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Luiz Carlos Azedo: A pandemia e a vida banal
“Como será a via da igualdade de oportunidades e do acesso público à saúde, à educação, à cultura, ao saneamento e à mobilidade no pós-pandemia?”
Números do Cadastro Geral de Empregados e Desempregados, divulgados ontem pelo Ministério da Economia, revelam que 331.901 vagas de trabalho com carteira assinada foram fechadas em maio. No trimestre, foi 1,478 milhão de empregos formais, desde março. Reflexo da pandemia no Brasil, que registrou a primeira morte em 17 daquele mês. O agravante é o fato de que o coronavírus também destruiu atividades produtivas no mercado informal, que funcionavam como válvula de escape para 36 milhões de trabalhadores sem carteira assinada.
Apenas uma parcela desses atingidos será capaz de se reinventar, porque economizou recursos para travessia, dispõe de conhecimentos ou condições de adquiri-los ou tem uma vocação inata para empreender e se adaptar às circunstâncias. Outra, a grande maioria, permanecerá dependendo da ajuda do governo para sobreviver, até que a economia volte a crescer numa escala capaz de absorvê-los, novamente, no mercado de trabalho, o que pode não acontecer. Infelizmente, nosso país tem uma tradição de descartar mão de obra e substituí-la nos ciclos de modernização, desde a abolição da escravatura.
É aqui que a relação entre o chamado “novo normal” e a “vida banal” se bifurcam. A superação das dificuldades pela via do esforço pessoal faz parte do imaginário da nossa sociedade, seja pelo serviço público, seja pela carreira profissional bem-sucedida no setor privado, ou por meio do empreendedorismo. Em época de confinamento, palestras e debates sobre esse assunto se multiplicam, com dicas e recomendações que funcionam como uma espécie de manual de sobrevivência na pandemia. Entretanto, a maioria dos que foram expelidos do mercado não terá a menor chance de encontrar uma saída imediata por essa porta. Uma dimensão da crise é o escancaramento da relação entre pobreza e desigualdades; a outra, como se sabe, são as ameaças à nossa democracia.
A propósito, o professor Pedro Cláudio Cunca Bocayuva, do Núcleo de Estudos de Políticas Públicas em Direitos Humanos da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), um velho amigo, me fez observações instigantes sobre a conexão entre os efeitos da pandemia e a chamada “vida banal” no cotidiano das periferias e favelas das grandes cidades brasileiras. É aí que o drama econômico e social da pandemia está se desenrolando da forma mais iníqua. Sem a esfera pública e suas políticas, adverte, a cautela no consumo, o empreendedorismo e a filantropia não dão respostas à pobreza, porque não levam em conta as desigualdades. E ainda prescindem da democracia.
Bandeira velha
Como será a via da igualdade de oportunidades e do acesso público à saúde, à educação, à cultura, ao saneamento e à mobilidade no pós-pandemia? A nova agenda proposta pela crise sanitária e econômica, segundo Bocayuva, passa não apenas pela renda básica, pressupõe o cooperativismo, a solidariedade no uso dos bens públicos, o compartilhamento de conhecimento e das inovações tecnológicas, as mudanças de padrão energético, de preservação ambiental e de garantia dos direitos sociais, em bases democráticas. Por toda a economia de serviços, cultura, educação, pesquisa, ensino, infraestrutura. Como num rap, conexões, fluxos, trânsitos, controles, uso do espaço, planejamento e instalação de equipamentos urbanos, retomada das atividades sociais, a produção, o consumo, os resíduos, a reposição e a reciclagem, para ele, tudo precisa ser repensado, no contexto das grandes mudanças em curso, das relações humanas à pesquisa.
De certa forma, o que está acontecendo nas favelas do Rio de Janeiro e periferias de São Paulo, em termos de busca de respostas e de autoproteção contra as iniquidades em que essas comunidades vivem, diante do avassalador avanço da pandemia, aponta para uma nova agenda, que não está sendo considerada. A velha agenda social-democrata e social-liberal para a pobreza, ou seja, a focalização dos gastos sociais nos mais pobres e os programas de transferência de renda, como o Bolsa Família, por incrível que pareça, está sendo capturada eleitoralmente pelo presidente Jair Bolsonaro.
Primeiro, com a distribuição do auxílio emergencial de R$ 600 aprovado pelo Congresso, que já lhe garantiu uma mudança de base de apoio, conquistando uma parcela do eleitorado de baixa renda do Nordeste, que lhe era hostil e tinha saudades do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. É gente que não se identificava com Bolsonaro pela via da narrativa ideológica — centrada na família, na fé e na ordem —, mas foi atraída naturalmente, pelo interesse material imediato. Ou seja, a velha agenda da esquerda está tão superada que passou às mãos de Bolsonaro. Como nos governos anteriores, porém, isso não significa uma solução duradoura para a população de baixa renda, porque não garante a superação das desigualdades e, sem outras medidas, a médio prazo, estreita ainda mais os gargalos da economia.
Luiz Carlos Azedo: Mudança de rota
“A nomeação de Decotelli para a Educaçao e a passagem do general Ramos para a reserva sinalizam um correção de rumo no governo Bolsonaro”
Aparentemente, o presidente Jair Bolsonaro deixou a rota de iminente colisão contra os demais poderes. A mudança ocorreu após forte reação das lideranças do Congresso e dos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), mas, sobretudo, após a prisão de Fabrício Queiroz, seu amigo, ex-assessor parlamentar de seu filho Flávio Bolsonaro (PR), quando o senador ocupava uma cadeira na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro. Ambos são investigados no caso das rachadinhas daquela Casa legislativa. Dois fatos assinalam a mudança de curso: a nomeação do novo ministro da Educação, o economista Carlos Alberto Decotelli da Silva, e a passagem para a reserva do general de divisão Luiz Eduardo Ramos, ministro da Secretaria de Governo, que anunciou a intenção na reunião do Alto Comando do Exército, ontem.
Decotelli substituirá Abraham Weintraub, protagonista de uma gestão espalhafatosa e desastrosa à frente da pasta, com uma narrativa ideológica afinada com o grupo de extrema direita liderado pelo escritor Olavo de Carvalho, guru dos filhos de Bolsonaro. Como prêmio de consolação, o ex-ministro foi indicado para o posto de diretor representante do Brasil no Banco Mundial, mas sua nomeação está sendo questionada por funcionários do órgão. Até para sair do país e entrar nos Estados Unidos, Weintraub foi atabalhoado, pois viajou como se ainda fosse ministro, quando já havia deixado o cargo. Comportou-se como um fugitivo. Weintraub é investigado por causa de suposto envolvimento com grupos de extrema direita que ameaçavam ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), a quem chamou de “vagabundos”, na reunião ministerial de 22 de abril passado.
Primeiro ministro preto do governo Bolsonaro, Decotelli será o terceiro titular da pasta em menos de 1 ano e meio. O primeiro ocupante do posto foi Ricardo Velez, que permaneceu apenas três meses no cargo. Oficial da reserva não-remunerada da Marinha, o novo ministro atuou na Escola de Guerra Naval como professor. Bacharel em ciências econômicas pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), é mestre pela Fundação Getulio Vargas (FGV), doutor pela Universidade de Rosário (Argentina) e pós-doutor pela Universidade de Wuppertal, na Alemanha. Tem um perfil muito mais de gestor do que de educador, sua nomeação é uma esperança de um comportamento mais conciliador e menos ideológico à frente da pasta, embora seja um conservador e tenha apenas breve passagem pelo Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), entre fevereiro e agosto do ano passado. Depois, comandou a Secretaria de Modalidades Especializadas do Ministério.
Verde-oliva
Outra notícia importante foi o anúncio de que o general de exército Luiz Eduardo Ramos, ministro da Secretaria de Governo e principal articulador político do Planalto, passará à reserva. Ele já havia anunciado essa intenção, mas só agora foi oficializada. Sua situação era um fator de tensão entre o presidente Jair Bolsonaro e o Alto Comando, porque circulavam rumores de que o presidente da República pretendia nomeá-lo para o Comando do Exército, no lugar do general Edson Leal Pujol. Ramos era o 6º na hierarquia de comando, o que resultaria na passagem antecipada para a reserva dos principais generais hoje na ativa. Bolsonaristas fomentavam a intriga, provocando mal-estar entre os militares.
Pelo regulamento atual, militares da ativa somente podem permanecer dois anos fora dos quadros regulares de comando, mesmo ocupando função para as quais, tradicionalmente, são designados militares, no Ministério da Defesa, criado originalmente para ser chefiado por uma autoridade civil, no Gabinete de Segurança Institucional e na Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República. A situação era meio esquizofrênica, porque Ramos é um dos ministros mais poderosos do governo Bolsonaro e, ao mesmo tempo, era subordinado a Pujol na hierarquia militar. Outro alto oficial da ativa praticamente na mesma situação é o ministro interino da Saúde, Eduardo Pazuello, general de divisão.
Ambos são ligados ao ministro da Defesa, Fernando Azevedo, como o ministro-chefe da Casa Civil, Braga Neto, que também era do Alto Comando, mas passou à reserva logo após assumir o cargo. Quando Azevedo foi o comandante do Leste, Ramos comandou a Vila Militar; Pazuello, a Brigada de Paraquedistas; e Braga Neto era o chefe de Estado-Maior.
Luiz Carlos Azedo: Saudades do Mandetta
“A Fortuna de Bolsonaro pode ser comparada à do presidente Trump, que também defendeu o uso de cloroquina e se opôs ao isolamento social”
O Tribunal de Contas da União (TCU) aprovou, ontem, um relatório do ministro Vital do Rêgo que resume o que todo mundo estava vendo: falta de diretrizes e coordenação entre entes federados e órgãos oficiais no combate à covid-19, por culpa do governo federal. Esse era o ponto forte da gestão de Luiz Henrique Mandetta, defenestrado do cargo porque o presidente da República ficou enciumado da popularidade adquirida pelo então ministro da Saúde e discordava da estratégia de isolamento social que havia adotado. Bolsonaro queria distribuir cloroquina a todos os infectados e implementar a atual estratégia de “imunização de rebanho”.
Quando Mandetta saiu da Saúde, em 16 de abril, o Brasil contabilizava 1.924 mortes; hoje, já são quase 54 mil, uma tragédia anunciada. Na ocasião, as pesquisas mostravam que 76% dos entrevistados aprovavam o desempenho do ministro da Saúde, que antes era avaliado positivamente por 55%. A pandemia havia catapultado sua popularidade, graças ao excepcional desempenho na liderança do Sistema Unificado de Saúde (SUS). Ao contrário, a atuação de Bolsonaro, que havia entrado em guerra com os governadores de São Paulo, João Doria, e do Rio de Janeiro, Wilson Witzel, e se descolado de Mandetta, havia oscilado para baixo, de 35% para 33%. Os ciúmes do clã Bolsonaro — verbalizado nas redes sociais e entrevistas do presidente da República — puseram tudo a perder. Para substituir Mandetta, Bolsonaro escolheu o médico oncologista Nelson Teich, que ficou apenas um mês na pasta e caiu fora, depois da fatídica reunião ministerial de 22 de abril, cujas imagens revelam seu espanto com o que aconteceu na ocasião. A essa altura da pandemia, já eram mais de 14 mil mortos.
Os ministros militares do Palácio do Planalto — os generais Augusto Heleno (GSI), Rego Barros (Casa Civil), Fernando Azevedo (Defesa) e Luiz Ramos (Secretaria de Governo) — bem que tentaram segurar Mandetta no cargo, mas foi um esforço em vão. A ala radical do governo, liderada por Carlos Bolsonaro — que não faz parte do governo, mas tem grande influência no governo — já havia selado o destino de Mandetta. No início de abril, Bolsonaro disse à rádio Jovem Pan que o subordinado deveria “ter mais humildade” e “ouvir um pouco mais o presidente”. Ao saber da crítica, Mandetta falou com o chefe por telefone e ouviu dele que deveria “pedir demissão”. Respondeu: “O senhor que me demita”. Era o fim da linha.
Efeito Orloff
No relatório apresentado ao Tribunal de Contas, Vital do Rêgo critica a ausência de integrantes técnicos da área de saúde no comitê de gestão da pandemia pelo governo: “Os cargos-chave do Ministério da Saúde, de livre nomeação e exoneração, não vêm sendo ocupados por profissionais com essa formação específica”. Segundo ele, isso pode levar a decisões não baseadas em questões médicas e científicas, o que resulta em “baixa efetividade das medidas adotadas de prevenção e combate à pandemia, desperdícios de recursos públicos e aumento de infecções e mortes”. O TCU recomendou a inclusão, como membros permanentes do Comitê de Crise da Covid-19, dos presidentes do Conselho Federal de Medicina, da Associação Médica Brasileira e do Conselho Nacional de Secretários de Saúde, com direito a voz e a voto. Entretanto, o governo não é obrigado a cumpri-la.
O relatório também destaca a ausência de ampla divulgação das ações de enfrentamento à crise de saúde pública e recomenda a inclusão de um representante da Secretaria de Comunicação Social no Centro de Coordenação de Operações do Comitê de Crise para Supervisão e Monitoramento dos Impactos da Covid-19 (CCOP). O TCU determinou, porém, que a Casa Civil passe a divulgar no prazo de 15 dias na internet as atas das reuniões do Comitê de Crise e do CCOP.
A Fortuna de Bolsonaro pode ser comparada à do presidente Donald Trump, dos Estados Unidos, que também defendeu o uso de cloroquina e inicialmente se opôs ao isolamento social, embora agora tente se reposicionar, depois de ver sua reeleição caminhar em direção ao brejo. Hoje, Trump amarga 14 pontos atrás do seu concorrente democrata, Joe Biden. Agora, o principal aliado de Bolsonaro na política externa, embora se declare seu amigo, cita o Brasil como mau exemplo a ser seguido no combate à pandemia.
Bolsonaro cometeu um erro fatal ao demitir Mandetta, com quem dividiria o prestígio. Como diria o Conselheiro Acácio, personagem de Eça de Queiroz em O Primo Basílio, as consequências sempre vêm depois. A flexibilização precoce do isolamento social por governadores e prefeitos, pressionados por Bolsonaro, está provocando o aumento do número de casos da covid-19, inclusive, onde a pandemia estava sendo controlada. Além disso, o governo perdeu o rumo na economia em meio à recessão.
Luiz Carlos Azedo: Mortes em vão
“Bolsonaro limitará o auxílio aos “invisíveis” a apenas mais R$ 600, parcelados em três vezes; sem recursos, como 36 milhões poderão permanecer em casa?”
Para o sanitarista Luiz Antônio Santini, pesquisador da Fiocruz e ex-diretor do Instituto Nacional do Câncer (INCA), a metáfora da guerra não é a mais adequada para abordar os desafios da saúde. Segundo ele, uma pandemia não representa um ataque inesperado de um agente inimigo da humanidade, como a tese da guerra sugere. “O processo de mutação dos vírus é uma atividade constante na natureza e o que faz com que esse vírus mutante alcance a população, sem proteção imunológica, são, além das mudanças na biologia do vírus, mudanças ambientais, no modo de vida das populações humanas, nas condições econômicas e sociais. Muito além, portanto, de um ataque insidioso provocado por um agente do mal a ser eliminado.” Por essa razão, cabe à ciência “responder com vacinas, medicamentos e o que mais estiver ao seu alcance ou que ainda venha a desenvolver de conhecimentos e tecnologias”.
Enquanto isso não ocorre, a melhor alternativa continua sendo o isolamento social, o rastreamento dos casos e o tratamento adequado aos infectados, o que pressupõe restrições de atividades econômicas e circulação de pessoas, testes em massa e um serviço médico operacional e capacitado. É que o conceito de guerra impõe decisões estratégicas nas quais as prioridades não são necessariamente as vidas humanas, ou seja, o tratamento daqueles que precisam de assistência médica, mas outros objetivos, no caso, o retorno das atividades econômicas e/ou os interesses eleitorais, como estamos assistindo. A morte é apenas o efeito colateral. O fato de já não se restringir aos grupos de risco é mera consequência. A maior vulnerabilidade da população de baixa renda nas favelas, periferias, grotões e aldeias indígenas, reflexo de nossas desigualdades, é considerada uma contingência contra qual nada se pode fazer, quando deveria ser exatamente o contrário.
Esse é o raciocínio. O presidente Bolsonaro, por exemplo, deixou o Palácio da Alvorada, no fim de semana, para velar o corpo de um soldado cujo paraquedas não abriu, no Rio de Janeiro, gesto louvável, mas é incapaz de decretar luto oficial por atingirmos a espantosa marca de mais de 50 mil mortos e quase 1,1 milhão de casos confirmados, em respeito às suas famílias. Muito menos homenagear os médicos e demais profissionais de saúde que morreram na linha de frente das UTIs e àqueles que se arriscam todos dias, nos hospitais e unidades de pronto atendimento (UPAs), muitos dos quais depois de terem contraído o vírus e se recuperado. No gesto de Bolsonaro havia mais cálculo político do que humanismo.
Rebanho
Recentemente, o professor de direito Lucas de Melo Prado, no site justificando.com, citou uma passagem do livro Homo Deus, de Yuval Noah Harari, sobre a síndrome “nossos rapazes não morreram em vão”, comum durante as guerras. Referia-se à participação da Itália na Primeira Guerra Mundial, com objetivo de recuperar os territórios de Trento e Trieste, em poder do Império Austro-Húngaro. O Exército austro-húngaro encastelou-se ao longo do Rio Isonzo e resistiu a todos os ataques. Na primeira batalha, morreram 15 mil italianos. Na segunda, 40 mil. Na terceira, 60 mil. E assim prosseguiu a guerra por dois anos. Na 12ª Batalha, em Caporeto, os austríacos passaram à ofensiva, só parando às portas de Veneza. Morreram 700 mil soldados italianos, mais de um milhão foram feridos. Inebriados pelo patriotismo, em busca das glórias romanas, “por Trento e por Trieste”, políticos e generais mandaram seus jovens para a morte. A analogia faz sentido.
Nos 40 dias à frente do Ministério da Saúde, o general de divisão Eduardo Pazuello opera uma política de “imunização de rebanho” não-declarada. Militarizou a pasta, para a qual levou duas dezenas de militares — os da ativa, em desvio de função —, a maioria neófitos em política sanitária. Quando assumiu, em 15 de maio, o Brasil contabilizava 14,8 mil mortos e 218 mil casos confirmados. Esses números quase quintuplicaram no período. Não será surpresa se duplicarmos o número de mortos até o fim de agosto, com o relaxamento da política de isolamento social, como queria Bolsonaro.
Na ativa, Pazuello cumpre ordens. Sua prioridade é uma devassa na pasta da Saúde, que subsidie investigações e denúncias contra governadores e prefeitos que adquiriram equipamentos médicos com preços acima das cotações de mercado. Como de fato houve casos de superfaturamento e desvio de recursos por parte das máfias que atuam no Sistema Único de Saúde (SUS), a pandemia já virou pauta policial. Quem pagará com a vida, porém, são as vítimas da covid-19, cujo número aumenta exponencialmente, em razão da flexibilização precipitada do isolamento social. Bolsonaro já anunciou que limitará o auxílio aos chamados “invisíveis” — 36 milhões de trabalhadores informais que ficaram sem nenhuma renda — a apenas mais R$ 600, parcelados em três vezes; sem recursos, como poderão permanecer em casa?
Luiz Carlos Azedo: Colhendo a tempestade
“Weintraub é o terceiro ministro que deixa o governo com projeção na base eleitoral de Bolsonaro. Mandetta, da Saúde, e Moro, da Justiça, passaram à oposição”
Nas circunstâncias atuais, qualquer presidente da República já estaria diante de uma grande borrasca, em razão da pandemia de coranavírus e da recessão econômica dela decorrente. Jair Bolsonaro, porém, conseguiu transformar a crise sanitária e econômica numa tempestade perfeita, ao agregar às contingências exógenas de seu governo uma crise política multifacetada, que, ontem, resultou na saída do polêmico ministro Abraham Weintraub, da Educação. O 10º ministro a deixar o governo, o segundo da pasta, que agora virou objeto dos desejos dos partidos do Centrão.
A saída do Weintraub — histriônico, incompetente e politicamente trapalhão —, desde a semana passada, era pedra cantada. Para a turma do deixa disso, serviria para desanuviar as relações do Palácio do Planalto com o Supremo Tribunal Federal (STF). Entretanto, foi eclipsada pela prisão de Fabrício Queiroz, amigo de Bolsonaro e ex-assessor parlamentar e motorista do seu filho, senador Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ), que estava escondido num sítio em Atibaia (SP). O caso Queiroz tira Bolsonaro do sério, pois o amigo e ex-assessor do filho é um homem-bomba: além de suspeito de ser operador financeiro do clã, é peça-chave nas históricas relações do presidente com as milícias do Rio de Janeiro.
Há três dias, Bolsonaro alterna momentos de apatia e grande irritação. Com o apoio dos ministros militares do Palácio do Planalto, bateu de frente com o Supremo Tribunal Federal (STF) e tentou intimidar os ministros da Corte. Nesta semana, deu tudo errado: por 10 a 1, o Supremo resolveu dar prosseguimento ao inquérito das fake news presidido pelo ministro Alexandre de Moraes, que Bolsonaro considera um desafeto. O magistrado vem promovendo sucessivas ações contra os bolsonaristas radicais.
Moraes determinou a prisão da ativista Sara Winter e outros militantes do grupo autodenominado 300 do Brasil, que defendem uma intervenção militar e realizavam protestos contra o Supremo e Congresso, com ameaças a magistrados e parlamentares. Também mandou realizar operações de busca e apreensão em residências e escritórios de empresários, blogueiros, dez deputados e um senador supostamente ligados ao chamado Gabinete do Ódio, a máquina de propaganda bolsonarista nas redes sociais.
Bolsonaro está numa saia justa. Não pode dobrar a aposta contra os demais Poderes sem provocar uma crise institucional sem precedentes desde a democratização. A própria saída de Weintraub havia se tornado imperativa, em razão de suas declarações contra o Supremo na reunião ministerial do dia 22 de abril, quando chamou os ministros da Corte de vagabundos e disse que eles deveriam ser presos. No domingo, a gota d’água foi sua participação numa manifestação proibida na Esplanada, sem máscara, o que lhe valeu uma multa de R$ 2 mil aplicada por ordem do governador do Distrito Federal, Ibaneis Rocha (MDB).
Investigações
O Palácio do Planalto temia a prisão de Weintraub, a qualquer momento, por desafiar o STF. Ao mesmo tempo, o ministro se tornou referência para a ala ideológica do bolsonarismo, por causa dos ataques ao Supremo. Sua despedida do cargo, ontem, foi um constrangimento para Bolsonaro, que lhe ofereceu um cargo de diretor do Banco Mundial. É o terceiro ministro importante que deixa o governo com projeção política na base eleitoral de Bolsonaro. Os outros foram Luiz Henrique Mandetta, da Saúde, e Sergio Moro, da Justiça, que passaram à oposição. Não é o caso de Weintraub, que ganhou um cargo no exterior como prêmio de consolação.
Bolsonaro sentiu o golpe: “É um momento difícil, todos meus compromissos de campanha continuam de pé e busco implementá-los da melhor maneira possível. A confiança você não compra, você adquire. Todos que estão nos ouvindo, agora, são maiores de idade e sabem o que o Brasil está passando. O momento é de confiança. Jamais deixaremos de lutar por liberdade. Eu faço o que o povo quiser”, disse Bolsonaro, na gravação da despedida de Weintraub.
Agora, a dificuldade se chama Fabrício Queiroz. Ex-assessor parlamentar de Flávio Bolsonaro na Assembleia Legislativa fluminense, é apontado como operador de um esquema de rachadinha, que supostamente ocorria no gabinete do filho do presidente da República, quando era deputado estadual no Rio. O policial militar reformado foi preso em um imóvel do advogado Frederick Wassef, que atua na defesa de Flávio, mas não é advogado de Queiroz, acusado de manipular provas e pressionar testemunhas, pelos procuradores do Rio de Janeiro que investigam o caso. O Palácio do Planalto tenta se desvincular, mas o fato de Queiroz ter se escondido numa propriedade do advogado de Flávio, mesmo que isso não seja crime, cria um tremendo problema político.
Luiz Carlos Azedo: Parece que foi ontem
A centralização do poder, cuja recidiva quase sempre foi protagonizada por intervenções militares, parecia uma página virada, mas ainda nos assombra
O brasileiro é uma invenção política, civil. Foi uma grande sacada dos mineiros, na luta pela Independência, cujo mito de origem é a Inconfidência, tendo o alferes Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes, como grande herói nacional. Mas, até a Independência, além dos mineiros, o que havia mesmo eram paulistas, fluminenses, baianos, pernambucanos e gaúchos, que se digladiavam. O Partido Brasileiro surgiu após a Revolução do Porto, que ordenou a volta de João VI a Portugal e convocou eleições para a Assembleia Constituinte que elaboraria a primeira Constituição portuguesa.
Reunia a pequena burguesia urbana, comerciantes e proprietários rurais que defendiam ideais liberais e não acatavam as ordens vindas das Cortes portuguesas. Cipriano Barata, Muniz Tavares, Antônio Carlos Ribeiro de Andrade, padre Diogo Antônio Feijó e Nicolau Campos Vergueiro, eleitos deputados, lideraram o nosso primeiro partido político, que veio a ter um papel decisivo para a permanência de D. Pedro I no Brasil e, em 7 de setembro de 1822, na Independência, pontificou o santista José Bonifácio de Andrade e Silva, irmão de Antônio Carlos.
Houve uma guerra para consolidar a Independência, o Exército da época era português. Controlava províncias que se mantiveram leais a Portugal: Cisplatina (atual Uruguai), Bahia, Piauí, Pará e Maranhão. No Império recém-criado, de dimensões continentais, era grande a ameaça de fragmentação política. A saída foi D. Pedro I contratar oficiais estrangeiros, entre os quais o lorde inglês Thomas Cochrane e o marechal francês Pierre Labatut, para organizar a Marinha e o Exército, tarefa que coube a Bonifácio, um bacharel, matemático e geólogo civil.
Na Bahia, a Guerra da Independência durou de 7 de setembro de 1822 a 2 de julho de 1823. Comandava por Manoel Pedro, as tropas leais ao Brasil haviam sido batidas pelos portugueses, recuando para o Recôncavo Baiano. Dom Pedro enviou o general francês Pedro Labatut para reforçar as tropas brasileiras, que derrotaram Madeira na batalha de Pirajá (8 de novembro de 1822). Além de cercada por terra, com a chegada da armada comandada por Crochrane, Salvador foi completamente bloqueada, forçando a rendição dos portugueses. Madeira negociou a volta das tropas remanescentes para Portugal.
Brutal foi repressão no Grão-Pará, que resultou em 1.300 mortos, sendo 240 por asfixia nos porões do brigue São José Diligente (depois, “Palhaço”), por ordem do almirante inglês John Pascoe Grenell. Nas províncias do Maranhão, Piauí, Alagoas, Sergipe e Ceará, a resistência foi sufocada com mais facilidade. Na Cisplatina, atual Uruguai, os uruguaios viram na transição uma oportunidade de se livrar do julgo brasileiro, promovendo a sua própria guerra da Independência, depois de se aliarem aos brasileiros para expulsar os portugueses.
Na verdade, a formação do Exército brasileiro ocorre no decorrer do período regencial — Trina Provisória (abril a julho de 1831); Trina Permanente (1831 a 1834); Padre Feijó (1835–1837); Araújo Lima (1837–1840) —, no qual o Partido Brasileiro já havia implodido. Liberais moderados (ximangos), monarquistas, defendiam o centralismo político; liberais exaltados (farroupilhas), que queriam a reforma política e o fim da monarquia; e restauradores (caramurus), o regresso de D. Pedo I.
Centralização
Essa instabilidade política resultara numa onda de revoltas, muitas das quais separatistas e/ou republicanas, que foram duramente reprimidas: Cabanagem (1835–1840), no Pará; Farroupilha (1835–1845), no Rio Grande do Sul; Malês (1835) e Sabinada (1837-1838), na Bahia; e Balaiada (1838–1841), no Maranhão. Embora o seu mito fundador seja a batalha dos Guararapes, contra os holandeses, entre abril de 1648 e fevereiro de 1649, é na repressão a esses movimentos que o Exército brasileiro é realmente formado.
Sua consolidação coincide com o chamado Golpe de Maioridade, para que D. Pedro II, então com 14 anos, assumisse o trono (o que somente deveria ocorrer quando completasse 21 anos). Liderado por Antônio Carlos, o Partido Liberal patrocinou ali a centralização do poder, cuja recidiva na nossa história quase sempre foi protagonizada por intervenções militares, uma história que parecia uma página virada com a Constituição de 1988, mas ainda nos assombra, porque continua vivíssima.
Em 1º de julho de 1980, ideólogo do regime militar, o general Golbery do Couto e Silva resumiu a ópera numa conferência na Escola Superior de Guerra (ESG), na qual abordou a centralização e a descentralização da administração, fazendo uma analogia com os movimentos de sístole e diástole do coração. Na ocasião, sugeriu aos militares evitar pronunciamentos que indiquem sintomas de enfraquecimento do governo; procurar nos conflitos soluções negociadas que evitem confronto; desconfiar de movimentos que aliem professores e alunos; e reprimir por meios legais manifestações consideradas impróprias contra o governo, tanto no meio parlamentar quanto por parte dos órgãos de comunicação. Uma parte do conflito de Bolsonaro com o Legislativo e Judiciário é fruto de sua personalidade; a outra, mais preocupante, decorre de uma concepção de Estado centralizado e vertical ainda arraigada, apesar de ultrapassada, compartilhada por alguns generais que o cercam.
Luiz Carlos Azedo: Os “dinossauros”
“Bolsonaro acha que 70% da população terão a doença de forma branda, porém, devem voltar logo ao trabalho para não perderem os empregos”
Ninguém sabe como os dinossauros foram extintos. Entre 208 e 144 milhões de anos atrás, esses animais dominavam os ambientes de terra firme: eram herbívoros, em sua maioria, mas havia algumas espécies carnívoras que se alimentavam de anfíbios, insetos e até mesmo de outros dinossauros. No final do período Cretáceo, foram extintos juntos com diversas outras espécies de animais e plantas. Uma das teorias sobre essa extinção é a de que certos movimentos sofridos pelos continentes provocaram mudanças nas correntes marítimas e também no clima do planeta. Isso teria feito a temperatura baixar, o que causou invernos mais rigorosos. Outra, de que um asteroide colidiu com a Terra e provocou uma catástrofe, com terremotos, tsunamis e incêndios gigantes, que liquidaram a cadeia alimentar. Não existe nenhuma teoria de que tenham sido extintos por uma superbactéria ou um vírus mortal.
Já foram identificadas aproximadamente 3,6 mil espécies de vírus, que podem infectar bactérias, plantas e animais, bem como se instalar e causar doenças ao homem. Gripe, catapora ou varicela, caxumba, dengue, febre amarela, hepatite, rubéola, sarampo, varíola, herpes simples e raiva são as doenças viróticas mais conhecidas. Nenhuma delas se equipara, por exemplo, ao ebola, cuja letalidade é de 90%, ou ao HIV, que já foi de 100% e hoje está sob controle. Ambas não têm vacina reconhecida.
Uma epidemia acontece quando um determinado número de pessoas fica doente e o vírus se propaga exponencialmente. Para os epidemiologistas, o número mágico é 400 para cada 100 mil indivíduos. Esse é o rubicão natural de propagação de um vírus, a partir do qual, na linguagem dos sanitaristas, a epidemia “decola”. As gripes são as epidemias mais comuns, porque seus vírus sofrem permanentes mutações, exigindo campanhas anuais de vacinação. Os antibióticos são utilizados para combater infecções causadas por bactérias, que muitas vezes se propagam em simbiose com os vírus, mas não eliminam os vírus. Por isso, deveriam ter outro nome, talvez antibacterianos, o que facilitaria a vida dos médicos com seus pacientes, que não entendem a diferença entre uma coisa e outra e ficam querendo a medicação.
Os vírus são difíceis de combater. Como os tratamentos quimioterápicos para a infecções virais são limitados, descanso, hidratação e analgésicos são as alternativas mais comuns para reduzir os incômodos das doenças virais, exceto nas infecções respiratórias graves. A cura ocorre, entretanto, porque o sistema de defesa do organismo parasitado passa a produzir anticorpos específicos que combatem o vírus invasor das células. Os vírus são formados por proteínas diferentes daquelas no organismo parasitado, que acabam neutralizadas pelos anticorpos. Assim, caso o vírus invada o organismo novamente, a memória imunológica desencadeará rapidamente uma resposta imune específica contra o vírus, e a doença não se instalará novamente. Quando isso não ocorre, aí, sim, temos um grande problema pela frente.
Imunização
Vários membros da família Coronaviridae infectam humanos e causam uma infecção respiratória discreta. Alguns membros desta família que infectam animais silvestres, quando transmitidos aos humanos, causam uma Síndrome Respiratória Aguda Severa (Sars), como é o caso do Sars-cov-1, da MERS (Síndrome Respiratória do Oriente Médio) e do Sars-cov-2, responsável pela atual pandemia denominada Covid-19. O vírus pulou dos morcegos para animais silvestres que, ao chegarem ao mercado de Wuhan, na China, infectaram os homens. As teorias de que os chineses comeram morcegos ou fabricaram o vírus para dominar o mundo são mentirosas e racistas, disseminadas com o propósito de promover uma nova “Guerra Fria” entre o Ocidente e a China.
O mundo já teve outras pandemias, como a gripe espanhola, que matou 50 milhões de pessoas, mas que nem de longe se propagou com a velocidade no novo coronavírus, devido à globalizaçao. No Brasil, estamos vivendo um momento dramático por causa disso, com o sistema de saúde pública em estresse, devido ao aumento rápido do número de casos, com mais de 200 mortes por dia. A situação é delicada: o presidente Jair Bolsonaro é contra a política de isolamento social adotada por governadores e prefeitos para reduzir a velocidade de propagação da doença e preparar o sistema de saúde para receber seu impacto. Substituiu o ministro Luiz Henrique Mandetta pelo oncologista Nelson Teich, no Ministério da Saúde, com o claro propósito de flexibilizar o regime de quarentena e retomar as atividades econômicas paralisadas em razão da epidemia. Acha que 70% da população terão a doença de forma branda, porém, devem voltar logo ao trabalho para não perderem os empregos. Diz o samba: “quem acha vive se perdendo.”
O risco de colapso do Sistema Único de Saúde (SUS) é real. Mesmo que ocorra a tragédia anunciada, de fato, não devemos temer o fim da espécie. A maioria das pessoas está desenvolvendo seu sistema imunológico para se defender do vírus e com ele conviver, como acontece com outras doenças. O problema é que essas pessoas transmitem o vírus para as demais, inclusive os nossos “dinossauros”, ou seja, os mais idosos, que adquirem lesão pulmonar grave devido à produção de moléculas inflamatórias (citocinas) pelo sistema imune inato e têm também problemas de coagulação, devido à reação inflamatória sistêmica (coagulação intravascular disseminada) ou à produção de anticorpos contra fosfolipídeos (síndrome antifosfolipide).
Enquanto não se tem uma vacina, esses sintomas estão sendo tratados com drogas utilizadas para combater outras doenças, como a polêmica cloroquina, usada contra a malária, de eficácia duvidosa, e drogas anticoagulantes, em especial a heparina. Muitos, porém, não resistem. Ou seja, é melhor os nossos “dinossauros” ficarem bem espertos, em casa.
Luiz Carlos Azedo: A alegoria de Camus
“A epidemia de meningite só acabou após a vacinação de 80 milhões de pessoas, o que seria impossível com a manutenção da censura sobre a doença”
Publicado em 1947, A Peste, do escritor franco-argelino Albert Camus (1913-1960), é uma alegoria da ocupação nazista. Por isso, fez tanto sucesso não só na França como na Europa do pós-guerra e também na América Latina, inclusive no Brasil, nas décadas de 1960 e 1970. Camus foi um militante da Resistência, mas teve uma posição muito moderada em relação aos que colaboraram com os invasores alemães durante a II Grande Guerra, condenando os “justiçamentos”. Já era um escritor consagrado, com duas obras elogiadíssimas pela crítica: O estrangeiro e O mito de Sísifo.
Albert Camus nasceu em 7 de novembro de 1913 na Argélia, à época uma colônia francesa, cenário de seu romance, que conta a história de uma epidemia na cidade de Oran, no norte daquele país. Em 1940, um médico encontrou um rato morto ao deixar seu consultório. Comunicou o fato ao responsável pela limpeza do prédio. No dia seguinte, outro rato foi encontrado morto no mesmo lugar. A esposa do médico tinha tuberculose e foi levada para um sanatório. A quantidade de ratos aumentou exponencialmente. Em um único dia, oito mil ratos foram coletados e encaminhados para cremação.
Em pânico, a cidade declarou estado de calamidade, as pessoas tinham febre e morriam em massa. Os muros foram fechados, em quarentena, ninguém entrava ou saía; os doentes foram isolados, as famílias, separadas. Enquanto o padre apregoava que tudo aquilo era um castigo divino, prisioneiros eram mobilizados para enterrar os cadáveres, que empilhavam nas ruas: velhos, mulheres e crianças morriam. O livro é uma alegoria da condição de vida regulada pela morte, fez muito sucesso porque era uma crítica ao fascismo e relatava as diferenças de comportamento diante de situações-limite. Fora escrito durante a ocupação militar alemã. Camus foi editor do jornal clandestino Combat, porta-voz dos partisans.
Em 1951, Camus lançou o livro O homem revoltado, no qual condenava a pena de morte e criticava duramente o comunismo e o marxismo, o que provocou uma ruptura com seu amigo e filósofo Jean-Paul Sartre, que liderou seu linchamento moral por parte da intelectualidade francesa. Mesmo depois do Prêmio Nobel de Literatura, em 1957, continuou sendo um renegado para a esquerda. Seu discurso na premiação foi profético. Permanece atual nestes tempos de epidemia de coronavírus.
“Cada geração se sente, sem dúvida, condenada a reformar o mundo. No entanto, a minha sabe que não o reformará. Mas a sua tarefa é talvez ainda maior. Ela consiste em impedir que o mundo se desfaça. Herdeira de uma história corrupta onde se mesclam revoluções decaídas, tecnologias enlouquecidas, deuses mortos e ideologias esgotadas, onde poderes medíocres podem hoje a tudo destruir, mas não sabem mais convencer, onde a inteligência se rebaixou para servir ao ódio e à opressão, esta geração tem o débito, com ela mesma e com as gerações próximas, de restabelecer, a partir de suas próprias negações, um pouco daquilo que faz a dignidade de viver e de morrer”, disse Camus.
Epidemia
Em comemoração aos 60 anos de sua morte, divulgou-se na França um de seus textos da época da resistência, cujo original foi encontrado nos arquivos do general De Gaulle, o presidente francês que liderara a Resistência do exílio. O documento era destinado às forças que combatiam o marechal Pétain e trata de dois sentimentos presentes no contexto da ocupação: ansiedade e incerteza. A ansiedade “em uma luta contra o relógio” para reconstruir o país; a incerteza, em razão do fato de que, “se a guerra mata homens, também pode matar suas ideias”.
A alegoria de A Peste também serve de advertência diante de certas manifestações de apoio ao regime militar implantado após o golpe de 1964, cujo aniversário foi comemorado ontem. Em 1974, o Brasil enfrentou a pior epidemia contra a meningite de sua história. Para evitar o contágio, o governo decretou a suspensão das aulas e cancelou os Jogos Pan-Americanos de 1975, que foram transferidos de São Paulo para o México. A epidemia começou em 1971, no distrito de Santo Amaro, na Zona Sul de São Paulo. Com dor de cabeça, febre alta e rigidez na nuca, muitos morreram sem diagnóstico ou tratamento.
Em setembro de 1974, a epidemia atingiu seu ápice. A proporção era de 200 casos por 100 mil habitantes, como no “Cinturão Africano da Meningite”, que hoje compreende 26 países e se estende do Senegal até a Etiópia. O Instituto de Infectologia Emílio Ribas, com apenas 300 leitos disponíveis, chegou a internar 1,2 mil pacientes. Na época, eu era um jovem repórter do jornal O Fluminense, de Niterói (RJ). Com a cumplicidade de um acadêmico de medicina, conseguimos fotografar pela janela uma enfermaria lotada de crianças com meningite, no Hospital Universitário Antônio Pedro (UFF). A foto foi publicada com a matéria, mas gerou a maior crise política para a direção do jornal, porque a meningite era um assunto censurado pelos militares. A epidemia só acabou no ano seguinte, após a vacinação de 80 milhões de pessoas, que seria impossível com a manutenção da censura sobre a meningite pelo governo do general Ernesto Geisel.
Luiz Carlos Azedo: A volta ao “normal”
“O impacto da pandemia na divisão internacional do trabalho, nas atividades da indústria, do comércio e dos serviços e nas relações de trabalho ainda não é mensurável”
O presidente Jair Bolsonaro atravessou a Praça dos Três Poderes para pôr uma saia justa no presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Dias Toffoli. Acompanhado de ministros e um grupo de empresários com os quais havia se reunido, fez-lhe uma visita surpresa, na qual apelou para que as medidas restritivas motivadas pela crise do coronavírus sejam amenizadas nos estados e municípios. A iniciativa coincidiu com a sua decisão de autorizar o funcionamento da construção civil e das indústrias, que o governo federal passou a considerar atividades essenciais, ou seja, fora do regime de isolamento social.
Toffoli justificou as decisões da Corte em favor dos entes federados: estados e municípios têm prerrogativas constitucionais reconhecidas pelo Supremo para adotar o distanciamento social, conforme orientação das autoridades sanitárias, entre as quais a Organização Mundial de Saúde (OMS). Toffoli também sugeriu que essas ações sejam coordenadas entre União, estados e municípios. A assessoria de comunicaçao do Supremo confirmou que o encontro foi marcado de última hora e não estava na agenda. Bolsonaro decidira fazer a visita durante a reunião que teve com representantes da indústria, no Palácio do Planalto.
A travessia a pé da Praça dos Três Poderes lembrou, com sinal trocado, a ida do senador Antônio Carlos Magahães (PFL, hoje DEM-BA), então presidente do Senado, ao Palácio do Planalto, para tomar satisfações com o presidente Fernando Henrique Cardoso por causa da intervenção no Banco Econômico, por ocasião do PROER, programa de reestruturação do sistema financeiro adotado em razão do Plano Real. Imaginem uma situação inversa: os ministros do Supremo atravessando a Praça dos Três Poderes de toga, para cobrar a entrega do vídeo da reunião ministerial na qual Bolsonaro teria tentado interferir na atuação da Polícia Federal (PF), conforme acusa o ex-ministro da Justiça Sérgio Moro.
Para alguns ministros do STF, Bolsonaro está tentando constranger o Supremo e dividir o ônus da pandemia de coronavírus com a Justiça federal, que vem dando decisões favoráveis a estados e municípios, em todos os níveis, contra medidas da União que atropelam a autonomia dos demais entes federados, como reter respiradores adquiridos pelos governos estaduais. Acompanhado dos ministros militares e do ministro da Economia, Paulo Guedes, a reunião de Bolsonaro com Toffoli foi transmitida ao vivo, numa live, por assessores da Presidência. Guedes foi dramático ao dizer que o Brasil corre o risco de viver uma crise de abastecimento semelhante à da Venezuela ou de desindustrialização, como a Argentina. Um dos empresários disse que a indústria está na UTI e que pode morrer de inanição. Houve evidente exagero, porque muitos setores da indústria, sobretudo construção civil, energia e alimentação, estão funcionando.
Bolsonaro insiste em criticar as medidas de isolamento social , devido à necessidade de retomada da economia, sem levar em conta que a epidemia no Brasil entrou numa escalada violenta e que o sistema de saúde pública, em vários estados, está em colapso, entre os quais, Rio de Janeiro, Pernambuco, Ceará, Amazonas . Ontem, o Ministério da Saúde divulgou um balanço no qual foram registradas 610 mortes nas últimas 24 horas. Estamos no limiar dos 10 mil novos casos por dia de coronavírus, num total de 135 mil casos. São Paulo continua sendo o epicentro da epidemia, com quase 40 mil casos e mais de 3,2 mil mortes. Até hoje Bolsonaro não visitou nenhum hospital, nem demonstra o luto pelos que morreram. Trata a epidemia como uma fatalidade, com a qual devemos nos conformar.
“Novo normal””
A narrativa de Bolsonaro em relaçao à economia mira a parcela da população com mais dificuldades econômicas e reflete o lobby dos empresários mais atingidos pela pandemia, como se a recessão fosse consequência apenas das decisões de governadores e prefeitos. Na verdade, a recessão é mundial. E a recuperação da economia é uma variável que depende muito de o sistema de saúde não entrar em colapso. Se isso ocorre, aí sim, a paralisação será totaL, com a adoção do “lockdown”, como aconteceu na Itália e na Espanha. No Brasil, onde já há colapso, a medida está sendo adotada em bairros, cidades e regiões por alguns estados.
No mundo, os países que adotaram medidas de isolamento mais rigorosas conseguiram evitar uma disparada dos casos de covid-19. Itália, Espanha, Inglaterra e Estados Unidos enfrentarem situação muito pior porque demoraram a adotar as medidas. O Brasil até que estava conseguindo “achatar a curva” da epidemia, mas a saída de Luiz Henrique Mandetta da Saúde, mas o estímulo à volta às ruas por parte de Bolsonaro e seus apoiadores provocou o relaxamento do distanciamento social e a explosão do número de casos. Agora, o novo ministro da Saúde, Nelson Teich, constrangido e ainda meio perdido na pandemia, corre atrás do prejuízo.
A grande questão com relação ao coronavírus é que não existe possibilidade de volta à plena normalidade. Em termos sanitários, nada será como era antes enquanto não houver uma vacina ou medicamento eficaz contra o vírus, que pode continuar circulando nos próximos anos. O impacto da pandemia na divisão internacional do trabalho, nas atividades da indústria, do comércio e dos serviços e nas relações de trabalho, em muitos aspectos, pode ser irreversível e está sendo chamado de “novo normal”. No caso do Brasil, por causa das grandes desigualdades sociais e da vastidão da economia informal, essa mudança terá características sociais dramáticas, porque muitas atividades serão bastante reduzidas ou simplesmente deixarão de existir.
Luiz Carlos Azedo: Sem chance
“Tanto o Congresso quanto o Supremo, ao contrário do que o presidente da República se queixa, colaboram com o governo no enfrentamento da crise”
No rumo em que vai, o governo Bolsonaro não tem chance de dar certo, isso não significa que o impeachment do presidente da República venha a ocorrer. O problema é que as variáveis de sucesso conspiram para que as coisas deem errado. A primeira delas é o conceito de governo. Bolsonaro fez uma opção por um governo de colisão com os demais poderes e esferas de poder, anda às turras com o Congresso e o Supremo, os governadores e os prefeitos. No lugar do presidencialismo de coalizão, optou por uma estratégia de centralização de poder e confronto. Montou um time de militares para operar a administração, mas não deixa que os generais do Palácio do Planalto façam uma política de conciliação à la Duque de Caxias. Seu estilo está mais para Gastão de Orléans, o Conde d’Eu.
Governança e governabilidade caminham de mãos dadas, Bolsonaro cria instabilidade política permanentemente, força os limites do regime democrático. A segunda variável de sucesso seria um método adequado de governança. Aparentemente, é um assunto com o qual não se preocupa. Confronta permanentemente a elite do serviço público, desestabiliza até as atividades-fins, como aconteceu com a Saúde, num momento decisivo para achatamento da curva da epidemia de coronavírus. Se tivesse colado no então ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, estaria usufruindo dos mesmos índices de popularidade que o auxiliar ostentava, mas errou feio. E continua errando, embora aparentemente tenha caído a ficha para o novo ministro da Saúde, Nelson Teich, de que, neste momento, é loucura relaxar a política de isolamento social.
No mesmo caso se enquadra a ruptura com o ex-ministro Sergio Moro, que saiu do governo acusando o presidente da República de interferências indevidas na Polícia Federal. O depoimento de Moro no inquérito que investiga o caso, divulgado ontem, frustrou a oposição, que esperava denúncias mais contundentes do que aquelas que já havia feito. O problema de Moro é que a maioria de suas afirmações depende de confirmação do estado-maior do governo. Embora todo ocupante de cargo público tenha compromisso com a verdade, nada garante que os generais Luiz Eduardo Ramos (Secretaria de Governo); Augusto Heleno (Gabinete de Segurança Institucional) e Walter Braga Netto (Casa Civil), ao interpretar os fatos, corroborem as acusações de Moro; resta saber o que dirão os delegados da Polícia Federal (PF) Ricardo Saad, Carlos Henrique de Oliveira Sousa, Alexandre Saraiva, Rodrigo Teixeira, Maurício Valeixo e Alexandre Ramagem.
Moro não conta com a solidariedade política do Ministério Público Federal (MPF) e do Supremo Tribunal Federal (STF), que vão investigar o caso numa linha de ponderação e equilíbrio. Não pretendem ser protagonistas, no momento atual, de uma crise institucional. No depoimento de Moro, além das acusações contra Bolsonaro, também há contradições e lacunas que podem ser usadas contra o ex-juiz. Apesar de contar com grande prestígio na opinião pública, Moro agora enfrenta uma guerra nas redes sociais, para a qual não estava preparado. Continua sendo um nome fortíssimo para a disputa da Presidência em 2022, mas terá de atravessar o deserto sem camelo, se digladiando com os inimigos declarados e ocultos que amealhou ao longo de sua atuação, inclusive nos tribunais. O caso Moro, porém, tira de Bolsonaro a bandeira da ética.
Novo cenário
A terceira variável do sucesso é a construção de um ambiente favorável para o governo. Impossível isso ocorrer a curto prazo. No plano mais objetivo, a pandemia de coronavírus e a recessão mundial modificaram completamente as circunstâncias nas quais Bolsonaro governa. Um governante que chegou ao poder mais pela sorte do que pelas virtudes tem grandes dificuldades de lidar com mudanças de envergadura. É o caso de Bolsonaro. Aves podem fazer coisas como mergulhar e falar, mas não pode dar leite. É assim que a economia funciona. No cenário de desestruturação das atividades econômicas por causa da epidemia, a política econômica ultraliberal do ministro Paulo Guedes foi para o espaço; não pode ser implementada sem um custo social muito alto no imediato pós-epidemia. Essa é uma contradição com a qual Bolsonaro não contava. No mundo inteiro, se discute o que será o “novo normal” na vida social e econômica. Não é possível, simplesmente, voltar ao que se fazia antes, como imagina.
O ambiente político também mudou muito, embora o governo venha fazendo um esforço para aumentar seu cacife no Congresso. A aproximação de Bolsonaro com os partidos do chamado Centrão blindará o governo diante das tentativas de impeachment da oposição, mas isso não melhora seu desempenho administrativo, que deixa muito a desejar, nem garante a hegemonia no Congresso, além de afastar setores da opinião pública identificados com Moro. Além disso, o estresse institucional criado por Bolsonaro atrapalha as negociações políticas. Tanto o Congresso quanto o Supremo, ao contrário do que o presidente da República se queixa, vêm atuando no sentido de colaborar com o governo no enfrentamento da crise provocada pela pandemia. Nesse aspecto, deveria até agradecer, em vez de tanto reclamar.
Luiz Carlos Azedo: Emergência e fricção
“Bolsonaro agrega à epidemia de coronavírus um ambiente político de conflitos desnecessários e estresse institucional, com crises criadas dentro do governo”
Nunca vivemos, desde a gripe espanhola de 1918, uma emergência sanitária como a que o mundo atravessa. O problema do novo coronavírus é que ainda há mais dúvidas do que certezas em relação à doença, exceto que se propaga muito rapidamente, é letal para um contingente significativo de suas vítimas e não se tem previsão de quando e se teremos uma vacina que o previna, nem um remédio realmente eficaz para combatê-lo. O que tem sido mais eficiente no combate à epidemia é o distanciamento social e um sistema público de saúde robusto, para tratar os casos graves e salvar vidas.
Ninguém estava preparado para enfrentar o coronavírus, essa é a verdade. Mas talvez nenhum outro governante no mundo tenha revelado tanto despreparo para lidar com a situaçao como o presidente Jair Bolsonaro. Até hoje, não se deu conta de que a volta à normalidade é impossível enquanto o vírus estiver se propagando numa velocidade maior do que a capacidade de atender as pessoas que necessitam de assistência médica, pois isso significa pôr em colapso o sistema de saúde e, consequentemente, toda a economia.
Os números revelados até ontem são eloquentes: 7.321 mortes e 107.780 casos confirmados, dos quais 32.187 em São Paulo, com 2.654 mortes. Com a subnotificação, calcula-se que o número de pessoas contaminadas no país pode se aproximar de 1 milhão. Uma conta simples, usando como base o índice otimista de que 3% necessitarão de internação, projeta uma demanda próxima de 30 mil vagas em leitos hospitalares nos próximos 30 dias. Essa é a bucha na mão de governadores e prefeitos de todo o país. Em Manaus, Recife, Fortaleza e Rio de Janeiro, já há gente morrendo por falta de vagas nas UTIs, o que pode se reproduzir nos demais estados, a começar por Santa Catarina, a bola da vez.
É inequívoco que o país está sofrendo as consequências do relaxamento da política de distanciamento social, que é estimulado sistematicamente pelo presidente Jair Bolsonaro, com eco no desespero da parcela da população que perdeu suas fontes de renda. Com o agravante de que os R$ 600 aprovados pelo Congresso ainda não chegaram à parcela considerável dos que têm direito ao benefício, por dificuldades operacionais da Caixa Econômica Federal, que centralizou, desnecessariamente, o cadastramento dos beneficiados e a distribuição dos recursos. O desespero nas filas das agências da Caixa revela a outra face do drama humano que estamos vivendo.
Entretanto, o custo econômico do colapso total do sistema de saúde, provocado pela volta atabalhoada às atividades do comércio e dos serviços, seria muito maior do que o da atual política de distanciamento social. Essa dimensão do problema o presidente Bolsonaro não quer aceitar, assim como a bolha de apoiadores fanatizados com a qual interage. Ninguém sabe como sairemos dessa crise. Com certeza, porém, teríamos perspectivas mais otimistas se não houvesse tanta fricção no combate à epidemia, principalmente política.
Protagonismo
Quem mais protagoniza essa fricção é o presidente da República, que parece sabotar os próprios esforços do governo para combater a epidemia e criar um ambiente de cooperação entre os Poderes e demais entes federados, para mitigar seus efeitos econômicos e sociais. Até mesmo as relações com os parceiros internacionais, dos quais dependemos para obter mais equipamentos e insumos, notadamente, a China, sofre os efeitos dessa fricção. Na cena internacional, o Brasil voltou a ser um país exótico e, agora, politicamente isolado. A construção de gerações de diplomatas do Itamaraty está sendo implodida pelo chanceler Ernesto Araújo.
Essa fricção agrega à epidemia de coronavírus um ambiente político de conflitos desnecessários e estresse institucional, deteriorado por crises criadas dentro do próprio governo, pelo presidente da República. Ontem, Bolsonaro nomeou a toque de caixa o novo diretor da Polícia Federal, delegado Rolando Alexandre de Souza, que decidiu trocar a chefia da superintendência do Rio de Janeiro. Carlos Henrique Oliveira, atual comandante do estado fluminense, foi convidado para ser o diretor executivo da Polícia Federal, deixando a Superintendência do Rio, cuja direção Bolsonaro sempre quis indicar. Por sua vez, o procurador-geral da República, Augusto Aras, pediu ao Supremo Tribunal Federal (STF) que autorize novas diligências no inquérito que apura suposta interferência política do presidente Jair Bolsonaro na Polícia Federal.
Relator do caso, cabe ao ministro Celso de Mello autorizar a oitiva de pessoas citadas por Moro em depoimento; a recuperação de áudio ou vídeo que comprove a suposta tentativa de interferência; e a perícia nas informações obtidas a partir do celular de Moro. Dez pessoas do alto escalão do governo serão ouvidas, entre as quais os ministros Luiz Eduardo Ramos (Governo); Augusto Heleno (GSI), Braga Netto (Casa Civil); a deputada Carla Zambelli (PSL-SP); o ex-diretor-geral da Polícia Federal Maurício Valeixo; e os delegados da PF Ricardo Saadi, Carlos Henrique de Oliveira Sousa, Alexandre Saraiva, Rodrigo Teixeira e Alexandre Ramagem Rodrigues. O que se investiga? “O eventual patrocínio, direto ou indireto, de interesses privados do Presidente da República perante o Departamento de Polícia Federal, visando ao provimento de cargos em comissão e a exoneração de seus ocupantes”. Mais fricção à vista.
Benito Salomão: Lei de Responsabilidade Fiscal 20 anos, o que nós aprendemos?
“Isto poderia ser claro que nenhuma instituição iria (ou poderia, talvez) prevenir um governo ou uma legislatura executar déficits, se isto é o que eles estão realmente determinados a fazer”. (Alesina e Perotti, 1996).
No dia 04/05, comemoramos 20 anos desde a implantação da Lei Complementar 101/2000 ou Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF). O destino e suas ironias quis que comemorássemos seu 20º aniversário em meio a uma aguda crise fiscal, iniciada em meados desta década a partir de contabilidades criativas (Gobetti e Orair, 2017), e que será inevitavelmente ampliada durante a pandemia.
Os cálculos do Professor Josué Pellegrine estimam uma necessidade de financiamento (NFSP) de aproximadamente R$980 bilhões em 2020, sendo R$267 bi referentes ao déficit primário já previsto para este ano mais o socorro aos Estados e municípios em trâmite no Congresso, mais R$454,4 referentes a medidas de enfrentamento ao COVID-19, chegando a um resultado primário de -R$721 bi. Some-se a isto um provisionamento de despesas nominais (serviços da dívida) estimadas na casa de R$380 bi, chegaríamos aos R$980 (ou 14% do PIB). Parte disto está sendo suavizado pela venda de reservas cambiais, cujo impacto, porém, é limitado, Pellegrine trabalha com um saldo líquido de 10% do PIB de NFSP em 2020. Nada impede, que estes cálculos sejam revistos para cima se: 1° os efeitos da pandemia durarem mais tempo do que o previsto e demandarem mais socorro do governo e, 2° se o custo de rolagem da dívida pública aumentar como aliás já está sinalizado.
A pandemia fez com que os objetivos de curto e longo prazo da política fiscal no Brasil, se descolassem. A PEC 10/2020 de autoria da Câmara, deu ao governo Federal as condições legais necessárias para que o governo financiasse todas as despesas de curto prazo da Pandemia através da emissão de títulos do Tesouro, que excepcionalmente podem ser comprados pelo Banco Central (prática vedada pelo art. 34 da LRF). No longo prazo, no entanto, o objetivo inevitavelmente será conter a trajetória de expansão da dívida. O fato é que a crise fiscal era um dado da realidade antes da pandemia, fruto de erros evitáveis da política econômica e não totalmente corrigidos nos anos recentes. Mas como lidar com ela? No Brasil, diferentemente do resto do mundo, o primeiro passo para lidar com um problema fiscal é considerar que ele existe, parece uma obviedade, no entanto, existem grupos de economistas que estão convencidos que uma dívida de 90% ou 95% do PIB não é um problema. Eu, evidentemente discordo e vejo que existem três formas de lidar: 1° elevar tributos, 2° cortar gastos públicos e, 3° privatizações.
Se após a Pandemia, o estoque de dívida for, por exemplo 90% do PIB e o PIB brasileiro crescer a uma média de 1% ano, tendo um custo de rolagem da dívida constante e próximo a 4% ano, o esforço fiscal para manter a relação dívida/PIB é de um superávit primário da ordem de 3% ano (próximo de R$180 bilhões). Se levarmos em consideração que o Brasil sem Pandemia já apresentava um déficit fiscal previsto para 2020 de R$124 bi, estaremos falando de um esforço da ordem de R$304 bilhões no primeiro ano do ajuste. Um esforço desta magnitude certamente exigirá uma combinação de aumento de impostos e corte de gastos.
Pelo lado dos gastos, a reforma da previdência aprovada deve começar a ser sentida no caixa. Se estimou um potencial de economia total de R$900 bilhões em 10 anos, porém, dado que as novas regras incidem sobre trabalhadores que irão se aposentar, a maior parte desta economia ficará concentrada nos anos finais da estimativa. O gasto com pessoal do governo federal em 2019 foi da ordem de R$313 bilhões, esta rubrica estará congelada pelos próximos 2 anos, considerando que seriam gastos a simples reposição da inflação para tais salários, o efeito orçamentário disto é simbólico, próximo a R$22 bilhões em 2 anos. A margem para cortar despesas discricionárias, dentre elas, o investimento público foi praticamente exaurida nos anos anteriores e, talvez, teremos um congelamento real do salário mínimo em 2021 que pode criar uma folga de mais uns R$15 bi no orçamento.
Pelo lado dos gastos a situação está no limite, pelo lado das receitas, é preciso ser realista e dizer que novos impostos serão criados. Não que eu goste da ideia, mas a recriação da CPMF parece inevitável neste novo cenário. A estimativa do Ministério da Economia é de uma arrecadação próxima de R$150 bilhões. Recriar um imposto em períodos recessivos é sempre perigoso, por isto seriam necessárias duas ações adicionais: 1° aprovação da reforma tributária nos moldes do projeto da Câmara e, 2° sinalizar ao país que este seria um imposto temporário, com validade de no máximo 5 anos, para que a sociedade entenda este movimento como um esforço de ajuste e não como um aumento perene do tamanho do Estado.
Há ainda outras medidas como privatizações e revisões de incentivos fiscais a setores empresariais que podem ter grande impacto fiscal neste momento. Sobre isto, dissertarei em artigo futuro. Por hora, saliento que qualquer estratégia de ajuste, deve considerar a permanência das regras fiscais como a LRF e o Teto de Gastos, que têm um efeito disciplinador e distributivo sobre o Estado e um papel fundamental na credibilidade da política macroeconômica e na ancoragem de expectativas.
*Benito Salomão – Doutorando em Economia PPGE-UFU, Visiting Research VSE-UBC.
Referências
ALESINA, A. PEROTTI, R. Fiscal Discipline and the Budget Process. American Economic Review. 1996.