanitário internacional.

A missão de Monitoramento dos Direitos Humanos da ONU na Ucrânia, chefiada por Matilda Bogner, divulgou nesta quarta-feira, um relatório que detalha as mortes de civis. O documento retrata o destino de 441 civis em partes de três regiões do norte, Kyiv, Chernihiv e Sumy, que estavam sob controle russo até o início de abril. Bucha foi a cidade mais atingida.

Volker Turk disse que seu escritório está trabalhando para validar as alegações de mortes adicionais nessas regiões e em partes das regiões de Kharkiv e Kherson, que foram recentemente retomadas pelas forças ucranianas. Ele afirma que “há fortes indícios de que as execuções sumárias documentadas no relatório constituem o crime de guerra de homicídio doloso”.

Ataques à rede elétrica

A situação humanitária na Ucrânia foi tema de uma sessão no Conselho de Segurança da ONU na terça-feira.

O subsecretário-geral de Assistência Humanitária, Martin Griffiths, disse que mais de 14 milhões de pessoas foram forçadas a deixar suas casas por causa do conflito.  Deste total, pelo menos 6,5 milhões se tornaram deslocadas internas e 7,8 milhões fugiram para outros países da Europa.

Desde o início da invasão da Rússia à Ucrânia, em 24 de fevereiro, 17.023 civis perderam a vida e 1.148 menores foram mortos ou feridos, mas o número real pode ser ainda mais alto.

Uma das maiores preocupações, é com a chegada do inverno e as temperaturas que devem baixar para -20°C, enquanto os ataques à infraestrutura do país continuam. Griffiths disse que as ofensivas às redes de energia elétrica do país por forças da Rússia criaram um novo nível de necessidade no conflito.

Texto publicado originalmente na ONU News.


Invasão na Ucrânia com interesse econômicos | Imagem: reprodução/Outras Palavras

A guerra após nove meses, segundo Chomsky

Outras Palavras*

Noam Chomsky em entrevista a C.J. Polychroniou, no Other News | Tradução: Maurício Ayer

A guerra da Rússia na Ucrânia se prolongou por quase nove meses, e agora escala a níveis altamente letais. Putin tem como alvo a infraestrutura de energia da Ucrânia e pôs em pauta repetidamente o fantasma das armas nucleares. Os ucranianos, por outro lado, continuam acreditando que podem derrotar os russos no campo de batalha e até retomar a Crimeia. De fato, a guerra na Ucrânia não tem fim à vista. Como Noam Chomsky aponta nesta entrevista, a escalada do conflito colocou as alternativas diplomáticas ainda mais em segundo plano.

Chomsky é professor emérito do Departamento de Linguística e Filosofia do MIT e professor laureado de linguística e catedrático Agnese Nelms Haury no Programa de Meio Ambiente e Justiça Social da Universidade do Arizona. Um dos estudiosos mais citados do mundo e um intelectual público considerado por milhões de pessoas como um patrimônio nacional e internacional, Chomsky publicou mais de 150 livros em linguística, pensamento político e social, economia política, estudos de mídia, política externa dos EUA. Seus livros mais recentes são The Secrets of Words (com Andrea Moro; MIT Press, 2022); A retirada: Iraque, Líbia, Afeganistão e a fragilidade do poder dos EUA (com Vijay Prashad; The New Press, 2022); e The Precipice: Neoliberalism, the Pandemic and the Urgent Need for Social Change (com C.J. Polychroniou; Haymarket Books, 2021).

C.J. Polychroniou – Noam, a guerra na Ucrânia se aproxima da marca do nono mês e, em vez de um arrefecimento, caminha para uma “escalada sem controle”. Na verdade, está se tornando uma guerra sem fim, já que a Rússia tem alvejado a infraestrutura de energia da Ucrânia nas últimas semanas e intensificado seus ataques na região leste do país, enquanto os ucranianos continuam pedindo mais e mais armas do Ocidente, acreditando que têm a capacidade de derrotar a Rússia no campo de batalha. Como as coisas estão na conjuntura atual, a diplomacia pode acabar com a guerra? De fato, como é possível desescalar uma guerra quando o nível de intensidade é tão alto e os lados em confronto parecem incapazes de chegar a uma decisão sobre as questões sobre as quais eles têm conflito? Por exemplo, a Rússia nunca aceitará reverter as fronteiras para a posição que estavam antes de 24 de fevereiro, quando a invasão foi lançada.

Noam Chomsky – Tragédia anunciada. Vamos fazer uma breve retrospectiva do que discutimos ao longo de meses.

Antes da invasão de Putin, havia alternativas baseadas geralmente nos acordos de Minsk, que poderiam ter evitado o crime. Há um debate não resolvido sobre se a Ucrânia aceitou esses acordos. Pelo menos verbalmente, a Rússia parece ter feito isso até pouco antes da invasão. Os EUA os rejeitaram em favor da integração da Ucrânia ao comando militar da OTAN (ou seja, dos EUA), recusando-se também a levar em consideração quaisquer preocupações de segurança russas, conforme já foi admitido. Esses movimentos foram acelerados sob Biden. Poderia a diplomacia ter conseguido evitar a tragédia? Só havia uma maneira de descobrir: tentar. Essa possibilidade foi ignorada.

Putin rejeitou os esforços do presidente francês Macron, até quase o último minuto, de oferecer uma alternativa viável à agressão. Rejeitou-os no final com desprezo – um tiro no pé de si próprio e da Rússia, pois colocou a Europa no bolso de Washington, o que era seu maior sonho. Ao crime de agressão somava-se o crime de tolice, do seu ponto de vista.

As negociações Ucrânia-Rússia ocorreram sob os auspícios da Turquia em março-abril. Falharam. Os EUA e o Reino Unido se opuseram. Devido à falta de investigação, o que é parte do menosprezo geral da diplomacia nos círculos tradicionais, não sabemos até que ponto essa oposição foi um fator para o colapso das negociações.

Washington inicialmente esperava que a Rússia conquistasse a Ucrânia em poucos dias e estava preparando um governo no exílio. Analistas militares ficaram surpresos com a incompetência militar russa, a notável resistência ucraniana e o fato de a Rússia não ter seguido o esperado modelo de guerra dos EUA e Reino Unido (também o modelo seguido por Israel na indefesa Faixa de Gaza): atacar direto na jugular, usando armas convencionais para destruir comunicações, transporte, energia, o que quer que mantenha a sociedade funcionando.

Com a escalada do conflito, as opções de diplomacia diminuíram. No mínimo, os EUA poderiam retirar sua insistência em sustentar a guerra para enfraquecer a Rússia, barrando assim o caminho para a diplomacia.

Os EUA então tomaram uma decisão fatídica: continuar a guerra para enfraquecer severamente a Rússia, evitando assim as negociações e fazendo uma aposta medonha: que o destino de Putin seria fazer  as malas e escapar da derrota para o esquecimento, se não pior, e que não usaria as armas convencionais que, como todos sabem, ele tinha com capacidade para destruir a Ucrânia.

Se os ucranianos querem arriscar a aposta, isso é problema deles. O papel dos EUA é problema nosso.

Agora Putin avançou para a escalada que fora prevista, “visando a infraestrutura de energia da Ucrânia nas últimas semanas e intensificando seus ataques na região leste do país”. A escalada de Putin igualando-se ao modelo celebrizado pelos EUA-Reino Unido-Israel foi condenada com razão por sua brutalidade – condenada justamente por aqueles que aceitam os “originais” com pouca ou nenhuma objeção, e cuja aposta medonha deu as bases para essa escalada, tal como foi amplamente advertido. Não haverá responsabilização, embora algumas lições possam ter sido aprendidas.

Enquanto os apelos liberais, mesmo muito moderados, para que se considerasse uma saída diplomática dando apoio total à Ucrânia foram imediatamente submetidos a uma torrente de difamação, e muitas vezes apagados com medo, as vozes do mainstream que clamam por diplomacia foram poupadas desse tratamento, incluindo vozes da principal revista do establishment, a Foreign Affairs. Pode ser que as preocupações a respeito de uma guerra destrutiva, com consequências potencialmente cada vez mais sinistras, estejam chegando aos “falcões” neocons que parecem estar conduzindo a política externa de Biden. É o que parecem indicar algumas de suas declarações recentes.

Muito possivelmente eles também estão ouvindo outras vozes. Enquanto as corporações de energia e militares dos EUA estão rindo à toa, olhando as contas no banco, a Europa está sendo duramente castigada pelo corte de suprimentos russos e pelas sanções iniciadas pelos EUA. Isso é particularmente verdadeiro para o complexo industrial alemão que é a base da economia europeia. Permanece uma questão em aberto se os líderes europeus estarão dispostos a monitorar o declínio econômico da Europa e o aumento da subordinação aos EUA, e se suas populações vão tolerar tais consequências da adesão às demandas dos EUA.

O golpe mais dramático para a economia europeia é a perda do gás russo barato, agora parcialmente substituído por suprimentos americanos muito mais caros (aumentando também a poluição em trânsito e na distribuição). Isso, porém, não é tudo. Os suprimentos russos de minerais desempenham um papel essencial na economia industrial da Europa, incluindo os esforços para mudar para energia renovável.

O futuro do abastecimento de gás para a Europa foi prejudicado severamente – talvez permanentemente – com a sabotagem dos gasodutos Nord Stream que ligam a Rússia e a Alemanha através do Mar Báltico. Este é um grande golpe para os dois países. Foi recebido com entusiasmo pelos Estados Unidos, que vinham tentando há anos barrar esse projeto. O secretário de Estado [Antony] Blinken descreveu a destruição dos oleodutos como “uma tremenda oportunidade para remover de uma vez por todas a dependência da energia russa e, assim, tirar das mãos de Vladimir Putin a belicização da energia como meio de avançar em seus desígnios imperiais.”

Os fortes esforços dos EUA para bloquear o Nord Stream precederam em muito a crise na Ucrânia e as atuais narrativas febris sobre os desígnios imperiais de longo prazo de Putin. Eles remontam aos dias em que Bush II olhava nos olhos de Putin e percebia que sua alma era boa.

O presidente Biden informou à Alemanha que se a Rússia invadisse a Ucrânia, “então não haverá mais Nord Stream 2. Vamos colocar um fim nisso”.

Essa sabotagem, um dos eventos mais importantes dos últimos meses, foi rapidamente despachada para a obscuridade. Alemanha, Dinamarca e Suécia conduziram investigações sobre a sabotagem em suas águas próximas, mas mantêm silêncio sobre os resultados. Há um país que certamente tinha capacidade e motivo para destruir os oleodutos. Isso não pode ser mencionado na sociedade polida. Então vamos deixar por isso mesmo.

Ainda há uma oportunidade para o tipo de esforço diplomático que as vozes do establishment estão pedindo? Não podemos ter certeza. Com a escalada do conflito, as opções diplomáticas diminuíram. No mínimo, como mencionado, os EUA poderiam retirar sua insistência em sustentar a guerra para enfraquecer a Rússia. Uma posição mais forte é a das citadas vozes do establishment: pedem que opções diplomáticas sejam exploradas antes que os horrores se tornem ainda piores, não apenas para a Ucrânia, mas muito além.

As autoridades ucranianas afirmam que têm uma estratégia para retomar a Crimeia porque foi anexada ilegalmente por Moscou em 2014. Anúncios semelhantes foram feitos antes mesmo da invasão da Ucrânia pela Rússia. Embora nenhum estrategista militar acredite que a Ucrânia esteja em posição de retomar a Crimeia, isso não seria mais uma evidência de que não há um fim à vista para a guerra Rússia-Ucrânia? Não é esta outra razão pela qual as armas ATACMS de longo alcance que a Ucrânia diz precisar não devem ser entregues a eles?

A administração Biden e o Pentágono tiveram o cuidado de limitar o fluxo maciço de armas àqueles tipos que provavelmente não conduziriam a uma guerra OTAN-Rússia, que seria efetivamente terminal para todos. Se esses assuntos delicados podem ser mantidos sob controle, ninguém pode ter certeza. Mais uma razão para tentar acabar com os horrores o mais rápido possível.

A China alertou a Rússia contra ameaças de usar armas nucleares na guerra contra a Ucrânia. Seria esse um sinal de que Pequim pode estar pensando em se distanciar das aventuras militares de Putin na Ucrânia? Em ambos os casos, indica que há limites para a amizade entre China e Rússia, não é?

Há poucas evidências, que eu saiba, de que a China esteja se distanciando da Rússia. Ao contrário, parece que suas relações estão se estreitando em oposição comum ao entrincheiramento de um mundo unipolar dirigido pelos Estados Unidos, sentimentos compartilhados na maior parte do mundo. A China certamente se opõe ao uso de armas nucleares, assim como qualquer um que ainda tenha um pingo de sanidade. E como quase todo o mundo, quer uma solução rápida para o conflito.

Deveria ser uma grande preocupação o fato de que a conversa sobre a guerra nuclear esteja sendo cogitada casualmente como uma possibilidade a ser considerada.

As conversas sobre armas nucleares têm ocorrido principalmente no Ocidente. A Rússia reiterou a posição universal dos Estados nucleares: que eles podem recorrer a armas nucleares em caso de ameaça à sobrevivência. Essa posição tornou-se mais perigosa quando Putin anexou partes da Ucrânia, estendendo a doutrina universal a um território mais amplo.

Não é bem verdade que a doutrina é universal. Os EUA têm uma posição muito mais extrema, enquadrada antes da invasão da Ucrânia, mas anunciada apenas recentemente: uma nova estratégia nuclear que a Associação de Controle de Armas descreveu como “uma expansão significativa da missão original dessas armas, ou seja, dissuadir ameaças existenciais contra os Estados Unidos.”

A expansão significativa é explicada pelo almirante Charles Richard, chefe do Comando Estratégico dos EUA (STRATCOM). Sob a recém-anunciada Revisão da Postura Nuclear, as armas nucleares fornecem o “espaço de manobra” necessário para os Estados Unidos “projetar estrategicamente o poder militar convencional”. A dissuasão nuclear é, portanto, uma cobertura para operações militares convencionais em todo o mundo, impedindo outros de interferir nas operações militares convencionais dos EUA. As armas nucleares, portanto, “impedem todos os países, o tempo todo” de interferir nas ações dos EUA, continuou o almirante Richard.

Stephen Young, representante sênior de Washington na Union of Concerned Scientists (União de Cientistas Preocupados), descreveu a nova Revisão da Postura Nuclear como “um documento aterrorizante [que] não apenas mantém o mundo em um caminho de risco nuclear crescente, mas aumenta esse risco”, já intoleravelmente alto, “de muitas maneiras”.

Uma avaliação justa

A imprensa mal noticiou a Revisão da Postura Nuclear, descrevendo-a como não sendo uma grande mudança. Por acaso eles estão certos, mas por razões que evidentemente eles desconhecem. Como o comandante do STRATCOM, Richard, sem dúvida, poderia informá-los, essa tem sido a política dos EUA desde 1995, quando foi elaborada em um documento do STRATCOM intitulado “Fundamentos da Dissuasão Pós-Guerra Fria”. Sob Clinton, as armas nucleares devem estar constantemente disponíveis porque “lançam uma sombra” sobre o uso convencional da força, impedindo outros de interferir. Como disse Daniel Ellsberg, as armas nucleares são usadas constantemente, assim como uma arma é usada em um assalto, mesmo que não seja disparada.

O documento do STRATCOM de 1995 pede ainda que os EUA projetem uma “persona nacional” de “irracionalidade e vingança”, com alguns elementos “fora de controle”. Isso vai assustar aqueles que podem ter pensar em interferir. É a “doutrina do louco”, que foi atribuída a Nixon com base em poucas evidências, mas que agora aparece em um documento oficial.

Tudo isso está dentro da estrutura da doutrina abrangente de Clinton de que os EUA devem estar prontos para recorrer à força multilateralmente se pudermos, unilateralmente se precisarmos, para garantir “acesso livre a mercados-chave, suprimentos de energia e recursos estratégicos”.

É verdade, então, que a nova doutrina não é muito nova, embora os americanos desconheçam os fatos – não por causa da censura. Os documentos são públicos há décadas e citados na literatura crítica, que é mantida à margem.

Deveria ser uma grande preocupação que a conversa sobre a guerra nuclear esteja sendo cogitada casualmente como uma possibilidade a ser considerada. Não é. Definitivamente não é.

*Texto publicado originalmente no site Outras Palavras


Ataques russos deixam 4,5 milhões sem energia na Ucrânia

DW Made for Minds*

Os ataques russos à infraestrutura civil da Ucrânia deixaram nesta quinta-feira (03/11) cerca de 4,5 milhões de ucranianos sem energia – o equivalente a 10% da população do país antes do início da guerra – , afirmou o presidente Volodimir Zelenski, acrescentando que a falta de eletricidade ocorreu em Kiev e em outras dez regiões.

Zelenski pediu ainda que as autoridades locais economizem energia, desligando letreiros, vitrines e placas. "Se alguém fica sem eletricidade por oito ou dez horas, e tudo está ligado, incluindo a iluminação pública do outro lado da rua, é definitivamente injusto", ressaltou. 

Segundo o chefe de Estado ucraniano, a Rússia está usando "terror energético" e atacando instalações elétricas do país porque não pode derrotar a Ucrânia no campo de batalha.

"Que a Rússia tenha recorrido ao terror contra a indústria energética mostra a fraqueza do inimigo. Não podem derrotar a Ucrânia no campo de batalha, e é por isso que estão tentando quebrar nosso povo dessa maneira", declarou o presidente ucraniano em seu habitual discurso noturno.

Mencionando que os ataques russos às instalações energéticas do país "não param um único dia" e terão que receber "uma poderosa resposta global", Zelenski frisou que o desafio de suportar o "terror energético russo" é agora a "tarefa nacional" de todos os ucranianos,

Com a aproximação do inverno, há semanas, a Rússia vem focando os bombardeios na Ucrânia em alvos civis, numa aparente tentativa de deixar a população no escuro e no frio nos próximos meses. Os ataques já destruíram cerca de um terço das estações de energia do país, e o governo ucraniano vem pedindo que a população economize eletricidade ao máximo.

A ofensiva militar lançada a 24 de fevereiro pela Rússia na Ucrânia já obrigou mais de 13 milhões de ucranianos a deixarem suas casas. Destes, mais de 7,7 milhões buscaram segurança em países europeus, segundo os mais recentes dados da ONU, que classifica esta crise de refugiados como a pior na Europa desde a Segunda Guerra Mundial (1939-1945). A guerra já matou mais de 6.400 civis e feriu 9,800.

cn/av (Reuters, Lusa, EFE, AFP)

*Texto publicado originalmente no site Made for Minds


Conflitos na Ucrânia | Foto: Creative Commons

Revista online | A identidade imperial russa e a guerra na Ucrânia

Paulo César Nascimento e Leone Campos de Sousa*, especial para a revista Política Democrática online (48ª edição: outubro/2022) 

“Tudo que cessa de crescer começa a apodrecer”, assinalou, certa vez, Catarina II, imperatriz da Rússia de 1761 a 1796, referindo-se à necessidade de seu país expandir-se constantemente de forma a garantir seu status de potência entre as nações europeias. Essa aspiração tem sua origem em Pedro I, que a antecedeu em quatro décadas, e prossegue, por vias tortuosas, até a atual Rússia pós-soviética de Vladimir Putin, influenciando inclusive sua fatídica decisão de invadir a Ucrânia.

Para sustentar a ambição russa de aumentar a influência e o poder do czarismo, Pedro e Catarina tinham tanto que competir com os países que então representavam o Ocidente desenvolvido – Inglaterra, Holanda, Alemanha e França –, quanto copiá-los em certos aspectos. Para tal, procuraram transformar a velha Rússia oriental, dotando-a de infraestrutura moderna.  Racionalizaram sua enorme burocracia, incentivaram a ciência e, através do fortalecimento do exército, ampliaram as fronteiras do império por meio de várias conquistas militares. Um ponto muito importante dessas mudanças foi a transferência da capital de Moscou para São Petersburgo, cidade construída por Pedro I com o intuito de ser a “janela para a Europa” da Rússia.

Esse processo de modernização, contudo, nunca incorporou o iluminismo europeu, nem muito menos as instituições democráticas que se desenvolviam na parte ocidental do velho continente. Os sucessivos czares construíram extensas ferrovias, dotaram seus exércitos da mais moderna artilharia e formaram técnicos e especialistas no exterior; no entanto, não reformaram a monarquia autocrática absolutista, que permaneceu sem grandes alterações até à Revolução de 1917.

Essa característica da Rússia – desenvolver-se para competir com as potências europeias, mantendo ao mesmo tempo a tradição autocrática de governo –, refletia na verdade uma ambiguidade da identidade nacional do país, visível na intelligentsia russa.  Parte dela, ressentida pelo atraso cultural e político da Rússia vis-à-vis o Ocidente, enaltecia elementos da sua cultura autóctone, como a enigmática “alma eslava”, a “simplicidade” do muzhik – o camponês russo –, assim como a espiritualidade do povo, representada pela igreja ortodoxa.  Veneravam as tradições eslavas e, ao mesmo tempo, criticavam o materialismo e o racionalismo ocidentais, bem como a falta de humanidade e transcendência nas sociedades europeias.

Uma outra parte dos intelectuais russos, ao contrário, tomavam o Ocidente como modelo a ser seguido pela Rússia, para que esta pudesse progredir e entrar no mapa mundial como a potência que suas dimensões territoriais, recursos naturais e milenar civilização exigiam. Lamentavam a autocracia czarista, o atraso social e a falta de liberdades democráticas do país. Sua visão do Ocidente, no entanto, muitas vezes pecava por ingenuidade, como se fosse possível transferir mecanicamente para a Rússia as condições que propiciaram o progresso dos países europeus. Aliás, tal ingenuidade parece ser uma constante entre os “ocidentalistas” russos.

Veja todos os artigos da edição 48 da revista Política Democrática online

Por óbvio, as posições pró e contra o Ocidente nunca apareciam de forma cristalina, nem suas fronteiras eram rigidamente delimitadas. Era comum intelectuais russos mudarem de visão ao longo da vida, relutando sobre o que a Rússia deveria ser. O escritor e publicista do século XVIII, Denis Ivanovich Fonvisin, resumiu assim o drama russo:  “Como poderemos remediar os dois preconceitos contraditórios e muito danosos: o primeiro, que tudo o que temos é horrível, enquanto nos países estrangeiros tudo é bom; e o segundo, que nos países estrangeiros tudo é terrível, e conosco tudo é bom?”.   Já no plano simbólico, nada atesta melhor essa dubiedade da identidade nacional russa do que a iconografia imperial da águia bicéfala, com uma cabeça apontando para o Oriente e outra para o Ocidente.

A revolução russa de 1917 não alterou significativamente o quadro da identidade nacional russa, mas deu a ela nova roupagem, além de ter conciliado, pelo menos temporariamente, seus aspectos mais contraditórios.  O marxismo popularizou-se entre a intelligentsia russa, a partir da segunda metade do século XIX, justamente porque atendia tanto os sonhos da escatologia eslavófila, que previa que a Rússia se tornaria uma “terceira Roma”, como as aspirações dos ocidentalistas, para quem a ciência do materialismo histórico desenvolvida por Marx apontava para a necessidade de uma revolução socialista que tiraria a Rússia de seu atraso histórico.

A Rússia, a partir de 1917, colocou-se dessa forma como foco irradiador de uma nova era histórica da humanidade.  Dalí em diante, seriam os russos, com sua revolução, que iriam mostrar os novos caminhos de desenvolvimento ao Ocidente.  É certo que no bolchevismo havia certos elementos que lembravam a busca dos eslavófilos por raízes próprias.  Afinal de contas, Lenin rompeu com a socialdemocracia europeia, formando um tipo de partido centralizado até então inexistente entre os marxistas, além de adaptar o marxismo às condições russas, ao saltar a etapa democrático-burguesa pregada pela teoria e avançar direto para o socialismo.

Estas considerações à parte, Lenin e os bolcheviques mantiveram uma firme perspectiva internacionalista. A revolução russa deveria servir como uma faísca irradiadora das revoluções nos países ocidentais, sem as quais a Rússia soviética teria muito mais dificuldades em construir plenamente uma sociedade socialista. O Ocidente, contudo, não respondeu ao apelo revolucionário, deixando a Rússia isolada entre as nações capitalistas.  Essa conjuntura minou a perspectiva internacionalista do partido comunista, que sob o comando de Stalin, nos anos vinte do século passado, desenvolveu a teoria do “socialismo em um só país”, segundo a qual  a Rússia, já sob o manto da União Soviética, seria capaz não somente de construir o socialismo sem ajuda do Ocidente, como ainda de desempenhar,  para os revolucionários de todo mundo, o papel de “pedra-de-toque” do movimento comunista.

Posteriormente, a espetacular vitória sobre o nazismo na Segunda Guerra Mundial elevou ainda mais o status da URSS, que atingiu, junto com os EUA, a condição de superpotência,  realizando dessa forma o velho sonho dos profetas da eslavofilia, já que Moscou  se tornou finalmente uma “terceira Roma”, ultrapassando, em termos de poder, influência e grandeza, a Roma dos latinos e a Constantinopla do Império Bizantino.

Somente ancorando nossa análise na sociologia weberiana, que enfatiza a importância dos valores e da motivação dos atores na orientação da ação social, somos capazes de compreender como a velha Rússia dos czares, atrasada e camponesa, pôde dar esse gigantesco passo em poucas décadas. A revolução de 1917 elevou a Rússia a este patamar grandioso não tanto por causa da doutrina marxista ou da economia socialista, mas porque soube canalizar, impulsionar e dar um sentido novo à milenar aspiração russa ao status de uma civilização ímpar na história da humanidade.

Ainda assim, a URSS continuava sendo um gigante de pés de barro. Alcançou paridade em ogivas nucleares e força militar com os Estados Unidos, mas continuava atrás dos países ocidentais em termos de instituições políticas democráticas, condições sociais e dignidade humana. A elite soviética pós-stalinista sabia disso, assim como a classe média urbana, sempre ávidas por produtos de consumo das economias capitalistas e informação sobre o Ocidente. Por fim, o inacreditável custo humano do empreendimento socialista, a estagnação econômica e a falta de liberdades elementares – civis, políticas, e de expressão artística – acabaram por minar a legitimidade do regime soviético.

Foi nesse contexto de crise e estagnação que ocorreu, com a Perestroika lançada por Mikhail Gorbachev, em 1986, uma significativa mudança da visão da elite dirigente em relação ao Ocidente, que pode ser atestada no apelo do governante soviético à construção de uma “casa comum europeia”. Mais que um modus vivendi pacífico com o Ocidente, a Rússia buscava ser parte integrante da civilização europeia. Mesmo o desmoronamento da União Soviética não alterou esta aspiração, ao contrário, até incentivou-a. Os primeiros anos da Rússia pós-soviética, ainda sob a liderança de Boris Yeltsin, foram marcados por um intenso sentimento pró-ocidental entre as elites urbanas do país. Parecia que, livre das amarras da União Soviética, e de volta ao convívio com as democracias ocidentais, a Rússia poderia ingressar em um período ilimitado de progresso político, econômico e social.

Como se sabe, nada disso aconteceu. Ao invés de construir uma economia de mercado avançada e gerar riqueza social, a Rússia enveredou pelo caminho de um capitalismo selvagem e corrupto, passando a conviver com desigualdades sociais nunca existentes no regime socialista anterior. Para humilhação do país, sua influência internacional diminuiu tanto que foi obrigada a engolir a expansão da OTAN na área de influência da antiga URSS. Os Estados Unidos, por sua vez, foi paulatinamente entregando a enfraquecida Rússia à própria sorte, na medida em que voltava sua atenção para enfrentar o crescente poderio da China.

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Este novo contexto levou a percepção do Ocidente na Rússia passar de simpatia para animosidade aberta. Forças políticas nacionalistas cresceram entre o eleitorado russo. Já em 1993, o partido liberal-democrático de Vladimir Zhirinovsky (ultranacionalista, apesar do nome) saiu o grande vencedor das eleições legislativas. O próprio partido comunista russo, reorganizado por Guennady Ziuganov após o colapso da URSS, renasceu das cinzas, adotando uma plataforma política com marcado tom nacionalista. A elite mais liberal de economistas e políticos, muito influente nos anos de transição da URSS para a Rússia pós-soviética, praticamente desapareceu do mapa político.

No tocante à política externa, a Rússia buscou reaver sua hegemonia na região que denomina de “exterior próximo”, a antiga área de influência da URSS.  Em 1991, por iniciativa de Moscou, foi criada a Comunidade de Estados Independentes, composta de 11 ex-repúblicas soviéticas, e, no ano seguinte, a Organização de Segurança Coletiva com Armênia, Belarus, Cazaquistão e outros Estados da antiga Ásia Central soviética. A nova assertividade da Rússia foi demonstrada também quando o governo russo reprimiu militarmente a tentativa de independência da Chechênia, uma república islâmica da federação russa, em um conflito que se arrastou de 1994 a 1996.

É preciso assinalar que os ziguezagues na identidade nacional russa, ora aproximando-se do modelo ocidental, ora rejeitando-o, não obedecem a qualquer lei histórica ou ciclos inevitáveis. Uma variedade múltipla de fatores – econômicos, sociais e políticos – atuam em sinergia para empurrar a Rússia para um lado ou outro. A classe ou o estrato da sociedade de onde a elite governante russa é proveniente, seu grau de cosmopolitismo e o nível cultural que detém, também exercem influência na formação da sua visão sobre o que a Rússia deveria ser.

Além disso, o contexto internacional oferece seus próprios incentivos, diferentes em cada época, para a liderança russa se aproximar ou se afastar do mundo ocidental. Toda essa gama de fatores não impede o historiador, em retrospectiva, de reconstituir a trajetória que levou a uma ou outra opção, mas torna mais difícil ao analista político prever as tendências do futuro.  Não se pode esperar, igualmente, que uma mudança em favor ou contra o que se percebe como “perspectiva ocidental” traga consequências imediatas para o rumo da política do país, devido aos múltiplos constrangimentos internos e externos que limitam os governantes russos.

Em linhas muito gerais, o que se pode afirmar é que, sempre que a Rússia se inclina para o Ocidente, se aproxima de ideais de liberdade, justiça e modernidade; e, por outro lado, toda a vez que o país vai buscar sua identidade no que entende como sendo suas fontes autóctones tradicionais, a tendência à autocracia se fortalece, até porque, em sua história, a Rússia desconheceu o iluminismo e não teve experiências significativas com a democracia.

Quando Putin então assume o poder em 1999, a Rússia já havia abandonado a perspectiva de seguir o modelo de sociedade dos países desenvolvidos do Ocidente, e buscava, através de um crescente sentimento nacionalista, reerguer-se enquanto nação. Putin reorganizou a economia do país, obtendo grande crescimento econômico em seu primeiro governo (1999-2008), em larga medida graças à alta de preços de petróleo e gás, além de fortalecer as forças armadas e elevar o nível de vida da população. Com isso, manteve altos índices de popularidade durante todo o seu mandato.

Quem ouve as constantes diatribes proferidas atualmente pelo governante russo contra os Estados Unidos e a União Europeia, pode ter a impressão de que Putin representa a fina flor da tradição antiocidental eslavófila do país. Mas na verdade, como grande parte da elite russa do século XIX até os tempos atuais, ele foi durante algum tempo ambivalente a respeito do que a Rússia deveria ser em termos identitários. A formação em direito pela Universidade de Leningrado, uma das melhores do país, e a carreira como agente de inteligência da URSS com anos de trabalho na Alemanha Oriental (DDR), ampliaram seus horizontes intelectuais e com isso seu espírito crítico.

Quando ocorreu a tentativa de golpe contra Gorbachev, em agosto de 1991, Putin renunciou ao cargo de tenente-coronel na KGB, declarando naquela ocasião: “Assim que o golpe começou, eu imediatamente decidi de que lado estava”. Atitude surpreendente, haja vista o apoio que a KGB havia dado aos golpistas. Já sobre o regime soviético, quando foi eleito presidente em 2000 ele declarou em seu “Manifesto do Milênio”:

“O comunismo e o poder dos soviéticos não fizeram da Rússia um país próspero, com uma sociedade em desenvolvimento dinâmico e um povo livre. O comunismo demonstrou vividamente a sua inaptidão para um autodesenvolvimento sólido, condenando o nosso país a um atraso constante em relação aos países economicamente avançados. Foi um caminho para um beco sem saída, que está longe da corrente dominante da civilização”.  

Ou seja, fica claro aqui o rechaço de Putin à experiência soviética porque esta afastou a Rússia da “corrente dominante da civilização” – a civilização dos países desenvolvidos do Ocidente que, àquela época, estava na sua mente como modelo a ser seguido.

Não menos intrigante é a conversa que teve lugar em 2015, entre o cineasta norte-americano Oliver Stone e Putin, em que este revelou que “décadas atrás”, em uma das visitas de Bill Clinton a Moscou, teria dito “meio a sério, meio como piada” que “provavelmente a Rússia deveria pensar em se juntar à OTAN”. Piada ou não, o fato é que já havia sido assinado, em 1997, o “Ato Fundador OTAN-Rússia”, acordo com o intuito de aproximar a Rússia e o bloco militar em assuntos envolvendo segurança mútua. E em 2002, já com Putin ocupando o Kremlin, formou-se um “Conselho OTAN-Rússia” no qual o país chegou até a ganhar um assento permanente na sede do Bloco, em Bruxelas.

Mas na medida em que consolidava seu poder, Putin foi percebendo os ventos nacionalistas que sopravam na Rússia, e incentivou-os ainda mais, esquecendo sua antiga consideração com a civilização ocidental. Para essa empreitada, recorreu à Igreja ortodoxa russa, que se tornou a maior propagadora dos “valores tradicionais russos”. É da boca do Patriarca de Moscou, Kiril I, seu fiel aliado, que saem os mais veementes ataques à cultura e ao modo de vida ocidentais. O influente filósofo e nacionalista russo Aleksandr Dugin, considerado por muitos como o “guru de Putin”, também contribuiu para a disseminação de ideais antiocidentais, pregando a fundação de um “império euroasiático” com Rússia e China, para se opor à hegemonia do mundo ocidental.

Como era de se esperar, a defesa dos “valores tradicionais” da Rússia por Putin veio pari passu com o aumento de sua disposição autocrática. Ele modificou a constituição do país para se perpetuar no poder, alternando os cargos de presidente e primeiro-ministro, controlou os governadores e a mídia, e reprimiu a oposição liberal, prendendo, exilando ou envenenando seus desafetos e opositores. Por outro lado, a frustração de boa parte da sociedade com o que era percebido como tentativas dos EUA e seus aliados europeus de diminuir e humilhar a Rússia fez Putin endurecer ainda mais sua política externa. Uma série de acontecimentos deteriorou a relação entre a Rússia e o Ocidente, especialmente na área de segurança. A já mencionada expansão da OTAN foi um deles.  Dos anos 90 em diante, a OTAN foi aceitando novos membros, sendo quatorze deles, em um total de trinta, ex-repúblicas soviéticas e países na órbita de influência da antiga URSS.

É preciso considerar, entretanto, que aqueles países não entraram na OTAN à força, mas procuraram o bloco militar justamente pela percepção de que a Rússia poderia ameaçar sua segurança. Contribuíram para isso a guerra que o governo russo moveu contra a Chechênia e seu apoio a favor de separatistas pró-Rússia na Geórgia. Por outro lado, o bombardeio da Sérvia – tradicional aliado da Rússia – pela OTAN em 1999, durante a guerra civil na ex-Iugoslávia, assim como a invasão do Iraque pelos EUA e Reino Unido, em 2003, acirraram a desconfiança no Ocidente por parte da Rússia.

Nenhum fator, contudo, perturbou mais a Rússia do que a situação na Ucrânia. Tornando-se um Estado independente após o colapso da URSS, a Ucrânia procurou inicialmente resolver suas pendências com Moscou. A desnuclearização do país foi uma dessas controvérsias, já que Kiev herdou grandes estoques de armas atômicas da URSS, mas um acordo com a Rússia, em 1992, possibilitou a devolução das ogivas nucleares aos militares russos. Outra disputa surgiu em torno das bases da Frota russa do Mar Negro,  mas esse problema também foi superado, pelo menos temporariamente, com as negociações que levaram, em 1997, ao Tratado de Partição, que permitiu à Rússia arrendar as bases navais em Sebastopol, ao mesmo tempo em que era reconhecida pelos dois lados a inviolabilidade das fronteiras existentes. Outros tratados resolveram disputas relacionadas com o fornecimento de energia por oleodutos e gasodutos através do território ucraniano, dívidas de Kiev com Moscou, e outros problemas menores. A entrada da Ucrânia na Comunidade de Estados Independentes, nos anos 1990, possibilitou parcerias comerciais entre os dois países e as relações entre a Ucrânia e a Rússia melhoraram.

Na medida, contudo, em que o sentimento antiocidental foi crescendo na Rússia, o governo de Putin passou a exercer pressão, inclusive militar, sobre qualquer orientação pró-ocidental na área de seu “exterior próximo”, como o mencionado apoio militar da Rússia aos separatistas de certas regiões da Geórgia, em 2008, como castigo pela inclinação pró-europeia do governo daquele país.  Os ucranianos passaram a se perguntar se o mesmo não poderia ocorrer com a Ucrânia, se a Rússia resolvesse apoiar o movimento separatista de russos étnicos na região ucraniana do Donbass. A Ucrânia, que já havia pedido entrada na OTAN, em janeiro daquele ano, passou a mostrar uma gradual inclinação ao ocidente, apesar de o presidente à época, Victor Yushchenko (2005-2010), ter assegurado a Putin que o pedido de entrada de seu país no bloco militar ocidental não era uma atitude contra a Rússia. Os russos desconfiavam de Yushchenko, a quem consideravam muito pró-ocidental, mas, de qualquer forma, França e Alemanha se opuseram à entrada da Ucrânia no bloco, porque isso seria cruzar uma linha vermelha com a Rússia, e o fato é que, desde 2008, a Ucrânia está esperando sua admissão, a qual até nossos dias nunca entrou na pauta da OTAN, mesmo após a invasão do país pelas forças russas.

Apesar dos altos e baixos que marcaram as relações entre Rússia e Ucrânia desde o fim da URSS, os problemas foram contornados até 2014, quando uma revolta popular derrubou Viktor Yanukovitch (2010-2014), que havia sido eleito em 2010 e era considerado o presidente mais pró-russo que a Ucrânia teve desde sua independência.  Com as promessas de não-adesão do país à OTAN e a adoção do russo como um dos idiomas oficiais da Ucrânia, Yanukovitch granjeou simpatias no Kremlin, o que teve como consequência uma significativa melhora nas relações entre os dois países. Mas o presidente ucraniano, pragmático, não deixava de enxergar as vantagens econômicas que uma aproximação com a União Europeia poderia trazer, e passou a elaborar planos para um tratado de livre comércio com o bloco europeu, o que irritou o governo russo. Moscou passou a ameaçar adotar sanções econômicas contra a Ucrânia, e a pressão russa acabou por fazer Yanukovitch desistir do acordo com a União Europeia. O cancelamento do tratado, porém, levou a uma revolta popular que fez o presidente renunciar e se exilar em Moscou.

A Rússia retaliou anexando a Crimeia, em fevereiro de 2014, e passou a apoiar militarmente os separatistas de etnia russa da região do Donbass, que formaram as autodeclaradas repúblicas de Donetsk e Luhansk, dando início a um conflito com o exército ucraniano que perdura até hoje.  No dia 1º de março daquele mesmo ano, o parlamento russo autorizou Putin a usar força militar na Ucrânia. As negociações entre Rússia, Ucrânia e as repúblicas autônomas, que tiveram lugar em Minsk, em 2014 e 2015, não lograram um cessar-fogo nem um desenho institucional que mantivesse as repúblicas separatistas, com certa autonomia, dentro da Ucrânia.

A invasão da Ucrânia pela Rússia, em fevereiro de 2022, seguida em setembro do mesmo ano pela anexação de Donetsk, Luhansk, Zaporozhye e Kherson, regiões do leste do país povoadas por russos étnicos, deteriorou de vez a relação com o Ocidente. É possível que uma causa mais imediata da agressão russa tenha sido o declínio da economia do país, nos últimos anos, que vinha abalando a popularidade de Putin. É muito comum líderes políticos insuflarem aventuras externas para desviar a atenção de problemas internos e recuperar apoio popular. Ainda assim, é difícil imaginar uma ação dessa magnitude sem um forte sentimento antiocidental na Rússia.

É preciso destacar, entretanto, certas características específicas do nacionalismo russo atual que podem ter acirrado o conflito. Ao contrário do que alguns analistas apressados têm argumentado, Putin não está almejando reconstruir o império soviético, apesar de ter classificado o colapso da URSS como “a maior catástrofe do século XX”. O nacionalismo que ele incentiva, e a restauração da Rússia que almeja, possuem na verdade mais em comum com o antigo império czarista do que com os tempos soviéticos. Na antiga URSS, o Ocidente era percebido como sinônimo de capitalismo, e as divergências entre ambos se baseavam fundamentalmente em sistemas econômicos diferentes. Atualmente, Ocidente significa aos olhos russos uma civilização com valores antagônicos à própria identidade e tradição russas. Além disso, o nacionalismo russo camuflado da época socialista não possuía o caráter étnico e grão-russo chauvinista da época atual, que era característico do império czarista, denominado por Lenin de “prisão dos povos”.

Em artigo divulgado sete meses antes da agressão à Ucrânia, Putin revela esse nacionalismo étnico grão-russo. Ele relembra a origem comum dos povos da Ucrânia, Rússia e Belarus, que se remonta à Rússia de Kiev (Rus de Kiev) do século IX, para argumentar que as tribos eslavas eram unidas pela mesma língua, tradições culturais, laços econômicos e fé ortodoxa. A seguir, descreve como, a partir de 1654, o território ucraniano passou a fazer parte da Coroa russa em troca de proteção aos seus habitantes. Putin, entretanto, esconde outras influências que partes substantivas da Ucrânia sofreram, e que deixaram suas marcas na identidade ucraniana moderna.

A história da Ucrânia mostra que até 1648 a grande maioria dos ucranianos vivia sob jurisdição da Comunidade Polonesa-Lituana, e que a influência social e cultural da nobreza polonesa perdurou no país até à Revolução de 1917. A região da Transcarpátia ucraniana foi parte da Hungria, da Idade Média até 1919, e a Crimeia, conquistada dos turcos otomanos pelo império russo, na época de Catarina II, possui forte tradição islâmica e comunidades tártaras até à época atual.  Ignorando o desenvolvimento da identidade ucraniana, Putin alega que a Ucrânia moderna foi produto da era soviética, uma espécie de entidade artificial, fruto da “generosidade” dos bolcheviques, esquecendo-se que a questão nacional era tratada por Lenin segundo os princípios da autodeterminação dos povos, e não por razões de bondade. Putin acusa ainda a Ucrânia de querer reescrever sua história desvinculando-a da Rússia, e isso devido a pressões dos Estados Unidos e da União Europeia. E arremata que “a verdadeira soberania do Estado ucraniano só é possível em parceria com a Rússia”. Putin, dessa forma, trata a Ucrânia como se o país ainda fosse a “pequena Rússia” da periferia do antigo império czarista.

O que Moscou realmente reativou da era soviética foi a escola stalinista de falsificação. Para justificar uma invasão tão transparente, o Kremlin lembrou a relação da Ucrânia com a OTAN, como se aquele país estivesse prestes a ser aceito no bloco; exagerou a importância de grupos ucranianos de extrema-direita, afirmando que a invasão militar tinha também como propósito “desnazificar” um país que é governado por um presidente de ascendência judaica; e muito na lógica usada por Hitler para ocupar em 1938 a região germanizada dos Sudetos, pertencente à antiga Tchecoslováquia, Moscou alegou que a intervenção era necessária igualmente para defender os russos étnicos da região do Donbass, que estariam sofrendo uma política de extermínio por parte do governo do atual presidente Volodymyr Zelensky.

Como um jogador compulsivo de pôquer, Putin apostou todas as fichas em um perigoso jogo geopolítico que pode voltar-se contra ele. O plano inicial de tomar Kiev e derrubar o governo ucraniano falhou, e a Rússia viu-se isolada política e diplomaticamente do mundo desenvolvido, além de sofrer severas sanções econômicas. Sua aproximação com a China, para contrabalançar o isolamento internacional, tem certa limitação, pois o governo chinês, embora tenha criticado as sanções ocidentais, não endossou a invasão da Ucrânia, preferindo abster-se nas votações sobre a guerra na ONU. Pior ainda, se a intenção era evitar a expansão da OTAN, o tiro saiu pela culatra, pois Suécia e Finlândia, países com tradição de neutralidade, solicitaram admissão no bloco militar.

Confira, a seguir, galeria:

Estação de metrô na Ucrânia serve de abrigo para milhares de pessoas durante os ataques russos | Foto: Drop of Light/Shutterstock
Mãe segura seu bebê em abrigo antiaéreo na Ucrânia | Foto: Marko Subotin/Shutterstock
Em Varsóvia, na Polônia, uma grande tenda foi instalada para abrigar refugiados ucranianos | Foto: Damian Lugowski /Shutterstock
Mãe refugiada ucraniana atravessa a fronteira para fugir da guerra | Foto: Halfpoint/Shutterstock
Crianças se abrigam em seu porão na cidade de Mariupol, Ucrânia, durante bombardeio pela aviação russa | Foto: Vladys Creator/Shutterstock
Lenço nas cores da bandeira da Ucrânia em fronteira com a Eslováquia | Foto: Vladys Creator/Shutterstock
Famílias ucranianas fogem da guerra por meio de fronteira com a Hungria | Foto: Vladys Creator/Shutterstock
Foto: Dba87/Shutterstock
Alemanha e UE anunciam 'novo Plano Marshalll' para Ucrânia | Foto: reprodução/Flickr
Demonstrators display a banner in the colours of the Ukrainian flag reading "Stop [Russian President] Putin, Stop war" during a protest at Berlin's Brandenburg Gate on January 30, 2022. - Demonstrators criticised Putin's massing of troops near the Ukrainian border and called on Germany to play a more active role in defending Ukraine's interests. (Photo by John MACDOUGALL / AFP) (Photo by JOHN MACDOUGALL/AFP via Getty Images)
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Mariupol,,Ukraine,-,5,March,2022:,Ukrainian,Kid,,Childrens,Takes
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Hungary-beregsurany,,02.26.2022.,Ukrainian,Families,Flee,The,War,Across,The,Hungarian
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Alemanha e UE anunciam 'novo Plano Marshalll' para Ucrânia
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A atual estratégia de Moscou parece se limitar a salvar as aparências e declarar que o objetivo da “ação militar especial”, como o alto comando militar russo denomina a invasão da Ucrânia, foi alcançado com a anexação das regiões do Donbass. Mas a julgar pela contraofensiva ucraniana em curso, a guerra vai continuar por tempo indeterminado, solapando os recursos da Rússia e obrigando Moscou a convocar centenas de militares de reservistas, o que pode minar a popularidade de Putin. Sem encontrar saída para o problema que criou, o governo russo faz constantes ameaças de usar o armamento nuclear do país, aumentando desta forma a escalada do conflito com o Ocidente.

O isolamento do país deve acentuar ainda mais o nacionalismo antiocidental na sociedade russa, assim como a guerra afasta a Ucrânia de sua tradicional ligação com a Rússia, empurrando os ucranianos para uma identidade cada vez maior com a Europa ocidental. Se fizermos um paralelo histórico com a situação do Japão e da Alemanha, podemos constatar que, após o fracasso desses países em expandir seu poder através de guerras e ocupações territoriais, ambos se reinventaram e se tornaram nações prósperas, respeitadas e influentes no mundo. A Rússia, ao contrário, continua a agonizar sobre a perda do status imperial e os rumos de sua identidade nacional. Catarina II, ao afirmar que seu império só seria mantido através da expansão, parece ter lançado uma maldição que continua assombrando o país.

Sobre os autores

Paulo César Nascimento é cientista político, formado pela Universidade de Brasília (UnB).

** O artigo foi produzido para publicação na revista Política Democrática online de outubro de 2022 (48ª edição), produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.

*** As ideias e opiniões expressas nos artigos publicados na revista Política Democrática online são de exclusiva responsabilidade dos autores. Por isso, não reflete, necessariamente, as opiniões da publicação.

*Leone Campos de Sousa é socióloga, graduada pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio).

** O artigo foi produzido para publicação na revista Política Democrática online de outubro de 2022 (48ª edição), produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.*** As ideias e opiniões expressas nos artigos publicados na revista Política Democrática online são de exclusiva responsabilidade dos autores. Por isso, não reflete, necessariamente, as opiniões da publicação.

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Um militar ucraniano ao lado de uma cratera de morteiro em um campo na região de Donetsk, no leste da Ucrânia, em 24 de outubro de 2022. - Dimitar Dilkoff / AFP

Oito meses de guerra: Rússia faz alerta de "bomba suja" em uma estratégia sem horizonte

Serguei Monin*, Brasil de Fato

A recente investida russa é marcada por uma mobilização, anexação de novos territórios e fortes bombardeios por toda a Ucrânia. Kiev, por outro lado, mantém a sua contraofensiva e coloca em xeque o controle de Moscou sobre Kherson, umas das regiões anexadas pela Rússia. Enquanto isso, tímidos acenos para a possibilidade de negociações de paz mantêm o impasse na crise entre Rússia e Ucrânia. 

Esta semana começou com graves acusações por parte da Rússia de que a Ucrânia estaria concluindo a produção de uma arma radiológica chamada de "bomba suja", que combina material radioativo com explosivos convencionais. Na segunda-feira (24), o Ministério da Defesa russo acusou Kiev de planejar usar o armamento no intuito de organizar uma provocação para acusar a Rússia de usar armas de destruição em massa e lançar uma campanha antirussa no mundo.

No mesmo dia, o ministro da Defesa russo, Serguei Shoigu, realizou conversações com altos oficiais militares da Grã -Bretanha e dos EUA para alertar a comunidade internacional sobre a suposta ameaça ucraniana.

“Como resultado da provocação de ‘bomba suja’, a Ucrânia espera intimidar a população local, aumentar o fluxo de refugiados pela Europa e expor a Federação Russa como terrorista nuclear”, afirmou o chefe das tropas de proteção radiológica, química e biológica das Forças Armadas Russas, tenente-general Igor Kirillov.

Em resposta, os EUA, a Grã-Bretanha e a França emitiram uma declaração conjunta, classificando a declaração do Ministério da Defesa russo como uma "insinuação". A Ucrânia negou a produção de uma "bomba suja" e convocou inspetores da Agência Internacional de Energia Atômica ao país para realizar monitoramento. 

A narrativa russa sobre a suposta ameaça radioativa da Ucrânia é o mais recente desdobramento da atual fase da operação militar da Rússia no país vizinho, que completou oito meses na última segunda-feira (24). As movimentações de Moscou e a reação da comunidade internacional refletem o cenário de impasse que a guerra chegou atualmente.

Em uma primeira etapa da anunciada “operação especial militar” na Ucrânia, em 24 de fevereiro, a Rússia realizou uma tentativa de blietzkrieg, realizando massivos bombardeios no território ucraniano, inclusive nos arredores da capital Kiev. Com amplo apoio internacional e manutenção da resistência mobilizada das forças ucranianas, não foi alcançada a capitulação do governo ucraniano e o Kremlin modulou os seus objetivos, anunciando um recuo das tropas e concentrando as ações militares em Donbass, a região das repúblicas separatistas pró-Rússia.

Nos primeiros meses da guerra, o analista-sênior do International Crisis Group para a Rússia, Oleg Ignatov, em entrevista ao Brasil de Fato, defendeu a tese de que o Kremlin não estava se preparando para uma guerra total, considerando que as tropas executariam uma operação militar rápida. De acordo com ele, o objetivo inicial era realizar uma “operação de intimidação" para forçar uma mudança de regime na Ucrânia.  

Assim, entre março e agosto, a ofensiva das tropas russas no sul e sudeste da Ucrânia foi relativamente bem-sucedida com o foco na tomada de controle de regiões como Donetsk, Lugansk, Kherson, Zaporozhye e Kharkov.

Uma terceira etapa que altera a dinâmica do conflito se inicia no fim de agosto e início de setembro com o anúncio da contraofensiva ucraniana. Em outubro, as forças de Kiev realizaram importantes retomadas de territórios ocupados pela Rússia, principalmente na região de Kharkov.

O contraataque ucraniano levou a uma nova inflexão russa em setembro, marcada pelo anúncio da mobilização de 300 mil novos reservistas para a guerra, a anexação de territórios ocupados na Ucrânia, novos bombardeios massivos em todo o território ucraniano, além das ameaças de uso de armas nucleares. Além disso, o presidente russo, Vladimir Putin, anunciou uma lei marcial nos territórios anexados das autoproclamadas Repúblicas Populares de Donetsk e Lugansk, e nas regiões ocupadas de Kherson e Zaporozhye, na última quarta-feira (19)

Em entrevista ao Brasil de Fato, a cientista política e do Centro de Estudos Russos e do Leste Europeu da Universidade de Helsinque, Margarita Zavadskaya, observa que toda a trajetória da estratégia russa na Ucrânia até aqui aconteceu sem um planejamento adequado.

“Pressupunha-se uma guerra rápida em 24 de fevereiro, e rapidamente ficou claro, nada ia acontecer de acordo com o plano inicial. Então agora, não é uma opinião somente minha, mas também a de muitos colegas que acompanham a situação, a impressão é de que não existe um plano. Não existe uma estratégia, e existem muitas decisões inconsistentes, como declarar um estado de guerra, mas não anunciar que existe uma guerra”, argumenta.

De acordo com a analista, “todas as decisões são tomadas de acordo com a circunstância e isso é uma notícia bem ruim”, porque “é difícil compreender o que quer o lado russo”. “E se nós não entendemos o que a Rússia quer, então é muito difícil realizar com ela quaisquer negociações”, acrescentou.

Enquanto isso, o porta-voz do Kremlin, Dmitry Peskov, declarou nesta terça-feira (25) que a Rússia está pronta para o diálogo com todos os países, incluindo os EUA e o Papa Francisco, a fim de chegar a um acordo na Ucrânia.

“Estamos prontos para discutir tudo isso com os americanos, com os franceses e com o pontífice. Repito mais uma vez: a Rússia está aberta a todos os contatos. Mas devemos partir do fato de que a Ucrânia codificou [por lei] a não continuação das negociações”, disse Dmitry Peskov.

Em 30 de setembro, o presidente ucraniano Volodymyr Zelensky assinou um decreto declarando "a impossibilidade de negociações com o presidente russo Vladimir Putin".

Para a cientista política Margarita Zavadskaya, a possibilidade de haver negociações ou não será determinada pelos desdobramentos no campo de batalha.

Segundo a pesquisadora, entre muitos analistas há uma espécie de "wishful thinking", no qual todos querem que isso tudo termine o mais rápido possível, mas infelizmente a situação atual nos mostra que “pode ser um conflito desagradavelmente prolongado que não se resolverá no decorrer de um mês".

“Como a Ucrânia não pretende iniciar negociações […] e nós não entendemos exatamente o que quer a Rússia, então, no mau sentido, nós temos essa situação de impasse”, completa a cientista política.

Texto publicado originalmente no Brasil de Fato.


Centro empresarial em Kiev, na Ucrânia, é destruído por ataque russo no dia 10 de outubro de 2022 — Foto: Vladyslav Musiienko/Reuters

Rússia lança maior ataque aéreo desde início da guerra na Ucrânia em vingança por ponte da Crimeia; 14 morrem

G1*

Depois de mais de três meses sem ataques, Kiev voltou a ser fortemente bombardeada pela Rússia nesta segunda-feira (10). Em uma das piores investidas contra a capital ucraniana desde o começo da guerra, iniciada em fevereiro, 14 civis morreram e 97 ficaram feridos. Moscou atacou ainda outras cidades grandes do país, indicando uma nova fase de escalada do conflito, que já dura sete meses e meio.

O presidente russo, Vladimir Putin, disse que os mísseis lançados nesta segunda-feira fazem parte de um "forte resposta" que suas tropas já começaram a dar ao bombardeio, no sábado (8), de uma ponte na Crimeia, a península ucraniana anexada pela Rússia em 2014 (leia mais abaixo). Putin acusou a Ucrânia pela autoria da explosão e ameaçou com uma onda de novas investidas.

Já o líder ucraniano, Volodymyr Zelenskynegou e acusou a Rússia de querer causar pânico e caos em seu país.

Segundo a polícia de Kiev, 11 pessoas morreram por conta do bombardeio, que atingiu principalmente Shevchenkivskyi, o distrito central de Kiev. Centenas de pessoas passavam no momento pelo local, que vive relativa normalidade desde o início do ano, quando, depois de um diálogo de paz entre as duas partes, as tropas russas se retiraram dos arredores da capital ucraniana.

Os mísseis também atingiram outras cidades importantes do país e que vinham sendo poupadas dos ataques russos havia meses, como Lviv – que fica perto da fronteira com a Polônia –, Dnipro e Ternopil.

A agência de notícias ucraniana Uniam relatou que as cidades de Zhytomyr e Khmelnytskyi também foram atacadas, mas não há confirmação oficial.

Imagens gravadas no centro de Kiev mostraram ruas atingidas pelos mísseis, carros pegando fogo, civis mortos e muita fumaça. Segundo o Ministério da Defesa da Ucrânia, a Rússia disparou ao menos 83 mísseis contra Kiev, Lviv e Zaporizhzhia. Kiev diz ter interceptado e abatido 40 deles.

O prefeito de capital ucraniana, Vitali Klitschko, disse no Telegram que as explosões ocorreram no "coração da cidade" e que os alvos eram sua infraestrutura. Ele pediu aos moradores para permanecerem em abrigos e evitarem a região central da capital.

Logo após os bombardeios, civis lotaram a estação de metrô Vystavkovyi Tsentr, no centro. Pela tarde, as sirenes que anunciam possibilidade de um ataque voltaram a soar na cidade.

Líderes da União Europeia, como o presidente francês, Emmanuel Macron, e o chanceler alemão, Olaf Scholz, falaram com Zelensky ao telefone e prometeram apoiar a Ucrânia em uma retaliação a Moscou.

Os líderes do G7 – o clube das nações mais ricas do mundo, que recentemente excluiu a Rússia – anunciaram uma cúpula virtual de emergência na terça-feira (11) com a participação de Zelensky para discutir reações à nova ofensiva da Rússia.

Escalada em Kiev

O ataque desta segunda-feira surpreendeu por ter acontecido na capital ucraniana, que, apesar de ter sofrido intensos bombardeios ​​no início da guerra, vive em relativa calma desde o fim de abril.

À época, a Rússia abandonou uma investida contra Kiev por causa da forte resistência ucraniana, impulsionada pelo recebimento armas ocidentais.

Após um pequeno avanço das negociações de paz entre as duas partes – cujo diálogo foi interrompido há meses – Moscou concordou em se retirar da capital ucraniana e passou a focar seus esforços no leste da Ucrânia e em cidades estratégicas no sul.

Mas, segundo Zelensky, os ucranianos já se preparavam para a possibilidade de retaliação de Vladimir Putin, por conta do ataque à ponte da Crimeia no fim de semana. Sirenes alertaram para ataques aéreos em todo o país.

No domingo (9), um ataque com mísseis russos na cidade de Zaporizhzhia atingiu um prédio de apartamentos e várias casas particulares, matando 17 pessoas e ferindo 60, disseram autoridades ucranianas.

Ponte da Crimeia

A ponte da Crimeia atingida por uma explosão é a única ligação por terra entre a Rússia e a península anexada, e foi inaugurada pelo próprio Vladimir Putin em 2018.

Portanto, a explosão também tem sido vista como um ataque ao orgulho de Putin – o presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, já disse que a guerra da Ucrânia começou e vai terminar pela Crimeia.

Por isso, segundo Zelensky, seu governo já esperava por retaliações. O primeiro míssil lançado sobre Kiev atingiu justamente uma ponte da cidade, a ponte de vidro (veja o vídeo no início da reportagem).

Em pronunciamento após o lançamento de mísseis sobre Kiev, Putin prometeu novas investidas.

Visitantes assustados

Uma autoridade de defesa da Letônia visitou o local de um ataque com mísseis em Kiev nesta segunda-feira e teve que interromper sua declaração à mídia quando as sirenes de ataque aéreo soaram.

Baiba Blodniece, secretária parlamentar do Ministério da Defesa da Letônia, estava prometendo mais armas e ajuda humanitária para a Ucrânia quando as sirenes de ataque aéreo começaram a soar. A equipe de segurança rapidamente a tirou do local.

Uma delegação de defesa da Letônia estava em visita oficial à Ucrânia e já havia se encontrado com a vice-ministra da Defesa da Ucrânia, Hanna Malyar.

Nova escalada

As explosões em Kiev marcam também uma escalada das tensões na guerra, que nos últimos meses ficou focada em investidas russas no leste e no sul. Em setembro, no entanto, Kiev anunciou um ambicioso plano de retomada de diversas regiões em território ucraniano invadidas por Moscou. Com a ajuda militar e estratégica de países do Ocidente, o governo ucraniano afirmou ter reconquistado cerca de 10% das áreas ocupadas por tropas russas.

Em resposta, o presidente russo, Vladimir Putin, fez um pronunciamento à nação pela TV anunciando a convocação de cerca de 300 mil reservistas no país inteiro, o que gerou uma grande onda de fuga de jovens russos.

Dias depois, quatro regiões da Ucrânia – Kherson, Zaporizhzhia, Luhansk e Donetsk – foram submetidas a um referendo organizado e realizado por Moscou sobre se os cidadãos locais queriam se separar da Ucrânia e se anexar à Rússia.

Putin anunciou vitória na consulta pública e, há duas semanas, assinou a anexação dos quatro territórios em uma cerimônia transmitida por telões em Moscou. A ONU e a comunidade internacional não reconhecem a anexação.

Texto pulicado originalmente no g1.


Wang Wenbin, porta-voz do Ministério das Relações Exteriores da China | Foto: Greg Baker/AFP

Após Putin convocar 300 mil reservistas para guerra na Ucrânia, China pede "diálogo"

Thales Schmidt*, Brasil de Fato

Após uma escalada na guerra da Ucrânia, com a decisão por um referendo nos territórios ucranianos conquistados por Moscou e uma declaração de mobilização militar de Putin, o porta-voz do Ministério das Relações Exteriores da China, Wang Wenbin, defendeu nesta quarta-feira (21) uma saída "pacífica" para o conflito que já matou 5.916 civis, segundo cálculos da ONU.

Perguntado sobre a questão em coletiva de imprensa, Wang afirmou que a China tem uma posição "consistente e clara", defendeu a carta da ONU e destacou que "as preocupações legítimas de segurança de qualquer país devem ser levadas a sério".

"Apelamos às partes interessadas para que resolvam adequadamente as diferenças através do diálogo e da consulta. A China está pronta para trabalhar com membros da comunidade internacional para continuar a desempenhar um papel construtivo nos esforços de desescalada", disse Wang.

Em outras ocasiões, diplomatas chineses destacaram o expansionismo da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) quando perguntados sobre o conflito. Nessa mais recente ocasião, Wang não citou nominalmente a aliança militar liderada pelos Estados Unidos.

China e Rússia afirmam ter uma "aliança sem limites" e costumam apresentar uma frente unida diante dos Estados Unidos e do Ocidente, mas o prolongamento da guerra na Ucrânia tem tensionado a parceria. Quando o presidente russo, Vladimir Putin, e o líder chinês, Xi Jinping, se reuniram durante a cúpula da Organização de Cooperação de Xangai (SCO) na semana passada, Putin afirmou entender as "preocupações" chinesas com o conflito.

Nesta quarta-feira (21), Putin anunciou por meio de discurso na televisão a convocação de 300 mil reservistas para o campo de batalha e apoiou a realização de referendes de adesão à Rússia das autoproclamadas Repúblicas Populares de Donetsk e Lugansk, além das regiões ucranianas de Kherson e Zaporozhye.

O presidente russo disse que se a integridade territorial do país for ameaçada, a Rússia usará todos os meios à sua disposição.

"No caso de ameaça da integridade territorial da Rússia, usaremos todos os métodos, incluindo armas nucleares, isso não é um blefe", disse Putin.

*Texto publicado originalmente no portal do Brasil de Fato.


Bolsonaro discursa com semblante de raiva | Foto: NANCY AYUMI KUNIHIRO/Shutterstock

Nas entrelinhas: Bolsonaro faz campanha de anticandidato

Luiz Carlos Azedo | Nas entrelinhas | Correio Braziliense

Em termos diplomáticos, o encontro de ontem do presidente Jair Bolsonaro (PL) com embaixadores de vários países para denunciar suspeitas não comprovadas sobre o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), seus ministros e a segurança das urnas eletrônicas foi um tiro no pé. Para a maioria dos diplomatas, seu discurso é de candidato derrotado por antecipação e sinaliza a intenção de realmente não aceitar o resultado das urnas. Obviamente, sua escalada contra as urnas eletrônicas é uma campanha de anticandidato, passa para o mundo — e internamente – a ideia de que pretende se manter no poder pela força.

Existe uma correlação entre a política nacional e nossas relações internacionais. Apesar da excelência e dos esforços dos nossos diplomatas de carreira, toda vez que Bolsonaro faz política internacional própria é um desastre. É o que está acontecendo, por exemplo, no caso da guerra da Ucrânia. No mesmo dia em que promoveu o desastrado encontro com os embaixadores, conversou por telefone com o presidente ucraniano Volodymyr Zelensky: “Discutimos a importância de retomar as exportações de grãos para prevenir uma crise de alimentos provocada pela Rússia”, escreveu Zelensky em seu Twitter. “Convoco todos os parceiros a se unirem às sanções contra o agressor.”

Para bom entendedor, a conversa de Bolsonaro com Zelensky não foi nada boa. Ao divulgar seu pedido de adesão do Brasil às sanções contra a Rússia, o presidente ucraniano criou um constrangimento para o Brasil, que assumiu uma posição de neutralidade, na tradição da política de Estado do Itamaraty. Porém, pessoalmente, Bolsonaro cada vez se aproxima mais do presidente russo Vladimir Putin. Por óbvio, esse posicionamento tem muito mais peso nas relações com os países ocidentais do que as suspeitas que levantou sobre a segurança das eleições.

Bolsonaro utilizou as dependências do Palácio da Alvorada e a estrutura de governo para uma série de acusações sem provas contra a Justiça Eleitoral e os ministros Edson Fachin, Alexandre de Moraes e Luís Roberto Barroso. Também atacou seu principal adversário, o ex-presidente Luiz Inácio lula da Silva (PT), cujo prestígio internacional só aumenta na medida em que mantém o favoritismo nas pesquisas e as eleições se aproximam. Atacou o petista, porém acabou criticado por dois adversários que sonham tomar seu lugar contra ele, Ciro Gomes (PDT) e Simone Tebet (MDB). Ou seja, Bolsonaro está se colocando como alvo fixo de todos os principais concorrentes.

Os ministros Carlos França (Relações Exteriores), Paulo Sérgio Nogueira (Defesa), Ciro Nogueira (Casa Civil), Luiz Eduardo Ramos (Secretaria-Geral) e Augusto Heleno (Gabinete de Segurança Institucional), que formam o estado-maior da Presidência, participaram da reunião, que Fachin classificou como um encontro de pré-candidato a presidente da República, ao declinar do convite, com o argumento de que deveria ter uma posição imparcial como responsável pela condução do processo eleitoral. Na Ordem dos Advogados do Paraná (OAB-PR), à tarde, Fachin classificou a apresentação como uma “encenação”. Sem citar Bolsonaro, disse que há “inaceitável negacionismo eleitoral por parte de uma personalidade pública” e uma “muito grave” agressão à democracia.

Discurso de perdedor

E o anticandidato? É um sinal trocado. Bolsonaro está agindo como perdedor antecipado das eleições, como quem não pretende aceitar o resultado das urnas e quer virar a mesa, como tentou sem sucesso o ex-presidente norte-americano Donald Trump, seu aliado. Está fazendo uma campanha de anticandidato, que deixa em desespero os aliados do Centrão. O ministro Paulo Sérgio Nogueira reverbera as acusações de Bolsonaro e arrasta as Forças Armadas para uma posição que evoca o passado do regime militar. Somente após as eleições saberemos se age por disciplina, pois Bolsonaro é presidente da República e comandante supremo das Forças Armadas, ou por convicção golpista e autoritária.

A propósito do passado autoritário, o mais ousado desafio ao regime militar, no auge do seu poder, foi o lançamento da “anticandidatura” de Ulysses Guimarães à Presidência da República, pelo MDB, em setembro de 1973, no colégio eleitoral que elegeria o general Ernesto Geisel à Presidência. Como um Dom Quixote, Ulysses percorreu o país desafiando os militares, ao lado do ex-governador de Pernambuco Barbosa Lima Sobrinho, que depois viria a ser presidente da Associação Brasileira de Imprensa (ABI).

“Não é o candidato que vai percorrer o país. É o anticandidato, para denunciar a antieleição, imposta pela anticonstituição que homizia o AI-5, submete o Legislativo e o Judiciário ao Executivo. Possibilita prisões desamparadas pelo habeas corpus e condenações sem defesa, profana a indevassabilidade dos lares e das empresas pela escuta clandestina, torna inaudíveis as vozes discordantes, porque ensurdece a nação pela censura à imprensa, ao rádio, à televisão, ao teatro e ao cinema”, discursou Ulysses, cuja plataforma era centrada na revogação do Ato Institucional 5 (AI-5), na anistia e na convocação de uma Assembleia Constituinte. Quanta ironia. Bolsonaro faz campanha em busca do passado.

https://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/nas-entrelinhas-bolsonaro-faz-campanha-de-anticandidato/

Jair Bolsonaro - Foto: Shutterstock/Marcelo Chello

Nas entrelinhas: As duas táticas de Bolsonaro para se manter no poder

Luiz Carlos Azedo | Nas entrelinhas | Correio Braziliense

O presidente Jair Bolsonaro opera simultaneamente duas táticas para se manter no poder. Ambas podem dar errado, se não conseguir reverter a grande vantagem do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva nas eleições. Ambas se combinam quando à possibilidade cada vez mais evidente de que planeja melar as eleições de outubro próximo, caso seus resultados sejam desfavoráveis. A primeira, operada com extrema competência pelo Centrão, é a PEC da Eleição, promulgada ontem, com medidas para transferir recursos para a população de baixa renda, caminhoneiros e taxistas.

A PEC nasceu no Senado, onde somente não conseguiu a unanimidade porque o senador José Serra (PSDB-SP), solitariamente, votou contra. Na Câmara, o presidente da Casa, Arthur Lira (PP-AL), operou um rolo compressor para que a emenda constitucional fosse aprovada em dois turnos e promulgada nesta semana, após 72 horas de articulações, sessões relâmpagos e votações. Somente o Novo e alguns parlamentares isolados em seus partidos, votaram contra a PEC.

Na essência, a proposta tem um viés golpista, porque a legislação eleitoral proíbe a adoção de medidas de caráter assistencialista a menos de 100 dias eleições. Para que isso seja possível, o Congresso aprovou um “estado de emergência”, que possibilita descumprir a legislação eleitoral, tendo como pretexto a guerra da Ucrânia, por causa da crise dos combustíveis. Com isso, a máquina do governo federal será usada para influenciar o voto dos eleitores de forma sem precedentes.

A legislação eleitoral estabelece um equilíbrio entre a vontade dos políticos no poder (ética das convicções) e a legitimidade dos meios de sua atuação nas eleições (ética da responsabilidade), a cargo dos órgãos de controle do próprio Estado: Controladoria-Geral da União (CGU), Receita Federal, Polícia Federal, Tribunal de Contas da União (TCU), Procuradoria-Geral das República (PGR) e Justiça Eleitoral. Com a PEC, esses órgãos nada poderão fazer para evitar o abuso de poder econômico e outros crimes eleitorais, derivados da execução da PEC em plena campanha eleitoral. A única barreira a ser vencida é a resistência surda da própria burocracia, responsável pela implementação das medidas.

A outra tática em curso, sob responsabilidade dos generais do Palácio do Planalto, é semear a desconfiança em relação à segurança das urnas eletrônicas, corroborando os ataques que o presidente Jair Bolsonaro vem fazendo contra o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e os ministros Edson Fachin, atual presidente, e Alexandre de Moraes, o próximo a comandar a Corte. Para isso, o Ministério da Defesa está sendo acionado, contrapondo o prestígio das Forças Armadas à legitimidade do TSE no processo eleitoral, o que não é nenhuma novidade na história republicana.

O golpe

Ontem, durante audiência no Senado, palco de ataques à Justiça Eleitoral, o ministro da Defesa, general Paulo Sérgio Nogueira, chegou a propor que fosse utilizado o voto impresso durante a votação, para checar as urnas eletrônicas por amostragem, proposta já recusada pelo TSE. No encontro, o coronel Marcelo Nogueira de Souza, especialista em guerra cibernética, admitiu que as urnas são invioláveis a ataques de hacker externos, porém sustentou que não são seguras do ponto de vista de eventuais violações internas, ou seja, colocou sob suspeita a próprio TSE.

Mesmo que a intenção do ministro da Defesa não fosse pôr sob suspeita a segurança das eleições, o resultado prático da audiência foi fortalecer a percepção de que o presidente Bolsonaro não pretende aceitar um resultado desfavorável nas urnas, e as Forças Armadas estariam coniventes com isso. Impossível não lembrar do Plano Cohen, documento divulgado em 30 de setembro de 1937, com supostas “instruções da Internacional Comunista (Komintern) para a ação de seus agentes no Brasil”. Na realidade, tratava-se de um plano simulado como “hipótese de trabalho”, segundo seu verdadeiro autor, o capitão Olímpio Mourão Filho, então chefe do serviço secreto da Ação Integralista Brasileira (AIB).

Com base no Plano Cohen, o presidente Getúlio Vargas solicitou imediatamente ao Congresso autorização para decretar o estado de guerra pelo prazo de 90 dias. A aprovação da medida abriu caminho para o golpe do Estado Novo, desfechado em 10 de novembro de 1937, que suspendeu as eleições e institucionalizou a ditadura. A fraude do Plano Cohen só foi revelada após a extinção do Estado Novo, em 1945.

https://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/nas-entrelinhas-as-duas-taticas-de-bolsonaro-para-se-manter-no-poder/

Tatuagem Mein Kampf | Foto: reprodução/Europe1

Revista online | O que nos dizem aquelas tatuagens nazistas do batalhão Azov

Paolo Soldini, com tradução de Luiz Sérgio Henriques, especial para a revista Política Democrática online (44ª edição: junho/2022)

Vimos na televisão suásticas, runas, cruzes célticas, retratos de Hitler tatuados nos corpos dos homens do batalhão Azov. Propaganda russa enviesada, para validar ex post a pretensão de Vladimir Putin pela qual a “operação especial” deveria servir também para “desnazificar” a Ucrânia? Certamente. Não somos ingênuos a ponto de considerar tais corpos um motivo para justificar, ainda que minimamente, o que os russos fizeram, estão fazendo e farão nas terras que ocuparam com a força. E também é difícil evitar a repugnância que sentimos diante da exibição dos prisioneiros, nus, impotentes, num espetáculo para uso da mídia com a marca da obscena propaganda dos vencedores.

As tatuagens nazistas

No entanto, as tatuagens existiam. Nem todos as tinham, por certo, mas muitos, sim, e, apesar de as terem, é como se ninguém entre nós as houvesse visto. Não são um problema, não merecem uma linha ou uma palavra como comentário. Ninguém, ou quase ninguém, sequer as mencionou. O que significa este silêncio? Será que, por terem se comportado tais homens como inimigos dos nossos inimigos, devemos absolvê-los da culpa de ser nazistas? Devemos fingir não saber se, como e em que medida, antes de se encerrarem nos subterrâneos da Azovstal, comportaram-se como nazistas?

Guerra é guerra, e mortes e destruições terminam por anular a potência dos símbolos, mesmo daqueles inscritos com dor na própria pele. Contudo, devemos nos perguntar se é mesmo normal que, num conflito em que se mata sem piedade, todos tendamos a considerar quase um detalhe afirmações de pertencimento ideal que em outras circunstâncias, na normalidade da paz, consideraríamos aberrantes. 

Suásticas e efígie de Stepan Bandera

O nazismo não é um detalhe da história. Menos ainda nas terras em que, hoje, os ucranianos estão se defendendo da agressão dos russos. Entre as imagens que apareciam na pele dos homens de Azov, havia também a efígie de Stepan Bandera. Para quem não sabe, trata-se do ultranacionalista ucraniano que alinhou seu exército independentista ao lado dos alemães quando estes invadiram a União Soviética. Queria a liberdade do seu povo em face dos russos, mas o subjugou ao Terceiro Reich de Hitler, e as SS ucranianas foram tão impiedosas quanto as austríacas e as alemães para matar judeus.

Bandera foi “reabilitado” em 2010 pelo presidente Viktor Yushchenko. Apesar dos duros protestos das comunidades hebraicas e de Israel, sua imagem reapareceu nas praças durante a revolta de Euromaidan e, desde então, está muito presente, com estátuas e ruas com seu nome, sobretudo na parte ocidental da Ucrânia. Assinala uma continuidade ideal que existe, assim como as tatuagens dos homens que reapareceram das trevas do subsolo de Mariupol.

Veja, a baixo, galeria de fotos:

Estação de metrô na Ucrânia serve de abrigo para milhares de pessoas durante os ataques russos | Foto: Drop of Light/Shutterstock
Mãe segura seu bebê em abrigo antiaéreo na Ucrânia | Foto: Marko Subotin/Shutterstock
Em Varsóvia, na Polônia, uma grande tenda foi instalada para abrigar refugiados ucranianos | Foto: Damian Lugowski /Shutterstock
Mãe refugiada ucraniana atravessa a fronteira para fugir da guerra | Foto: Halfpoint/Shutterstock
Crianças se abrigam em seu porão na cidade de Mariupol, Ucrânia, durante bombardeio pela aviação russa | Foto: Vladys Creator/Shutterstock
Lenço nas cores da bandeira da Ucrânia em fronteira com a Eslováquia | Foto: Vladys Creator/Shutterstock
Famílias ucranianas fogem da guerra por meio de fronteira com a Hungria | Foto: Vladys Creator/Shutterstock
Foto: Dba87/Shutterstock
Alemanha e UE anunciam 'novo Plano Marshalll' para Ucrânia | Foto: reprodução/Flickr
Demonstrators display a banner in the colours of the Ukrainian flag reading "Stop [Russian President] Putin, Stop war" during a protest at Berlin's Brandenburg Gate on January 30, 2022. - Demonstrators criticised Putin's massing of troops near the Ukrainian border and called on Germany to play a more active role in defending Ukraine's interests. (Photo by John MACDOUGALL / AFP) (Photo by JOHN MACDOUGALL/AFP via Getty Images)
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Caring,Mother,Holding,Her,Crying,Baby,In,The,Air,Raid
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Mariupol,,Ukraine,-,5,March,2022:,Ukrainian,Kid,,Childrens,Takes
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Hungary-beregsurany,,02.26.2022.,Ukrainian,Families,Flee,The,War,Across,The,Hungarian
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Alemanha e UE anunciam 'novo Plano Marshalll' para Ucrânia
GERMANY-UKRAINE-RUSSIA-POLITICS-PROTEST
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Não os tratemos como heróis

Quem se preocupa com a liberdade dos ucranianos e quer que se criem as condições para a paz tem o dever de exigir que tal continuidade seja quebrada. Que não haja mais nenhuma ambiguidade e que possa ser lançado na lixeira da propaganda mais estúpida o afirmado propósito de Putin de “desnazificar” a Ucrânia.

Depois, poderemos nos ocupar da sorte dos prisioneiros. Esperamos todos que tenham a vida poupada, que sejam tratados como prisioneiros de guerra, que os russos finjam (como nós) não ver as tatuagens e, quem sabe, mandem-nos de volta para casa numa troca de prisioneiros. Mas, por favor, paremos, ao menos nós, de chafurdar nos mares da retórica, tratando-os como “heróis”. Mais do que nunca vale nesta circunstância a advertência do Galileu de Bertolt Brecht: “Infeliz é a terra que precisa de heróis”. 

Sobre o autor

*Paolo Soldini, jornalista do histórico L’Unità e, também, de Il Riformista e da Radio Tre Rai. Artigo originalmente publicado em strisciarossa (www.strisciarossa.it), em 24 de maio de 2022. Tradução de Luiz Sérgio Henriques.

** O artigo foi traduzido para publicação na revista Política Democrática online de junho de 2022 (44ª edição), produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.

*** As ideias e opiniões expressas nos artigos publicados na revista Política Democrática online são de exclusiva responsabilidade dos autores. Por isso, não refletem, necessariamente, as opiniões da publicação.

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Fome em busca de uma saída solidária e global | Foto: reprodução/Outras Palavras

Fome: Em busca de uma saída solidária e global

Claudio Fernandes, Outras Palavras*

Caro leitor e cara leitora. Não se espante com o título aparentemente alarmista deste artigo, pois ele reflete uma verdade sobre fatos! Ouso dizer que, do jeito como as coisas estão colocadas, a humanidade não irá respirar tranquila pelos próximos anos. Contudo, meu trabalho aqui não será fazer previsões pessimistas para o futuro, mas sim, refletir sobre alguns aspectos da arquitetura financeira mundial, o papel das Nações Unidas e os compromissos políticos que os Estados-nações precisam assumir para construir e implementar uma resposta efetiva às crises que se acumulam.

Começo esta reflexão a partir de uma experiência recente, quando estive representando a Gestos e o Grupo de Trabalho da Sociedade Civil para a Agenda (GT Agenda 2030) em Nova York, durante o VII Fórum de Financiamento para o Desenvolvimento (FfD), promovido pela Organização das Nações Unidas. O fórum buscava discutir estratégias de atuação que pudessem responder à perspectiva de uma nova grande crise global resultante de um colapso no pagamento das dívidas externas de países em desenvolvimento.

Lembro-me que, em seu segundo dia, a guerra imposta pela Rússia à Ucrânia chegou de forma pesada à quarta reunião de debates do FfD. Para além das mortes e da violência militar explícita que tem chocado a comunidade internacional, outro problema já se apresenta: vários países dependem de grãos importados do país atacado. O tema dominante, então, passou a ser o novo perigo de racionamento de alimentos e a insegurança alimentar, multiplicados pelos riscos do aumento da inflação, resultado dos problemas de cadeia de valor causados pela pandemia da Covid-19.

Contudo – e apesar do clamor da sociedade civil internacional para traçar alternativas socialmente responsáveis e verdadeiramente sustentáveis para reconstruir a economia mundial de forma equitativa – o que se ouviu no VII FfD foi mais do mesmo. A pura repetição de estratégias fracassadas que favorecem prioritariamente o 0,1% mais rico, enquanto os 99% da população mundial são arrastados para o fundo do abismo que a atual arquitetura financeira global cavou ao longo das últimas décadas. Diante disso, voltei para casa maquinando algumas das reflexões abaixo.

Para além da guerra, pode-se perceber a falta de compreensão da urgência em que o mundo está colocado. A emergência climática é uma disrupção presente e destinada a acelerar exponencialmente. Estamos falando de uma resposta logarítmica do planeta. O tempo já se esgotou para muitas populações em muitos países. Otimizar os fluxos financeiros em direção à sustentabilidade tem sido um apelo urgente há, pelo menos, sete anos, mas pouco avançou nesse sentido.

É preciso reconhecer que as soluções financeiras projetadas até agora ficaram aquém de seus objetivos. O “mercado” (esta entidade mítica e abstrata que engole todas as instâncias da economia política), como sempre, é o que domina o processo de financiamento para o desenvolvimento sustentável. Por quê? Porque os players e as regras do jogo não mudaram nem um milímetro para criar um processo normativo de transformação. O risco já há muito tempo tem sido considerado por meio da expansão de instrumentos derivativos para manter o sistema em rotatividade. Não podemos priorizar a mera reprodução do capital através do sistema financeiro enquanto continuamos a prejudicar pessoas e comunidades – o verdadeiro material concreto que faz a sociedade e a economia existirem.

A esses desafios, somam-se problemas sistêmicos e históricos já existentes que atrasam, e em certos casos, impedem a implementação da Agenda 2030 para o desenvolvimento sustentável. Como proposta para se encontrar soluções efetivas, a sociedade civil organizada vem requerendo explicitamente a convocação da quarta Conferência Internacional do Financiamento para o Desenvolvimento, entendendo que é o único espaço legítimo onde decisões que levam a mudanças fundamentais na arquitetura financeira global podem ser tomadas. Enquanto a União Europeia apoia a iniciativa, a China e os 134 países (incluindo o Brasil) que compõem o G77 estão divididos sobre o tema. Em conversa com um representante brasileiro, nos foi confiado que o motivo é o “medo de que uma nova conferência tenha como resultado um retrocesso nas questões em discussão”. Outros países do Sul Global também expressaram a mesma preocupação.

Carteira | Imagem: reprodução/Shutterstock
Carteira | Imagem: Shutterstock

Realmente o mundo hoje está bem diferente do que era em 2015, quando foram aprovadas as resoluções da Agenda 2030, do Acordo de Paris e da Agenda de Ação de Addis Ababa. Desde então vários países se mostraram contrários aos processos de mitigação da emergência climática, de equidade de gênero e de expansão democrática. Em diversas regiões, a política foi infectada pela intolerância, pelo desrespeito e pela violência, criando riscos às liberdades e às instituições de direito. No entanto, decisões precisam ser tomadas sobre a arquitetura financeira vigente, que tem exacerbado os problemas ao invés de oferecer soluções sustentáveis para os diversos desafios que persistentemente ampliam os níveis de desigualdade presentes em cada país e entre as nações.

Em debate especial com a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) e as instituições Bretton Woods – isso é, Fundo Monetário Internacional (FMI), Banco Mundial e Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (UNCTAD) – tornou-se evidente que as medidas tomadas para mitigar os efeitos da pandemia de Covid-19 foram insuficientes. Por exemplo, os Direitos Especiais de Saque (SDR) emitidos pelo FMI, equivalentes a 650 bilhões de dólares, ficaram principalmente nas mãos dos países que menos precisavam. Isso ocorreu porque o critério de distribuição foi baseado em quotas dos países na instituição; essas quotas, por sua vez, são determinadas por volumes de doação. Ou seja, os países com mais recursos tiveram as maiores quotas.

Como salientou Bodo Elmers, do Global Policy Forum e representante do grupo da sociedade civil para o FfD, “neste momento 400 bilhões de dólares estão dormentes nos bancos centrais de países que não precisam, enquanto os que precisam não conseguem acesso aos recursos”. É importante ressaltar que essas instituições foram criadas no contexto da maior crise mundial do século XX para prevenir crises futuras; mas aparentemente não foram capazes de prevenir ou mitigar satisfatoriamente as crises atuais.

Este órgão, a Organização das Nações Unidas, deveria representar o compromisso com os valores mais elevados para a humanidade e assumir um papel de protagonismo na tentativa de resolver a confluência de crises em que nos encontramos; particularmente o crescente desafio financeiro para alcançar os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da Agenda 2030. Uma nova Conferência Internacional de financiamento para o desenvolvimento em um futuro próximo, mas que deve ser decidida com urgência, é o único processo legítimo para realmente assumir a responsabilidade que o mundo precisa da comunidade internacional.

Portanto, precisamos de políticas públicas concretas e pragmáticas para reprojetar o equilíbrio das relações de poder que criaram a confluência de crises que vivemos e viveremos nos próximos anos. O que este fórum pode decidir? Pode decidir estabelecer um quadro normativo para um mecanismo de resolução de dívida soberana dos países, mas recusa-se a fazê-lo. Tem um mandato para criar uma convenção tributária internacional, conforme solicitado pelo G77, o que atualizaria o quadro normativo para um mundo globalizado e digitalizado. Mas tampouco avança.

De fato, a Agenda 2030 parece, cada vez mais, ser um sonho inalcançável; porém, algumas medidas governamentais também poderiam ajudar a amortecer os impactos globais e ampliar a implementação dos ODSs, como a precificação das emissões de carbono, a taxação sobre grandes fortunas e a adoção de tributos sobre transações financeiras em contexto multi-jurisdicional. A emissão de títulos da dívida pública com a condicionalidade para o financiamento do desenvolvimento sustentável também poderiam, em tese, servir para fazer girar a engrenagem financeira necessária para uma mudança sistêmica na aplicação de recursos privados.

Mas como lembra o editorial The private-equality delusion (A ilusão da igualdade privada, em tradução livre), publicado em 4 de março deste ano pela revista The Economist, “nós precisamos passar a levar a sério e refletir o que os mercados privados podem e não podem fazer”. Enquanto faltam recursos para a sociedade civil promover as mudanças necessárias para implementar a Agenda 2030, os agentes privados, de diversos tamanhos e volume de capital, já demonstraram que não têm compromisso efetivo com o desenvolvimento sustentável.

Um exemplo emblemático é o do Estado brasileiro que em 2012 (ainda durante o governo Dilma), optou por zerar as alíquotas do imposto sobre operações financeiras (IOF) na bolsa de valores e futuros. Isso fez com que este tributo passasse a ser sentido apenas pelo cidadão médio. Além disso, o país está na contramão das grandes economias do mundo em vários sentidos, entre eles figuram a não progressividade de impostos sobre fortunas e medidas de austeridade fiscal como a Emenda Constitucional 95/2016 (que estabeleceu o famigerado “teto de gastos” para investimentos fundamentais para o desenvolvimento social) – isso para não falar do problema (cultural) inflacionário que está sendo tratado da pior forma possível – e de uma economia oligopolizada que abre espaço para a formação de cartéis e moderna engenharia de preços.

Verdade seja dita: é inadmissível que enquanto o mundo amarga 6 milhões de mortes por Covid-19 e cada vez mais pessoas são jogadas para a pobreza e extrema pobreza, os bilionários do mundo tenha ampliado suas fortunas em cerca de 60% (segundos dados da Forbes e da Oxfam). Reorganizar o fluxo de capitais, bem como os destinos e condicionalidades sustentáveis de suas aplicações deve ser um compromisso humanista.

Temos os recursos necessários para fazer isso, mas é preciso coragem. Coragem das pessoas responsáveis pela formulação de leis, de chefes de Estado e players da geopolítica para abandonar um modelo econômico falido que coloca a existência da vida humana no planeta em risco. Acima de tudo, é preciso reconhecer a capacidade ímpar das organizações da sociedade civil em liderar o caminho para uma comunidade global sustentável e equitativa. Sabemos como fazer e, cada vez mais, precisamos dos recursos necessários para alavancar nossas ações e causar impacto positivo em maior grau e volume.

*Texto publicado originalmente em Outras Palavras


Medieval battle | Imagem: reprodução/Outras Palavras

Ucrânia e as cruzadas contemporâneas

Maurício Ayer*, em Outras Palavras

As guerras são feitas de atrocidades, e quem paga um alto preço é sempre o povo: morte, destruição, desterro, luto, desrazão. A história vai precisar passar a limpo tudo o que está acontecendo na Ucrânia sob a responsabilidade de Vladimir Putin e seus generais. Dito isso, com toda ênfase, causa espanto o consenso midiático que se formou em torno da condenação unilateral da Rússia – e mais que ao país, da pessoa de Putin, pintado como um psicopata vil e frio, movido pelo desejo megalômano de reconstruir o império russo (czarista ou soviético, as imagens são intercambiáveis). Ignoram-se ou escondem-se fatos de importância incontornável para uma compreensão minimamente lúcida do caso. Ignora-se também que os países que acusam a Rússia cometem, neste exato momento, crimes iguais ou piores aos que apontam, com consequências humanas ainda mais drásticas, numerosas e prolongadas, sem que os governos, a mídia e os órgãos internacionais se escandalizem ou mesmo pareçam se importar.

Recolho dois entre muitos exemplos: foi o que denunciou Jonathan Cook, neste texto em que compara a diferença de comoção da mídia ocidental com o povo ucraniano e com outros povos vítimas de ataque, como os palestinos, os iraquianos e os iemenitas. Ou Boaventura de Souza Santos ao nomear como uma "novilíngua" a linguagem invertida usada para cobrir a guerra.

Ignorando-se o contexto, revirando-se a linguagem, o conflito passa a ser explicado como uma agressão russa motivada pela sede de poder de um homem, e suas motivações declaradas ficam lançadas no rol das “alegações” de um rematado criminoso, a serem desprezadas de saída. Veste-se em Putin o figurino do anticristo, do grande vilão que quer dominar o mundo.

É esta clivagem entre o Bem e o Mal, entre o humano e o desumano etc., que dá um contorno francamente teológico ao conflito. Configura-se, passo a passo, uma guerra mística – ou guerra santa, que no Ocidente cristão teve sua realização histórica mais clara nas cruzadas. Trata-se de combater o Mal que poderá nos destruir, e tudo o que vier da boca do inferno será enganoso, indigno ou absolutamente execrável, enquanto tudo o que se fizer do lado de cá se justifica no horizonte de uma escatologia universal. Daí que os crimes de guerra do lado de cá são justificados ou não são sequer mencionados (bombardeios, ataques de drones, massacres, laboratórios de armas biológicas, falsas alegações de armas químicas a serem imputadas aos inimigos etc.) e os de lá são justamente apontados, quando não sujeitos a distorsões. Esse tipo de construção ideológica desumaniza e desistoriciza, o julgamento se dá não pelos atos mas pelo grupo de pertencimento. Às vezes a divisão é designada entre “democracias” e “autocracias”, mas Lúcio Flávio Almeida mostrou como o enquadramento em um grupo ou outro depende, de novo, mais das alianças do que efetivamente da situação política do país.

A comparação com as cruzadas não é fortuita. Vale relembrar que, logo após os atentados de 11 de Setembro, ao anunciar a deflagração da “guerra ao terror”, as mensagens do governo George W. Bush falavam de uma “cruzada” contra os inimigos islâmicos e de um “choque de civilizações”. À época, Noam Chomsky apontou o que os governantes estadunidenses logo perceberam: que a escolha dos termos era infeliz caso desejassem manter algum diálogo com seus aliados muçulmanos (11 de Setembro, Bertrand Brasil, 2003). Passaram a usar o termo “guerra” – que Chomsky julga também inadequado diante de um substantivo mais apropriado, que seria “crime”, o mesmo a ser usado em referência aos atentados contra Nova York e o Pentágono – para designar o ataque a países como Afeganistão e Iraque, inclusive suas populações civis, como resposta a um ataque de um grupo terrorista, sob o pretexto, agora, de combater o “desumano”, a “barbárie”. Ao deixar escapar a palavra, depois escamoteada, o Império traía um desejo de cruzada. A evocação certamente se devia à associação religiosa, ao combate aos “pagãos”, como nos séculos XI e XII, mas a questão já era estrutural. Desejava-se pôr em curso a forma-cruzada, dividir a humanidade em mundos inconciliáveis por princípio.

Porém, se a palavra “cruzada” foi evitada, isso não quer dizer que ela tenha perdido eficácia na compreensão simbólica do contexto – ao contrário, seu sentido transborda como uma espécie de excesso. Nesse jogo de palavras – dessa atroz “literatura” cujo enredo define as vidas de povos inteiros… –, vale considerar o que Jorge Luís Borges escreveu: numa narrativa sobre o xadrez, a única palavra proibida é “xadrez”. Ocultar a palavra para que o seu sentido possa configurar estruturalmente a mensagem; ser centro e ausência das relações implicadas nesses eventos históricos. Trata-se de esconder o sentido fundamental e expressá-lo em termos socialmente aceitáveis, desde que funcionem como ordenadores do objetivo que realiza, em última instância, aquilo que foi ocultado.

A paz de Deus e as cruzadas

Permita-me fazer um recuo histórico para melhor compor essa comparação.

A ideia da primeira cruzada, que partiu rumo à Terra Santa no ano de 1095, foi longamente maturada no coração da Europa católica, como um enorme esforço de produzir a unidade no mundo cristão direcionando a violência para o seu exterior. Ou seja, contra os muçulmanos, que eram, sob a inspiração do Islã, tão expansionistas e belicistas quanto os cristãos. Alguns personagens históricos (como o papa Urbano III) e histórico-míticos (como Pedro, o Eremita) passaram anos percorrendo os diversos reinos em campanha pela realização de uma enorme expedição militar para salvar o Santo Sepulcro (o local onde fora enterrado o Cristo retirado da cruz), então sob o sacrílego domínio pagão. Além disso, os cristãos do Oriente pediam socorro aos seus irmãos europeus, e não socorrê-los equivalia a um ato fratricida.

As próprias noções de Cristandade e Europa, como uma coletividade e um território forjadores de uma identidade, surgem deste processo. O argumento ganhou força e um exército de milhares de soldados e cavaleiros foi – como na canção Agnus Sei, de Aldir Blanc de João Bosco – “levar ao reino dos minaretes | a paz na ponta dos aríetes | a conversão para os infiéis”. Mas as verdadeiras razões eram bem outras.

O primeiro ponto era resolver a questão da violência interna ao mundo cristão, tanto nos conflitos entre reinos quanto nos ataques aos mosteiros, muitas vezes perpetrados pelos próprios cavaleiros, de origem nobre. Outra preocupação central era a frequente apropriação das terras da Igreja. Foi nesse contexto que se forjou o conceito de “paz de Deus” ao longo dos anos 900 e 1000, a doutrina da defesa da paz entre cristãos.

De fato, entre a coroação do imperador Carlos Magno pelo papa no Natal do ano 800 e o início das cruzadas houve, primeiro, um tempo de prosperidade e unidade, mas que foi sucedido por um século de grande desagregação e violência, que ficou conhecido como o “Século de Ferro”. O vigoroso mas efêmero império de Carlos Magno se fragmentou, a começar entre seus filhos, e diversos principados surgem, multiplicando os conflitos, nada cristãos, entre cristãos…

Não é que o cristianismo nunca tivesse sido uma religião belicista, e que o amor propagado pela mensagem do Cristo no Novo Testamento tenha sofrido uma reviravolta para dar nas cruzadas. Jean Flori, no livro Guerra Santa – Formação da ideia de cruzada no Ocidente cristão (Editora Unicamp, 2013), mostra que a guerra santa cristã não foi uma invenção do século XI, mas uma intensificação de elementos de sacralidade da guerra que vinham desde muito tempo, e que ganhara especial força quando os povos germânicos, que ancestralmente cultuavam a guerra, foram evangelizados. Era o caso do próprio povo franco de Carlos Magno.

Sob o império de Carlos Magno, consolidou-se a visão de que o poder das armas tinha como obrigação moral – e mística – proteger a autoridade da Igreja, devendo os cristãos obedecer a Deus e a São Pedro, e não aos homens e seus interesses mundanos. O poder sagrado era regido pelo papa, mas Carlos era o braço forte que o garantia frente a ataques e riscos. Em muitos momentos o papa escreveu a Carlos pedindo proteção, e o mesmo se reproduzia em menor escala, entre bispos e nobres localmente. Da paz de Deus à guerra santa, há sobretudo uma mudança estratégica.

É aí que entra a “literatura”, com um papel preponderante na construção de um consenso europeu e cristão. Na verdade, o termo literatura é anacrônico para a época, as grandes narrativas eram veiculadas não por escrito, mas sim oralmente pelos chamados jongleurs, artistas múltiplos capazes de contar histórias, improvisar versos, atuar, cantar e tocar um instrumento. A cultura medieval, como a nossa contemporânea, era essencialmente audiovisual, e mesmo a literatura escrita era mais um suporte – um roteiro – para uma realização oral.

Não é por acaso que, na mesma década de 1090 foi produzido o mais antigo manuscrito conhecido da Chanson de Roland (ou Canção de Rolando), uma canção de gesta que é considerada o primeiro texto literário escrito em língua francesa. É possível que tenha havido algum manuscrito anterior e que depois se perdeu? Sim, mas a aceleração da produção de cópias do livro após este momento é sintomática. Por quê?

Rolando, o mito e a história

A história contada na Canção de Rolando tem base em um evento histórico, cujo teor, entretanto, foi se transformando ao longo de três séculos de transmissão oral, para finalmente adaptar-se às necessidades ideológicas daquele final de século XI. A canção conta a história da batalha de Roncesvales – com base em uma batalha que de fato ocorreu no ano de 778. Segundo o texto literário, o exército de Carlos Magno retornava à França após uma campanha vitoriosa na Espanha, então ocupada pelos sarracenos. Humilhado pelo exército carolíngio, o rei sarraceno de Zaragoza, Marsílio, resolve romper o código de honra da guerra para virar o jogo a seu favor. Em aliança com o traidor Ganélon – um cavaleiro de Carlos que tem inveja e despeito por Rolando, que está amigado com a sua enteada –, o sarraceno finge sua rendição e conversão ao cristianismo, para então atacar a retaguarda imperial rompendo um acordo de paz.

Ganélon, o traidor, manipula o imperador para que o comandante da retaguarda seja Rolando, auxiliado de perto por Oliveiros (Olivier). Rolando resiste heroicamente e trucida com sua espada milhares de soldados muçulmanos, mas seus feitos heroicos não são o bastante para salvar a si e seus comandados da derrota e da morte. O próprio Carlos Magno chega para socorrê-los, mas tarde demais, cabendo-lhe apenas impor a implacável (e justa) vingança contra a felonia dos pagãos.

Na estratégia de propaganda para conquistar adeptos para a cruzada, a Canção de Rolando caía como uma luva. Evocava-se o próprio arquétipo do imperador cristão, que era tão amoroso e puro quanto o mais duro mantenedor da lei de Deus, numa narrativa que rebaixa os muçulmanos à condição de ímpios traidores, verdadeiros ratos assassinos. A Igreja – controladora dos scriptoria onde se copiavam os livros – irá multiplicar as edições desse manuscrito e espalhá-lo pelos reinos. Trata-se claramente de uma ação de propaganda para cultivar o imaginário propício à adesão à cruzada. Difundir o escrito era um modo de estabilizar a mensagem oral, sempre sujeita a variações, inversões, intervenções do narrador, e assim trabalhar para legitimar as expedições junto ao povo e aos reinos.

Mas se a narrativa vinha a calhar, é porque ela havia sido moldada especialmente para isso. Confrontada com os fatos históricos, a narrativa de Rolando mostra-se como o resultado de uma série de convenientes adaptações. Por exemplo: a batalha de Roncesvales realmente ocorreu no ano de 778, porém não foram os sarracenos que atacaram as tropas de Carlos, na verdade foi um ataque dos bascos, um povo tão cristão quanto os francos. A derrota das forças carolíngias foi pesada e a notícia percorreu as terras europeias. Mas como as estórias precisam fazer mais sentido do que os fatos, a narrativa foi se transformando ao ser contada e recontada, de modo a transformar uma fragorosa derrota num símbolo fundacional do Império cristão europeu.

Se hoje vemos esse descompasso (e confusão entre ficção e história, na época não era o que acontecia. Nas feiras e festas onde Rolando era exaltado como herói acreditava-se estar ouvindo a própria história do povo francês e cristão. Parece tão antigo, e no entanto vemos algo muito parecido acontecendo hoje, com a omissão ou a falsificação de fatos históricos para se conduzir a coesão ideológica na direção que interessa ao Império.

Há ainda um outro aspecto que ganha especial relevo na comparação com o contexto atual. Como líder da retaguarda, Rolando carregava um instrumento, o olifant, uma espécie de trompa usada para alertar as outras seções do exército do imperador e, em especial, o próprio Carlos Magno, no caso de um ataque surpresa, para que possam vir em seu socorro. Quando percebe a chegada dos exércitos inimigos, Oliveiros exorta Rolando para que toque o olifant, para que a vanguarda do exército retorne em seu auxílio. Mas Rolando, tragicamente orgulhoso, recusa-se a tocar o instrumento e decide que enfrentarão sozinhos a batalha, mesmo absurdamente desproporcional. Somente quando já estão todos feridos e praticamente vencidos é que Rolando tocará o olifant, tarde demais, portanto. Se a atitude do comandante da retaguarda não parece sensata, e isso é ressaltado por Oliveiros, é também essa coragem desmedida que realçará ainda mais a injustiça cometida pelos sarracenos, os verdadeiros culpados pela morte dos maiores guerreiros cristãos.

Na história atual, vemos o presidente ucraniano Volodymir Zelensky no papel de um valoroso herói, um Rolando contemporâneo. Sua fama é cantada amplamente por toda a mídia ocidental, não nos becos e botecos do mundo mas pelos principais e mais ricos veículos de comunicação. Por um lado, ele figura como o corajoso herói que enfrentará até o último homem (ele excluído) o ataque vil de um inimigo sanguinário, pela defesa mais da dignidade e da honra do que da vida de seu povo. É particularmente simbólico o estímulo a que o povo resista com “coquetéis molotov” preparados em suas casas; trata-se de exortação ao suicídio, sem chance de vitória efetiva, mas que torna qualquer ucraniano um potencial herói e mártir. Como Rolando lança seus valorosos cavaleiros e soldados a uma guerra desigual, Zelensky lança seu povo ao sacrifício ao invés de negociar a paz. A rigor, Zelensky participou desse atirar-se para a guerra desde antes, por exemplo, às vésperas do conflito, quando anuncia na Convenção de Munique que a Ucrânia, caso não fosse integrada na Otan, poderia desenvolver seu próprio programa de armas nucleares – o que foi o estopim imediato da invasão russa.

Enquanto se constrói a imagem trágica e heroica de um povo vítima da vileza do louco Putin, agora Zelensky sai tocando seu olifant pelo mundo. Fala aos parlamentos da Europa e de diversos países, como Alemanha, França, EUA e assim por diante. O discurso de Zelensky é belicista e heroico. Alinha-se ao tom dos colunistas dos principais veículos de mídia dos EUA que trata um eventual acordo com a Rússia como frouxidão diante de uma ameaça mundial tão grave quanto o acordo feito pela Inglaterra e a França com a Alemanha de Hitler a respeito da Tchecoslováquia às vésperas da Segunda Guerra Mundial. Caracterizar Putin como um novo Hitler faz todo sentido na lógica da guerra escatológica.

Fidelidade e fé

No século XI, o mesmo movimento histórico que levou às cruzadas também produziu a chamada “revolução feudal”, que criou o tecido de coesão de uma sociedade ao mesmo tempo belicista e religiosa, integrada ideologicamente mas isolada nas bolhas dos feudos. O medo cultivado naquele momento tinha suas razões, mas foi certamente hiperbolizado pela Igreja. As invasões dos normandos, por exemplo, entre outros povos, de fato existiram, mas suas narrativas provavelmente foram bastante amplificadas pelos mosteiros, como modo de cultivar o medo e provocar ideologicamente a formação de uma outra estrutura social.

Essa enorme operação ideológica, tendo a cruzada como modelo e evento mobilizador, modulava os dois sentidos da palavra latina fides e fidelidade. A  para obedecer a vontade de Deus, elemento fundamental nas guerras santas como as cruzadas, mas também na submissão dos homens em geral ao poder clerical; a fidelidade como elemento fundante nas relações de suserania e vassalagem que darão coesão ao mundo da chamada Baixa Idade Média, aquele cujos elementos mais povoam o nosso imaginário sobre o período: castelos e cidadelas, nobres guerreiros e seus códigos de cavalaria, a Igreja católica como poder onipresente, com mosteiros, igrejas, catedrais e universidades, um povo pobre e eminentemente rural.

Também é de fé e fidelidade que se faz a guerra comunicacional presente. De certo modo, o esforço de propaganda ocidental expande ao nível global a lógica das bolhas, reafirmando para os de dentro discurso, imagens e narrativas convenientes ao esforço de guerra, com uma intensidade brutal. Desmontam-se os mecanismos científicos ou universais de produção do discurso de verdade (por discutíveis que sejam) para criar modos fundados no pertencimento, em outras palavras, na fidelidade e na fé aos nossos, assegurando modos circulares de validação dos discursos e narrativas.

Veja-se o caso das brutalidades que teriam sido cometidas pela Rússia em Bucha, por exemplo. Os russos trazem em sua defesa o fato de que, logo após suas tropas deixaram o local, o prefeito da cidade fez uma transmissão mostrando a cidade, compartilhando o alívio pela desocupação militar do inimigo, sem mencionar nada do que seria divulgado depois. Nem no dia seguinte, nem no outro. Apenas quatro dias depois as imagens que chocaram o mundo vieram a público. São bizarras, pois é como se fosse um cenário deixado para ser descoberto pelo inimigo – ou seja, exatamente o que não interessaria à Rússia, que obviamente faria todo o esforço para “limpar” evidências dos crimes que tenha cometido. A chancelaria russa pede investigação ou auditoria dos órgãos internacionais para estabelecer a verdade dos fatos, o que é negado pelo Reino Unido e depois por maioria na ONU.

A partir desse momento, há uma espécie de condenação sumária da Rússia pela imagem que se construiu dela. A lógica da cruzada coloca o inimigo na posição do Mal, do anticristo, da vileza a ser extirpada do mundo, tornando-o uma entidade com a qual jamais caberá uma negociação de paz e para a qual não se deve deixar seduzir pelas regras do direito – essas são feitas para os homens de bem. Não se negocia com o diabo. O ponto é que se Bucha for uma mentira forjada pela Ucrânia ou pela Otan, seria uma manipulação tão grave que não pode sequer ser considerada. Mas então por que não permitir a auditoria? Joga-se com essa impossibilidade. Mas esquecemos das armas químicas de Sadam? E 200 mil civis (e 400 mil militares iraquianos morreram com base nessa desculpa que se reconheceu mentirosa.

Boaventura de Souza Santos definiu que o conflito na Ucrânia dá lugar a três Guerras. A primeira, mais visível por seu tétrico espetáculo, é a militar, embora não seja neste momento a mais importante. Outra é a guerra informacional ou de propaganda – aquela em que, do lado de cá do muro e amplamente ao redor do mundo, os EUA e a Otan têm superioridade incalculável. Finalmente, a mais fundamental e que move as demais é a guerra econômica, travada entre os EUA e a China, estando a Rússia por força estratégica no campo chinês. O que a guerra na Ucrânia produz é a sintonia de fase entre os movimentos dessas três guerras. Neste jogo, interessa mais ao Ocidente manter a guerra do que negociar a paz – e para isso está Zelensky, o "Winston Churchill de nosso tempo", segundo as iniludíveis palavras do ex-presidente George W. Bush.

Do ponto de vista da guerra informacional, o conflito militar no território da Ucrânia cumpre a função de produzir a iconografia e a literatura – com inevitável contraparte hagiográfica dos heróis do momento – necessárias para unificar o lado de cá contra as ameaças existenciais provenientes do outro lado. Fazem-no sem proibir formalmente outros discursos de existirem, mas eles vão sendo isolados, tornam-se estatística e algoritmicamente residuais e incomunicáveis com os outros. Está dando certo. A Europa, mesmo sendo uma das maiores prejudicadas pelo corte de relações com a Rússia e pelo acirramento e prolongamento dos conflitos na Ucrânia, já aderiu plenamente à cruzada estadunidense.

Reavivar as cruzadas – mesmo (e sobretudo) sem nomeá-las – tem sido o modo como o Império estadunidense tem operado a sua complexa campanha de reposicionamento global. O esforço é o de provocar o isolamento (e se possível a destruição) das forças políticas, econômicas e militares que podem fazer ruir a lógica imperial no globo. Em resumo: a China e a Rússia, e seus aliados eurasiáticos e globais – que falam hoje em Nova Rota da Seda, União Eurasiática, BRICS e outros projetos de mundo multipolar. Para sobreviver, o Império se tornou, de uma hora para a outra, antiglobalista. Resta entender qual é o “Deus”, de qual “religião”, que realmente inspira e “deseja” estas novas cruzadas.

*Texto publicado originalmente no Outras Palavras