guerra ideológica
RPD || Reportagem Especial: Estupros aterrorizam vítimas e inflam guerra ideológica
A cada hora, quatro crianças e adolescentes de até 13 anos são estuprados no país; especialistas veem aborto como questão de saúde pública
Cleomar Almeida
“Ele me colocou no colo, passou a mão em mim e, depois, tirou a roupa e começou a me acariciar na minha cama”. A declaração é de uma menina de 11 anos de idade que foi estuprada, aos 9 anos, em casa, pelo padrasto, enquanto a mãe estava no supermercado, na região do Gama, a 35 quilômetros de Brasília. “Ele me machucou muito, mas depois pediu para ficar calada porque senão minha mãe iria me bater”, conta.
Os nomes não são divulgados para preservar a identidade da criança e da família, conforme prevê o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). A menina foi obrigada a conviver com o agressor durante quatro anos, período que durou o relacionamento da mãe com o padrasto. Ele foi embora depois da separação, no ano passado. A família disse que não registrou o caso na polícia por medo de ameaças.
“Ele me levou pra cama outras cinco vezes para colocar [o órgão genital] em mim, mas também passava a mão nas minhas partes toda vez que ia na minha casa. Eu não falava nada porque tinha muito medo de ele me matar”, conta a criança. “Hoje tenho medo de ficar sozinha em qualquer lugar”, acrescenta.
A cada hora, quatro crianças e adolescentes de até 13 anos são estuprados no país, segundo o Anuário de Segurança Pública 2019, produzido pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública com informações de todas as unidades da Federação. Outro levantamento, baseado no Sistema de Informações Hospitalares do Sistema Único de Saúde (SUS), mostra que, por dia, o Brasil registra seis abortos em meninas de 10 a 14 anos, estupradas.
Estupro e aborto ainda são tabus no país, embora se permita a interrupção da gravidez em caso de estupro, ao lado de duas outras situações: anencefalia e risco de morte para a mãe. Ao arrepio das disposições legais, grupos extremistas se aproveitam para aprofundar suas batalhas ideológicas contra vítimas, deixando-as ainda mais vulneráveis, como ocorreu com a menina do Espírito Santo, que teve o nome divulgado indevidamente.
Só no primeiro semestre deste ano, o Ministério da Saúde registrou 642 internações de vítimas de estupro. Além disso, o Brasil tem média anual de 26 mil partos de mães com idades de 10 a 14 anos. Os dados são do Sistema de Informações Hospitalares do SUS. É crime fazer sexo com menor de 14 anos no país.
“Qualquer gravidez de uma menor de 14 anos é um estupro presumido. Isso significa que essa gravidez é resultado de uma violência sexual”, afirmou a antropóloga Débora Diniz, fundadora do Instituto Anis de Bioética. “Obrigar menina, tão miudinha, a se manter grávida é um ato de tortura do Estado brasileiro”, disse.
Em geral, os dados de crimes sexuais são subnotificados, já que nem todas as vítimas registram o caso na polícia ou procuram socorro de profissionais de saúde. Muitas vezes, nem dá tempo, já que também há casos de vítimas de estupro assassinadas pelos criminosos.
"Há uma naturalização desta violência. O pessoal já nem presta mais atenção em menina de 13 ou 14 anos grávida. O pessoal está começando a prestar atenção na gravidez de 10, 11 anos de idade", afirmou a advogada Luciana Temer, presidente do Instituto Liberta, que atua no combate à exploração sexual de crianças e adolescentes.
Em 2018, de acordo com o Anuário de Segurança Pública, o Brasil registrou mais de 66 mil casos de violência sexual, o que corresponde a mais de 180 estupros por dia. Entre as vítimas, 54% tinham até 13 anos. Foi a estatística mais alta desde 2009, quando houve a mudança na tipificação do crime de estupro no Código Penal brasileiro. O atentado violento ao pudor passou a ser classificado como estupro.
Naquele ano, o aumento nos casos de estupro teve sua maior parcela entre vítimas do sexo feminino (82%) e acompanhava uma alta em outras modalidades de crime contra mulheres, como feminicídio e agressão doméstica.
Nos últimos dez anos, o Brasil registrou, em média, uma interrupção de gravidez por razões médicas por semana envolvendo meninas de 10 a 14 anos. Em 2020, foram ao menos 34 ocorrências nesta faixa etária e, considerando mulheres de todas as idades, o número salta para 1.022.
“Enquanto o aborto não for tratado sob a perspectiva da saúde, enquanto houver julgamentos moralistas ou ele for abordado pelo viés religioso ou individual, vamos dificultar que meninas e mulheres tenham acesso à interrupção da gestação, que é um passo importante para sair deste ciclo tão traumático da violência sexual”, disse a defensora pública Paula Sant'Anna, coordenadora do Núcleo Especializado de Promoção e Defesa dos Direitos da Mulher da Defensoria Pública de São Paulo.
Na avaliação da assistente social Nathália Diorgenes, que pesquisa aborto e racismo na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e atua na Marcha Mundial das Mulheres, o estupro está enraizado na estrutura social. “O estupro é um crime social. Um homem comete, mas toda a sociedade legitima. Quando essas coisas acontecem, você diz que o estupro nesse país é bem-vindo. Esse é o recado do fundamentalismo religioso”, lamentou.
Em meio a toda guerra ideológica, a educação sexual é o melhor caminho na prevenção da violência sexual, segundo a advogada Luisa Lins, que é integrante da Rede Nacional de Feministas Antiproibicionistas (Renfa) e da Frente Nacional Contra a Criminalização das Mulheres e pela Legalização do Aborto. “Não existe outra forma de proteção senão a educação sexual. Punir, prender e castrar não são formas de prevenção. A educação sexual é responsabilidade do Estado e de toda a sociedade para cuidar das crianças”, destacou.
No caso da vítima do Gama, citada no início desta reportagem, a família tenta agir para amenizar o trauma da criança com auxílio de professores da educação regular, que foram informados sobre o seu caso após ela apresentar muita dificuldade de interação social quando as aulas ainda eram presenciais. Um psicólogo também faz seu acompanhamento. “Meu sonho é me tornar advogada para defender quem não tem força”, conta a menina.
Propostas querem tornar crimes imprescritíveis e inafiançáveis
Mulheres se mobilizam para aprovação das Propostas de Emenda à Constituição (PECs) 64/2016, referente ao estupro, e 75/2019, que torna imprescritível e inafiançável também o feminicídio. O objetivo é tornar imprescritíveis e inafiançáveis, sujeitos à pena de reclusão, os crimes de racismo, estupro e feminicídio.
Por causa das limitações impostas pelo instituto da prescrição é possível que algumas vítimas não consigam ver punido criminalmente o agressor nem recebam a indenização por dano moral que lhes é devida. Vítimas de estupro têm até 20 anos após a prática dos crimes para denunciarem o agressor. Após esse prazo, o crime prescreve e o criminoso não pode mais ser punido. Em regra, na área cível, o prazo de prescrição é de 3 anos.
A PEC 64/2016 já foi aprovada no Senado e está em tramitação na Câmara dos Deputados desde agosto de 2017. Em sua justificativa, o texto observa que "o estupro é um crime que deixa profundas e permanentes marcas nas vítimas, sendo que a ferida psicológica dificilmente cicatriza". Além disso, de acordo com o texto, “a coragem para denunciar um estuprador, se é que um dia apareça, pode demorar anos”. Já a PEC 75/2019 segue a mesma linha da primeira e já foi aprovada pelo Senado, mas também ainda está em análise na Câmara dos Deputados.
“As vítimas continuam clamando por justiça e buscando formas de receber o devido ressarcimento pelos danos físicos e morais sofridos”, explica a advogada Luiza Nagib Eluf, que foi promotora e procuradora de Justiça do Ministério Público de São Paulo e secretária nacional dos Direitos da Cidadania do Ministério da Justiça, no governo de Fernando Henrique Cardoso.
Autora de sete livros, dentre os quais A paixão no banco dos réus (Editora Saraiva), Luiza escreveu um artigo e fez um apelo ao Congresso Nacional para aprovação das duas PECs. “A realidade dos fatos, no Brasil, não deixa dúvidas de que a Constituição Federal precisa ser aperfeiçoada para que a proteção aos direitos da mulher se torne, finalmente, uma realidade”, afirmou.
País terá cadastro de pessoas condenadas
Em sessão remota, o Senado Federal aprovou, no dia 9 de setembro, a criação do Cadastro Nacional de Pessoas Condenadas por Crime de Estupro, que deve conter, obrigatoriamente, características físicas, impressões digitais, perfil genético (DNA), fotos e endereço residencial da pessoa que recebeu condenação judicial. O texto seguiu para sanção do presidente Jair Bolsonaro (sem partido).
O Projeto de Lei 5.013/2019, de autoria do deputado federal Hildo Rocha (MDB-MA), também prevê que, em caso de condenado em liberdade condicional, o banco de dados deverá conter os endereços dos últimos três anos e as profissões exercidas nesse período. Na avaliação dos parlamentares, o cadastro é um avanço importante para frear "uma estatística assustadora no Brasil".
Para viabilizar o cadastro, o texto prevê a cooperação entre União, Estados e municípios para validação, atualização dos dados e acesso ao banco de informações. Os recursos para o desenvolvimento e a manutenção do cadastro serão do Fundo Nacional de Segurança Pública. As informações do cadastro devem simplificar e agilizar a investigação dos casos de estupro, além de servirem como instrumento de prevenção.
Código Penal
O crime de estupro é definido no Código Penal como "constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso". A pena é de reclusão de 6 a 10 anos.
A lei também define como crime de estupro de vulnerável "ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 anos" ou com "alguém que, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato, ou que, por qualquer outra causa, não pode oferecer resistência". A pena é de reclusão de 8 a 15 anos.
O estupro e o estupro de vulnerável são crimes hediondos (Lei 8.072, de 1990). Por isso, são inafiançáveis e não alcançados pelos benefícios de anistia, graça ou indulto.
*Cleomar Almeida é jornalista, assessor de comunicação da FAP