grupos minoritários
RPD || Ana Paula Miranda e Rosiane Rodrigues de Almeida: Os efeitos da política de “Deus acima de todos”
Discurso de ódio, numa interpretação bíblica supremacista, une grupos de perfil evangélico-pentecostal, tráfico e milícias em ataques aos direitos de grupos minoritários, como os afrorreligiosos, nas regiões metropolitanas das grandes cidades do país
As denúncias de violações de direitos envolvendo religiosos afro acompanham a expansão do neoconservadorismo de grupos de perfil evangélico-pentecostal. As perseguições se distinguem das de outros momentos históricos, pela Igreja Católica e/ou pelo Estado, porque hoje há formalmente mecanismos institucionais de garantia de direitos dos povos de terreiro.
Uma das razões é a interpretação da liberdade religiosa, prevista em lei, a partir de uma matriz evangélica que se afirma vítima de perseguição, ao mesmo tempo em que constrói uma agenda política de “direita cristã”, inspirada no modelo estadunidense, com forte presença na formulação de políticas públicas, a partir dos anos 1980. Isto se identifica já nos debates para a Constituição Federal de 88, quando a bancada evangélica despontou com perfil “conservador” e “tradicionalista”, difundindo discursos que, em nome de Jesus, atacavam direitos de grupos minoritários. Este modelo se opõe ao defendido pelos afrorreligiosos, que têm lutado pela garantia da liberdade de crença, sujeita a limitações, porque não se pode impedir o exercício de outros direitos fundamentais.[1]
A chamada “nova onda conservadora” tem afetado o desenvolvimento de uma política democrática na manifestação plural das diferenças no espaço público, revelando nuances de políticas “cristofascistas”[2], que lidam de forma binária com os povos tradicionais - associados às práticas maléficas, num ideário inspirado na supremacia branca estadunidense.
Se até 2000 eram comuns conflitos entre afrorreligiosos e evangélicos em relações de proximidade (vizinhos, parentes, etc.), há décadas as agressões envolvem também traficantes e/ou milicianos, seguidores de igrejas pentecostais. O fenômeno deixou de ser mera conversão de “bandidos” e tornou-se uma disputa por outros fronts – econômicos e político-eleitorais – que misturam imperativos teológicos e doutrinários com projeto político de nação. Nos Estados Unidos, as consequências dessa direita cristã se veem na política externa internacional e nas ações voltadas ao meio ambiente e direitos humanos.[3] No caso brasileiro, além desses efeitos é preciso destacar a emergência de outra dimensão – o papel dessas igrejas na interação de grupos paramilitares (tráfico e milícias), para consolidação de um “domínio armado”[4], que tem resultado em ataques e expulsão de terreiros e na unificação de áreas nas regiões metropolitanas das grandes cidades sob um mesmo comando, como é o caso do “Complexo de Israel”, favelas da zona norte do Rio, que sob a bandeira de Israel, são geridas pelo tráfico e milícia juntos. Tudo isso é fundamentado por discursos de ódio que possibilitam a consolidação e visibilidade dessas ações extremistas, numa interpretação bíblica supremacista. As consequências diretas desses conflitos são o agravamento de preconceitos em relação às moralidades, aos saberes e práticas dos afrodescendentes e dos indígenas, bem como na produção de uma nova forma de colonização política, discursiva e territorial.
Consideramos que esse processo de radicalização do ideal supremacista branco, baseado no tripé fenótipo-origem-religião[5], presentes no imaginário nacional desde o século XIX, foi atualizado e produz novas narrativas de inferiorização. A emergência da política nacional do “Deus acima de todos”, adotada pelo presidente Jair Bolsonaro, é, portanto, a expressão de um projeto de poder que associa o expansionismo ao racismo ao tratar as minorias como símbolos do “atraso”, ao mesmo tempo que reinventam povos eleitos e ressuscitam a teoria do branqueamento no país.
A afirmação do vice-presidente, Hamilton Mourão (PRTB), um homem heteroidentificado como “pardo”, de que o Brasil herdou a “indolência” dos índios e a “malandragem” dos africanos, é um exemplo de como essa política recusa a alteridade, em nome de Jesus, e mistura os discursos nacionalista e supremacista, com a defesa de uma ordem imposta pela força. A “ilusão brasileira da brancura”[6] está a serviço da invisibilidade das práticas institucionais genocidas que seguem agindo, a despeito das salvaguardas legais, num projeto de extinção de todos que não se representem como “brancos”. Assim, o ideal supremacista no Brasil está a serviço da manutenção dos privilégios da aristocracia, que não se prende ao fenótipo, mas a uma ideologia de “mérito” que o mito da democracia racial criou e que a teologia da prosperidade glorifica – a branquitude como hegemonia segue como a representação social consagrada no Brasil.
*Professora de Antropologia da UFF; Pesquisadora do INC-INEAC-UFF)
** Bolsista de Pós-Doutorado da FAPERJ; Pesquisadora do INC-INEAC-UFF)
[1] MIRANDA, A.M. 2020. “Terreiro politics” against religious racismo and “christofascist” politics. Vibrant, 17: 1-20.
[2] O termo classifica políticas públicas e sociais que, em nome do cristianismo, excluem os grupos minoritários. In HEYWARD, I. C. Saving Jesus from Those who are Right: Rethinking what it Means to be Christian. Minneapolis: Fortress Press, 1999.
[3] RESENDE, E. S. 2010. “A Direita Cristã e a política externa norteamericana: a construção discursiva da aliança entre Estados Unidos e Israel com base na ideologia evangélico-protestante”. Carta Internacional, 5 (1): 3-20.
[4] MIRANDA, A.M.; MUNIZ, J.O. 2018. “Dominio armado: el poder territorial de las facciones, los comandos y las milicias en Río de Janeiro”. Revista Voces En El Fenix, 68: 44 - 49.
[5] ALMEIDA, R. R. “A luta por um modo de vida: as narrativas e estratégias dos membros”, Fórum Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional dos Povos Tradicionais de Matriz Africana. Tese de Doutorado em Antropologia, Universidade Federal Fluminense, 2019.
[6] CÂNDIDO, A. 2002. Racismo: crime ontológico [Entrevista]. Ethnos Brasil, I (1): 21- 28.