gripe espanhola
RPD || Ivan Accioly: O Rio e os cariocas do carnaval da Espanhola ao não carnaval da Covid-19
2021 entra para a história deste século como o inédito ano sem carnaval, à semelhança do que ocorreu na pandemia da gripe espanhola (1918-1920), que infectou um quarto da população mundial na época. Na preservação da vida, foliões de todo o país apostam no futuro da festa em 2022
“Este ano não vai ser igual àquele que passou” e, espero, diferente de qualquer outro que venha no futuro. A vontade imensa de botar o bloco na rua, de fantasiar, de purpurinar e sair por aí ao som de baterias, saxofones, pandeiros, tamborins e similares está represada. A máscara no rosto é apenas uma proteção contra o indesejado vírus Covid-19.
2021 entra para a história como o inédito ano sem carnaval. O ano em que os blocos não tomaram as ruas do Rio de Janeiro, Olinda, Ouro Preto, BH, o país inteiro. As escolas de samba não estão nos sambódromos espalhados pelo Brasil à semelhança do palco original imaginado por Darcy Ribeiro na Marquês de Sapucaí. Portela, Mangueira, Salgueiro, São Clemente, Beija Flor, Vila Isabel. Enfim, todas as escolas estão à espera da hora certa para botar o enredo na avenida.
A folia neste ano de pandemia está improvisada. A aglomeração, a proximidade, a quadra cheia, todo mundo suado, o som potente da bateria que preenche e arrepia, cada poro da pele quando começa a tocar, está mediado pelas telinhas dos computadores. O pouco carnaval vem online. Frustrante, xoxo, mas é o que temos por enquanto.
A população está ainda perplexa com a situação. Os foliões de raiz, ligados às escolas de samba, já sentem a abstinência desde o meio do ano passado, quando as quadras permaneceram fechadas. O pessoal dos blocos de rua igualmente na carência, seus ensaios e escolhas de samba que mobilizam desde a primeira semana de janeiro não ocorreram.
Esses foliões de carteirinha – de forma sábia – apostaram no futuro da festa. Aceitaram o recolhimento momentâneo de olho na preservação da vida e na perspectiva de recuperarem a folia deixada de lado mais à frente. Afinal, todo mundo tem estrada e acúmulo de festa que permite essa pequena pausa.
O carnaval está no DNA da população desde quando o entrudo dava as cartas no século XVI. É uma festa que hoje mobiliza e tira grande parte da população de sua realidade durante alguns dias. É um momento de alegria despreocupada, extravasamento, cantoria brincadeira, ansiosamente esperado. As marchinhas, os sambas, os frevos, os maracatus, os afoxés embalam a folia e são parte do que há de mais original na identidade brasileira.
Mas não é a primeira vez que uma pandemia afeta diretamente nossa festa maior. Há pouco mais de cem anos, em 1918, a gripe espanhola dizimou parte da população mundial e virou destaque na folia do ano seguinte. O vírus matou entre 20 e 30 milhões de pessoas na Europa e um número não conhecido no resto do mundo. No Rio, foram 15 mil mortos e 600 mil doentes, numa população de apenas 910.710 mil pessoas.
A grande forra veio na festa de 1919, quando a população tomou as ruas e fez o que foi considerado o maior carnaval de todos os tempos. Segundo narrou em A menina sem estrela o escritor e jornalista Nelson Rodrigues, que tinha seis anos na época, e foi marcado pela tragédia e pela festa que se seguiu, o povo se soltou:
Desde as primeiras horas de sábado houve uma obscenidade súbita, nunca vista, e que contaminou toda a cidade… Nada mais arcaico do que o pudor da véspera. Mocinhas, rapazes, senhoras, velhos, cantavam uma modinha tremenda: ‘Na minha casa não racha lenha/ Na minha racha, na minha racha / Na minha casa não há falta de água / Na minha abunda’. As pessoas se esganiçavam nos quatro dias.”
Agora é a nossa vez. Como será 2022? Como faremos a festa? Como curaremos as feridas das centenas de milhares de mortos? Na espanhola, o chá da morte virou música e alegoria. Lá eles também tiveram os negacionistas e aqueles que receitaram a cloroquina da época, que foi o quinino, limão e caldo de galinha. As coitadas das penosas sumiram do mercado.
Vale lembrar que carnaval é resistência e, para desespero das parcelas dos que não sabem lidar com esse aspecto da cultura, a expressa com alegria. Uma alegria e descontração, encaradas pelos os mal-informados como um “descompromisso”. Não entendem nada, o carnaval é crítica. É dedo na ferida dos governantes. É a exposição daquilo que muitos querem esconder. É a festa da carne. São os corpos desnudos que mostram suas presenças e que, no carnaval, são os estandartes principais. Corpos como aqueles ceifados na pandemia e que viraram, para muitos, apenas números para estatísticas,
São esses corpos brincantes que agora estão se preservando e estarão nas ruas em 2022. Que vão mostrar, como disse a Mangueira, “a história que a história não conta. O avesso do mesmo lugar. Pois, com certeza, “na luta é que a gente se encontra”. Até 22 para fazermos o inesquecível melhor carnaval do século. Até agora, claro!
*Ivan Accioly é jornalista, diretor do Bloco Imprensa Que Eu Gamo, e mestrando em Comunicação pela UFRJ. Tem mais de 50 carnavais e entende que a festa acontece na rua, onde cumpre um intenso roteiro blocos e escolas de samba anualmente.
Domingos Meirelles: A Besta Fera de 1918
Os canhões ainda estavam embuçados pela fumaça no fim da 1ª Grande Guerra quando o mundo começou a enfrentar um novo, silencioso, e invisível inimigo: a chamada Gripe Espanhola, o maior holocausto médico da história da humanidade. A praga apareceu pela primeira vez em fevereiro de 1918 na cidade de San Sebastián, movimentado ponto turístico da costa setentrional da Espanha. Foi considerada uma gripe banal e logo esquecida. A região desfrutava de um clima agradável e ameno, onde podiam ser esquecidos os horrores das trincheiras da França, do outro lado da fronteira, cenário de destruição e desgraças, onde os Aliados lutavam desde 1914 contra os alemães e os países que apoiavam o Kaiser Guilherme II .
A Espanha era uma nação neutra, não se envolvera na guerra iniciada contra a Sérvia quatro anos atrás, após o assassinato do Arquiduque Francisco Ferdinando, herdeiro do trono da Áustria. Ferdinando tinha sido abatido a tiros, em Sarajevo, junto com sua mulher por um nacionalista iugoslavo. Na ensolarada San Sebastián era possível encontrar-se momentos de paz , longe não só do estrugir dos canhões como dos efeitos do gás mostarda que produzia uma névoa esverdeada letal, a mais nova arma de guerra alemã.
De repente, a gripe chegou. Não foi nada alarmante, apenas dois ou três dias de febre, seguidos de ligeiro mal-estar. No início, o vírus parecia escolher suas vítimas, atacava preferencialmente adultos jovens, poupando velhos e crianças, ao contrário do que acontece atualmente com o Coronavirus. Estudos recentes sustentam que os idosos não foram contaminados pelo vírus por terem adquirido resistência imunológica durante a pandemia ocorrida entre 1889 e 1890, conhecida como a ” Gripe Russa “.
Em março de 1918, soldados americanos que passavam por San Sebastián à caminho do front começaram a adoecer. Dois meses depois, o Rei Afonso XIII e oito milhões de súditos também estavam enfermos. Um terço da população de Madrid exibia sintomas de uma gripe como jamais se viu. Atividades governamentais foram suspensas, o comércio fechou as portas, os bondes deixaram de circular. A Espanha havia sido capturada pelo medo da peste.
A primeira onda da gripe começou logo a se espalhar pelo mundo. As tropas aliadas referiam-se a esse surto como ” a febre dos três dias “, embora durasse em média uma semana. Manifestava-se através de rápida elevação da temperatura, o rosto ficava logo vermelho, a cabeça latejava, os ossos doíam. Esse quadro desaparecia após intensa transpiração, o corpo ficava dolorido durante 15 dias, e a gripe desaparecia. Na primavera de 1918, poucos perceberam que a epidemia havia atravessado o Atlântico e atingido os Estados Unidos. Cerca de mil operários americanos que trabalhavam na Ford queixavam-se de febre e moleza no corpo. Em abril, 500 dos 1.900 presidiários de San Quentin estavam doentes.
O maior número de baixas tinha ocorrido, entretanto, em um campo de treinamento no Kansas, onde cerca de 20 mil recrutas estavam sendo preparados para lutar na Europa. A epidemia alastrou-se por outros acampamentos do exército, mas as autoridades sanitárias não deram muita importância, gripes e resfriados eram comuns em áreas onde milhares de homens de diferentes cidades passavam a viver juntos, misturando-se e passando vírus de uns para outros.
Os primeiros sinais de alarme ocorreram no final de maio quando a gripe apareceu na França. Tropas, inglesas, americanas, francesas e a população civil começaram a exibir os primeiros sintomas do vírus. No mês seguinte, ele chegava à Inglaterra, deixando o Rei Jorge V de cama. Logo depois alcançava a Ásia. Em junho, a gripe passou a interferir no curso da guerra. A Grande Frota do Rei Jorge foi abalroada pela pandemia antes mesmo de zarpar. Os seus 10.300 homens foram obrigados a desembarcar e permanecerem em terra durante três semanas, retardando o fim do conflito que só ocorreria em novembro.
Nem os alemães foram poupados pela epidemia. Todos os dias, o general Erich von Ludendorff amaldiçoava a gripe, dizia que ela debilitava os soldados e frustrava seus vitoriosos planos de ataque contra os Aliados. Apesar de se ter espalhado pelo mundo durante a primavera de 1918 havia regiões do planeta onde a ” influenzza “, como era também conhecida, não tinha produzido vítimas. A maior parte da África, Canadá e América do Sul não havia sido contaminada pelo vírus. Quando chegou o verão, os Estados Unidos e os países europeus sentiram extraordinário alívio. A gripe parecia ter desaparecido de vez sem deixar vestígios, como se jamais tivesse existido.
Alguns meses depois, em setembro, quase no fim da 1ª Grande Guerra, ela estava de volta como uma maldição. A segunda onda da gripe, além de extremamente contagiosa, havia-se transformado em uma peste assassina. Escolhera como caminho de volta os lugares por onde não havia passado. Cerca de 80% das pessoas atingidas pelo vírus não conseguiam sobreviver. Ela era 25 vezes mais letal que sua antecessora e a gripe comum.
Os doentes morriam em questão de dias, ou mesmo de horas, com os pulmões entupidos de catarro. Na maioria dos casos, ela começava como se fosse uma simples gripe, os pacientes respiravam com extrema dificuldade, deliravam com febre alta, sentiam calafrios, dores no corpo. Os pulmões infestados por bactérias, contraíam pneumonia, as pessoas contaminadas ficavam inconscientes, e morriam um dia depois.
A segunda onda maldita chegou aos Estados Unidos em agosto, trazida por um grupo de marinheiros desembarcados em Boston. Semanas depois começaram os óbitos. Em Fort Devens, Massachusetts, a 50 km a oeste de Boston, cerca de 60 mil soldados tinham sido contaminados por um tipo de pneumonia galopante jamais visto. Após serem infectados pela gripe, exibiam manchas castanho-avermelhadas no rosto, horas depois a cianose estendia-se por toda a face a partir das orelhas. A morte chegava em poucas horas. ” Era difícil distinguir um homem branco de um negro “, escreveu um dos médicos do acampamento. Os pacientes ficavam com falta de ar e morriam sufocados. Como não havia caixões suficientes, os corpos eram empilhados como sacas de arroz no necrotério do quartel. Os coveiros não tinham como enterrá-los porque também estavam doentes. Foram abertas covas coletivas e os mortos sepultados sem caixões, embrulhados nos próprios lençóis.
Os médicos militares patologistas enviados por Washington a Massachusetts ficaram horrorizados com que viram. O rosto dos soldados contaminados ficavam azulados, eles tossiam convulsivamente e o escarro que expeliam estava sempre tingido de sangue como se tivessem tuberculose. As enfermeiras sabiam que quando os pés dos doentes ficavam escuros, não havia muito o que fazer. Naquela época não havia também antibióticos nem respiradores como nos dias de hoje. Os médicos tratavam os pacientes com elixires e vacinas improvisadas que não produziam nenhum efeito, uma espécie de ” sopa ” preparada com sangue e muco dos pacientes . Antes de ser injetada, filtrava-se essa mistura para eliminar as células maiores, o resultado era inócuo. Deixava apenas um braço inchado e dolorido. A ” sopa ” era incapaz de interromper a progressão da gripe. Os doentes continuavam sangrando pelo nariz, pelos ouvidos, pelos olhos. O rosto ficava azulado pela falta de oxigênio, morriam sufocados pelo excesso de líquido nos pulmões.
Os patologistas enviados pelo Governo atribuíram inicialmente o expressivo número de mortes a uma espécie de envenenamento medicamentoso causado pela prescrição elevada de aspirina. Os médicos receitavam doses de 8 a 31 gramas por dia como parte do tratamento. O excesso de aspirina aumentava consideravelmente o número de glóbulos brancos no organismo. Os pulmões eram inundados por tamanha quantidade de líquido que acabava sufocando os pacientes.
Não era só o excesso de aspirina que causava a chamada ” tempestade de citonina”, os glóbulos brancos também multiplicavam-se rapidamente para combater a gripe. Era uma reação exagerada das defesas do próprio organismo para enfrentar o vírus. O excesso natural de citonina, acrescido pelas doses elevadas de aspirina apressava a morte dos doentes.
Doze mil americanos faleceram de gripe em setembro, todos os acampamentos do exército nos Estados Unidos estavam infectados. Acreditava-se que o surto talvez tivesse começado na Filadélfia em outubro, onde havia sido realizado um grande desfile público diante de 200 mil pessoas. O objetivo da festa era obter fundos para o esforço de guerra. Nenhum funcionário do serviço de saúde previu o desastre que estava à caminho.
Três dias depois, os 31 hospitais da cidade estavam lotados de doentes com graves problemas respiratórios. As pessoas contaminadas chegavam nos braços de parentes, em automóveis, transportadas em carroças e até em carrinhos de mão. O mês de outubro foi trágico para os Estados Unidos, o país registrou cerca de 195 mil mortos na mais severa pandemia da história da humanidade. Só os que tinham sido infectados pela primeira vez não foram contaminados quando a gripe voltou de forma avassaladora. O organismo havia criado anticorpos e resistiu ao novo ataque do vírus.
Não existe uma estatística segura sobre a quantidade de mortes causada pela pandemia de 1918, engordada por uma terceira onda, em fevereiro de 1919, que se dissipou naturalmente em maio do mesmo ano. Cerca de 500 mil soldados e civis morreram nos Estados Unidos. Estima-se que cerca de 100 milhões de pessoas tenham sido vitimadas em todo o mundo pelo vírus da gripe, número seis vezes maior que os 15 milhões de soldados abatidos em combate durante a 1ª Grande Guerra, no coração de uma Europa em escombros, que se considerava um exemplo civilização, e se orgulhava de hospedar os maiores cérebros do planeta.
*Domingos Meirelles é repórter especial da Rede Record de Televisão e autor de ” As Noites das Grandes Fogueiras– Uma História da Coluna Prestes ” e ” 1930 : Os Órfãos da Revolução