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Ocidente tem dever moral de apoiar protestos no Irã

Made for Minds*

Não é possível contar sobre as décadas de lutas da sociedade civil iraniana sem destacar a excepcional contribuição que as mulheres deram – e seguem dando. Há mais de 40 anos, elas são o maior grupo reprimido, discriminado e humilhado do Irã. Ao mesmo tempo, foram as primeiras a se defender corajosamente contra a liderança da Revolução Islâmica, enquanto intelectuais e políticos do sexo masculino se calavam.

Quase quatro décadas transcorreram dessa maneira, até que, em 2017-2018, manifestações públicas isoladas pela primeira vez colocaram em questão a legitimidade do regime islâmico. O que se presencia agora, contudo, é inédito, nessa forma: é a confrontação unida da população civil contra os mulás no poder. A morte de Jina Mahsa Amini bate de volta no sistema como um bumerangue, o protesto une todos os grupos até então empurrados para as margens e retorna à origem do descontentamento: a libertação das mulheres no Irã.

E agora é hora de o Ocidente falar em linguagem clara. Invólucros verbais vazios, exigências diplomáticas ou advertências frouxas não bastam, nem de longe. Nunca bastaram, mas agora estamos numa encruzilhada: a comunidade internacional precisa se colocar do lado da população iraniana com toda força, ameaçando com consequências rigorosas. Se necessário, com a suspensão das negociações sobre o programa nuclear de Teerã.

Ocidente trata Irã com luvas de pelica

Os governantes iranianos nunca empregaram uma linguagem civilizada de conciliação e moderação, e não levam a sério quem a emprega. Eles não têm medo de sanções simbólicas, aguentaram até mesmo um embargo de petróleo. Continuando-se a confrontá-los apenas com simbolismo, eles não hesitarão nem um momento em seguir matando para se manter no poder.

Eles sabem que, depois de um certo tempo, a real política de muitos países voltará a entrar em contato para negociar. Eles interpretam como um presente os longos anos de contemporização do Ocidente contra a expansão no Oriente Médio. O Irã não recua diante de operações de terror estatal em todo o mundo, em especial em países europeus. Os detentores de poder do Irã veem como seu "privilégio especial" poder ameaçar a existência de Israel e a falta de reação resultante.

O fato é que, em comparação com a Líbia de Muammar Kaddafi, o Iraque de Saddam Hussein e a Síria de Bashar al Assad, o Ocidente tem tratado com luvas de pelica o Irã de Ali Khamenei. Isso deixou a República Islâmica tão atrevida, que ela se permite continuar despreocupada com o massacre de seus próprios cidadãos.

O único ponto vulnerável do regime iraniano

No entanto, a República Islâmica teme que seu dossiê retorne a consideração perante o Conselho de Segurança da ONU. Recentemente, a Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA) constatou que o Teerã não está disposto a prestar contas sobre seu programa nuclear e os vestígios de urânio enriquecido em três locais do país. Paralelamente, já há meses o regime brinca de gato-e-rato em suas negociações com o Ocidente, a fim de ganhar tempo para construir a bomba atômica.

O Ocidente teria razões mais do que suficientes para detonar as negociações com o Irã e iniciar o processo para retomada das sanções das Nações Unidas, o assim chamado "snapback". Essa seria a única mensagem que Teerã é capaz de entender e temer. Só assim não seria sufocda no berço a revolta civil do povo iraniano, com as mulheres no front avançado. Só sob esse tipo de pressão, o supremo líder religioso Ali Khamenei ordenaria o fim do assassinato dos manifestantes.

O mesmo se aplica ao atual presidente, Ebrahim Raisi: ele certamente não ousaria mandar mais uma vez executar milhares de presos em pouquíssimo tempo, como fez em meados de 1988.

O regime dos mulás em Teerã deve se sentir encurralado pelo mundo. Senão, o que ficará na memória das iranianas e iranianos será só o silêncio internacional e a cumplicidade tácita do Ocidente. Isso seria irresponsável. Não: seria imperdoável.

Behnam Bavandpour é jornalista da DW. O texto reflete a opinião pessoal do autor, não necessariamente da DW.

Texto publicado originalmente no Made for Minds.


Eleições 2022 escrita na urna eletrônica | Imagem: Gustavo Preiss/Shutterstock

Revista online | Ressentimento e reação conservadora: sobre eleição histórica

Mayra Goulart*, especial para a revista Política Democrática online (46ª edição: agosto/2022)

Toda eleição presidencial é histórica, todavia, não na mesma proporção, na medida em que algumas sobressaem como marcos de rupturas que permitem o início de novos ciclos. Foi o caso da eleição de 1989, a primeira depois da redemocratização. A eleição de 1994 também foi histórica ao encerrar um ciclo de instabilidades econômicas, com a consolidação do Plano Real, e políticas dando início a um novo padrão de organização das preferências e identidades partidárias no país.

Neste pleito, concorreram Fernando Henrique Cardoso (FHC), ex-ministro da Fazenda e renomado professor de Sociologia da Universidade de São Paulo (USP), e o líder sindical Luís Inácio Lula da Silva. FHC concorreu pelo Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB), representando um projeto social-liberal que priorizava a estabilidade econômica e a rentabilidade dos investimentos financeiros como estratégia para o desenvolvimento e para a modernização do país.

Veja todos os artigos desta edição da revista Política Democrática online

Tal projeto, assim como o PSDB, representava identidades e interesses de eleitores que se identificavam com as camadas médias e altas, cujo ideal de sociedade se estruturava a partir dos princípios da meritocracia e da liberdade econômica. Lula concorreu pelo Partido dos Trabalhadores (PT), representando um projeto igualitário-democrático que envolvia, em termos prioritários, a redução da miséria e a inclusão das minorias demográficas e não demográficas.

Os pleitos de 1998, 2002, 2006 e 2010 se inserem nos marcos do ciclo iniciado em 1994 e foram organizados por esta polarização entre duas forças situadas em posições relativamente próximas ao centro do espectro ideológico. Em outros termos, o sistema político brasileiro de 1994 a 2010 se organizou em torno da polarização entre duas alternativas de centro: (a) uma mais à esquerda,  cujos eleitores foram progressivamente assumindo uma feição popular, reunindo os espectros menos favorecidos da sociedade em termos econômicos e simbólicos, atraídos pelas iniciativas distribuição de renda / fortalecimento do salário mínimo e pelos programas de ação afirmativa voltados às minorias implementados ao longo dos governos petistas; e (b) outra mais à direita, que tinha em seu eleitorado as camadas médias e aquelas que se identificavam com as administrações tucanas, atraídos por um discurso de liberdade econômica com responsabilidade social o que envolvia o respeito às minorias e aos direitos civis.

PT e PSDB, portanto, representam projetos de modernização que de um jeito ou de outro passam pela dissolução dos grilhões que nos atrelam a um passado patriarcal, refratário à pluralidade e incompatível com a consolidação da institucionalidade democrático-liberal erguida pela Constituição de 1988, resultante do fechamento do ciclo autoritário civil-militar (1964-1985) que lhe precedera.

Veja, a seguir, galeria de imagens

Brasil em defesa da democracia | Foto: Joa Souza/Shutterstock
Constituição de 1988 | Imagem: Appreciate/Shutterstock
Eleições 2022 escrita na urna eletrônica | Imagem: Gustavo Preiss/Shutterstock
Fernando Henrique Cardoso em momento de fala | Foto: JFDIORIO/Shutterstock
Lula com semblante sério e apreensivo | Foto: Isaac Fontana/Shutterstock
Plano real economia Brasil | Imagem: rafapress/Shutterstock
Símbolo da democracia | Imagem: Lightspring/Shutterstock
Em defesa da democracia estampado na bandeira do Brasil | Foto: ThalesAntonio/Shutterstock
Bolsonaro durante reunião com empresários no Rio de Janeiro | Foto: Antonio Scorza/ Shutterstock
Brasil em defesa da democracia
Constituição de 1988
Eleições 2022 escrita na urna eletrônica
Fernando Henrique Cardoso em momento de fala
Lula com semblante sério e apreensivo
Plano real economia Brasil
Símbolo da democracia
Em defesa da democracia estampado na bandeira do Brasil
Bolsonaro durante reunião com empresários no Rio de Janeiro
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Não obstante, durante esse ciclo, aqueles segmentos sociais que de alguma maneira não se identificavam com essa ideia de modernização, cujos conteúdos ético-morais feriam sensibilidades conservadoras, foram acumulando um conjunto de mágoas e ressentimentos em relação às transformações sociais em curso, posto que identificavam-se com um ideal de sociedade e de família patriarcal, nostálgico em relação ao modelo de ordem do autoritário. 

Ainda que seja impossível operar uma datação precisa do processo, é possível sugerir que esse ressentimento, até então escondido na névoa de sentimentos contraditórios que perpassam os seres humanos, passou a ganhar o espaço público, conforme foi encontrando símbolos capazes de destacá-los. Um desses símbolos foi a discussão da criminalização da homofobia que, já em 2008, serviu de mote para ações organizadas do campo evangélico, que foi ganhando coesão política a partir da reação a este tipo de temática. Em paralelo, observa-se também o progressivo desconforto das camadas altas e médias com o processo de inclusão econômica e social que conferia maior visibilidade às classes populares.

Tal ressentimento, apresentado como um ódio à esquerda e ao PT, que não podia ser canalizado pelas lideranças do PSDB, demasiado identificadas com tais transformações, encontra em Jair Bolsonaro um porta-voz. Sua liderança foi gestada ao longo de sete mandatos consecutivos como deputado federal, ao longo dos quais manteve uma atuação parlamentar consistente voltada à defesa das Forças Armadas e demais segmentos identificados com o modelo de sociedade autoritário, elitista e patriarcal oriundo do passado.

A eleição de 2022 é, portanto, particularmente histórica na medida em que pode indicar a ruptura ou o aprofundamento deste ciclo reacionário, incompatível com os marcos constitucionais democrático-liberais e com a configuração de uma sociedade aberta ao pluralismo de afetos, identidades e cosmovisões. Oxalá ela seja suficiente para que o país consagre sua opção em prol da democracia através das urnas e que não seja preciso buscar outras formas de derrotar o autoritarismo que ameaça pegar em armas para se defender.

Sobre a autora

*Mayra Goulart é professora de Ciência Política da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (PPGCS/UFRRJ). É, ainda, coordenadora do Laboratório de Partidos Eleições e Política Comparada (LAPPCOM).

** Artigo produzido para publicação na Revista Política Democrática Online de agosto/2022 (46ª edição), produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.

*** As ideias e opiniões expressas nos artigos publicados na Revista Política Democrática Online são de exclusiva responsabilidade dos autores, não refletindo, necessariamente, as opiniões da Revista.

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*Título editado.


Jamil Chade: A reinvenção do futuro

Se uma mudança não ocorrer, estaremos nos livros como a geração que não ouviu o que pode ter sido um último sinal de alerta

Jamil Chade / El País

“Roma, lá fora, é uma cidade muito triste. Noite após noite, o país dorme desolado com a contagem, ainda às centenas, dos mortos, as cenas de terror se repetem nos hospitais”. O comentário é parte de um texto da escritora brasileira, Juliana Monteiro, radicada com sua família na capital italiana. Ela escrevia e descrevia o auge do primeiro confinamento vivido pela Itália, país que foi o primeiro epicentro da pandemia da covid-19 na Europa. “Que triste tantos italianos enterrando seus avós, aqui, onde são tão amados”, constatou, ainda nos primeiros meses de 2020.

O que a escritora de uma sensibilidade ímpar presenciava de seu balcão não era apenas uma impressão da dor que atravessava um continente. Mais de um ano depois daquele primeiro lockdown, dados confirmam o que ela sentia: a pandemia gerou a maior queda de expectativa de vida desde a Segunda Guerra Mundial.

A pesquisa, realizada pela Leverhulme Centre for Demographic Science, de Oxford, analisou dados de mortalidade em 29 países, incluindo Europa, EUA e Chile. Desse total, 27 deles registraram uma queda na expectativa de vida em 2020, numa escala que borrou o progresso objetivo durante anos na questão da mortalidade.

O que esses números revelam, no fundo, é uma enorme transformação na sociedade. Jamais, em épocas de paz, as mortes atingiram tais dimensões em economias ricas. A fome no mundo continua a matar mais que a covid-19. Mas, cinicamente, europeus consideravam essa outra pandemia como um problema distante e que, portanto, não merecia manchetes. E nem uma solução.

O que a pandemia revelou é que nada é inevitável, nem o futuro. Se as mortes atingiram níveis desconhecidos nesses países, algo parecido ocorreu com a taxa de natalidade. Os mais otimistas acreditavam que haveria um aumento de nascimentos nove meses depois do primeiro lockdown. Mas os números revelaram exatamente o oposto. Uma pesquisa na França e Alemanha em meados do ano passado indicou que 50% dos casais adiariam gravidezes.

Nos EUA, os números de queda começaram a aparecer de forma importante a partir de dezembro de 2020, nove meses depois da eclosão da crise. Segundo o CDC, a queda foi de 8% nos nascimentos no último mês do ano passado, uma tendência mantida em janeiro e fevereiro. Na Itália, a queda foi ainda maior, de 21%, contra 20% de redução na Espanha para o mês de dezembro. Já a França teve dezembro e janeiro com índices de natalidade mais baixos em 20 anos.


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Não apenas a vida foi suspensa. Alianças foram desfeitas e a quantidade de casamentos que chegaram ao final explodiu. Só no Reino Unido entre julho e outubro de 2020, o escritório de advocacia Stewarts registrou um aumento de 122% em reuniões com indivíduos iniciando consultas sobre possíveis divórcios.

Agora, com as vacinas para uma classe privilegiada, os planos podem voltar a ser feitos. Tanto na Europa como nos EUA, os primeiros sinais literalmente de vida também começam a aparecer, com a volta de casais em busca de filhos. Ou pelo menos voltando a falar sobre o assunto. O Instituto Max Planck de Pesquisa Demográfica na Alemanha constata, por exemplo, que a busca no Google por termos relativos à gravidez deu um salto nas últimas semanas.

Mas para milhões de famílias mais pobres ou em luto, o futuro terá de ser reinventado. Mesmo na rica Europa, a era pós-pandemia também aponta que ninguém sairá ileso. Nas clínicas e hospitais, a onda de pacientes de covid-19 começa a ser substituída por outra: a de pessoas com sinais de depressão, stress e casos psiquiátricos.

Perguntas existenciais também ecoam pelas estruturas do poder nos corredores das grandes capitais. Como, apesar de toda nossa tecnologia e peso econômico, permitimos que tantos mortos se acumulassem? E o que garante a soberania: respiradores ou helicópteros militares de última geração? Até que ponto podemos comemorar um dia da independência e aplaudir um desfile militar enquanto nosso sistema de saúde não atende sua própria população?

O futuro também exigirá lidar com um prejuízo de 13 trilhões de dólares deixado pela pandemia. Mas de quem cobrar quando a obscenidade da desigualdade foi escancarada?

Nas entidades internacionais, os cálculos confirmam que a crise sanitária abalou 30 anos de progresso no índice de desenvolvimento humanos e que o planeta contará, ao final do ano, com um exército de 318 milhões de novos miseráveis.

Quem tinha oxigênio conseguiu evitar um colapso social. A UE, por exemplo, destinou 2,3 trilhões de euros em medidas de apoio para garantir a liquidez das economias. Isso impediu uma onda de falências e, de fato, os números de empresas fechadas foi o menor desde 1999. De acordo com a UE, sem esse dinheiro, 25% de todas as empresas do bloco teriam fechado suas portas ao final de 2020, após exaurir seus caixas.

Mas essa aparente estabilidade pode não durar. No mercado, o temor é de que “empresas zombis” - que de fato não tinham mais atividade - comecem a fechar. “Muitas insolvências foram adiadas, e não impedidas”, alertou a francesa Coface SA, uma empresa de seguro de crédito.

A tendência de austeridade deve marcar também outros setores. Das 1.600 discotecas existentes na França, 100 nunca voltarão a abrir suas portas, com milhares de postos de trabalho fechados. E milhares de beijos que talvez nunca ocorram.

Se há uma lição que a pandemia deixa ao mundo é de que o modelo está esgotado, inclusive moralmente. Ou como explicar que, em plena pandemia, bilionários façam viagens pornográficas ao espaço? Há algo de podre quando países ricos começam a pensar em jogar fora 100 milhões de vacinas que vencerão em dezembro, enquanto os pobres não sabem nem sequer quando vão receber a primeira dose.

Numa catástrofe ética, o planeta recupera sua lógica colonial mais crua. Desta vez com vacinas. Fábricas de imunizantes na África passaram meses sendo obrigadas a fornecer doses para os países ricos, enquanto a população do continente implorava por doses.

Mais de seis meses após o início da vacinação, economias ricas tinham obtido 61 vezes mais doses que os países mais pobres. Neste mês, 300 milhões de vacinas estarão sentadas em depósitos na Europa e EUA, sem saber como serão usadas.

Alguns deixarão explícita a indignação diante dessa realidade. Outros guardarão segredos impublicáveis sobre a crise que definiu uma geração. Um grupo ainda lutará para impedir a ruptura de um status quo que os garante fortunas e privilégios.

Mas, para todos, a era do mundo infinito acabou de vez. O futuro que muitos imaginavam que existia se provou insustentável, insuficiente e intolerável.

A história irá nos olhar sem compaixão. Se uma mudança não ocorrer, estaremos nos livros como a geração que não ouviu – ou optou por ignorar - o que pode ter sido o último sinal de alerta antes de uma crise climática e social de proporções inéditas.

Nosso único presente é a reinvenção do futuro. Retornar ao passado é suicida. Num planeta mais quente, mais improvável, mais hostil e mais desigual, reimaginar o que será da sociedade e da coexistência não é uma opção. Mas um ato de sobrevivência.

Fonte: El País
https://brasil.elpais.com/opiniao/2021-09-28/a-reinvencao-do-futuro.html


Demétrio Magnoli: Raiz da desconfiança da vacinação está no poder estatal

Quantos? 100 mil, segundo os jornais da época, ou 20 mil, segundo historiadores, marcharam na cidade inglesa de Leicester em 23 de março de 1885, protestando contra a vacina obrigatória da varíola.

A resistência ativa ou passiva à imunização é tão antiga quanto a moderna história das vacinas, que começa com a invenção de Edward Jenner, em 1796. No seu capítulo atual, ela ameaça impedir a imunidade coletiva à Covid-19 em certos países ou regiões.

A raiz profunda da desconfiança da vacinação encontra-se no temor do poder estatal, especialmente quando se trata do controle sobre o próprio corpo dos indivíduos. No passado, os agentes vacinadores eram os mesmos funcionários encarregados de trancafiar os pobres em estabelecimentos de trabalho ou de remover habitações de locais insalubres.

De Leicester, 1885, a Zomba, no Maláui britânico, em 1960, passando pela Revolta da Vacina, no Rio de Janeiro, em 1904, incontáveis levantes antivacinais refletiram as suspeitas populares sobre as motivações dos governos.

A resistência segue nítidos contornos ideológicos. Na França, uma pesquisa de 2019, anterior à pandemia, revelou que 53% dos eleitores da extrema esquerda e 61% dos eleitores da extrema direita acreditavam num conluio do governo com as farmacêuticas destinado a ocultar os malefícios das vacinas. A polarização política anda de mãos dadas com a resistência à imunização: nos EUA, entre os seguidores de Trump; no Brasil, entre os de Bolsonaro.

Deus me protege, a vacina traz a Marca da Besta —religiosos fundamentalistas, sejam eles cristãos, muçulmanos ou judeus, resistem à imunização. Numa sondagem conduzida nos EUA, 45% dos brancos evangélicos responderam que não tomarão vacina contra Covid, contra 30% da população em geral.

Meu corpo é um santuário intocável —naturalistas radicais também resistem, pois vacinas seriam substâncias artificiais e, portanto, tóxicas. Mas, diante da pandemia, a hesitação deriva, sobretudo, de atitudes políticas.

Campanhas de vacinação associam-se ao centralismo estatal, à ênfase na proteção coletiva e à ideia de um bem público oferecido igualitariamente. Na ponta oposta, a doutrina ultraliberal prega o individualismo, a fragmentação das instituições hospitalares e a adoção de soluções de mercado para a saúde pública. A aversão dos ultraliberais ao contrato social está na base da hesitação de setores da população diante da vacina.

Mas os ultraliberais não estão sós. O discurso conspiratório ritual da esquerda, contrário às multinacionais farmacêuticas, foi adotado pela direita nacionalista, que o coloriu como denúncia do “globalismo”. A vacinação faria parte de um plano maligno de instituições multilaterais (OMS), governos internacionalistas (Biden, Merkel, Xi Jinping) e corporações globais para submeter as nações.

Nas suas versões mais desvairadas, esse discurso assegura que as vacinas são vetores biológicos de controle das mentes. O Bolsonaro da “vachina do Doria” ilustra, em toda a sua estupidez, a campanha antivacinal da extrema direita.

Nos EUA, onde quase 50% tomaram a primeira dose, o ritmo da imunização reduziu-se fortemente, pois a campanha começa a enfrentar a barreira demográfica da resistência vacinal: 64% dos restantes não confirmam que tomarão a dose inicial. Na União Europeia, onde apenas 30% tomaram a primeira dose, o cenário é igualmente preocupante: dependendo do país, entre 61% e 39% dos restantes hesitam em tomá-la.Os governos europeus só contribuíram com a resistência ao questionar a eficácia e segurança das vacinas. A maior hesitação encontra-se na França, o que reflete a amarga polarização política nacional.Boa notícia: no Brasil, parcela pequena, e decrescente, da população resiste à imunização. Eis mais uma derrota de Bolsonaro —e um dos raros sinais positivos na nossa paisagem política.

Fonte:

Folha de S. Paulo

https://www1.folha.uol.com.br/colunas/demetriomagnoli/2021/05/a-raiz-profunda-da-desconfianca-da-vacinacao-encontra-se-no-temor-do-poder-estatal.shtml

 


Luís Costa Pinto: De saída, Rodrigo Maia está destinado a confrontar sua sombra

O presidente da Câmara consolidou a imagem de seriedade, se contrapôs à abjeta agenda reacionária de Bolsonaro, e focou nas reformas liberais. Mas a vitória de seu sucessor, Baleia Rossi, parece improvável, e a partir daí Maia terá de se perguntar: Quem e o quê fui? Aonde errei?

O presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia, construiu em pouco tempo uma das mais promissoras carreiras da história parlamentar do Brasil. Contrariando prognósticos de quem se dizia especialista em eleições congressuais, em 14 de julho de 2016 se elegeu presidente da Câmara dos Deputados para exercer um mandato-tampão de sete meses em razão da prisão do antecessor Eduardo Cunha. Cunha havia sido o dínamo que deu energia, oxigênio e musculatura aos movimentos inicialmente desconexos de setores recalcados da sociedade brasileira que começaram a reivindicar o impeachment da presidente Dilma Rousseff tão logo foram fechadas as urnas de 2014. Para se safar da escalada de investigações contra si e, ao mesmo, converter-se em alternativa de poder real, Cunha inventou o processo de impedimento presidencial sem a existência de um crime de responsabilidade.

Executada a missão do golpe parlamentar imposta pelo andar de cima da sociedade, deposta Dilma, Cunha caiu em desgraça e foi preso semanas depois. O establishment político e empresarial entrou em parafuso —quem articularia a aprovação da agenda liberal-conservadora urdidas nos convescotes do mercado financeiro e nos cafés-com-algo-mais das torres de vidro da Faria Lima? “Maia” era a resposta e parecia mesmo uma solução.

Dono de um diferencial competitivo raro entre políticos de primeira linha, o deputado do Democratas sempre soube ouvir os interlocutores. Tenha-se claro que ouvir não é sinônimo de escutar. Em política, quando um cacique o ouve é porque ele concede a você a deferência de prestar atenção no que é falado em meio a uma conversa. Maia sempre soube compreender o que lhe era dito e, em rotina ordinária, jamais deixou de dar respostas diretas: sim ou não, segue ou não segue tal ou qual articulação. Parece óbvio, mas agir assim é comportamento escasso em Brasília. Na capital da República, dissimulações e tergiversações são regra e não conduzem a soluções. Problemas sem soluções redundam, em geral, em taxímetros que permanecem ligados e a registrar o custo do acesso a alguém que abra portas no coração do poder.

Cunha liderava uma bancada outrora estimada em 300 almas penadas prontas a depenar quem para elas encomendasse reza. Tinha para tal a destreza dos velhos donos de frota de táxi. Os taxímetros estavam sempre ligados — e na bandeira 2! Muitas vezes, havia a cobrança de taxa extra como, por exemplo, aquelas que muitos aceitam pagar aos frotistas que carregam malas. Sentado na cadeira do antecessor, Rodrigo Maia desligou os taxímetros, extinguiu os pontos de cobrança de frete e de extras e ordenou o extermínio da plantação de jabutis. Na Câmara de Eduardo Cunha os quelônios davam safra em árvores e se reproduziam nas entrelinhas dos textos legais semeados, em geral, a partir de escritórios de advocacia ou de centrais de lobby regiamente remunerados para a faina.

Avesso ao adjetivo “liberal”, uma implicância boba, posto que ele é uma das maiores lideranças da direita liberal do País, depois de tocar fogo no estoque de taxímetros das comissões da Câmara dos Deputados, Maia ganhou fôlego para alçar voo rumo a outro patamar de altitude. Convenceu Michel Temer, o artífice da deposição de Dilma e que herdou a cadeira presidencial, a estabelecer um teto para os gastos públicos e a enviar para o Congresso propostas de reformas das leis trabalhistas, tributárias e previdenciárias.

Convertido em segundo na linha sucessória de Temer, o presidente da Câmara usou os dois olhos, os dois ouvidos e a inteligência rápida para virar o grande polo de soluções de Brasília. Enquanto corria com a tramitação das reformas, cuidou de se aproximar com habilidade de ministros dos tribunais superiores e conseguiu — por meio de vistas grossas — a permissão para pleitear uma reeleição em fevereiro de 2017 que poderia ter sido considerada ilegal. Mas, à guisa de nomes melhores no Parlamento e porque se tentava reunificar uma nação fraturada pelo impeachment sem crime de responsabilidade, Maia foi reeleito e turbinou a aprovação de reformas constitucionais de vezo liberal.

A primeira delas a passar foi a sindical, e desmontou o funcionamento dos sindicatos no Brasil. A segunda, a trabalhista. Alterando mais de uma centena de artigos e dispositivos constitucionais e da Consolidação das Leis do Trabalho, a reforma trabalhista teve o condão de desorganizar a rede de proteção do Estado aos trabalhadores formais brasileiros. Foi um efeito colateral perverso agravado pela peculiaridade de o “capitalismo” brasileiro ser tocado por executivos e investidores com imensa aversão a risco: põe todo o custo social do capitalismo no Estado e só investem quando têm certeza de que receberão benesses e beneplácitos na forma de renúncias fiscais, prazos paternais para devolver empréstimos a bancos públicos e certeza de que inadimplências tributárias serão perdoadas. Interlocutores advertiram Maia de que o tiro sairia pela culatra, com ampliação do desemprego e redução da Rede de Proteção Social — além de redução na arrecadação da Previdência Social. O presidente da Câmara ouviu-os, porém não os escutou daquela vez.

Em maio de 2017, Rodrigo Maia precisou vestir às pressas o uniforme resistente a fogo dos bombeiros e correr para salvar Michel Temer do incêndio gerado a partir de uma célula de autocombustão no subsolo do Palácio do Jaburu. Num diálogo tão sórdido quanto grotesco, enquanto fazia as vezes de “Presidente da República”, cargo que tomara de Dilma Rousseff, Temer pedia ajuda ao empresário Joesley Batista e ouvia dele que estava na corrente no mínimo pragmática criada para dar tranquilidade a Eduardo Cunha. O ex-presidente da Câmara, prócer do impeachment sem crime de responsabilidade de 2016, sempre foi amigo e correligionário de Temer e estava vivendo as agonias do xilindró graças a acusações de corrupção, peculato e advocacia administrativa.

Divulgados os diálogos impróprios do subsolo do Jaburu, Temer cogitou renunciar ao cargo ao qual ascendera depois de uma bem-sucedida conspiração parlamentar, jurídica e classista. Estava decidido a fazê-lo quando recebeu um recado de Maia: a conversa com Joesley Batista fora um erro injustificável, mas a renúncia naquele momento jogaria o País num limbo constitucional indigesto e desconhecido.

Assustado com o protagonismo que passaria a ter — caso Temer renunciasse mesmo, seria nomeado Presidente da República e teria de convocar uma eleição no prazo de 60 dias —, Maia deu um salto gigantesco de maturidade política ao mesmo tempo em que cometeu o que alguns consideram seu primeiro grande erro no acerto de contas com a História. Temer refugou, ficou no cargo, decidiu enfrentar a oposição e Rodrigo Janot, o atrapalhado (para dizer o mínimo) Procurador Geral da República. Janot podia ser considerado atrapalhado, mas tinha agenda. E, pela agenda dele, passava a desmoralização da política e dos políticos, tarefa à qual se dedicou com denodo junto com a “Força Tarefa” montada em Curitiba pelo Ministério Público e chefiada por trás dos panos da farsa da Lava Jato pelo então juiz Sérgio Moro.

Na esteira do “fico” de Temer, Rodrigo Maia virou uma espécie de líder do Governo e primeiro-ministro ao mesmo tempo em que chefiava a Câmara dos Deputados. Ministros de Estado, integrantes dos tribunais superiores, plutocratas da Faria Lima e executivos do mercado financeiro passaram a enxergar nele a encarnação do poder, de todo o poder que se é capaz de reunir em Brasília. Não era assim, o próprio Rodrigo Maia tinha a consciência de que as coisas não se davam assim. Entretanto, o figurino era-lhe confortável. Na capital do Brasil, as aparências contam mais que as essências. E ter um infinito poder aparente resolve muitos problemas. Quem conhece os meandros brasilienses, porém, sabe que são glórias transitórias. Tudo passa.

Por duas vezes mais, Maia pôde flertar com a possibilidade de virar presidente-tampão da República e até disputar no cargo uma eventual reeleição em 2018. Tais oportunidades surgiram quando o plenário da Câmara rejeitou duas vezes dar prosseguimento à investigação de denúncias feitas pela PGR contra Temer. Em agosto de 2017 a primeira denúncia foi arquivada por 263 votos contra ela e 227 a favor. Outubro daquele mesmo ano, por 251 votos contra e 233 a favor, num placar mais apertado que refletia o desgaste do governo em virtude do colapso gerencial de Michel Temer, os deputados voltaram a recusar a ação do Ministério Público contra o homem que exercia a Presidência. Se Rodrigo Maia tivesse cedido os dedos de apenas uma das mãos a favor dos mapas de caminhos conspiratórios que lhe foram oferecidos à época daquelas votações, Temer teria caído e a história de 2018 seria bem outra. O presidente da Câmara conservou-se leal ao conjunto ora desconexo de políticos e de interesses que levara o grupo ao poder embora fosse já um crítico contumaz dos erros do Palácio do Planalto e tivesse assentada a certeza de que o diálogo de Michel Temer com Joesley Batista no subsolo do Jaburu inviabilizara a agenda econômica que haviam planejado. Tanto foi assim que a reforma da Previdência precisou esperar a eleição de 2018 para ser debatida a sério e aprovada no Congresso. A reforma tributária, contudo, segue parada e a proposta urdida por Maia com economistas dos mais variados matizes e por amplo espectro partidário, não é prioridade do atual Governo.

Empossado Jair Bolsonaro, um político pérfido, de discurso perverso, e que sempre fez oposição pela extrema-direita a Rodrigo Maia e ao pai dele, César Maia, ex-prefeito do Rio, o presidente da Câmara disputou nova reeleição para presidir a Câmara dos Deputados. Em fevereiro de 2019, foi reeleito com folga. Os papéis distribuídos pelo destino, entretanto, eram já diversos. Ao contrário de Temer e apesar de entabular um discurso repulsivo contra a política, os políticos e as instituições, Bolsonaro tinha consigo a legitimidade do voto popular — recebeu mais de 57 milhões de votos no segundo turno de 2018 — e um vice-presidente também eleito em sua chapa. Maia não poderia mais protagonizar a personagem de líder do governo e primeiro-ministro enquanto vestia o terno (e as camisas polo) de presidente da Câmara.

Ao se contrapor à abjeta agenda reacionária “de costumes” de Bolsonaro, e também porque conferia organicidade e inteligência à agenda econômica do governo eleito, Rodrigo Maia paulatinamente foi atraindo a intolerância e a ojeriza do presidente da República e do ministro da Economia, Paulo Guedes. Ignorante dos hábitos e dos ritos da política, Guedes dinamitou as pontes que poderiam ligá-lo a Maia e deixou que se tornasse caudaloso o rio de ódio entre eles. Bolsonaro, por sua vez, agindo por instintos animais, portou-se como chefe da matilha de lobos famintos integrada por seus filhos — 01, 02 e 03 — e nunca perdeu oportunidade de tentar humilhar Maia.

Bolsonaro, uma vez mais, foi desmentido pelos fatos: foi na Câmara dos Deputados, a partir de debates e projetos legislativos liderados por Rodrigo Maia, que o Estado brasileiro conseguiu exibir uma estratégia mínima de combate efetivo à propagação letal do coronavírus covid-19 durante a pandemia. O auxílio emergencial de 600 reais, entregue diretamente a 38 milhões de brasileiros alocados nos estratos inferiores da pirâmide social, salvou vidas, a economia popular e ao menos retardou a discussão à vera do impeachment de Jair Bolsonaro porque lhe deu sobrevida de popularidade. Sob protestos da equipe econômica de Guedes e por insistência da Câmara, o auxílio foi aprovado pelo Congresso. Toda a estrutura de comunicação e trocas logísticas entre os estados da federação, cujos governadores se revelaram muito mais maduros e preparados que o presidente, foi estimulada e, muitas vezes, formatada pela Câmara.

O presidente da Câmara consolidou a imagem de seriedade e de desprendimento perante parte da sociedade — a parte que sempre o incensou e interessou. Até se ganha eleição sem eles, ou contra eles, mas não se governa o Brasil prescindindo deles. Collor e Dilma sentiram na pele a desconexão que tinham com esse “andar de cima”, produzida no curso de seus mandatos. Fernando Henrique e Lula, eleitos e reeleitos, que governaram oito anos, regozijam-se com méritos de nunca terem cruzado o rubicão ou dinamitado as pontes que existem para tal travessia. E Rodrigo Maia é um exímio construtor dessas pontes.

Mas, os sinais de hostilidade a Maia dados por Bolsonaro foram captados no Congresso e não deixaram de tirar força política do presidente da Câmara. Vem dessa trajetória tortuosa o patente enfraquecimento institucional do político que melhor encarnou a possibilidade de a sua geração chegar efetivamente ao poder à frente dos próprios sonhos e bandeiras, esgrimindo projetos singulares e modernos para o País.

Convencido de que nenhum dos 61 pedidos de impeachment presidencial que foram endereçados à Presidência da Câmara seria aprovado no plenário da Casa, Maia guardou todos na gaveta do reservado de sua sala. Quem o suceder, os herdará; posto que ele tampouco irá arquivá-los. Ante os arreganhos bolsonaristas contra a Constituição, contra o Parlamento e contra si, Maia não os fez andar por um cálculo tão frio quanto controverso: não passariam porque o presidente conta ainda apoio consistente no Congresso e, uma vez rejeitado, o impeachment fortaleceria o presidente da República.

Agir friamente à luz da tragédia sanitária e humanitária do País e ante o cotejamento das ações que podiam ter sido levadas a cabo para arrefecer e frear o contágio e a mortandade provocados pela covid-19, e não o foram, por um Jair Bolsonaro colérico e obscurantista, resultou no recrudescimento das críticas por equívoco dos cálculos políticos. A lealdade devida a Temer não estava posta em cena para justificar o bloqueio ao andamento de ao menos um dos pedidos. Compilação efetuada pelo jornal Folha de S. Paulo levantou a existência de ao menos 23 crimes de responsabilidade passíveis de impeachment em atos e omissões de Bolsonaro, no exercício do mandato, e que foram decisivos para recrudescer a dispersão do vírus e as mortes em decorrência do coronavírus.

Cautela é ferramenta essencial na construção da trajetória de qualquer estadista. Ao driblar uma derrota patente que poderia se converter em fortalecimento de seu adversário político, Maia talvez tenha errado no uso equilibrado da ousadia que, por sua vez, também é atributo necessário a quem está na estrada e dando o norte — como ele. Mas, se o impeachment não teve início por meio de sua caneta, a construção da maioria necessária a aprová-lo passará, necessariamente, pelo espectro de canais de diálogo de largo diapasão que abriu nos diversos setores da sociedade e em todos os partidos políticos.

Aos 50 anos, tendo sido presidente da Câmara dos Deputados por quase cinco anos, Rodrigo Maia teve todas as chances de entregar o cargo a um aliado e pedir que o sucessor cuidasse de seu legado. Sairia do posto muito maior do que entrou. Quando evitou conspirar contra Temer e fazer com que as denúncias da PGR contra o homem que derrubou Dilma Rousseff fossem consideradas procedentes pelo plenário da Casa, recusando as tentações de se tornar presidente da República pela via indireta, usou a favor da própria biografia a lei da lealdade.

A lei da lealdade é uma regra intangível e consuetudinária da arte de fazer política que torna maiores aqueles que são leais aos aliados e, sobretudo, aos adversários. Havia clareza e lógica nos argumentos das denúncias da Procuradoria da República que podiam levar à queda de Temer e à sua ascensão à Presidência. Rodrigo Maia conservou-se fiel ao grupo que derrubara Dilma, obra consumada em sociedade, e trabalhou para manter Temer na cadeira palaciana. A lealdade pregressa, entretanto, não foi respondida à altura pelos pares. Geddel Vieira Lima, ex-ministro de Temer preso quando 51 milhões de reais em espécie foram flagrados num apartamento dele em Salvador, dizia que era preciso sempre “estar sendo” alguma coisa em Brasília porque quando alguém bate à porta a pergunta que se faz é “quem é?” e não “quem foi?”.

A partir do dia 2 de fevereiro Rodrigo Maia terá de se confrontar com a própria sombra e perguntar: quem e o quê fui? Aonde errei? A vitória de Baleia Rossi, candidato dele, parece improvável neste momento nas calculadoras de votos de quem sabe contá-los nos processos legislativos. Arthur Lira, o nome escalado pelo Palácio do Planalto e pela família Bolsonaro para herdar a cadeira da presidência da Câmara, está ávido para religar os taxímetros da Praça Eduardo Cunha, localizada na esquina da Esplanada dos Ministérios com a cúpula do Plenário Ulysses Guimarães. Ali, há taxistas loucos por retomar o delivery legislativo cujo guichê foi fechado por Maia.

(*) Jornalista, autor de “Trapaça – Saga Política no Universo Paralelo Brasileiro” e editor do canal youtube.com/c/LuísCostaPintoPlataformaBrasilia


O Globo: Aliados de Bolsonaro, Lira e Pacheco chegam com vantagem para a eleição no Congresso

Após a saída do DEM do bloco de Baleia Rossi, ampliou-se a dianteira do candidato do PP na Câmara

Bruno Góes e Julia Lindner, O Globo

BRASÍLIA —  Com o apoio do presidente Jair Bolsonaro, o deputado Arthur Lira (PP-AL) e o senador Rodrigo Pacheco (DEM-MG) chegam com amplo favoritismo para a eleição, hoje, que definirá os novos presidentes de Câmara e Senado. Na noite de ontem, a Executiva Nacional do DEM, partido do atual presidente da Câmara, Rodrigo Maia (RJ), anunciou a ruptura com o bloco de Baleia Rossi (MDB-SP) na Casa. Maia é o principal fiador da candidatura do emedebista.

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Com a mudança, ampliou-se a dianteira de Lira na composição partidária. Seu bloco reúne 11 siglas e 255 deputados. Já o de Baleia tem 10 legendas, totalizando 209 parlamentares. Os blocos são importantes porque balizam a divisão dos demais cargos na Mesa Diretora. Mas o voto é secreto, e os deputados não são obrigados a seguir a orientação partidária.A Flourish hierarchy chart

O líder do DEM, Efraim Filho (PB), afirmou que ele e o presidente da sigla, ACM Neto, fizeram uma “avaliação de cenário” e concluíram que a independência seria o melhor encaminhamento. Maia lamentou a decisão.

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— Prevaleceu a posição histórica de um partido de direita. Trabalhamos pra trazê-lo (para o) caminho de centro, mas a natureza de direita prevaleceu — reagiu Maia, que negou reflexo na candidatura de Baleia por considerar os votos “cristalizados”.

Lira e seu grupo, porém, trabalham ainda para trazer de volta o Solidariedade e estimulam dissidências no oposicionista PSB. O candidato do PP teve durante a campanha apoio efetivo do governo, com entrega e promessa de cargos e recursos. No campo governista, há uma força-tarefa para tentar decidir a eleição no primeiro turno.

Aposta no segundo turno

Aliados de Baleia reconhecem a situação como delicada, mas apostam que há chance de vitória, caso a eleição seja levada para o segundo turno. Em posição fragilizada, o candidato do MDB tentava recuperar o apoio do PSL, o que poderia lhe dar de volta o maior bloco.

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Baleia almoçou ontem com integrantes de oposição e recebeu parte da bancada feminina. Já Lira conversou com parlamentares de PL e Podemos, recebeu deputadas que o apoiam, e tinha jantar marcado com o governador do Rio, Cláudio Castro (PSC), e o presidente do PSD, Gilberto Kassab.

Os dois candidatos concederam também entrevistas à Globonews. Baleia afirmou não ser “de oposição", mas disse que não “fugirá” à responsabilidade de analisar pedidos de impeachment.

— É prerrogativa do presidente da Câmara a análise (do impeachment). Eu não fugirei às minhas responsabilidades de analisar. A análise será feita com todo o critério, à luz da Constituição — afirmou.

Lira, por sua vez, afirmou que é a pressão social que decide se há ou não a abertura.

— O impeachment é um processo político. Nenhum presidente pauta um impeachment, um impeachment pauta um presidente. Se tivermos inflação de 200%, protestos nas ruas, caos social, isso vem naturalmente — disse.

Senado: Apoio do PT

Rodrigo Pacheco recebeu uma declaração pública de “simpatia” de Bolsonaro e teve integrantes do governo articulando em seu favor, mas recebeu também o suporte da oposição. Sua liderança ficou tão folgada em relação a Simone Tebet (MDB-MS) que o partido dela decidiu na semana passada liberar a bancada para negociar cargos na Mesa Diretora.

Encabeçada pelo atual presidente do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP), a estratégia de campanha de Pacheco foi se antecipar aos movimentos dos adversários, tendo conseguido apoio do PSD e PT antes mesmo dos emedebistas decidirem seu candidato. Após Simone entrar na disputa, partidos que eram contados como aliados dela racharam, como Podemos e PSDB.

Com o embarque do MDB na campanha, mesmo que sem apoio oficial, Pacheco também passou os últimos dias buscando uma forma de acomodar a legenda na Mesa. O principal entrave é o PSD quer a mesma vaga desejada pelo MDB, a vice.

Sem respaldo nem em seu partido, Simone passou a direcionar a campanha para fora do Senado, em encontros com empresários e figuras políticas de fora da Casa, como Marta Suplicy.

Ontem, os dois mantiveram a postura da campanha. Pacheco esteve em um almoço com outros 30 parlamentares promovido pelo senador Weverton Rocha (MA), líder do oposicionista PDT. Simone, por sua vez, passou o tempo com a família, mais reclusa, e conversou com o ex-senador Pedro Simon (RS) por telefone. 


O Estado de S. Paulo: Maia ameaça com impeachment de Bolsonaro; PSDB e Solidariedade devem rifar Baleia

Ao ser informado pelo presidente do DEM, ACM Neto, de que a maioria dos deputados do partido apoiaria a candidatura de Lira para o comando da Câmara, Maia cogitou até mesmo deixar a sigla

Vera Rosa, O Estado de S.Paulo

BRASÍLIA - A decisão da Executiva do DEM de desembarcar do bloco de apoio à candidatura do deputado Baleia Rossi (MDB-SP) e a disposição do PSDB e do Solidariedade de seguir o mesmo caminho levaram o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), a ameaçar aceitar um pedido de impeachment contra o presidente Jair Bolsonaro. A eleição que vai escolher a nova cúpula da Câmara e do Senado está marcada para esta segunda-feira, 1.º.

Ao ser informado pelo presidente do DEM, ACM Neto, na noite deste domingo, 31, de que a maioria dos deputados do partido apoiaria a candidatura de Arthur Lira (Progressistas-AL) para o comando da Câmara, e não Baleia, Maia ficou irritado. O presidente da Câmara ameaçou até mesmo deixar o DEM. A reunião ocorreu na casa dele, onde  também  estavam líderes e dirigentes de partidos de oposição, como o PT, o PC do B e o PSB, além do próprio MDB.

Maia encerra o mandato à frente da Câmara nesta segunda-feira, 1º, e, segundo apurou o Estadão, afirmou que, se o DEM lhe impusesse uma derrota, poderia, sim, sair do partido e  autorizar um dos 59 pedidos de afastamento de Bolsonaro. Integrantes da oposição que estavam na reunião apoiaram o presidente da Câmara e chegaram a dizer que ele deveria aceitar até mais de um pedido contra Bolsonaro.

ACM Neto passou na casa de Maia antes da reunião da Executiva do DEM justamente para informar que, dos 31 deputados da legenda, mais da metade apoiava Lira. Pelos cálculos da ala dissidente, 22 integrantes da bancada estão com Lira, que é líder do Centrão.

O PSDB e o Solidariedade têm reuniões marcadas para esta segunda-feira, 1º e, diante da fragilidade da candidatura de Baleia, também ameaçam rifá-lo. “Ou mostramos força e independência apoiando claramente o Baleia ou adeus às expectativas de sermos capazes de obter alianças e ganhar as próximas eleições. Se há algo que ainda marca o PSDB é a confiança que ele é capaz de manter e expressar. Quem segue a vida política estará olhando, que ninguém se iluda", disse recentemente o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso em um grupo de WhatsApp da bancada tucana.

O ex-senador José Aníbal foi na mesma linha. “O PSDB assumiu compromisso com Baleia. Espero que cumpra. De outro modo, é adesão ao genocida”, afirmou Aníbal neste domingo, 31.

Maia lançou a candidatura de Baleia à sua sucessão em dezembro, com o respaldo de uma frente ampla, que incluiu  partidos de esquerda. Na ocasião, o líder do DEM, Efraim Filho (PB), assinou um documento no qual o partido avalizava o nome do MDB.

Diante do racha, ACM Neto atuou para amenizar a crise. Saiu da casa de Maia e foi direto para a sede do partido. Conduziu a reunião da Executiva pedindo para que o DEM ficasse oficialmente neutro. Além das ameaças de Maia, partidos de oposição afirmaram que, com o abandono de Baleia por parte do DEM, também a esquerda poderia desembarcar da candidatura de Rodrigo Pacheco (DEM-MG) ao comando do Senado. Até agora, Pacheco é o favorito para a cadeira de Davi Alcolumbre (DEM-AP).

O candidato do Progressistas chegou a anunciar em sua agenda que, nesta segunda, 1.º, receberia o apoio do DEM, às 9h30. A operação, porém, foi abortada por ACM Neto, que pediu aos correligionários para não humilharem Maia.

Nos bastidores, deputados comentavam neste domingo que o racha pode afastar o apresentador Luciano Huck do DEM. Huck planeja entrar na política para disputar a eleição para a Presidência, em 2022, e tem flertado tanto com o DEM como com o  Cidadania ao defender uma frente de centro para derrotar Bolsonaro.

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Histórico político das relações entre o Planalto e os presidentes das Casas oscila entre lealdade e traição

O empenho de Jair Bolsonaro nas eleições do Congresso nesta segunda (1º) é uma jogada de sobrevivência. Depois de ter usado o enfrentamento como arma política, o presidente mudou os cálculos: quer aliados nas presidências da Câmara e do Senado para construir uma agenda e permanecer no poder.

A história mostra que a relação entre os chefes do Congresso e o Palácio do Planalto pode mudar os rumos de um governo. O poder desses parlamentares determina se a plataforma de um presidente será implantada ou até se ele deve ser derrubado.

Dilma Rousseff (PT) soube que ter um rival no comando da Câmara pode ser fatal. Luiz Inácio Lula da Silva (PT) se protegeu graças à escolha de um nome para esse mesmo posto. E Fernando Collor (PRN) percebeu que até a indiferença dos chefes do Congresso pode ser um problema nas horas de fragilidade.

Todos eles, além de Fernando Henrique Cardoso (PSDB) e Michel Temer (MDB), também souberam que a fluidez política desses personagens define o tamanho do poder de um presidente da República.



COLLOR E IBSEN (1992)

Um presidente sem força no Congresso pode ter que governar no escuro, principalmente em tempos de crise. Foi o caso de Fernando Collor no caminho para o impeachment.

Na eleição para o comando da Câmara, em 1991, Collor não teve influência. Eleito pelo minúsculo PRN, ele só observou a escolha de Ibsen Pinheiro (MDB).

"O Collor não tinha condições de se intrometer", conta Renan Calheiros (MDB), que foi líder do governo no início do mandato.

A relação era protocolar, e a distância se tornou rivalidade nas semanas que antecederam a abertura do impeachment, em setembro de 1992. O presidente da Câmara frustrou o governo ao definir que aquela votação seria aberta --e não secreta.

"Não houve nenhuma tentativa de demover o Ibsen", diz Jorge Bornhausen, ministro de Collor.

Num pronunciamento na TV no fim de agosto, Collor atacou o Congresso e disse que os parlamentares não aprovavam os projetos do governo. O presidente da Câmara já concordava com o processo, mas os atritos o tornaram um entusiasta público.

Ibsen montou um palanque na Câmara e recebeu pessoalmente o pedido de impeachment apresentado no dia 1º de setembro. A Câmara aprovou o afastamento, e Collor renunciou antes do fim do processo no Senado.

FHC E ACM (2001)

Um presidente não dorme tranquilo nem quando há partidos aliados na cúpula do Congresso. Fernando Henrique Cardoso (PSDB) tinha uma coalizão larga, mas viveu uma relação terrível com Antônio Carlos Magalhães (PFL), que comandou o Senado (1997-2001).

O vínculo FHC-ACM refletiu o princípio político de que as ligações do poder variam de acordo com interesses de ocasião, como cargos e outras ferramentas de influência.

O PFL fazia parte da coalizão que elegeu o tucano. Quando estava satisfeito, ACM trabalhava a favor: ele foi personagem fundamental, por exemplo, nas articulações do Planalto para impedir a quebra de sigilo bancário do ex-chefe de campanha de FHC, numa investigação tocada pelo Congresso.

ACM também criou problemas para o governo como presidente do Senado. Usou o poder de pautar projetos para retardar a votação de medidas provisórias e acelerar a derrubada de vetos do Planalto. Era também um contumaz fabricante de dossiês que atingiam o governo.

"Antônio Carlos levou a vida inteira chantageando", escreveu FHC sobre o então senador, em seus diários. "Tem uma inveja infinita de mim e gostaria mesmo é de ser presidente."

LULA E ALDO (2005)

A disputa pela presidência da Câmara em setembro de 2005, na esteira do mensalão, é um exemplo acabado de como as escolhas no Congresso podem determinar os rumos de um governo.

"Aquela disputa tinha nível dez de importância", afirma Jaques Wagner (PT), que era o articulador político de Lula. "Havia um movimento para emparedar. Queriam infernizar a vida, fazer CPI, interditar o governo."
Naquela época, a oposição aproveitou a crise e deu força a José Thomaz Nonô (PFL) para chefiar a Câmara. Fragilizado, o governo Lula (PT) desarmou candidaturas do partido e apoiou Aldo Rebelo (PC do B).

"A ideia corrente era que a vitória da oposição significaria a abertura do processo de impedimento", diz Aldo. "Havia uma radicalização, era um ambiente tumultuado."

O Planalto temeu perder a disputa e ficar na mão de rivais. Nonô e Aldo empataram em 182 votos no primeiro turno. No segundo, o deputado do PC do B teve uma vitória apertada: 258 a 243.

"Lula se salvou de qualquer tentativa de impeachment porque elegeu o Aldo Rebelo", avalia Jorge Bornhausen, que em 2005 era senador pelo PFL e crítico do então presidente.

DILMA E CUNHA (2015)

O destino de Dilma Rousseff (PT) foi traçado exatamente a partir de uma disputa pela presidência da Câmara. A eleição de 2015 mostrou como as coalizões políticas podem ser volúveis.

No ano anterior, o MDB e o centrão haviam feito parte da chapa que reconduziu a petista ao Planalto. Um mês depois da posse, o governo rivalizava com esse mesmo grupo pelo comando da Câmara.

Eduardo Cunha (PMDB) reuniu o apoio do chamado baixo clero e de caciques de partidos que faziam parte da base de Dilma. Assim, ele derrotou o candidato do governo, Arlindo Chinaglia (PT).

"Aquela disputa foi um erro básico. Deveríamos ter construído uma candidatura alternativa", diz o deputado José Guimarães (PT), que se tornou líder do governo dias depois.

Primeiro, Cunha ativou o que os petistas chamavam de pauta-bomba, projetos de lei que aumentavam os gastos de um governo que tinha cofres vazios. "Ele começou o desgaste com a pauta-bomba, com o impeachment sempre acenando na gaveta", avalia Jaques Wagner, que foi ministro de Dilma.

O presidente da Câmara usou a caneta e autorizou o processo de afastamento da presidente no fim daquele ano. Foi uma retaliação ao PT, que decidiu votar a favor do prosseguimento da cassação do mandato de Cunha no Conselho de Ética da Câmara.

TEMER E MAIA (2017)

Michel Temer (PMDB) viveu uma relação peculiar com a Câmara. Os deputados salvaram seu governo, mas o presidente se enfraqueceu e viveu num parlamentarismo branco, em que o Congresso passou a dar as cartas.

A delação de executivos da JBS jogou tensão na praça dos Três Poderes. Se a Câmara desse aval à denúncia feita pela Procuradoria-Geral da República contra o presidente por corrupção, o emedebista seria afastado, e o poder cairia nas mãos de Rodrigo Maia (DEM) --chefe da Casa e nome seguinte na linha sucessória.

Maia não era adversário do Planalto, mas os canais entre os dois eram preenchidos de intrigas. Na noite em que a delação foi divulgada, ministros do governo foram à casa do presidente da Câmara para discutir a saída de Temer.

Em momentos delicados, a cúpula do Congresso se torna um polo de atração das disputas de poder. Maia, segundo seus aliados, poderia ter convencido os deputados a afastarem Temer do cargo, mas não se moveu.

"Essa relação tem muito a ver com temperança e personalidade. Nós não enxergávamos [em Maia] uma atitude que pudesse tangenciar a deslealdade", diz Antônio Imbassahy (PSDB), ministro da articulação política de Temer.


Gaudêncio Torquato: Governos na quarta marcha

O ciclo de vida de uma administração – federal, estadual ou municipal – se assemelha a um carro de quatro marchas. Cada ano correspon­de a uma marcha.

A primeira dá a partida do carro. Que vai pegando velocidade nos primeiros meses, quando o governante examina as condições dos espaços, fazendo o mesmo diagnóstico do motorista, testando o ambiente, olhando para a frente e para os lados.

Na segunda marcha, o carro avança com mais velocidade, correspondendo ao se­gundo ano da administração, quando os governantes praticamente começam a governar, depois de sanear (???) a estrutura e colocar a casa em ordem.

A terceira marcha é a da velocidade mais alta, com estabilidade e o carro avançando bem. A administração, de modo equivalente, usa esse tempo para abrir uma bateria de obras.

Na quarta marcha, o carro, muito veloz, faz ul­trapassagens, queima etapas, faz tudo que for possível para chegar ao final do caminho.

A cada etapa, o administrador tenta pincelar sua imagem. Ao sentar na cadeira, a imagem mais parece a do rapaz que comprou seu primeiro carro. O governante ingressa num universo de fantasias. Pensa no que poderá realizar, escolhe a equipe, e verifica como deverá usar o poder da caneta.

Sabe que poderá usar a força do cargo, testa a capacidade de mandar, solicitar, nomear, “desnomear”, receber atenção. Começa a construir sua Identidade, que abriga o conceito que deseja para ser conhecido pela comunidade (nacional, estadual, municipal).

O governante assume uma feição de magistrado, ouvindo muito, aceitando conselhos, reservando para si as decisões finais. Torna-se, de certo modo, cúmplice dos interlocutores.

O despachante

A segunda imagem mais parece a do despachante. Passa a atender um sem número de pessoas por dia, assina pilhas de papéis, enquanto a burocracia começa a prendê-lo com reuniões, articulações, contatos com as organizações da sociedade. Dorme contando carneirinhos, aliás, os pedintes – políticos da base, lideranças, setores - que entram e saem do gabinete, na verdade um salão de despachos.

A terceira imagem é a do artesão-obreiro. Cansado da rotina dos papéis, é aconselhado a ouvir mais a população, sair do confinamento de suas sedes, visitar canteiros de obras, pôr bonés na cabeça, sujar-se de poeira, visitar cidades, dar incertas em hospitais, despachar nas ruas.

Não faz muito tempo, um prefeito de uma capital de Estado sulino despachava sob uma árvore, sentado num banquinho e cercado do povo. (Fazia parte da imagem que queria projetar a ideia de se identificar com o clima das ruas e gente ao redor).

Nesse momento, os governos passam a ser reconhecidos com a marca registrada por meio de placas, frases de efeito e logomarcas. Fotos de governantes papados de suor (amostra do obreirismo fa­raônico) inundavam as redações para transmitir a imagem de uma ad­ministração transformada em canteiro de obras.

Claro, esse era um flagrante mais comum no passado. Em tempos de euforia econômica, cofres cheios, população bem atendida em serviços.

A quarta imagem e última imagem da administração se assemelha a de César, imperador romano.

Queixo apontando para a testa do interlocutor, rodeado de áulicos, que lhe fazem elogios e dão versões sempre positivas de sua administração, o governante ordena maior volume de propaganda na mídia e expansão da articulação política. A circunferência das barrigas também se avoluma com a proliferação de eventos gastronômicos. E haja churrasco.

Essa é a fase áulica e festiva, quando os encontros sociais invadem noites, sob a conversa frouxa de grupos mais chegados. Mas o povo só aparece se os eventos são públicos, como festas de padroeira.

O governante capricha na articula­ção política com o objetivo de aplainar o caminho com vistas à reeleição.

A partilha

As imagens dos mandatários passam a expressar o próprio ciclo da vida da administração. Da simplicidade da primeira fase, a uma certa arrogância da última fase, elas retratam a incultura política do País. De inquilinos dos espaços públicos, acabam sendo vistos como proprietários de feudos.

A coisa pública (res publica) se transforma em extensão de espaço particular. A falta de preparo torna o governante refém de pequenos grupos que se formam nos vãos do poder. Ocorrem partilhas de áreas, com distribuição de cargos, benesses e posições.

Os programas de assistência social se transformam em moeda de troca do fisiologismo. “Aos amigos, tudo, aos inimigos, os rigores da administração”. Mas o verniz cosmético não consegue limpar os entulhos que se acumulam nas vias das administrações em tempos de crise.

Esse é o dilema. Praticamente o mapa da administração pública no país exibe, nesse final de outubro, borrões e manchas. Quase nenhum governante consegue mostrar administração aprovada com louvor pelas populações. Municípios e Estados estão à beira da falência. Os serviços públicos são uma calamidade. Salários do funcionalismo estão atrasados em Estados e municípios. Portanto, os governantes passam a ser alvo da indignação geral.

A parte mais sensível do corpo - o estômago – é frontalmente atingida quando salários atrasam. Lembram-se da equação BO+BA+CO+CA (Bolso cheio, Barriga satisfeita, Coração agradecido, Cabeça aprovando o governante)? Pois bem, a recíproca é verdadeira.

A campanha eleitoral de 2018 estará, portanto, sujeita às intempéries, esse monte de desajustes, inação, serviços desqualificados, salários atrasados etc. Mesmo assim, por falta de opção serão reeleitos administradores ruins e com imagem negativa. Mas a renovação será bastante acentuada, principalmente se ao eleitorado for oferecida a opção por perfis que expressem o conceito de limpeza, honestidade, seriedade, compromisso e experiência.

Esses meses de final de semestre – que se aproximam da quarta marcha dos governos - serão importantes para tomar o pulso das comunidades. Se a temperatura ultrapassar os 40 graus, será difícil baixar a febre. Até porque não haverá grana para comprar os remédios.

* Gaudêncio Torquato é jornalista, professor titular da USP, consultor político e de comunicação Twitter


Herança maldita: 41 estatais criadas nos governos Dilma e Lula acumulam rombo de R$ 8 bilhões, diz instituto

Estudo realizado pelo ITV (Instituto Teotônio Vilela) e divulgado nesta segunda-feira pelo jornal Valor Econômico aponta que 41 estatais criadas nos últimos 13 anos nos governos do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e da presidente afastada Dilma Rousseff acumulam um rombo de R$ 8 bilhões. No período, o governo do PT colocou em funcionamento 43 empresas controladas pelo Estado, mas duas existiram apenas por alguns meses.

De acordo com o levantamento, as 41 estatais ativas – de vão de fábrica de semicondutores à produção de medicamentos derivados do sangue – consumiram R$ 5,5 bilhões com a folha de pagamento entre 2003 e 2015.

A Petroquímica Suape e a PBio (Petrobras Biocombustíveis) – subsidiárias da Petrobras produtora de etanol e biodiesel, respectivamente – estão no topo da lista das empresas estatais mais deficitárias. As duas companhias apresentaram, segundo o estudo, um rombo de R$ 5,1 bilhões nos últimos sete anos.

“Os dados constituem uma prova irrefutável da falácia do discurso petista. Passaram a vida toda defendendo o patrimônio público e destruíram as estatais”, disse ao Valor o presidente do ITV, senador José Aníbal (PSDB-SP).

Segundo o jornal, “o estudo do ITV, elaborado pelos pesquisadores André Lacerda e Murilo Medeiros, indica que apenas nos 21 anos de ditadura militar houve mais intensidade na criação de estatais. Foram 47 no período entre 1964 e 1985”. Desde 2003, o governo do PT criou 43 empresas controladas pelo Estado. Duas delas tiveram apenas alguns meses de vida, mas 41 continuam ativas.

A reportagem mostra ainda que “além de expandir a atuação da Petrobras, com novas subsidiárias altamente deficitárias em países como a Tanzânia, os governos Lula e Dilma apostaram fortemente na montagem de estruturas que buscavam centralizar o planejamento e a administração”.


Fonte: pps.org.br