gramsci e o brasil

Fausto Matto Grosso: Golpismo e autogolpe

Se há uma permanência na história brasileira, é a do golpismo. Nossa história republicana sempre foi marcada por rupturas institucionais. A Proclamação da República Brasileira, também referida como Golpe Republicano, foi liderada em 1889 pelo Marechal Deodoro e um grupo de militares do exército brasileiro, que destituíram o então chefe de Estado, o Imperador D. Pedro II.

Em 1891 Deodoro enfrentou a oposição, fechando o Congresso e governando com o estado de sítio. Foi o primeiro autogolpe da República que nascia. Obrigado a renunciar, assumiu o vice Floriano Peixoto que deveria convocar as eleições, o que não fez. Aferrando-se ao poder, governou como ditador. Outro autogolpe.

Em 1937 Getúlio Vargas realizou um autogolpe dos mais bem-sucedidos na História brasileira, impondo o Estado Novo e governando com poderes ditatoriais por oito anos, até 1945.

Em agosto de 1961, quando Jânio Quadros renunciou, pretendia voltar nos braços do povo, como acontecera com o general Charles de Gaulle na França. O autogolpe desta vez falhou.

Assim chegamos ao golpe civil-militar de 1964, pelo qual foi destituído o presidente João Goulart, assumindo Castelo Branco. Este deveria convocar eleições em 1965, mas ampliou seu mandato até 1967. Daí se iniciou uma sequência de autogolpes dentro do próprio regime militar. Costa e Silva, já em 1968, decreta o AI-5, fechando o Congresso e implantando um dos períodos mais repressivos da ditadura.

Com a morte de Costa e Silva, deveria assumir seu vice-presidente, o civil Pedro Aleixo, mas, num novo golpe, assumiu a Junta Militar que preparou a transição para o general Garrastazu Médici. Em um embate entre a linha dura e a moderada das forças armadas, acabou assumindo o general Geisel, que fechou o Congresso.

Na sequência tivemos o general Figueiredo, que entregou o país, melancolicamente falido, para o primeiro governo civil, o de José Sarney, após a morte de Tancredo Neves eleito pelo Congresso Nacional. Com a primeira eleição democrática já sob a Constituição de 1988, assume o primeiro civil diretamente eleito, Fernando Collor de Mello, logo cassado por corrupção.

Tivemos a partir daí com Itamar Franco, Fernando Henrique e Lula um período de razoável estabilidade, até o segundo mandato da presidente Dilma Rousseff, cassada pelo Congresso Nacional. O país, então, se dividiu gravemente, mobilizado pela narrativa do PT de que impeachment era golpe. Esse tipo de narrativa pode futuramente acabar sendo usado pelos seguidores de Bolsonaro, seus antípodas.

As palavras são perigosas, pois sempre têm contexto e visam a construir narrativas. Buscando significados, golpe de Estado consiste na derrubada ilegal de um Estado ou de uma ordem constitucional legítima. Já autogolpe é uma forma de golpe que ocorre quando o líder de um país, que chegou ao poder através de meios legais, dissolve ou torna impotente o  Congresso Nacional, anulando a Constituição e suspendendo tribunais civis. Com essa compreensão entendo que contra Dilma não houve golpe, mas destituição dentro de todos os parâmetros constitucionais.

Em 2018 surge em cena o capitão Bolsonaro, vindo de uma longa tradição parlamentar de defesa do golpe militar e até de elogios a torturadores, como o general Brilhante Ustra. Tosco, o tenente terrorista que pretendeu lançar bombas acabou sendo excluído do Exército como capitão, não tendo feito nem o curso de Estado-Maior.

Bolsonaro, entretanto, teve inegável sucesso na organização de um movimento reacionário de massas, de extrema direita, que mobiliza até agora cegas paixões. Já na campanha, seu filho Eduardo Bolsonaro assinalava confrontos institucionais, dizendo que para fechar o Supremo bastava mandar um soldado e um cabo. Não era preciso nem um jipe.

Já no governo, não tem um mês em que o Capitão Bolsonaro, com seu governo militarizado, não comete uma provocação contra o Congresso e o Supremo e toma medidas que favorecem a hipótese de um autogolpe. Entre elas, a tentativa de controle das polícias militares, o afrouxamento do controle de armas e o incentivo de suas milícias para que cometam atos de desatino contra as instituições democráticas.

Bolsonaro se encontra hoje sob forte pressão da CPI da Covid, que pode levá-lo ao impeachment. Está sem saída. Segundo o general chinês Sun Tsu, um adversário sem saída lutará ainda mais desesperadamente. Portanto, é hora de cuidado extremo com a democracia. Uma eventual tentativa de (auto)golpe não está afastada da nossa tradição política.

*Fausto Mato Grosso é engenheiro e professor aposentado da UFMS

 

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Fonte:

Gramsci e o Brasil

https://www.acessa.com/gramsci/?page=visualizar&id=2459


Fausto Matto Grosso: Golpismo e autogolpe

Se há uma permanência na história brasileira, é a do golpismo. Nossa história republicana sempre foi marcada por rupturas institucionais. A Proclamação da República Brasileira, também referida como Golpe Republicano, foi liderada em 1889 pelo Marechal Deodoro e um grupo de militares do exército brasileiro, que destituíram o então chefe de Estado, o Imperador D. Pedro II.

Em 1891 Deodoro enfrentou a oposição, fechando o Congresso e governando com o estado de sítio. Foi o primeiro autogolpe da República que nascia. Obrigado a renunciar, assumiu o vice Floriano Peixoto que deveria convocar as eleições, o que não fez. Aferrando-se ao poder, governou como ditador. Outro autogolpe.

Em 1937 Getúlio Vargas realizou um autogolpe dos mais bem-sucedidos na História brasileira, impondo o Estado Novo e governando com poderes ditatoriais por oito anos, até 1945.

Em agosto de 1961, quando Jânio Quadros renunciou, pretendia voltar nos braços do povo, como acontecera com o general Charles de Gaulle na França. O autogolpe desta vez falhou.

Assim chegamos ao golpe civil-militar de 1964, pelo qual foi destituído o presidente João Goulart, assumindo Castelo Branco. Este deveria convocar eleições em 1965, mas ampliou seu mandato até 1967. Daí se iniciou uma sequência de autogolpes dentro do próprio regime militar. Costa e Silva, já em 1968, decreta o AI-5, fechando o Congresso e implantando um dos períodos mais repressivos da ditadura.

Com a morte de Costa e Silva, deveria assumir seu vice-presidente, o civil Pedro Aleixo, mas, num novo golpe, assumiu a Junta Militar que preparou a transição para o general Garrastazu Médici. Em um embate entre a linha dura e a moderada das forças armadas, acabou assumindo o general Geisel, que fechou o Congresso.

Na sequência tivemos o general Figueiredo, que entregou o país, melancolicamente falido, para o primeiro governo civil, o de José Sarney, após a morte de Tancredo Neves eleito pelo Congresso Nacional. Com a primeira eleição democrática já sob a Constituição de 1988, assume o primeiro civil diretamente eleito, Fernando Collor de Mello, logo cassado por corrupção.

Tivemos a partir daí com Itamar Franco, Fernando Henrique e Lula um período de razoável estabilidade, até o segundo mandato da presidente Dilma Rousseff, cassada pelo Congresso Nacional. O país, então, se dividiu gravemente, mobilizado pela narrativa do PT de que impeachment era golpe. Esse tipo de narrativa pode futuramente acabar sendo usado pelos seguidores de Bolsonaro, seus antípodas.

As palavras são perigosas, pois sempre têm contexto e visam a construir narrativas. Buscando significados, golpe de Estado consiste na derrubada ilegal de um Estado ou de uma ordem constitucional legítima. Já autogolpe é uma forma de golpe que ocorre quando o líder de um país, que chegou ao poder através de meios legais, dissolve ou torna impotente o  Congresso Nacional, anulando a Constituição e suspendendo tribunais civis. Com essa compreensão entendo que contra Dilma não houve golpe, mas destituição dentro de todos os parâmetros constitucionais.

Em 2018 surge em cena o capitão Bolsonaro, vindo de uma longa tradição parlamentar de defesa do golpe militar e até de elogios a torturadores, como o general Brilhante Ustra. Tosco, o tenente terrorista que pretendeu lançar bombas acabou sendo excluído do Exército como capitão, não tendo feito nem o curso de Estado-Maior.

Bolsonaro, entretanto, teve inegável sucesso na organização de um movimento reacionário de massas, de extrema direita, que mobiliza até agora cegas paixões. Já na campanha, seu filho Eduardo Bolsonaro assinalava confrontos institucionais, dizendo que para fechar o Supremo bastava mandar um soldado e um cabo. Não era preciso nem um jipe.

Já no governo, não tem um mês em que o Capitão Bolsonaro, com seu governo militarizado, não comete uma provocação contra o Congresso e o Supremo e toma medidas que favorecem a hipótese de um autogolpe. Entre elas, a tentativa de controle das polícias militares, o afrouxamento do controle de armas e o incentivo de suas milícias para que cometam atos de desatino contra as instituições democráticas.

Bolsonaro se encontra hoje sob forte pressão da CPI da Covid, que pode levá-lo ao impeachment. Está sem saída. Segundo o general chinês Sun Tsu, um adversário sem saída lutará ainda mais desesperadamente. Portanto, é hora de cuidado extremo com a democracia. Uma eventual tentativa de (auto)golpe não está afastada da nossa tradição política.

*Fausto Mato Grosso é engenheiro e professor aposentado da UFMS

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Ricardo José de Azevedo Marinho: O sutil desprezo de Biden a Bolsonaro

Como se sabe, não há protocolos estabelecidos para reuniões ou conferências de Zoom, ou para cúpulas virtuais de chefes de Estado. Há meses atrás, elas praticamente não existiam. Nem é preciso dizer que houve encontros entre dois ou mais líderes em videoconferências, mas as cúpulas são outra coisa. São encontros onde os governantes de seus países podem se encontrar, ouvir uns aos outros, trocar declarações formais e manter diálogos informais.

Portanto, por si só, a forma como Bolsonaro participou da Cúpula do Clima convocada por Joe Biden, apesar de não ser grave, é no mínimo complicada. Se o presidente brasileiro decidiu que não estava interessado em ouvir as intervenções de seus colegas — com exceção talvez de Biden e quiçá Kamala Harris —, não há regra escrita ou não escrita que ele tenha violado. Claro: ele não foi muito cortês ou respeitoso com os outros vinte chefes de Estado ou de governo — além dos participantes não governamentais — que intervieram no debate. Mas talvez o presidente brasileiro não tenha entendido que deveria ouvir os outros se esperava que eles o ouvissem. Não se tratava de turnos de falas, mas sim de uma mesa redonda. É como se a cúpula tivesse sido presencial, Bolsonaro só esteve presente na sala para sua própria participação.

É verdade que, em outros debates que poderiam ser assemelhados a este — com dificuldades —, os primeiros líderes não se ouvem pessoalmente. É o que ocorre, em particular, no debate geral da Assembleia Geral da ONU no final de setembro de cada ano em Nova York. É bem sabido que, com exceção dos primeiros dez ou quinze oradores, na sequência não há sequer um chefe de Estado, nem mesmo chanceleres, no grande salão da Assembleia.

Tampouco é grave que Bolsonaro tenha feito um discurso totalmente oposto às balizas da nossa política externa, em uma palavra, pró-mercado. Ninguém mais espera muito dele; todos os seus colegas já sabem que o presidente brasileiro está focado nos assuntos internos, que só se interessava pela esfera internacional por ocasião de Trump. Dito de forma clara: não importa muito o que diz ou deixa de dizer.

Mas existe uma tradição nessas questões. O Brasil e os Estados Unidos frequentemente participam de várias cúpulas juntos, como a OEA e vários outras. Não me lembro de nenhuma em que o presidente dos Estados Unidos, principalmente se fosse o anfitrião, não tenha estado na sala quando o brasileiro falava. Minha memória pode falhar, mas pelos mais de quarenta anos em que tenho seguido esses tópicos — eu duvido.

Por isso é grave — agora é — que Biden não estivesse presente durante a intervenção de Bolsonaro. Todos os sábios que previram que não haveria consequências dos vários desprezos de Bolsonaro a Biden por ocasião da eleição norte-americana, por ser um profissional rodeado de profissionais, devem reconhecer que alguém assim não está ausente da “sala virtual” sem saber a quem não vai ouvir. Biden não estava, com pleno conhecimento de causa.

Segundo consta, quando Bolsonaro se conectou à transmissão Biden já não estava mais presente na reunião. O presidente democrata deixou seu lugar após ouvir o representante da ONU e os chefes de estado de China, Índia, Reino Unido, Japão, Canadá, Bangladesh, Alemanha, França, Rússia, Coreia do Sul, Indonésia, África do Sul, Itália e Ilhas Marshall. Biden saiu pouco antes de ouvir Alberto Fernández, da Argentina, o primeiro presidente ibero-americano a falar na cúpula.

Existem níveis entre os países. Pelo menos para os Estados Unidos, o Brasil pertencia ao nível do grupo descrito. Agora ele está na companhia do Argentina, do México e das outras “repúblicas irmãs”. Como Barack Obama sempre disse, as eleições têm consequências; decisões de política externa também.

*Professor da Unyleya Educacional e do Instituto Devecchi


Massimiliano Amato: Gramsci vs. Turati - O drama original do comunismo italiano

Será possível tirar a cisão de Livorno, cujo centenário acontecerá daqui a pouco mais de um mês, da trilha única da infinita discussão — que na prática atravessou dois terços do século XX, digamos, do fatal 1921 até o igualmente fatal 1989 — sobre quem, entre Turati e Gramsci, tinha razão? Em outras palavras, pode-se tentar reconstruir o evento mais traumático da história da esquerda italiana, arrancando-o das leituras ideológicas que continuam a se suceder e a se sobrepor, evitando obstinadamente o problema principal que aquela dolorosa separação gerou, vale dizer, a vitória da reação, que desemboca 21 meses depois no golpe saboiano-fascista

Certamente, é perigoso o terreno no qual se coloca Ezio Mauro em La dannazione. 1921. La sinistra divisa all’alba del fascismo (Milão, Feltrinelli, 2020, 190p.). Porque tangencia a chamada “história contrafactual” que os historiadores profissionais rejeitam como a peste. De fato, não se pode em absoluto demonstrar que os socialistas unidos teriam conseguido evitar a tomada de poder mussoliniana. Antes, é altamente provável que, consideradas as circunstâncias que a determinaram (in primis, o papel desempenhado por Vítor Emanuel III e a continuada agonia do Estado liberal), a Turati e a Gramsci não se permiria — para usar uma metáfora futebolística — tocar na bola. Ainda que tivessem continuado a jogar no mesmo time.

E, no entanto, a tese central do livro — que toca na carne viva de uma questão crucial da história política italiana do século XX: a impossibilidade para a esquerda italiana, hoje comprovada e quase definitiva, de ser força hegemônica de governo, como o foram, para exemplificar, os trabalhistas ingleses, os social-democratas alemães e suecos, e também os socialistas franceses — merece ser discutida e aprofundada. Quando menos porque a percepção de que aquela divisão só faria o jogo do “inimigo” fora tida também por dirigentes socialistas mais em sintonia com Moscou do que (ou seja, zero) o fosse Turati: “Nós nos devoraremos entre nós e a burguesia acabará tendo um pouco de paz”, escreve Giacinto Menotti Serrati em outubro de 1920.

Teatro Goldoni, 21 de janeiro de 1921

Com uma operação historiográfica não isenta de riscos (mas para que serve reconstruir os acontecimentos do passado senão para fornecer os instrumentos para ler o presente?), Mauro estabelece o ponto inicial desta impotência, que teve a duração de um século, em tudo o que aconteceu no Teatro Goldoni, de Livorno, entre 15 e 21 de janeiro de 1921. Neste momento, um partido por amplíssima maioria controlado não pelo velho leão Filippo Turati, que o fundara havia 29 anos em Gênova, federando um universo múltiplo e magmático de movimentos de luta e libertação humana, mas pelos maximalistas de Serrati e Lazzari (que, de fato, no fim venceriam o congresso), explodiu em razão do diktat — reforçado na tribuna num tom e numa linguagem de inusitada violência pelo búlgaro Kristo Kobakchev — do Komintern exclusivamente funcional à exigência da Rússia dos sovietes de romper a camisa de força do isolamento internacional que as outras potências imperialistas europeias lhe impuseram. Os socialistas italianos não haviam votado os créditos de guerra: já esta particularidade (com muitas outras, na verdade) tornavam-no um unicum no panorama do socialismo europeu do tempo. E o PSI continuaria a ser um caso exemplar durante grande parte da sua história, ainda por muitíssimos anos depois da guerra e da queda do fascismo. Em suma, a extrema dureza com que Kobakchev repetiu o ultimato dos bolcheviques, sintetizado pelos famosos 21 pontos (que partiam da questão principal e decisiva da troca de nome do partido, de socialista para comunista), o desdém que Bordiga dedicou ao congresso (“Vamos embora, companheiros, e levaremos conosco também o nobre passado do socialismo italiano”), a refinada, mas duríssima, catilinária antirreformista pronunciada na tribuna pelo futuro pai da República, Terracini (que poucos anos antes de morrer, em 1982, afirmaria solenemente, no microfone da RAI, que “em 1921 Turati tinha razão”), seguido logo em seguida por outra fundadora do PC da Itália, Camilla Ravera, não são exagerados relidos hoje. Já então o eram.

Os editoriais de L’Ordine nuovo

Precisamente, um dos grandes “focos” da narração de Mauro, que com este livro se confirma como um dos mais lúcidos e eficazes historiadores públicos em circulação, é a dolorida revisitação do íntimo tormento de Antonio Gramsci, o intelectual que em 1917 analisara criticamente no Avanti! a tomada do Palácio de Inverno (“A revolução contra O Capital”) e que, a partir de 1919, preparara a cisão com flamejantes editoriais em L’Ordine nuovo, o jornal nascido em Turim de uma costela do Avanti!, fundado com Angelo Tasca e Palmiro Togliatti. Enquanto este último permanece em Turim, oficialmente para garantir a saída do cotidiano, em Livorno, por toda a duração do congresso, Gramsci, que numa carta a Togliatti de Moscou, de agosto de 1923, chegará a dizer que “a cisão de Livorno (o afastamento da maioria do proletariado italiano em relação à Internacional Comunista) foi sem dúvida o maior triunfo da reação”, está sumido na sombra de um camarote do Goldoni. Não participa da discussão apesar de tê-la orientada por um biênio. O clima inflamado da reunião parece quase intimidá-lo. Evita o confronto com seu antagonista Turati, o adversário que Lenin indicara à facção comunista, o renegado a expulsar do partido junto com toda a corrente dos gradualistas, culpado por haver repelido sem apelação a solução revolucionária. Em todo caso, não teve fins de argumentação a confusão ensandecida em que subitamente se transforma o XVII Congresso do Partido Socialista Italiano, com Serrati a provocar Bombacci com um canivete e o futuro repubblichino de Salò, que terminaria enforcado, e de cabeça para baixo, na praça Loreto com Mussolini, a sacar no seu camarote uma pistola, mostrando-a à plateia dos delegados.

Gramsci é Livorno e Turim

Mas, mesmo sem subir à tribuna dos oradores, Gramsci “é” Livorno, assim como Turim, a cidade da sua educação ideológica e política, com seu proletariado industrial, é a principal “incubadora” da cisão. O capítulo que o piemontês Mauro dedica à narrativa da ex-capital saboiana durante o biênio vermelho é uma espécie de livro no livro, porque contém uma análise não convencional dos fatores pelos quais, entre 1919 e 1921, na Itália — ou pelo menos na sua parte mais avançada — o mito da revolução desarrumou todas as categorias, morais, política, ideológicas, civis, do compromisso moderado no qual se apoiava a Itália saída do Risorgimento. Um compromisso a que, contrariamente ao que sustentará a vulgata por quase um século, Turati — um marxista oitocentista, neopositivista, portanto, com todos os limites desta formação — jamais se resignara verdadeiramente. O sentido real do seu “gradualismo” podia ser encontrado diretamente no Capital, não certamente no revisionismo bernsteiniano nem nos outros socialismos utópicos do final do século XIX. Ainda que não declarado explicitamente pelo autor, este é o último, fundamental “foco” do livro. Aquele que ajuda a explicar o conceito de “maldição” que o título traz.

Questão de método e de mérito

Turati não era um reformista. Não o era pelo menos na acepção negativa que o leninismo dava ao termo. A cisão de Livorno produz-se em torno de uma questão de método que deixa entrever um gigantesco problema de mérito. A divergência revolução vs. reformas não se refere à modalidade de conquista do Palácio por parte do proletariado, ou pelo menos não só a ela, mas ao tipo de sociedade socialista a ser construída. Eram visões inconciliáveis: burocrática, estatolátrica e centralizadora, como em seguida seria na definitiva estruturação staliniana, por uma parte (e Gramsci, na segunda parte da sua vida, dela se afastaria gradual, mas firmemente); democrática, aberta e pluralista, por outra. A partir de 1944, mesmo aprisionado por muitos anos na rede da “dupla fidelidade”, o PCI togliattiano — como argumentou Emanuele Macaluso num ensaio há alguns anos — assumia, sem o declarar, o gradualismo turatiano. Mas, na semana mais trágica da história da esquerda italiana, tal plataforma foi criminalizada, vilipendiada, humilhada. A partir daí, de tal criminalização, de tal vilipêndio, de tal humilhação, Mauro deduz a “desventura” de um País “em que a esquerda não pode chamar-se por seu nome”. Terá razão? Não terá razão? A discussão está aberta.

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Originalmente publicado com o título “Ezio Mauro e a desventura de uma esquerda que não pode chamar-se por seu nome”, em strisciarossa, 12 dez 2020


Caetano Araújo: Ecos da Guatemala

Depois das manifestações massivas no Chile e no Peru, chegou a vez da Guatemala. Milhares de manifestantes saem às ruas do país, num roteiro semelhante aos eventos de 2015, que terminaram com a queda e posterior prisão do então presidente do país. O movimento tem bandeiras claras: combate à corrupção e alocação eficiente dos recursos públicos. O estopim da crise foi a proposta de orçamento, que embute aumento expressivo da dívida pública, em benefício de alguns setores empresariais, com a redução concomitante dos recursos destinados à saúde e à educação. A renúncia do presidente já é discutida abertamente, até nos círculos governistas.

Nas diferentes capitais da América Latina sucedem-se manifestações intermitentes de insatisfação política. Na verdade, todos esses eventos são as manifestações visíveis do mesmo terremoto que opera nas profundezas do subcontinente. Para pensar esse terremoto, podemos usar, a título de hipótese, a expressão “paradoxo da educação mínima”, em analogia com as armadilhas da situação de “renda média”, que anima o debate econômico.

A descrição do paradoxo é simples. Em situações de legalidade democrática e relativa estabilidade econômica, com acesso à informação em tempo real, um pequeno crescimento nos níveis de escolaridade dissemina na população, simultaneamente, a consciência de suas carências e da responsabilidade do Estado pela sua superação. A agenda política que daí resulta tem duas caras: eficiência dos serviços públicos e, para chegar a tanto, aperfeiçoamento das instituições. Na linguagem comum, reforma política e reforma democrática do Estado.

No Brasil, a sequência temporal entre progresso educacional e nova agenda foi clara. A universalização do ensino fundamental entre nós data de fins do século XX e a primeira geração que sofreu o seu impacto foi protagonista das manifestações de 2013. O processo constituinte, em debate no Peru, está acordado no Chile. Na Guatemala, teremos que aguardar os desdobramentos do processo para ter alguma clareza a respeito de seu desfecho provisório.

Não é a primeira vez que países da América Latina partilham o mesmo conjunto de tarefas e desafios históricos. Em anos não muito distantes, a tarefa de pôr fim às ditaduras e reiniciar a ordem democrática foi enfrentada com sucesso, seguida, quase de imediato, pela conquista de algum patamar de estabilidade econômica. Nesses momentos, em consonância com as especificidades históricas de cada país, foram constituídos operadores políticos à altura das demandas da conjuntura.

Hoje, em contraste, as demandas estão claras, para população e para os atores da política, mas o ritmo da política é mais acelerado e os operadores competentes demoram mais a aparecer.

*Sociólogo, diretor da Fundação Astrojildo Pereira


Luiz Werneck Vianna: A hora e vez da esquerda democrática

Somos testemunhas ainda nessas primeiras décadas do século de uma grande transformação apesar de não a sentirmos, tal como no movimento da terra em suas rotações, expressão de Joaquim Nabuco, e já iniciamos, embora ainda tateantes e inconscientes o começo de uma nova era. Contudo, dos anos 1980, de Margareth Thatcher e Ronald Reagan, retomados por Donald Trump no nosso século, foram feitas vigorosas tentativas no sentido de parar a roda da história e fazê-la girar para trás, tanto nos esforços de nos devolver aos nacionalismos outrora semeados pelos estados-nação como em preservar a ideologia produtivista do neoliberalismo. Esse foi um tempo de desmonte de instituições e de direitos, de esvaziamento de organizações internacionais, como a ONU, de tentativas de invalidar a União Europeia (caso do brexit inglês) de depreciação da democracia e de suas formas de representação política, com a ressurgência anacrônica do populismo, inclusive em alguns casos na sua versão fascista.

Vários marcadores denunciam que tais esforços não têm logrado os resultados que deles se esperavam, quer por que se defrontam com obstáculos derivados das suas próprias ações na medida em que edificaram uma sociedade de risco, não só com a proliferação dos artefatos de guerra nuclear como também pela depredação do meio ambiente expondo a sociedade humana a uma sucessão de epidemias letais, quer por que têm encontrado resistência política por parte de partidos, movimentos sociais, especialmente entre os jovens, governos e religiões, como no caso forte da igreja católica.

De outra parte, as desigualdades sociais que se extremam no período neoliberal, expostas na monumental pesquisa do economista Thomas Piketty, esgarçam ainda mais os laços de solidariedade social, numa polarização aberta entre as classes dominantes e os seres subalternos, produzindo conflitos sociais agudos e cada vez mais intensos, particularmente agravados pela questão racial, exemplar na cena atual pelas ruas das grandes cidades americanas e não poucas europeias. E também por aí, numa chave branda de interpretação ao estilo do velho e estimado Durkheim, se infiltram as convicções de que o capitalismo nessa versão vitoriana não reúne mais condições de reprodução – sem base de sustentação em recursos que induzam a solidariedade social as sociedades derruem.

A sociologia e as demais ciências sociais não têm o condão de mudar o curso das coisas no mundo, apenas explicam com diferentes capacidades de persuasão o que se passa nele. O meio idôneo para transformá-lo, como se sabe, pertence ao reino da política que se encontra, no momento atual, diante da oportunidade de romper caminho para uma trajetória alternativa na sucessão presidencial dos EUA ao alcance das mãos em apenas três meses, quando poderá abalar ou mesmo por abaixo este derradeiro pilar neoliberal com a derrota eleitoral de Donald Trump. Na pior hipótese, caso ele triunfe, dadas as expressivas forças que ora se opõem a ele, que seja por meio de uma vitória de Pirro.

Sem a escora da política de Trump, garantia até aqui da reprodução da modelagem neoliberal, o teatro de operações na cena mundial terá diante de si uma bifurcação, categoria a gosto de Piketty, abrindo-se a possibilidade para a imposição de rumos entrevistos no curso das lutas contra a atual pandemia, em particular na valorização das políticas públicas de saúde, claramente percebidas no Reino Unido e no Brasil, dos mecanismos de cooperação internacional e os diversificados movimentos de ação solidária saídos do ventre da sociedade civil, inclusive os originários dos seus setores subalternos, e, muito especialmente, no papel do Estado como lugar de articulação dos esforços em defesa da vida, em que foram exemplares a Nova Zelândia e tantos outros casos nacionais. Tudo isso levado em conta afirmam tendências que importam em viradas de páginas e na percepção de que um novo tempo faz parte do campo das possibilidades em presença.

Sem tal escora ou com seu enfraquecimento, políticas que nela se arrimam, como notoriamente a brasileira, devem experimentar inflexões benévolas no seu curso, a serem exploradas pelas correntes políticas democráticas, a começar pelas sucessões municipais que se investem de um papel estratégico, inclusive em razão do seu desenlace prefigurar o cenário da próxima sucessão presidencial. Nesse sentido, a hora dos partidos é esta, e o que cabe, na contracorrente de uma bibliografia irresponsável que medra por aí, é valorizá-los e procurar influir na composição de suas alianças sem sectarismos e em torno de ideais democráticos. Quanto às candidaturas é essencial conceder representação privilegiada àqueles que se destacaram nas lutas pela defesa da vida da população, como os profissionais da saúde e dos que organizaram os sistemas de cooperação solidária no mundo popular. Além, é claro, de selecionar políticos com credenciais que os identifiquem com a democracia e com os temas relevantes para o mundo popular.

A catástrofe da pandemia que nos assola pôs a nu o caráter patológico da modelagem de sociedades sob hegemonias da ideologia neoliberal, e não por acaso EUA e Brasil lideram o ranking macabro de óbitos, ocupando os dois primeiros lugares. Obviamente que as candidaturas em suas campanhas eleitorais devem estar centradas nos temas que digam respeito às concepções de sociedade e de justiça, traduzidas no plano concreto por enunciados por políticas distributivas e de promoção social. Essa hora tem a cara da esquerda democrática a ressurgir nas ruas e no voto.

*Luiz Werneck Vianna, Sociólogo, Puc-Rio


Ivan Alves Filho: O mais belo filme de Nelson Pereira dos Santos

Diferentemente da literatura, onde o tempo se constrói com palavras, o tempo cinematográfico se apoia nas imagens. O cinema nada mais é do que uma sucessão de imagens. Contudo, essas imagens contam quase sempre uma história. Isso talvez explique as relações existentes entre a literatura e sétima arte, reforçada pelo surgimento do cinema sonoro, que tem na palavra um dos seus pontos de sustentação (sendo os outros a música e os ruídos).

É provável que a adaptação para o cinema de alguns romances populares visasse, sobretudo, a explorar uma trilha já conhecida do grande público. Não há nada de negativo nisso, desde que a obra original tenha sua qualidade estética preservada. Autores como Shakespeare, Victor Hugo, Alexandre Dumas e Dostoiévski foram esplendidamente adaptados para as telas. A mesma tendência se verificou no Brasil e escritores consagrados como Machado de Assis, Graciliano Ramos, Jorge Amado e Guimarães Rosa foram fartamente explorados por alguns dos nossos melhores cineastas.

De todos eles, aquele que melhor se saiu nesse trabalho foi sem dúvida Nelson Pereira dos Santos. A ponto de ser o primeiro cineasta a integrar a Academia Brasileira de Letras, justamente por seu talento em adaptar alguns dos nosso clássicos, como Vidas secas e Tenda dos Milagres, obras-primas, respectivamente, do alagoano Graciliano Ramos e do baiano Jorge Amado.

Nascido em São Paulo, em 1928, Nelson Pereira dos Santos se radicou desde jovem no Rio de Janeiro, então capital do país, onde se destacaria como o fundador de um dos maiores movimentos culturais do nosso tempo,  o Cinema Novo. Antenado com o que havia de mais avançado na cinematografia mundial (em particular o Neorrealismo italiano e a Nouvelle Vague francesa), Nelson colocou o Brasil para dialogar em pé de igualdade com as grandes vanguardas internacionais. Pode-se dizer que a irrupção das massas no século XX se deu não apenas o plano da política mas também no terreno das artes, em particular o cinema, dinâmico por natureza. Como a própria vida urbana, aliás.

Criado na década de 50, o Cinema Novo ganharia impulso no início dos anos 60, quando desponta toda uma geração de jovens e talentosos cineastas - além do Nelson, poderíamos citar Glauber Rocha, Leon Hirszman, Cacá Diegues e Joaquim Pedro de Andrade, entre outros.

Convém destacar que Nelson Pereira dos Santos, membro do Partido Comunista Brasileiro, ao qual aderira ainda na juventude, filmou Rio, 40 graus com apenas 26 anos de idade, revelando já nessa obra datada de 1955 um compromisso inabalável com as lutas sociais do povo brasileiro, retratando a realidade de uma favela carioca. O interessante neste filme é que ele adotava um ponto de vista resolutamente urbano, quando sabemos que mais tarde o Cinema Novo enveredaria pelo caminho da roça, em busca do Brasil profundo. Ao que tudo indica, para a maior parte dos nossos diretores, é como se o mundo agrário, por ser mais tradicional, fosse automaticamente mais autêntico, em contraposição a um espaço urbano mais cosmopolita e, portanto, permeável às chamadas influências externas. Nunca é demais lembrar que aqueles eram os tempos das Ligas Camponesas e da guerrilha de Sierra Maestra, com destaque para a questão agrária na América Latina em geral. Formado no PCB, Nelson tinha uma visão mais moderna, se podemos dizer assim, da realidade da época.

Se fôssemos transportá-lo para a realidade russa do início do século XX, nada tinha de um narodnik, por exemplo. De qualquer modo, até o advento do Cinema Novo, a produção brasileira limitava-se, praticamente, a revelar despretensiosas chanchadas, um gênero cômico sem maiores compromissos com a realidade social e política do país.Talvez - e colocamos isso aqui como uma hipótese, naturalmente - Nelson, como artista extremamente sensível que era, já sentia soprar os novos ventos do desenvolvimentismo e da industrialização que Juscelino Kubitschek imprimiria a seu governo. Afinal, naquele mesmo ano de 1955 se daria a eleição de JK, empossado no ano seguinte. Seu Plano de Metas - para o qual colaborariam Celso Furtado e Ignácio Rangel, respeitados economistas - colocaria o Brasil nos trilhos da democracia com arranque econômico. Era um período privilegiado para a nação brasileira. Inversamente, ao ser submetido à rigorosa censura estabelecida pelos sucessivos governos militares pós-64 e cada vez mais fraccionado por disputas internas, o Cinema Novo perde boa parte da sua influência cultural.

De toda forma, devemos ao Cinema Novo toda uma série de experimentos formais, os quais almejavam, ao mesmo tempo, uma linguagem nacional e uma abertura a práticas artísticas criativas internacionais. é que a Arte, muitas vezes, se equilibra em um fio de navalha. É sempre difícil encontrar o tom exato para se provocar uma determinada emoção estética. Mas esse é, justamente, o território das obras clássicas e dos grandes movimentos culturais. E o termo clássico talvez não englobe tanto o que se passou e,sim, tudo aquilo que é de fato contemporâneo, que interpela sempre o tempo presente.

Mas Nelson Pereira tampouco esqueceria dos nossos sertões, ao adaptar para as telas do cinema, e 1963, o clássico  Vidas secas, de Graciliano Ramos, também ele militante do PCB. Da colonização do Brasil - que retrataria em Como era gostoso o meu francês, em 1971 - à força da cultura afro-brasileira - examinada em O amuleto de Ogun, três anos depois -, Nelson fez do Brasil e de seu povo o protagonista de seu extraordinário trabalho. Acontece que a vida nunca é oito ou oitenta - daí Mark Twain ter escrito certa vez que preferia "o Paraíso pelo clima e o inferno pela companhia".

Aqui, um rápido depoimento pessoal. Eu conheci Nelson Pereira dos Santos em 1973, na casa do meu querido amigo Antonio Luiz Soares, diretor de fotografia e que trabalharia com o diretor de Memórias do cárcere pela vida afora. Homem afável, extremamente acessível, Nelson não parecia ter aquela importância toda. A vida foi me ensinando que essa era uma característica de todas as pessoas que realmente contam. O mesmo talvez não possa ser dito dos medíocres. Desde então, fui mantendo contatos esporádicos com ele, por vezes em presença de Francisco Inácio de Almeida - seu amigo desde a época em que colaborou com as locações de Vidas secas no sertão nordestino - e Vladimir Carvalho - a quem Nelson tanto admirava, facultando-lhe, por exemplo, o cinema da ABL para a estreia do estupendo O engenho de Zé Lins, estreia essa à qual tive a honra de comparecer. De uma forma ou de outra, sempre permanecemos em contato. Até que fiz ao Nelson um pedido. Qual seja, se ele concordaria que eu realizasse um documentário sobre sua vida e seu trabalho. Isso implicaria relatar sua passagem pelo Partido Comunista Brasileiro, sua entrada para o cinema, sua atividade como jornalista, seus problemas com a polícia política, sua luta contra a censura e os absurdos perpetrados pela ditadura militar.  A resposta foi positiva e começamos a filmar, na própria Academia Brasileira de Letras, Rodolpho Vilanova e eu. Intitulado Memórias do cinema, o documentário foi lançado pela Fundação Astrojildo Pereira em 2010, no quadro da série Brasileiros e Militantes. Ao revê-lo, poucos dias depois do seu falecimento, não pude deixar de me emocionar.

Nelson foi diretor, roteirista, montador, ator e professor. Impossível escrever a história do cinema sem ele. Esteve sempre entre aqueles que souberam cruzar a linha imaginária que iluminam nossos caminhos de beleza. Um clássico eternamente atual. O artista é a sua obra? É preciso ou não estabelecer uma linha de  demarcação entre o homem e aquilo que ele cria? Onde começa um e acaba o outro? Até que ponto, enfim, a arte é uma realidade à parte? Provavelmente, essas perguntas jamais serão respondidas. Ou terão respostas plenamente satisfatórias. Porém, uma coisa é certa: vida e obra se confundem a tal ponto na trajetória de Nelson Pereira dos Santos que que eu não hesitaria em dizer que transformou sua própria existência no mais belo filme que poderia realizar.

Artista fronteiriço, destes que combinam erudição e técnica popular, mestre absoluto da sua linguagem e do seu ofício, Nelson Pereira dos Santos foi, ao lado de Oscar Niemeyer, Heitor Villa-Lobos, Celso Furtado, Milton Santos, Tom Jobim e Ferreira Gullar, um dos ícones da cultura brasileira ao redor do mundo. O mergulho que operou na alma nacional marcou como poucos a nossa cultura e dele já sentimos saudades desde já.


Cláudio de Oliveira: A Revolução Russa e o fascismo

A Revolução de Novembro de 1917 na Rússia e a de Novembro de 1918 na Alemanha aprofundaram a divisão dos militantes socialistas em duas correntes principais: o movimento comunista e a social-democracia. Para Palmiro Togliatti, líder do Partido Comunista Italiano, tal divisão facilitou a vitória do fascismo em vários países e especialmente do nazismo na Alemanha [1]. A tomada de poder em novembro de 1917 foi uma ação excludente realizada pelos bolcheviques. Eles derrubaram o governo provisório de Alexander Kerensky, formado pelo Partido Trabalhista (trudovique) em aliança com o Partido Socialista Revolucionário (SR), o Partido Constitucional Democrático (cadetes) e os mencheviques do Partido Operário Social Democrata Russo.

Vladimir Lenin, líder bolchevique, criticava a repressão do governo provisório aos seus partidários após promoverem, em julho daquele ano, uma tentativa de insurreição. Ao mesmo tempo, acusava Kerensky de não agir com firmeza contra o general monarquista Lavr Kornilov, que tentara um golpe de Estado em setembro. Lenin argumentava que o general Kornilov estaria na iminência de tentar outro golpe e por isso os bolchevique agiram [2].

Lenin refutara não só um governo em aliança com liberais. Recusara também um governo de frente popular, de união de todas as correntes socialistas russas, proposto pelo menchevique Julius Martov, no dia seguinte ao levante. Martov avaliava que um governo conjunto de bolcheviques, trudoviques, mencheviques e SRs teria força suficiente para enfrentar a contrarrevolução kornilovista e evitar a guerra civil [3].

Lenin montou um governo quase que exclusivamente formado pelos bolcheviques, concedendo dois ministérios sem importância à ala esquerda dos SRs. Manteve as eleições para a Assembleia Constituinte, anteriormente convocadas por Kerensky. Porém, os bolcheviques ficaram em minoria ao obterem 24% dos votos, contra 40% dados aos SR, 5% aos cadetes e 3% aos mencheviques. Dissolveram a assembleia, baniram os demais partidos e instituíram um sistema unipartidário, dominado pelo que viria a ser o Partido Comunista da União Soviética.

Segundo o historiador Eric Hobsbawm, havia entre as correntes socialistas moderadas da Europa boa vontade com o novo governo soviético. Os socialistas avaliavam que os bolcheviques eram a única força política capaz de organizar o caos na Rússia e que poderiam realizar uma política democrática e progressista. Todavia, retiraram-lhe o apoio quando Lenin decidiu fundar, em 1919, a Internacional Comunista em oposição à Internacional Socialista e incentivar a dissidência das alas radicais dos partidos socialistas para fundar os partidos comunistas [4].

Ao organizarem a insurreição na Rússia, Lenin e seus partidários partiam do pressuposto de que havia uma situação revolucionária em toda a Europa, com a crise provocada pela I Guerra Mundial. Entendiam a revolução na Rússia como a fagulha que detonaria um rastilho de pólvora por todo o continente. Para Lenin, a sobrevivência do novo poder soviético dependia da realização da revolução mundial. Como os bolcheviques acreditavam que os partidos socialistas havia abandonado o caminho revolucionário, organizaram a Internacional Comunista. Tentaram exportar a experiência da revolução soviética para a Polônia, Hungria e Alemanha, mas foram derrotados. Diante do fracasso, em 1925, Nikolai Bukharin passou a formular a possibilidade de construção do socialismo em um só país, afinal implementada por Josef Stalin.

A Revolução Alemã de 1918

Os bolcheviques, que passaram a se denominar de comunistas, creditaram o fracasso da revolução mundial aos socialistas moderados, em especial ao Partido Social Democrata Alemão (SPD, na sigla em alemão). Ocorre que os social-democratas alemães avaliavam que a realidade de seu país era diferente da situação da Rússia, país predominantemente agrário, de uma burguesia industrial sem forças econômica e política e de instituições frágeis. Já a Alemanha tornara-se, já em 1900, o país de maior produção industrial do mundo, com uma burguesia organizada e poderosa. Mesmo que o numeroso proletariado alemão também estivesse bem organizado, apoiado nos sindicatos e no SPD, àquela altura o maior partido do país, qualquer tentativa de tomada de poder em moldes bolcheviques esbarraria na resistência do forte Exército alemão, com apoio do grande empresariado.

Diante desse fato, o SPD optou por uma estratégia reformista de acúmulo de forças dentro da democracia representativa. A ação da social-democracia alemã teria mais a ver com o que Antônio Gramsci, dirigente do PCI, chamaria mais tarde de “guerra de posições” do que de “guerra de movimento”, implementada pelos bolcheviques. Ademais, teóricos social-democratas, como Karl Kautsky, estavam convencidos de que o exercício do poder pelos socialistas deveria ser necessariamente democrático, em um ambiente de regime parlamentar e pluripartidário. E para democratizar o país, os dirigentes socialistas estavam convencidos da necessidade de aliança com os partidos democrático-liberais centristas.

O SPD liderou a Revolução Alemã de Novembro de 1918. Com a derrota para a França na I Guerra Mundial, o Kaiser Guilherme II foi forçado a abdicar e a República foi proclamada. O social-democrata Friedrich Ebert foi nomeado chanceler (primeiro-ministro) e foram convocadas eleições à Assembleia Constituinte para 19 de janeiro de 1919.

Pela primeira vez, as mulheres alemãs tiveram o direito ao sufrágio. O SPD foi vitorioso com 37,9% dos votos; o Partido de Centro Católico, aliado do SPD, conquistou o segundo lugar, com 19,7%; o Partido Democrático Alemão (DDP, sigla em alemão), de liberais de esquerda e também aliado dos social-democratas, ficou em terceiro, com 18,5%. O Partido Popular Nacional Alema?o, de oposição de extrema-direita, alcançou o quarto lugar, com 10,3%; e o Partido Independente Social Democrata Alemão (USPD, sigla em alemão), de dissidentes de esquerda do SPD e que viria a se unir ao social-democratas, ficou em quinto, com 7,6%. Em 11 de agosto de 1919 foi promulgada a chamada Constituição de Weimar, a primeira da Europa a instituir direitos sociais. Iniciava-se assim a República de Weimar.

Contrário ao caminho reformista, democrático e parlamentar do SPD, o Partido Comunista da Alemanha (KPD, sigla em alemão), fundado em dezembro de 1918, adotou posições de extrema-esquerda e decidiu boicotar a eleição à Constituinte, apesar de seus dois principais líderes, Karl Liebknecht e Rosa Luxemburg, defenderem a participação no pleito. Em 5 de janeiro de 1919, o KPD promoveu um levante armado em Munique, numa tentativa de instaurar uma república soviética na Baviera. Os comunistas foram reprimidos pelo governo de Friedrich Ebert. As forças oficiais contaram com ajuda de um grupo paramilitar de nacionalistas de extrema-direita, as Freikorps, que, em Berlim, foram responsabilizados pelos assassinatos de Karl Liebknecht e Rosa Luxemburg, marcando de forma definitiva os ressentimentos entre comunistas e social-democratas na Alemanha. Mas, o ultraesquerdismo do KPD foi criticado até mesmo por radicais como Lenin, em sua obra Esquerdismo, doença infantil do comunismo, de 1920.

A teoria do “social-fascismo”

Lenin morreu em 1924 e a Internacional Comunista, presidida por Grigori Zinoviev, adotou uma política ziguezagueante. No início, chegou a defender a unidade das correntes socialistas contra o fascismo. Porém, a partir de julho de 1928, a teoria do “social-fascismo” prevaleceu na IC e na maioria dos PCs. Em 1924, Zinoviev havia definido a social-democracia como a “ala esquerda do fascismo”. Stalin chegou a escrever que o fascismo e a social-democracia não eram inimigos, mas irmãos gêmeos. Na sua visão, a social-democracia era até mais perigosa, pois enquanto o primeiro queria a “ditadura aberta da burguesia”, a segunda iludia a classe operária e a desviava do caminho da revolução. Para a IC, a social-democracia era agora o principal inimigo a combater.

A República de Weimar vivia grande instabilidade política decorrente de suas dificuldades econômicas. O Tratado de Versalhes, de 1919, que selou a rendição da Alemanha na I Guerra, dificultou a reconstrução do país ao exigir pesadas reparações. O governo alemão, para fazer frente aos gastos, imprimia dinheiro sem contenção, o que levou à histórica hiperinflação de 1923. Depois de uma recuperação com ajuda de empréstimos dos Estados Unidos e do Reino Unido, a crise de 1929 jogou Alemanha na Grande Depressão e provocou o desemprego de milhões de trabalhadores.

Durante todo o período, de 1918 a 1933, os governos da coalizão de Weimar, formados pelo SPD, Centro Católico e DDP, sofreram dura oposição dos extremos do espectro político: na extrema-direita, o Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores (NSDAP, sigla em alemão), mais conhecido como Partido Nazista; na extrema-esquerda, os comunistas do KPD. Com a crise, ambos os partidos experimentaram uma trajetória ascendente, enquanto os partidos situados entre os polos perdiam representação no parlamento. O social-democrata Friedrich Ebert, eleito presidente da República em 1919, morreu em 1925. Para o seu lugar, se elegeu o marechal Paul von Hindenburg.

O ponto crítico que determinou o fim da República de Weimar foram as eleições parlamentares de 1932. Na eleição de julho, o Partido Nazista ficou em primeiro lugar com 37,3% dos votos; o SPD em segundo, com 21,6%; o KPD em terceiro, com 14,3%; e o Centro Católico em quarto, com 12,4%. Sob a influência da teoria do “social-fascismo”, os comunistas alemães se recusaram a formar um governo com o SPD e o Centro Católico. Sem que os partidos democráticos conseguissem formar uma maioria e, assim, um novo governo, nova eleição foi convocada para novembro, com resultados semelhantes: Partido Nazista, 33,1% dos votos; SPD, 20,4%; KPD, 16,9%; Centro Católico, 11,9%. Mais uma vez o KPD se recusou a formar um gabinete com os social-democratas e os liberais. Diante do impasse, pressionado pelos partidos de direita, o presidente von Hindenburg nomeou chanceler da Alemanha o líder do partido mais votado, o nazista Adolf Hitler, em 30 de janeiro de 1933. Menos de um mês depois, o parlamento alemão foi incendiado. Hitler culpou os comunistas, decretou Estado de emergência, colocou o KPD na ilegalidade e aprovou uma lei que lhe conferiu plenos poderes. Em seguida, os demais partidos foram proscritos, à exceção do nazista. A tragédia estava consumada: era o fim da República de Weimar.

A política de frentes antifascistas

Na Itália, os comunistas tomaram direção oposta à dos alemães. Fundado em 1921, a partir da ala radical do PSI, o PCI logo cedo afastou as alas de extrema-esquerda do partido. Em 1926, no seu III Congresso, o ultra-esquerdista Amadeo Bordiga foi destituído da chefia e os moderados, representados, entre outros, por Gramsci e Togliatti, passaram a liderar o partido. O jornal fundado ainda em 1924 por proposição de Gramsci, intitulado L’ Unità (A Unidade), não deixava dúvidas quanto aos objetivos dos novos dirigentes: a união das forças democráticas contra Benito Mussolini, do Partido Nacional Fascista, nomeado primeiro-ministro pelo rei Vittorio Emanuel III, em outubro de 1922. O regime ditatorial e repressivo de Mussolini inspirou Hitler a organizar o nazismo na Alemanha, a partir de 1933.

Togliatti será um dos grandes defensores das frentes antifascistas. Enquanto as frentes populares eram compostas exclusivamente pela esquerda, a frente antifascista na Itália passou a ter um caráter de frente democrática: da resistência participaram não só comunistas e socialistas, como também liberais e católicos. Vários deles, membros da baixa hierarquia da Igreja, se afastaram das posições políticas da cúpula do Vaticano, simpática a Mussolini. Em 1929, o “Duce” assinou o Tratado de Latrão, dando à Santa Sé a soberania sobre o Estado do Vaticano e estabelecendo o catolicismo como religião oficial da Itália, condição que perdurou até 1978.

Em fins de 1932, o PC francês, liderado por Maurice Thorez, aceitou se reunir com os socialistas franceses para debater uma frente única. A IC criticou os comunistas franceses por se sentarem com um “social-traidor”. Apesar da oposição da IC, em julho de 1934, a Frente Popular da França se constituiu como uma forte aliança entre o PS, o PC e outros setores democráticos. Vitoriosa na eleição de maio de 1936, indicou o socialista Leon Blum como primeiro-ministro. Em 19 de fevereiro de 1933, a Internacional Socialista apelou à IC para a organização de frentes únicas contra o fascismo por todo o mundo [5]. Mas somente dois anos depois, em seu VII Congresso, de agosto de 1935, a IC apoiará a proposta, quando Togliatti, Thorez e o líder do PC búlgaro, Georgi Dimitrov, convenceram Stalin da necessidade de amplas alianças contra o fascismo.

Todavia, em agosto de 1939, a unidade entre comunistas, socialistas, social-democratas e liberal-democratas ficou a abalada com a divulgação do Pacto Molotov-Ribbentrop, um acordo de não-agressão entre a Alemanha nazista e a União Soviética. Em 1º de setembro, a Polônia foi invadida pelo lado ocidental pelos nazistas e a 17 de setembro pelo lado oriental pelos soviéticos. O Reino Unido e a França declararam guerra à Alemanha. Em junho de 1941, Hitler rompeu o acordo e invadiu a União Soviética. Nesse mesmo ano, após o bombardeio do Porto de Pearl Harbor pelo Japão, os Estados Unidos entraram na II Guerra Mundial. Formou-se então a ponderosa coligação dos aliados liderada pelos “três grandes”: os Estados Unidos, presididos pelo social-democrata Franklin Roosevelt; o Reino Unido, do primeiro-ministro e liberal-democrata Winston Churchill; e a comunista União Soviética, que terá papel decisivo na derrota do nazi-fascismo, porém com o custo altíssimo do sacrifício da vida de 24 milhões de cidadãos soviéticos, entre militares e civis.

O abandono da política antifascista

Após a vitória, pelo acordo para a formação das frentes únicas, seriam constituídos governos pluripartidários das forças antifascistas. Na economia, deveriam vigorar economias mistas, sendo nacionalizados apenas alguns setores estratégicos. Assim, na Europa oriental, os comunistas se comprometiam não com “ditaduras do proletariado”, mas com o estabelecimento de “democracias populares”, de governos pluripartidários das frentes antifascistas.

Mas, em 1947, com o início da confrontação da Guerra Fria, que opôs os EUA e a URSS na arena mundial, a política antifascista foi abandonada. Naquele ano, na Itália, a Democracia-Cristã, liderada pelo primeiro-ministro Alcide De Gasperi, excluiu o PCI e o PSI do governo. No Leste, Stalin obrigou a fusão dos PSs aos PCs, com as novas organizações sob o controle dos comunistas: na Alemanha oriental, o SPD foi obrigado a se fundir ao PC, surgindo o Partido Socialista Unificado da Alemanha. Na Polônia, o Partido Socialista se juntou-se ao Partido Operário, comunista, nascendo o Partido Operário Unificado da Polônia. Na Hungria, a fusão do Partido Social Democrata com o PC resultou no Partido dos Trabalhadores Húngaros. Os liberais passaram a ser perseguidos; os social-democratas, socialistas e comunistas que se opuseram à unificação forçada de seus partidos foram perseguidos, presos, fuzilados ou exilados. Em 1951, na Tchecoslováquia, onze membros do Comitê Central do PC tcheco que resistiram às ordens de Stalin foram executados, entre eles, o seu secretário-geral, Rudolf Slánský. Em alguns lugares, os stalinistas colocaram comunistas para dirigir partidos aliados e manter um multipartidarismo de fachada. Na Romênia, usaram de corrupção para subornar líderes partidários aliados a se submeterem ao comando do PC [6].

Toda tentativa de saída do isolamento político e de abertura a uma economia mista foi reprimida pelos soviéticos. Mesmo com a desestalinização, após a publicação do relatório de Nikita Kruchev, de fevereiro de 1956, no qual o novo líder do PCUS denunciava os assassinatos de Stalin, a repressão continuou. Em novembro de 1956, a Hungria foi invadida pela União Soviética e o primeiro-ministro, o comunista reformista Imre Nagy, deposto. Em 1958, depois de um julgamento secreto, Nagy foi condenado à forca e executado. Na Tchecoslováquia, a chamada Primavera de Praga de 1968, de democratização do socialismo e de abertura econômica, também foi reprimida pelas tanques soviéticos. Um dos atos do líder do PC tcheco, Alexander Dub?ek, que mais irritou a URSS foi o acordo de cooperação econômica assinado com o então ministro das relações exteriores da Alemanha ocidental, o social-democrata Willy Brandt [7].

Mais tarde, em 1987, o último líder soviético, Mikhail Gorbachev, reconhecerá que a URSS errou ao incentivar a confrontação da Guerra Fria, levando a inúmeros conflitos regionais e a um clima de anticomunismo no Ocidente, em vez de apostar na negociação e em alianças políticas capazes de isolar as forças reacionárias e belicistas e favorecer a um clima de livre debate de ideias em todo mundo. Segundo Gorbachev, a mentalidade de confrontação levou a União Soviética a pensar mais em soluções militares, obrigando o país a investir pesadamente no orçamento bélico e na corrida armamentista, tirando recursos para o desenvolvimento econômico e tecnológico do país e para o bem-estar do seu povo [8]. Suas tentativas de reformar o sistema soviético não prosperaram. Gorbatchev foi derrubado por um golpe de Estado organizado pelos comunistas presos à tradição bolchevique, precipitando o esgotamento da experiência iniciada com a Revolução de Novembro de 1917 e o colapso da URSS, em 1991.

Curiosamente, na Itália, o PCI foi dos poucos a perseverar na política de frente antifascista no pós-guerra. Mesmo fora do governo em 1947, Togliatti manteve o diálogo com a DC na Assembleia Constituinte, com o objetivo de finalizar a Constituição democrática da Itália, em 1948. Quando os comunistas foram excomungados pelo Papa Pio XII, Togliatti manteve a mão estendida à Igreja Católica, traduziu e publicou o livro Tratado sobre a tolerância, obra de François-Marie Arouet Voltaire, de 1763. A permanente abertura ao entendimento permitiu que, posteriormente, com o Concílio Vaticano II, iniciado em 1962 pelo Papa João XXIII, jovens católicos de esquerda se filiassem ao PCI. Quando então se discutiu a possiblidade de formação de uma coalizão entre a DC e o PSI, Togliatti afirmou que o PCI apoiaria tal governo, mesmo estando fora dele.

Na década de 1970, Enrico Berlinguer, um dos sucessores de Togliatti, morto em 1964, proporá ao primeiro-ministro democrata-cristão Aldo Moro um governo conjunto do PCI, da DC e do PSI. O chamado “compromisso histórico” contou com a simpatia de Moro, sequestrado e assassinado em 1978 pelas Brigadas Vermelhas, grupo terrorista de extrema-esquerda. No parlamento italiano, uma comissão criada para investigar o caso levantou suspeitas de infiltração nas Brigadas Vermelhas de membros da Gladio, organização de apoio aos serviços secretos, com o objetivo de evitar a participação dos comunistas no governo da Itália, país membro da Organização do Tratado do Atlântico Norte, Otan, a aliança militar ocidental. Com o fim da experiência do socialismo soviético, o PCI se constituiu no hoje Partido Democrático, absorvendo remanescentes do PSI e da ala social-reformista da DC. Atualmente o PD governa a Itália em meio a uma onda de ressurgência da extrema-direita na Europa. Não por acaso, um dos textos mais conhecidos de Togliatti, escrito em 1935, tem exatamente o título de Lições sobre o fascismo.

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Cláudio de Oliveira é jornalista e cartunista.

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Notas

[1] Mondaini, Marco. Do stalinismo à democracia. Palmiro Togliatti e a construção da via italiana ao socialismo. 1. ed. Rio de Janeiro: Fundação Astrojildo Pereira e Contraponto Editora, 2011.

[2] FIGES, Orlando. A tragédia de um povo. A Revolução Russa 1891-1924. Rio de Janeiro: Record, 1999.

[3] GETZLER, Israel. Martov – A Political Biography of a Russian Social Democrat. Cambridge Univesity Press/ Melbourne University Press, 2003.

[4] Hobsbawm, Eric. A era dos extremos. O breve século XX. 1. ed. São Paulo: Companhia de Letras, 1995.

[5] CARONE, Edgar. Brasil, anos de crise, 1930-1945. São Paulo: Ática, 1991.

[6] PERALVA, Osvaldo. O Retrato. São Paulo: Publifolha, 2015.

[7] Tchecoslováquia - Revista Civilização Brasileira. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968.

[8] GORBATCHEV, Mikhail. Perestroika, novas ideias para o meu país e o mundo. São Paulo: Best Seller, 1987.