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Luiz Carlos Azedo: Senhor da guerra
Mike Pompeo, o secretário de Estado norte-americano não deixou dúvida de que sua visita teve como objetivo trabalhar pela derrubada do presidente da Venezuela, Nicolas Maduro
A inusitada visita do secretário de Estado dos Estados Unidos, Mike Pompeo, a um campo de acolhimento de venezuelanos refugiados em Boa Vista (RR) foi uma evidente provocação política, cujo objetivo é escalar as tensões entre a Venezuela e seus vizinhos. E, com isso, dar uma mãozinha para a campanha eleitoral do presidente Donald Trump, que está perdendo a reeleição para o candidato do Partido Democrata, Joe Biden. O Brasil armou o circo porque interessa ao presidente Jair Bolsonaro a vitória de seu amigo republicano. A eleição de um democrata provocaria o colapso da política externa desenvolvida pelo chanceler Ernesto Araújo, considerada um desastre por seus colegas mais experientes do Itamaraty.
O que o Brasil ganhará em troca? Em princípio, 30 moedas, ou seja, US$ 30 milhões para auxiliar a assistência social aos imigrantes. Não chega nem perto do que estamos perdendo em investimentos em razão da política ambiental de Bolsonaro, embora o presidente da República diga que é a melhor do mundo. Só no Fundo da Amazônia, Noruega e Alemanha, que suspenderam seus investimentos, foram responsáveis por 99% dos R$ 3,3 bilhões destinados à proteção da Amazônia. Voltemos à visita de Pompeo. O secretário de Estado norte-americano não deixou dúvida de que sua visita teve como objetivo trabalhar pela derrubada do presidente Nicolas Maduro. Todo presidente dos Estados Unidos que está perdendo as eleições gosta de exibir seus músculos na política externa.
Do Brasil, Pompeo viajou para a Colômbia, cuja fronteira com a Venezuela é o ponto mais quente das tensões na América do Sul. O presidente Ivan Duque é outro aliado incondicional de Trump, que mantém assessores e aviões norte-americanos em território colombiano. Antes, Pompeu havia estado no Suriname e na Guiana, que também vive um estresse com a Venezuela, com o agravante de que sua fronteira nunca foi reconhecida pelos venezuelanos. Na Guiana, Pompeo voltou a criticar Maduro: “Sabemos que o regime de Maduro dizimou o povo da Venezuela e que o próprio Maduro é um traficante de drogas acusado. Isso significa que ele tem que partir”, afirmou. Para a situação política no país vizinho, a provocação só teria consequência prática se houvesse uma intervenção. Afora isso, fortalece a unidade das Forças Armadas venezuelanas e endossa a narrativa de Maduro para reprimir a oposição.
Operação Amazônia
Entretanto, vejam bem, a declaração que Pompeo deu em Boa Vista (RO) foi enigmática quanto ao que os Estados Unidos pretendem realmente fazer. Questionado sobre quando o ditador Nicolás Maduro deixará o poder, respondeu que em casos como a Alemanha Oriental, Romênia e União Soviética, todo mundo fazia a mesma pergunta. “Quando esse dia vai chegar? Ninguém imaginava, mas aconteceu”. Pompeo é ex-diretor da CIA, a agência de inteligência dos Estados Unidos, que se especializou em fomentar conflitos entre países vizinhos e guerras civis.
Republicano, Pompeo é um político reacionário do Kansas, que se destacou no Congresso norte-americano por combater o movimento LGBTQIA+. Também foi um dos proponentes de um projeto de lei que proibiria o financiamento federal de qualquer grupo que realizasse abortos, e outro que incluiria nascituros entre os categorizados como “cidadãos” pela 14ª Emenda. Ele também votou a favor da proibição de informações sobre o aborto em centros de saúde escolares e pela proibição de financiamento federal à Planned Parenthood e ao Fundo de População das Nações Unidas.
O presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), em razão das declarações de Pompeo, emitiu uma nota com duras críticas à visita do secretário de Estado. Deve saber de mais coisas sobre a conversa entre secretário norte-americano e o chanceler brasileiro. A visita também coincide com a mobilização de tropas, equipamentos e armamentos para a Operação Amazônia, que faz parte do Programa de Adestramento Avançado de Grande Comando (PAA G Cmdo), envolvendo mais de 3.000 militares, de cinco comandos diferentes. A operação será realizada nas proximidades de Manaus, até 23 de dezembro, portanto, bem longe da fronteira com a Venezuela.
O Ministério da Defesa e os comandos de Exército, Marinha e Aeronáutica nunca foram favoráveis à escalada de tensões com a Venezuela, embora tenhamos mais homens, tanques, embarcações e aviões do que o país vizinho. As vantagens venezuelanas são os 24 caças SU-30, os helicópteros Mi-17, os tanques T-92 e os mísseis S-300, capazes de atingir com precisão alvos a 250km, todos de fabricação russa e entre os melhores do mundo. Mas, o grande trunfo de Maduro é o apoio ostensivo do presidente Vladimir Putin, da Rússia, que adora jogar uma boia para ditadores que estão se afogando, e a discreta, mas robusta, ajuda econômica da China. Na proposta de atualização da Política Nacional de Defesa, enviada pelo governo ao Congresso, pela primeira vez, desde a Guerra Malvinas, o Brasil admite a possibilidade de um confronto militar com um país vizinho.
Luiz Carlos Azedo: Supremo depoimento
Tudo o que Bolsonaro não quer é ser ouvido presencialmente, isso permitiria aos delegados buscar contradições entre suas declarações e os fatos já apurados. O depoimento foi suspenso
O ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Marco Aurélio Mello suspendeu, ontem, a tramitação do inquérito que apura se o presidente Jair Bolsonaro tentou interferir na Polícia Federal. O decano da Corte, ministro Celso de Mello, licenciado por motivos de saúde, havia decidido que Bolsonaro faria um depoimento presencial, sendo inquirido pelos delegados que investigam o caso, mas a Advocacia-Geral da União (AGU) recorreu da decisão, solicitando que o depoimento fosse por escrito, como aconteceu com o ex-presidente Michel Temer. O ministro Marco Aurélio decidiu que caberá ao plenário do STF apreciar a questão.
A decisão mexe com o espírito de corpo da Corte, porque a reversão da decisão de Celso de Mello empana a saída do decano do Supremo. Na sua decisão, Marco Aurélio, que será o novo decano, antecipou seu voto como relator, que faculta ao presidente da República enviar um depoimento por escrito ou, se preferir, escolher o melhor dia para ser ouvido. Tudo o que Bolsonaro não quer é ser ouvido, porque isso permitiria aos delegados buscar contradições entre suas declarações e os fatos já apurados. Caberá ao presidente do Supremo, ministro Luiz Fux, pôr na pauta do plenário a apreciação do caso. Até lá, o inquérito fica paralisado.
O maior constrangimento do presidente Bolsonaro, acusado pelo ex-ministro da Justiça Sergio Moro de tentar interferir na atuação da Polícia Federal, é o caso Fabrício Queiroz, o ex-assessor parlamentar de seu filho Flávio Bolsonaro (Republicano-RJ), senador eleito pelo Rio de Janeiro, investigado no escândalo das rachadinhas da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro. O empresário Paulo Marinho, que participou da coordenação da campanha de Bolsonaro e é o primeiro suplente de Flávio, denunciou à Polícia Federal o vazamento de informações sobre o caso Queiroz e seu envolvimento com as milícias fluminenses, às vésperas da sucessão presidencial.
Celso de Mello, em licença médica até o dia 26 de setembro, havia negado pedido para que as respostas ao depoimento fossem dadas por escrito. Bolsonaro teria que comparecer à Polícia Federal como investigado, porém, com direito a permanecer em silêncio. O decano também decidiu que os advogados de Moro poderiam acompanhar o depoimento. Entendeu que os chefes dos Três Poderes, constitucionalmente, só podem depor por escrito como testemunhas ou vítimas, não quando são investigados ou réus por atos cometidos no exército do mandato.
Essa decisão esticou a corda das tensões entre o Executivo e o Supremo. Entretanto, a liminar de Marco Aurélio desanuviou a situação, ao invocar o precedente do ex-presidente Michel Temer, em decisões dos ministros Edson Fachin, que é o relator da Lava-Jato, e Luís Roberto Barros, atual presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Seriam três votos favoráveis ao pleito de Bolsonaro, supõe-se. O ex-presidente da Corte, Dias Toffoli, sempre foi um conciliador, e o ministro Luiz Fux, que acabou de assumir, devem acompanhar Marco Aurélio. Outro que pode atuar para distensionar as relações do Supremo com o presidente da República é o ministro Gilmar Mendes, que já deu liminares favoráveis ao senador Flávio Bolsonaro no caso Fabrício Queiroz. O único constrangimento é a revisão da liminar do decano Celso de Mello, na sua despedida do Supremo.
Posse radioativa
Tudo indica que a cerimônia de posse do ministro Luiz Fux na Presidência do Supremo, de caráter presencial, mesmo com todas as cautelas, foi um fator disseminador da covid-19 na cúpula dos Poderes, embora os organizadores do evento tenham observado o protocolo de segurança sanitária estabelecido pelo Departamento de Saúde do STF. Além do ministro Fux, que contraiu a doença, o procurador-geral da República, Augusto Aras, anunciou que está com o vírus. Antes, já haviam comunicado que se contaminaram a presidente do Tribunal Superior do Trabalho (TST), Maria Cristina Peduzzi, e os ministros do Superior Tribunal de Justiça (STJ) Luís Felipe Salomão e Antônio Saldanha Palheiro, além do presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ). Todos estavam na posse de Fux, que ofereceu uma espécie de coquetel aos convidados.
Em nota divulgada ontem, o STF recomendou a todos os convidados do evento que fizessem o teste de coronavírus. O mesmo procedimento foi adotado em relação aos servidores do tribunal. O Brasil registrou, ontem, 134 mil mortes e 4, 4 milhões de casos. A média móvel nas últimas duas semanas, porém, continua em queda, com 789 mortes, uma redução de 8%. No mundo, a aceleração do número de casos na Europa, que registrou novos 54 mil contaminados nas últimas 24 horas, provocou um alerta da Organização Mundial de Saúde (OMS), que teme uma segunda onda à medida que, nas cidades, volta-se à vida normal.
Luiz Carlos Azedo: Biruta de aeroporto
Bolsonaro transferiu para o Congresso a criação do Renda Brasil, e a desindexação das aposentadorias, ampliando o conflito entre a base do governo e a equipe econômica
O governo parece biruta de aeroporto. Um dia após o presidente Jair Bolsonaro declarar que não pretende mexer com o Bolsa Família e outros programas de transferência de renda para as populações mais pobres antes de 2022, cancelando o projeto de programa Renda Brasil, o relator do Orçamento da União, senador Marcio Bittar (MDB-AC), anunciou que foi autorizado pelo presidente da República a incluir no seu relatório um novo programa social, para auxiliar a população de baixa renda, após o fim do auxílio emergencial.
Disse Bittar: “Tomei café da manhã com o presidente da República. Antes do almoço conversamos mais um pouco, e eu fui solicitar ao presidente, se ele me autorizava a colocar dentro do Orçamento a criação de um programa social que possa atender a milhões de brasileiros que foram identificados ao longo da pandemia e que estavam fora de qualquer programa social. O presidente me autorizou”. O secretário de Fazenda do Ministério da Economia, Waldery Rodrigues, cuja cabeça está a prêmio por ter anunciado o congelamento das aposentadorias por dois anos para financiar o programa, continua no cargo, depois de receber “cartão vermelho”de Bolsonaro.
Traduzindo a conversa com Bittar, o presidente Bolsonaro transferiu para o Congresso a responsabilidade pela criação do Renda Brasil, ampliando o conflito entre as lideranças da base do governo e a equipe econômica. O problema central continua existindo: a falta de recursos para criar o novo programa sem inviabilizar o funcionamento da administração federal. O pulo do gato para isso é a chamada desindexação, palavra mágica para acabar com os reajustes automáticos de despesas decorrentes da inflação oficial. Isso significa congelar ou reduzir o valor real de todos os programas que estão vinculados ao salário mínimo, o caso das aposentadorias e o do Benefício de Prestação Continuada (o salário mínimo destinado aos idosos sem nenhuma fonte de renda) para criar um novo programa que sirva de bandeira para a reeleição de Bolsonaro, no lugar do Bolsa Família.
Tudo indica que estamos caminhando para um orçamento de fantasia, no qual a estimativa de arrecadação é aumentada e a projeção da inflação, reduzida, para permitir um encontro de contas artificial entre receitas e despesas. No Congresso Nacional, não será a primeira vez que isso pode acontecer, mas é uma contradição com tudo o que Paulo Guedes anunciou até agora e uma ameaça à manutenção do chamado “Teto de Gastos”. Depois da conversa com Bolsonaro, o relator do Orçamento se recusou a “especular” sobre a origem dos recursos para viabilizar o novo programa, mas prometeu apresentar um relatório na próxima semana com a essa definição do novo programa.
Bolsonaro também participou de um almoço com a bancada evangélica, organizada pelo deputado Fábio Ramalho (MDB-MG), no qual se discutiu a derrubada do veto presidencial à anistia das dividas das igrejas evangélicas com a Receita Federal, aprovada pelo Congresso. Bolsonaro vetou a emenda aprovada com o argumento de que era inconstitucional e que poderia ser punido por irresponsabilidade fiscal se não agisse dessa forma. Mas recomendou a seus aliados no Congresso que derrubassem o veto, o que reiterou duramente esse encontro.
Saúde
Entretanto, o evento mais concorrido do Palácio do Planalto, ontem, foi a posse do ministro Eduardo Pazuello como titular do Ministério da Saúde, depois de quatro meses de interinidade. Foi um oba-oba, no qual o presidente Bolsonoro reiterou tudo o que já disse sobre a pandemia, fez apologia da hidroxicloroquina, criticou prefeitos e governadores por causa do isolamento social, condenou o fechamento das escolas e encheu a bola do ministro, convidando-o para saltar de pára-quedas no Lago Paranoá. Pazuello fez um balanço baluartista de sua própria atuação à frente do ministério, mas destacou o papel do SUS e a atuação do pessoal da saúde na linha de frente do combate à pandemia. Disse que a pandemia está em declínio, principalmente no Norte e no Nordeste.
Pazuello entrou na pasta em meados de abril. “Literalmente, tivemos que trocar a roda do carro andando. A responsabilidade era enorme e tivemos a liberdade total para implementarmos as medidas que eram necessárias”, disse. O ministro destacou “a solidariedade de todo o povo brasileiro, mostrando o valor de nossa nação, onde empresários, cidadãos e entidades das mais diversas se mobilizaram e continuam mobilizados na certeza de que, juntos, estamos vencendo essa guerra”. O general assumiu o ministério depois da saída do ministro Nelson Teich, que substituiu Luiz Henrique Mandetta e teve uma passagem relâmpago pela pasta. Na ocasião, o Brasil contabilizava 14 mil mortes; hoje, são 133,3 mil. A média móvel de mortes nas últimas semanas, porém, caiu para 813 mortos/dia nas duas últimas semanas, e 31.311 novos casos no mesmo período.
Luiz Carlos Azedo: O cavalo de pau
O governo bate cabeça quanto à saída da crise, e isso repercute muito negativamente no Congresso e entre os investidores. Sinaliza que a equipe econômica está perdida num labirinto
O presidente Jair Bolsonaro desistiu de criar o programa Renda Brasil, no valor de R$ 300 para cada beneficiado, no primeiro mandato. Jogou a toalha porque a equipe econômica não consegue fazer o milagre da multiplicação dos pães, ou seja, não existem fontes de receitas suficientes para o programa que pretendia garantir a transferência mensal, como chegou a ser anunciado pelo presidente e seu ministro da Economia, Paulo Guedes, em entrevista coletiva. A ficha somente caiu depois que o secretário de Fazenda, Waldery Rodrigues, um craque em Orçamento da União, disse que a fonte de financiamento do auxílio seria o congelamento das aposentadorias por dois anos.
Bolsonaro acordou com a notícia vazada por Waldery nas manchetes de todos os jornais. Decidiu fazer uma live e detonar a proposta, ameaçando dar um cartão vermelho para o seu autor. A cabeça a prêmio é a de Waldery, que seria a nova baixa na equipe de Guedes, mas é muito difícil que um secretário da sua importância defenda publicamente um ponto de vista como esse sem que o assunto seja cogitado pelo próprio ministro. Waldery não é um neófito no setor público, sabe muito bem que a proposta seria polêmica.
Pode ser que a ideia fosse apenas um “bode na sala”, para negociação com o Congresso, como as equipes econômicas costumam fazer quando querem passar uma proposta para aumentar a arrecadação, no caso, o imposto sobre operações eletrônicas, uma espécie de nova CPMF. Mas de boas — e más — intenções o inferno está cheio. A permanência de Waldery na equipe está com as horas contadas, será o “bode expiatório” de uma ideia considerada infeliz pelo presidente Bolsonaro, que repetiu o bordão lançado em Ipatinga (MG) de que não vai tirar dos pobres para dar aos paupérrimos. Convém, porém, não confundir alhos com bugalhos. Bolsonaro não aderiu à política de cortar gastos na própria carne, rejeitou a proposta porque é impopular e nada mais.
Guedes deu mostras de que deve demitir o auxiliar ao tirar por menos as declarações de Bolsonaro, depois de um encontro com o presidente da República. Disse que o “cartão vermelho” dado pelo presidente da República não era para ele e que as divergências no governo sobre o Renda Brasil são “barulheira”. Bota barulheira nisso, porque o governo bate cabeça quanto à saída da crise, e isso repercute muito negativamente no Congresso e entre os investidores. Sinaliza que a equipe econômica está perdida num labirinto.
Fogaréu
Bolsonaro está entre a cruz e a caldeirinha do ponto de vista fiscal. Como não tem um conceito claro sobre como pretende administrar as contas públicas nem um método adequado para lidar com as divergências no governo, deu um cavalo de pau na política de transferência de renda que pretendia incrementar. Decidiu manter o Bolsa Família e outros programas sociais como estão até 2022. Na verdade, a pandemia está tendo um impacto tremendo na economia e na vida das pessoas. O auxílio emergêncial de R$ 600 alavancou sua popularidade, que estava em baixa após a pandemia. A prorrogação do auxílio até dezembro, com a metade do valor, de certa forma, frustra um pouco os beneficiados, porque a alta de preço dos alimentos, irreversível na entressafra, comerá boa parte da ajuda do governo.
Mas fogaréu mesmo não é a crise fabricada pelo próprio governo sobre sua própria política econômica, sem nenhuma colaboração da oposição. São os incêndios na Amazônia, no Pantanal e no Cerrado, os três grandes biomas do Centro-Oeste e do Norte do país, a maioria criminosos. Incêndios sempre houve, por causa da seca, mas agora a situação é diferente, porque Bolsonaro deliberadamente deu guarida para agricultores, pecuaristas, madeireiros e garimpeiros fazerem o que bem quiserem, sem sofrer as consequências legais por suas ações.
O pior é que o vice-presidente Hamilton Mourão, que deveria ser o guardião da Amazônia, passou a considerar qualquer crítica ou denúncia à política ambiental do governo como coisa da oposição. Não caiu a ficha ainda de que tudo o que acontece em termos de desmatamento é flagrado pelos satélites e está acessível a todos. Não adianta querer tapar o sol com a peneira, como disse certa vez seu colega Aureliano Chaves, vice do general João Baptista Figueiredo, o último presidente do regime militar. Na verdade, para passar a boiada, como já disse o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, o governo asfixiou os órgãos de controle e fiscalização ambiental, cujos recursos diminuirão ainda mais no próximo ano.
Luiz Carlos Azedo: Base em desalinho
Com o congelamento dos reajustes das aposentadoria por dois anos, proposta da equipe econômica, todos os velhinhos pagariam a conta da reeleição de Bolsonaro antecipadamente
O Palácio do Planalto tenta ganhar tempo para reagrupar sua base parlamentar no Congresso e evitar a derrubada do veto do presidente Jair Bolsonaro à prorrogação da desoneração das folhas de pagamentos de empresas de 17 setores da economia, até o final de 2021. É mais ou menos como convidar os perus para a festa de Natal, porque não é somente o presidente da República que está de olho na própria reeleição, os parlamentares federais estão com um olho nas eleições municipais e outro na preservação dos respectivos mandatos em 2022. Por essa razão, a apreciação do veto foi adiada para a próxima semana, numa articulação do líder do governo no Congresso, senador Eduardo Gomes (MDB-TO).
Os setores beneficiados pelas desonerações são os mais atingidos pela pandemia, entre os quais os de call center, tecnologia da informação, transporte, construção civil, têxtil e comunicação, que empregam em torno de 6 milhões de trabalhadores com carteira assinada. O objetivo das desonerações foi preservar os empregos do setor. Desde a aprovação da prorrogação, o governo manobra para evitar a votação do veto, que é muito difícil de ser mantido. Mais do que, por exemplo, o perdão das dívidas das igrejas evangélicas, que Bolsonaro vetou no domingo, pedindo ao mesmo tempo que seus aliados derrubassem o veto. A ambiguidade do presidente da República nessa matéria vale também para as desonerações, porque Bolsonaro já não consegue esconder as dificuldades que tem para contrariar seus eleitores em matéria de responsabilidade fiscal.
O veto só não foi derrubado ainda porque o presidente do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP), tem colaborado com o Palácio do Planalto, evitando pautar a matéria. Alcolumbre é candidato à reeleição no cargo, o que é vedado pela Constituição, mas trabalha para emendá-la. A reeleição não é permitida na mesma legislatura. Outros presidentes da Casa também tiveram a mesma ambição, sem sucesso, até mesmo o ex-presidente José Sarney, que foi o presidente do Senado o mais poderoso desde a redemocratização. No momento, o grande pretexto para o adiamento são as convenções eleitorais nos municípios, que de fato estão mobilizando senadores e deputados.
Impostos
A apreciação de vetos é prerrogativa da sessão conjunta do Senado e da Câmara. O líder do governo no Congresso, Eduardo Gomes, tenta rearticular a base para manter o veto, com o discurso de que é possível “um acordo que contemple aquilo que os vários segmentos querem: que o país tenha uma recuperação econômica segura e que a desoneração fique absolutamente resolvida porque isso mantém empregos”. No fundo, o governo está meio desesperado diante da ameaça de derrubada dos vetos, por causa do cobertor orçamentário curto. A equipe econômica precisa de caixa para bancar o Renda Brasil, programa de transferência de renda anunciado por Bolsonaro, no valor de R$ 300, para substituir o Bolsa Família, o legado social do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que chega ao máximo de R$ 205 quando beneficia cinco pessoas na mesma família.
Por enquanto, não há dinheiro para viabilizar o projeto, que é a menina dos olhos de Bolsonaro para sua reeleição. Como o governo se recusa a cortar seus gastos na escala necessária — a reforma administrativa proposta pelo ministro da Economia, Paulo Guedes, tem pouco efeito de curto prazo —, a equipe econômica recorre a subterfúgios do tipo a volta da CPMF, o novo imposto sobre operações eletrônicas proposto por Guedes, ou a recorrente tentativa de transferir renda dos pobres para os mais pobres ainda, para usar as palavras de Bolsonaro, como o congelamento dos reajustes das aposentadoria por dois anos, intenção anunciada ontem: todos os velhinhos pagariam a conta da reeleição de Bolsonaro antecipadamente. A proposta é marota porque permitiria o aumento em setembro de 2022, ou seja, às vésperas das eleições.
São duas propostas com difícil passagem pelo Congresso, quando nada porque o presidente do Senado, Davi Alcolumbre, se finge de morto, enquanto o presidente da Câmara, Rodrigo Maia(DEM-RJ), mais uma vez bate de frente com o ministro Paulo Guedes e anuncia que não apoia a criação do imposto: “Não dá para criar novos impostos a cada crise, a gente tem de olhar e voltar ao que estávamos discutindo”, referindo-se ao equilíbrio fiscal. “Pode ser mais fácil abrir um espaço fiscal no orçamento para aumentar o investimento púbico, mas isso é um ciclo vicioso”, completou. Segundo Maia, o país não foi capaz de resolver os problemas da economia quando criou novos impostos. Seria melhor debater “as reformas que melhorem a qualidade do gasto público.”
José Serra: Pôr as cidades nos trilhos
A crise fiscal, agravada pela pandemia, exige a revisão de paradigmas obsoletos
As políticas voltadas para a superação da pobreza e a redução da desigualdade social tendem a promover transferências de renda ou programas setoriais, como os de educação e saúde. Tenho dedicado grande parte da minha vida pública ao fortalecimento das políticas e instituições de saúde. Mas o bem-estar das pessoas não depende apenas disso. A qualidade de vida propiciada pela cidade é igualmente importante.
Na escala do bairro, um espaço bem organizado permite o acesso a pé ou por bicicleta a equipamentos públicos, como praças, escolas, postos de saúde, quadras esportivas e teatros, além de serviços e comércio, que asseguram consumo e empregos próximos à moradia.
Na escala da cidade, a infraestrutura fundamental é a de transporte coletivo, que garante ao cidadão acesso a empregos mais distantes e a equipamentos de maior porte, como hospitais, universidades, estádios de futebol e parques.
É por isso que atualmente se procura, no mundo todo, promover um desenvolvimento urbano mais compacto, em que bairros densos e diversificados se conectam entre si por redes de mobilidade de alta capacidade, como metrôs, trens de superfície, veículos leves sobre trilhos (VLT) e ônibus de trânsito rápido (BRT, de bus rapid transit).
Procura-se garantir que todos os moradores da cidade possam chegar a uma estação de transporte de alta capacidade em até 15 minutos, a pé ou de bicicleta, modelo conhecido pela sigla TOD, de transit-oriented development ou desenvolvimento centrado no transporte. Além de aumentar a densidade de ocupação no entorno das estações, reorganizam-se o sistema viário e o reparcelamento do solo, criam-se ciclovias e calçadas acessíveis – mesmo em detrimento do espaço destinado ao automóvel privado de uso individual –, além de novos imóveis apropriados à infraestrutura de transportes.
Nas metrópoles brasileiras, a expansão dos metrôs avança muito lentamente. Em parte, pelos altos custos envolvidos, que se tornam proibitivos quando financiados exclusivamente com recursos orçamentários. No entanto, o problema também se deve a fatores institucionais.
A doutrina tradicional encara o transporte ferroviário de passageiros como um serviço autocentrado, exclusivamente destinado a deslocar pessoas de um ponto a outro da cidade. Trata-se de uma visão míope. Nos países desenvolvidos o metrô não se limita a implantar e gerenciar linhas férreas, mas reurbaniza seu entorno, com o objetivo de melhorar o aproveitamento dos terrenos próximos, aumentando a densidade da região, criando demanda e receitas aptas a financiar o investimento. Em outros países, como o Japão, essas receitas não tarifárias chegam a 80% do faturamento total.
Aqui desapropriamos apenas o estritamente necessário para a instalar linhas e estações. Nos trechos de superfície, as linhas de trem seccionam o tecido urbano, criando uma separação absoluta entre os dois lados da via, o que degrada o seu entorno. Chega-se ao absurdo de desapropriar partes de imóveis, deixando para os proprietários terrenos imprestáveis, de dimensões inferiores às mínimas exigidas para a construção de uma edificação.
Os planos diretores ampliam o potencial construtivo dos terrenos próximos às estações, a fim de propiciar maior verticalização e o consequente adensamento. Mas essa diretriz acaba sendo frustrada pela fragmentação das propriedades, que tornam inviáveis as incorporações imobiliárias.
Para superar esse desafio o novo marco legal das ferrovias, em tramitação no Senado, contém uma seção voltada para as operações urbanísticas. A implantação de infraestruturas ferroviárias passará a incorporar projeto urbanístico do entorno, destinado a minimizar possíveis impactos negativos, propiciando aproveitamento eficiente do solo urbano. Além disso, prevê-se a captura do valor da terra, que não deve ser vista apenas como uma receita acessória à tarifária, mas como fonte ordinária de financiamento do transporte ferroviário.
Incorporando técnicas internacionais de reparcelamento do solo, a execução desse projeto será promovida pela própria operadora ferroviária, que deverá constituir um fundo de investimento imobiliário aberto à participação dos proprietários de imóveis.
Tendo em vista que muitos imóveis têm pendências fundiárias que impedem sua negociação no mercado, o projeto altera também a lei das desapropriações, para permitir a desapropriação para execução de planos de urbanização ou renovação urbana, com posterior exploração econômica dos imóveis produzidos. Além disso, reconhece os direitos possessórios dos ocupantes de núcleos informais consolidados, que também deverão ser indenizados.
A crise fiscal em que se encontram todos os entes da Federação, agravada pela pandemia de covid-19, exige a revisão de paradigmas obsoletos. No caso do transporte ferroviário, é preciso tratar a instalação de infraestruturas como uma oportunidade de reestruturação abrangente do tecido urbano, capaz de produzir cidades mais justas, acessíveis e sustentáveis.
Chegou a hora de pormos as nossas cidades nos trilhos.
*Senador (PSDB-SP)
Luiz Carlos Azedo: A carestia de volta
“Quanto tudo parecia dominado na política, o presidente Jair Bolsonaro sentiu o bafo quente do dragão da inflação, com a alta generalizada dos preços dos alimentos”
Poderia intitular a coluna com a frase famosa de James Carville, o marqueteiro do ex-presidente dos Estados Unidos Bill Clinton. Em 1991, após vencer a Guerra do Golfo e resgatar a autoestima dos americanos depois da dolorosa derrotar no Vietnã, o presidente George Bush era o favorito absoluto nas eleições de 1992, ao enfrentar o desconhecido governador de Arkansas, Bill Clinton. Carville apostou que Bush não era invencível com o país em recessão e cunhou a frase que virou case de marketing eleitoral: “É a economia, estúpido!” Deu Clinton!
Quanto tudo parecia dominado na política, o presidente Jair Bolsonaro sentiu o bafo quente do dragão da inflação, com a alta generalizada dos preços dos alimentos, atribuída aos efeitos da pandemia na economia e ao câmbio, com o dólar cotado a R$ 5,31. Sua reação foi a de quase todos os governantes que subestimam a importância do equilíbrio fiscal e acreditam que podem controlar a alta dos preços com a mão pesada do Estado. Mandou o ministro da Justiça, André Mendonça, tomar medidas contra os supermercados. Deveria ouvir mais as ponderações da equipe econômica quanto aos gastos do governo, em vez de fritar em fogo alto o ministro da Economia, Paulo Guedes, que está virando um zumbi na Esplanada dos Ministérios e, agora, quer aumentar os salários dos ministros em plena crise fiscal. R$ 39 mil, fora as mordomias, considera muito baixo.
Ontem, Guedes disse que não vai mais negociar as reformas administrativa e tributária com o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), porque o eixo da negociação agora é político, se referindo ao general Luiz Ramos, ministro da Secretaria de Governo, e aos líderes do Centrão, que compõem o dispositivo parlamentar de Bolsonaro. A frase tem até certa dose de ironia, diante da notícia de que a Secretaria Nacional do Consumidor, vinculada ao Ministério da Justiça e Segurança Pública, notificou representantes de supermercados e produtores de alimentos para pedir explicações sobre o aumento no preço dos alimentos da cesta básica.
“O aumento de valores foi notado, especialmente, em relação ao arroz que, apesar dos positivos volumes produtivos da última safra, sofreu diminuição da oferta no contexto global, o que ocasionou elevação no preço”, diz a nota da secretária do Consumidor, Juliana Domingues. Já vimos esse filme em outros momentos da vida nacional, como no Plano Cruzado, durante o governo José Sarney. A manipulação da economia com os objetivos eleitorais sempre cobra um preço muito alto. O problema é que emitiu sinais de que a conta pode vir antes das eleições de 2022.
Para a população, porém, chegou a galope. A inflação oficial divulgada, ontem, pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) foi de 0,24%, mas revela uma alta de 2,44% em 12 meses, segundo o Índice de Preços para o Consumidor Amplo (IPCA). A inflação dos alimentos, porém, foi de 8,83%. O feijão preto, que subiu 28,9%; o arroz, 19,2%; e o óleo de soja, 18,6% no período, lideram a volta da carestia. A alface subiu 18,1%; o tomate, 12,3%; o feijão carioca, 12,1%; a batata inglesa, 9,7%; os ovos, 7,1%; o frango, 6,9%; a carne de porco, 4,2%. Outros produtos subiram até mais: manga, 61,63%; cebola, 50,40%; abobrinha, 46,87%; tainha, 39,99%; limão, 36,56%; morango, 31,99%; leite longa vida, 22,9%, atingindo em cheio o bolso da classe média.
Reação
O governo tenta reagir. Ontem, zerou a cobrança de impostos para importação de arroz. O presidente da Associação Brasileira de Supermercados, João Sanzovo Neto, foi chamado para uma conversa pelo próprio presidente Jair Bolsonaro. Na saída, disse que os supermercados não são os vilões da inflação da cesta básica, e que a margem de lucro das empresas é baixa por causa da grande competitividade do setor. “Nós temos todos os relatórios. Inclusive, as associações dos produtores têm informado o que oscilou de cada produto”. A previsão é de que os preços somente caiam em 2021, por causa da entressafra.
Bolsonaro acredita que pressão sobre os atacadistas e varejistas pode segurar os preços. “Tenho apelado para eles. Ninguém vai usar a caneta Bic para tabelar nada, não existe tabelamento, mas pedindo para eles que o lucro desses produtos essenciais nos supermercados seja próximo de zero. Acredito que a nova safra começa a ser colhida em dezembro, janeiro, de arroz em especial. A tendência é normalizar o preço”, avalia o presidente. Os especialistas veem de outra maneira: o dólar alto, a recuperação da economia chinesa, o auxílio emergencial e a entressafra são fatores objetivos que influenciam diretamente os preços. Mas há outros aspectos que exercem influência indireta, como as indefinições em relação às reformas tributária e administrativa, a dívida pública de 100% do PIB e o deficit fiscal de R$ 1 trilhão previsto para esse ano.
Luiz Carlos Azedo: Censura à Lava-Jato
A Lava-Jato continua sendo um vetor do processo político, com grande influência eleitoral. Porém, os integrantes da operação perderam o monopólio do combate à corrupção
O Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) decidiu, ontem, por 9 votos a 1, punir o procurador da República Deltan Dallagnol, um dos protagonistas da Operação Lava-Jato, censurado por mensagens em rede social nas quais ele se posicionou contra a eleição do senador Renan Calheiros (MDB-AL) para a presidência do Senado, em 2019. A vitória de Davi Alcolumbre (DEM-AP), o atual presidente do Senado, foi resultado da insatisfação dos demais partidos com a longa permanência do MDB no comando da Casa, mas a atitude ajudou a narrativa política do grupo que queria o apoio da opinião pública à mudança no comando da Casa.
A censura é a segunda punição prevista no regulamento que rege a atuação dos procuradores –– a primeira é a advertência. Como consequência, atrasa a progressão na carreira e serve de agravante em outros processos no conselho. Os procuradores também podem ser punidos com suspensão, demissão ou cassação da aposentadoria. Havia intenção de alguns integrantes do Conselho no sentido de suspender Dallagnol, mas sua saída da força-tarefa de Curitiba abrandou as pressões e consta que o novo presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Luiz Fux, que tomará posse amanhã, atuou nos bastidores em favor do procurador.
Calheiros alegou interferência do procurador-símbolo da Lava-Jato na disputa do Senado. O mesmo tipo de crítica que se faz ao ex-ministro da Justiça Sergio Moro em relação às eleições de 2018, para favorecer a candidatura de Jair Bolsonaro. A acusação ganhou veracidade quando o ex-juiz titular da 13ª Vara Federal de Curitiba, que condenou o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva no caso do tríplex do Guarujá, aceitou o convite para ser ministro do atual governo, talvez o maior erro político que tenha cometido.
A propósito, a condenação de Dallagnol reforça os argumentos da defesa de Lula, que pleiteia a anulação de condenação por Moro, alegando um vício de origem: a parcialidade política do juiz, apesar de a condenação ter sido confirmada pelos desembargadores do Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF-4). Por uma rede social, o procurador mostrou que não arriou a bandeira da Lava-Jato: “O Conselho Nacional do MP me censurou, hoje, por ter defendido a causa anticorrupção nas redes sociais, de modo proativo, aguerrido e apartidário. Discordo da decisão, que ainda há de ser revertida”, disse.
Tiroteio
É uma guerra de narrativas, que deve se intensificar nos próximos meses, com repercussão eleitoral. Ao mesmo tempo que vem sofrendo sucessivos reveses nos bastidores do Judiciário, integrantes da Lava-Jato contra-atacam em grande estilo. Na semana passada, procuradores da força-tarefa de São Paulo se demitiram coletivamente, mas antes alvejaram o senador José Serra (PSDB-SP) e o suposto operador de seu caixa dois de campanha, Paulo Vieira de Souza. Antes haviam detonado o ex-governador tucano Geraldo Alckmin, também denunciado.
Ontem, a bola da vez foi o ex-prefeito carioca Eduardo Paes, que lidera as pesquisas de opinião na disputa pela Prefeitura do Rio, alvo de uma operação de busca e apreensão em sua residência, em São Conrado. O mandado foi expedido pelo juiz Flávio Itabaiana de Oliveira Nicolau, da 204ª Zona Eleitoral, que acolheu denúncia do Ministério Público do Rio de Janeiro contra Paes e mais quatro investigados, acusados de corrupção, falsidade ideológica e lavagem de dinheiro. O ex-prefeito se defende atirando: “às vésperas das eleições para a Prefeitura do Rio, Eduardo Paes está indignado que tenha sido alvo de uma ação de busca e apreensão numa tentativa clara de interferência do processo eleitoral — da mesma forma que ocorreu em 2018 nas eleições para o governo do estado”, disse. Paes é o principal adversário do prefeito Marcelo Crivella (Republicanos), aliado do presidente Jair Bolsonaro.
A Lava-Jato continua sendo um vetor do processo político, com grande influência eleitoral. Porém, os integrantes da operação perderam o monopólio do combate à corrupção, que cada vez mais será direcionado pelo novo procurador-geral da República, Augusto Aras, aliado de Bolsonaro, e a Polícia Federal. O risco de politização dessas ações para favorecer interesses do Palácio do Planalto é real, pois a lógica de quem pretende controlar essas instituições para se defender também serve para atacar os adversários. Nesse aspecto, Fux, o novo protagonista entre os Poderes da República, será o grande artífice do reposicionamento do STF, que passa por alterações na composição de suas turmas.
Com a aposentadoria do ministro Celso de Melo, a 2ª Turma do STF, que julgará o pedido de anulação do processo de Lula, formada também pelos ministros Gilmar Mendes, Ricardo Lewandowski, Cármem Lúcia e Édson Fachin, o relator da Lava-Jato, terá sua maioria garantista mantida pela chegada do ministro Dias Toffoli, que deixará a presidência da Corte amanhã. Com a saída de Fux, que assumirá o comando do Supremo, a 1ª. Turma, composta ainda pelos ministros Marco Aurélio, Rosa Weber, Luís Barroso e Alexandre de Moraes, terá seu perfil jurídico definido pelo novo ministro a ser indicado pelo presidente Jair Bolsonaro, que promete escolher alguém “terrivelmente evangélico”.
Luiz Carlos Azedo: Verde, amarelo, branco, azul anil
“Crise sanitária, recessão econômica, crise fiscal, desemprego em massa e sinais da volta da inflação nos preços da cesta básica. Entretanto, Bolsonaro está cada vez mais populista”
Tivemos um inédito Dia da Independência sem desfiles militares, por causa da pandemia. O presidente Jair Bolsonaro desfilou em carro aberto, cercado de crianças, no velho Rolls-Royce presidencial, comprado pelo presidente Getúlio Vargas em 1952, em si uma atração à parte. A Esquadrilha da Fumaça, como sempre, riscou o céu de Brasília. Estamos a dois anos do Bicentenário da Independência. Quem tiver mais certezas do que dúvidas sobre o futuro estará errado. São tempos de mudanças vertiginosas em meio a grandes adversidades.
Olhando para metade do caminho percorrido, a década de 1920, houve um turbilhão de coisas que deixaram de pernas para o ar a chamada República Velha. O mundo saía da maior carnificina até então ocorrida na História, a I Guerra Mundial. Pode-se dizer que tudo o que ocorreu depois, no século passado, de alguma forma, foi marcado pelo conflito. Há 110 anos, havia uma grande inquietação cultural e artística, além da radicalização ideológica na qual se confrontaram o comunismo e o fascismo, como alternativas à social-democracia e ao liberalismo, respectivamente. A II Guerra Mundial foi quase uma consequência inevitável, cujo grande ensaio no teatro europeu foi a Guerra Civil espanhola.
No Brasil, havia uma profunda crise de identidade; as instituições republicanas, que constituíam um sistema federativo e a nossa democracia representativa, eram contestadas. Dizia-se que eram estruturas artificiais, não se coadunavam com a realidade social e cultural do país. A Semana de Arte Moderna questionaria os padrões culturais tradicionais, impostos por uma elite formada por ex-senhores de escravos e seus descendentes, propunha a busca de uma identidade nacional moderna, “digerindo” as novas correntes filosóficas e artísticas europeias para produzir uma cultura nacional autêntica. O tenentismo eclodiria com o heroísmo dos 18 do Forte Copacabana, questionando o coronelismo, as fraudes eleitorais, o sistema político. Na mesma época, surgia o Partido Comunista, formado por intelectuais e operários de origem anarquista, cristãos-novos do marxismo. Eram prenúncios de uma crise que iria desaguar na Revolução de 1930 e no Estado Novo.
Muitas incertezas
Olhando para o futuro, o que nos aguarda nos próximos dois anos? É difícil a resposta, já mergulhamos num turbilhão das incertezas. Qualquer análise precisa partir da constatação de que estamos vivendo uma crise múltipla, cuja origem difere de todas as anteriores, em razão da pandemia da covid-19: contabilizamos até ontem 126 mil óbitos e 4,137 milhões de casos desde o início da pandemia, com uma taxa de 60,5 mortos por 100 mil habitantes. Estado mais rico e mais populoso, com o melhor sistema de saúde, São Paulo registra 855.722 casos e 31.353 mortes, o que explica a profundidade da recessão econômica, com a queda na produção industrial de 17,7% no segundo trimestre, em relação a igual período de 2019. O único setor com resultado positivo foi o agronegócio, que cresceu 1,2% no trimestre passado, por causa da recuperação chinesa e do aumento do consumo de alimentos, cujos preços dispararam.
Ninguém sabe quanto tempo a pandemia permanecerá, pois há sinais de uma segunda onda na Itália e na Espanha, mas há esperança de que quatro das vacinas em desenvolvimento no mundo estejam liberadas para aplicação em massa até o final do ano: a americana, a inglesa, a russa e uma das chinesas. O Brasil corre atrás delas, mas é improvável que possamos imunizar a população em menos de um ano. Enquanto a vacina não vem, é melhor ter juízo e manter o isolamento social; porém, não é o que acontece no Brasil. O mau exemplo vem de cima. O presidente da República naturaliza a pandemia e mantém uma ocupação militar no Ministério da Saúde que entrará para os anais da nossa história sanitária, repetindo o triste papel que tiveram na epidemia de meningite, durante o regime militar.
Crise sanitária, recessão econômica, crise fiscal, desemprego em massa e sinais da volta da inflação nos preços da cesta básica. Entretanto, Bolsonaro está cada vez mais populista, para desespero da equipe econômica, que agora lida com uma anistia fiscal no valor de R$ 1 bilhão para as igrejas evangélicas, que o presidente da República quer sancionar. Ou seja, todos os contribuintes terão de pagar o calote dos pastores na Receita Federal. Na política, Bolsonaro só pensa na eleição; nos bastidores, trabalha para liquidar com a Operação Lava-Jato, moeda de troca para livrar os filhos das investigações sobre o caso Fabrício Queiroz. Com o ministro Luiz Fux na presidência do Supremo (tomará posse na quinta-feira), será muito difícil.
Pasmem! A anulação da condenação do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silvia, que ontem fez um pronunciamento nas redes sociais com pompa de estadista e cara de candidato, para emular com o de Bolsonaro em cadeia de radio e tevê, passou a ser vista com bons olhos pelos estrategistas do Palácio do Planalto. Já consideram os petistas fregueses de carteirinha e sonham com uma polarização com o petista Lula para reeleger Bolsonaro, sem risco de ter de enfrentar uma candidatura de centro no segundo turno. Até o Bicentenário da Independência, teremos dois anos emocionantes. Oremos!
Luiz Carlos Azedo: Os donos do poder
“É impressionante como a política de parentela, cujas origens são o mandonismo e o patrimonialismo, se reproduz como modelo, dando origem a novos clãs políticos”
Tomo emprestado o título da coluna da obra já sexagenária de Raymundo Faoro (1925-2013), jurista, cientista político e sociólogo, considerado um dos grandes intérpretes do Brasil, autor de Os Donos do Poder: Formação do patronato político brasileiro (1958), uma leitura weberiana da nossa realidade. Seu olhar amplo e profundo sobre a nossa formação como nação desnuda as origens e a essência do mandonismo e do patrimonialismo, raízes do autoritarismo brasileiro, associando-o às elites que dominaram o país desde o período colonial, “organizando o poder político de forma análoga ao poder doméstico”. Isso resultou num Estado mais forte do que a sociedade, “em que o poder centrípeto do rei, no período colonial, e do imperador, ao longo do século XIX, ou do Executivo, no período republicano, criou forte aparelho burocrático alicerçado no sentimento de fidelidade pessoal”.
Remeto-me a Faoro em razão do projeto de reforma administrativa encaminhado pelo presidente Jair Bolsonaro ao Congresso, que não vai atingir os atuais servidores, somente os que ingressarem no serviço público após a aprovação da reforma. Mas, não essencialmente por essa razão, mas, sim, pelo fato de que o chamado “poder instalado” não será atingido pela reforma nem agora nem depois: com o fim do regime único, parlamentares, magistrados (juízes, desembargadores, ministros dos tribunais superiores), promotores e procuradores e militares, a elite do serviço público, terão regras diferentes dos servidores comuns. O velho barnabé, cujas agruras e revolta Oduvaldo Vianna Filho resumiu na figura do Manguari Pistolão, o anti-herói de Rasga Coração, é que pagará a conta da reforma, quando muito mais poderia ser feito se a austeridade e a transparência valessem realmente para todos.
Ao analisar a relação entre as oligarquias regionais e o poder central, que se reproduziu nos diversos períodos republicanos, Faoro destaca que “o estamento burocrático, fundado no sistema patrimonial do capitalismo politicamente orientado, adquiriu o conteúdo aristocrático, da nobreza da toga e do título. A pressão da ideologia liberal e democrática não quebrou, nem diluiu, nem desfez o patronato político sobre a nação”. A proposta de reforma parece confirmar o diagnóstico. Alguns acusam Faoro de não reconhecer o papel modernizador de nossa elite burocrática, principalmente nos períodos pombalino, no Segundo Império e no primeiro governo Vargas, períodos que a obra analisa, e que viria a se repedir durante o regime militar. Não foi mero acaso a grande repercussão que teve a reedição da obra nos anos 1970, seu diagnóstico se confirmou no regime militar e ainda nos parece atual.
Famílias poderosas
Na prática, a exclusão do “poder instalado” representa meia aprovação da reforma administrativa pelo Congresso, porque os lobbies mais poderosos contra o fim dos privilégios são corporativos e atuam diretamente junto aos parlamentares. Na verdade, trata-se de uma velha aliança, que se manteve ao longo da história. Com toda a renovação que houve nas eleições de 2018, por exemplo, o número de parlamentares com vínculos familiares com velhas oligarquias do país chega a 172, sendo 138 ligados a clãs políticos com representação em várias esferas de Poder, inclusive no Executivo, no Judiciário e no Ministério Público. Se formos considerar, ainda, outros grupos, como a bancada ruralista, os militares e os pastores evangélicos, o poder de intervenção desses segmentos na votação da reforma administrativa para manter seus privilégios será bastante significativo.
Em alguns estados, os clãs políticos dominam a representação parlamentar completamente, como a Paraíba, com 12 deputados, dez dos quais ligados a famílias políticas tradicionais. No Senado, seus três representantes são ligados a velhas oligarquias regionais. Se formos considerar a composição dos partidos, veremos que o eixo das alianças do presidente Bolsonaro com o Centrão, na Câmara, passa, principalmente, pela chamada “bancada dos parentes”: PP e PSD têm 18 parlamentares com essa característica, cada; MDB, 17; PR, 16; PTB, nove; PRB, oito; SD, seis; PSL, quatro. Sobra para quase todos os partidos, entre os quais se destacam PSDB, 13; DEM e PT, 12; PSB, 11; PDT, nove; PRB, oito; PCdoB, quatro; PROS, três. No Senado, a “bancada dos parentes”caiu de 39 para 24 senadores.
Há clãs políticos que protagonizam a política de seus estados, alguns com grande tradição e projeção nacional. No Maranhão, a família do ex-presidente Sarney; no Ceará, os Ferreira Gomes; no Rio Grande do Norte, os Alves e os Maias; em Goiás, os Caiado e os Bulhões; no Paraná, os Richa; em Alagoas, os Calheiros; na Bahia, os Magalhães; no Pará, os Barbalho; em Pernambuco, os Arraes e Bezerra/Coelho; na Paraíba, os Maranhão, Vital do Rego, Cunha Lima e Ribeiro; no Acre, os Vianna; em Tocantins, os Abreu.
É impressionante como a política de parentela, cujas origens são o mandonismo e o patrimonialismo, se reproduz como modelo de poder familiar, dando origem a novos clãs políticos. O mais novo e poderoso deles é o clã Bolsonaro, que se constituiu antes da chegada ao poder central, numa faixa obscura e sinuosa de relações políticas com setores ligados à segurança pública no Rio de Janeiro, mas que aprendeu a atuar e se reproduzir na convivência com o baixo clero do Congresso, no qual a “bancada dos parentes” atua como peixe dentro d’água. O presidente Jair Bolsonaro trouxe para o centro do poder decisão os filhos Flávio (Republicanos-RJ), senador; Carlos Bolsonaro (Republicanos), vereador carioca; e Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), deputado federal. Quem quiser que se iluda, esse novo clã político manda na agenda do país.
Luiz Carlos Azedo: A elite a salvo da reforma
“Para a sociedade, burocracia é palavrão, o que supostamente facilitaria a aprovação da reforma administrativa. Acontece que os lobbies corporativos são muito poderosos”
O Brasil já passou por grandes reformas administrativas. Historicamente, a mais importante foi a de 1938, no Estado Novo, quando foi criado o Departamento de Administração do Serviço Público (Dasp), pelo presidente Getulio Vargas. A lógica da reforma administrativa era superar a incompatibilidade entre a “racionalidade” exigida pela boa administração pública e a “irracionalidade” da política. A reforma pretendia estabelecer maior integração entre os diversos setores da administração pública e promover a seleção e aperfeiçoamento do pessoal administrativo por meio da adoção do sistema de mérito, “o único capaz de diminuir as injunções dos interesses privados e político-partidários na ocupação dos empregos públicos”.
Coube a Luís Simões Lopes implantar e comandar o Dasp, que ganhou grande poder durante a ditadura de Vargas, mas foi esvaziado com a democratização pós-1945. Um de seus legados foi o Estatuto dos Funcionários Civis da União, que estabeleceu direitos e deveres da burocracia que, de certa forma, vigoram até hoje. Outras reformas foram feitas, durante o regime militar e nos governos de Collor de Mello e Fernando Henrique Cardoso, mas nenhuma delas conseguiu “revolucionar” a nossa burocracia, cujo vértice goza de muitos privilégios e mordomias.
Ontem, o governo Bolsonaro anunciou sua proposta de reforma administrativa, que não vai atingir direitos adquiridos dos atuais servidores públicos, a maioria garantidos pela Constituição de 1988. As mudanças valerão para os servidores da União (Executivo, Legislativo e Judiciário), estados e municípios contratados após a reforma. Parlamentares, magistrados (juízes, desembargadores, ministros dos tribunais superiores), promotores e procuradores e militares, a elite do serviço público, não serão atingidos pela reforma. Segundo a proposta do governo, esses servidores têm regras diferentes dos comuns. Trocando em miúdos, não se mexe com o “poder instalado”, que tem espírito de casta.
A reforma pretende acabar com o “regime único” estabelecido pela Constituição de 1988 para todos os servidores. Haverá regras diferenciadas para os barnabés — os servidores dos escalões inferiores. Serão divididos em cinco categorias: carreiras típicas de Estado (diplomatas, auditores fiscais, policiais federais, gestores), com ingresso por concurso público e estabilidade após três anos de serviços; servidores contratados por tempo indeterminado, por concurso, mas que não terão estabilidade e poderão ser demitidos em caso de cortes de gastos; servidores temporários, contratados por seleção simplificada e sem estabilidade; e cargos de liderança e assessoramento, com vínculo temporário, por seleção simplificada e sem estabilidade. Os concursados das carreiras de Estado, que ainda não completaram três anos para ter estabilidade, serão considerados “em período de experiência” e poderão ser dispensados.
Burocracia
A reforma pretende acabar com certas regalias do funcionalismo público: extinguir a licença-prêmio (três meses de férias a cada cinco anos, vigente ainda em 20 estados), adicional por tempo de serviço, já extinto em nível federal; aposentadoria compulsória em caso de punição, aumentos retroativos, férias superiores a 30 dias no ano, adicional por substituição, redução de jornada sem perda salarial, progressão por tempo de serviço e incorporação ao salário de vantagens referentes ao exercício de funções e cargos comissionados. A proposta do governo é enxugar a máquina federal, com extinção ou reestruturação de autarquias e fundações, órgãos e cargos, além de redefinir atribuições e regras de funcionamento.
Do ponto de vista fiscal, a reforma não mexe com o maior problema da administração pública: a previdência diferenciada, com salário integral na aposentadoria. Já se instalou na administração federal um duro choque de concepções sobre o papel da hierarquia e da disciplina na eficiência administrativa. Numa ordem democrática, um comando autoritário, com controle hierárquico e subordinação, tende a ser menos eficaz do que a delegação de responsabilidade e a liberdade para tomada de decisões no âmbito das atribuições funcionais, sobretudo nas carreiras de Estado. O método mais eficiente para organizar um exército não será o mais efetivo para estruturar um laboratório de pesquisa.
Para a sociedade, burocracia é palavrão, o que supostamente facilitaria a aprovação da reforma administrativa. Acontece que opinião pública exerce pressões difusas sobre o Congresso, enquanto os lobbies corporativos são concentrados e mais eficientes junto aos parlamentares, muitos dos quais são servidores de carreira. Além disso, a “incapacidade treinada”, ou seja, a dificuldade de adaptação às mudanças; a “psicose ocupacional”, que são preferências e antipatias desenvolvidas por cada servidor; e o “excesso de conformidade”, no qual o servidor “metódico, prudente e disciplinado” perde a perspectiva de prestar serviço ao cidadão — são problemas de natureza cultural, que não se resolvem com a reforma.
Eliane Brum: 7 de Setembro: Morte
Brasil chega ao Dia da Independência com um genocida no poder e negacionistas do genocídio em todas as partes
Se este 7 de Setembro transcorrer como se o Brasil vivesse algum tipo de normalidade, enterremos nossos corações, porque já estarão mortos. Devemos então parar de fingir que estamos vivos e assumir nossa condição de zumbis. Não o dos filmes, que tentaram escapar dessa condição. Mas os que escolhem ser contaminados pela normalidade criminosamente anormal. A covardia é uma forma de existência a qual se escolhe. Este país está cheio de oportunistas, sim. Mas também está cheio de covardes incapazes de defender qualquer território para além da sua família, porque também o sentimento de comunidade foi persistentemente destruído. Em 7 de Setembro de 1822, quando se aliviava de uma diarreia insistente no riacho Ipiranga, em São Paulo, o príncipe português Dom Pedro I teria gritado: Independência ou Morte! Depois de 198 anos, já entendemos que o Brasil sempre escolheu a morte. Mas jamais, em nenhum outro momento de sua história, o país havia alcançado esse nível de perversão sob o título formal de democracia. Negros e indígenas vivem uma longa história de extermínio, mas esta é a primeira vez em que um Governo construiu uma máquina de morte. Temos um genocida no poder, e ele está matando tanto quanto deixando morrer. Tem intenção, tem plano e tem ação sistemática.
Os quatro pedidos de investigação de Jair Bolsonaro por genocídio e outros crimes contra a humanidade que já chegaram ao Tribunal Penal Internacional não são um jogo político de retórica. São a denúncia de que o judiciário brasileiro não consegue ou não quer barrar os crimes de Bolsonaro e de outras pessoas com cargos de poder no Governo, sejam generais ou civis. Se conseguisse ou quisesse, como os fatos já mostraram, Bolsonaro nem poderia ter sido candidato. Ele é o resultado, como já escrevi, de uma longa série de impunidades iniciada ainda quando era militar. Foi absolvido no Tribunal Superior Militar, em um julgamento povoado de indícios de fraudes, de planejar um ato terrorista com um motivo corporativo: botar bombas em quartéis para pressionar por melhores salários. Só se tornou presidente pela vocação característica do sistema judiciário brasileiro: a de punir severamente os pretos e pobres e despachá-los para um sistema carcerário incompatível com qualquer ideia de civilização, mas perdoar ou deixar de julgar os ricos e brancos. Especialmente se estes forem militares e tiverem o privilégio de uma justiça paralela que escolhe inocentes e culpados com base não nos fatos, mas nos interesses corporativos de uma instituição que se considera acima da Constituição.
Bolsonaro é brasileiríssimo. A criatura que está matando os Brasis que considera obstáculos ao seu projeto de poder, assim como as populações que despreza (indígenas e negros), é a versão mais bem acabada – e por isso tão terrivelmente mal acabada – de todas as deformações. As que os governos anteriores não quiseram corrigir, pelas mais variadas razões, as que as diferentes elites estimularam, para manter seus privilégios, as que o povo se acostumou a conviver.
O Brasil chega a este 7 de Setembro com os símbolos nacionais sequestrados pelo bolsonarismo. A bandeira foi sequestrada, o hino foi sequestrado, as cores foram sequestradas. Porque o bolsonarismo não se coloca como uma parte do Brasil, mas como o todo. Os outros Brasis e brasileiros que se opõem a ele são considerados e tratados como não brasileiros, como aqueles que precisam ser expulsos ou eliminados porque não deveriam estar aqui. O seu discurso no telão da Paulista, pouco antes do segundo turno das eleições de 2018, quando a vitória já era certa, é explícito: “Vamos varrer do mapa os bandidos vermelhos do Brasil (...) Essa turma, se quiser ficar aqui, vai ter que se colocar sob a lei de todos nós. Ou vão para fora ou vão para a cadeia”. Percebam. Não a lei do Brasil, que é a Constituição, mas “a lei de todos nós”. E esclareceu quem são “nós”: “O Brasil de verdade”.
O bolsonarismo é, em sua gênese e na sua estrutura, incompatível com a democracia. Na minha opinião, também incompatível com a civilização. O fato de Bolsonaro ter sido eleito não altera sua vocação totalitária nem sua lógica de eliminação dos opositores como “falsos brasileiros”. Ao contrário. Ao ser candidato, apesar de todos os crimes que já tinha cometido, a começar pelo de apologia à tortura, Bolsonaro desmoraliza e destrói uma combalida democracia que jamais foi capaz de julgar os crimes da ditadura e por isso jamais foi capaz de se proteger de criminosos como Bolsonaro.
Bolsonaro não apenas leva os generais de volta ao Governo e militariza toda a máquina pública, o que pareceria impossível apenas alguns anos atrás, para um país que viveu uma ditadura militar de 21 anos. Ele também carrega para o Planalto a lógica de guerra dos regimes totalitários. Na ditadura iniciada com o golpe de 1964, os “inimigos da pátria” eram os opositores políticos, especialmente os estudantes que a ela resistiram também com luta armada. No regime criado pelo bolsonarismo, que já não podemos chamar de democracia, os inimigos da Pátria são ampliados para todos aqueles que se opõem democraticamente a ele e a todos aqueles que são obstáculos ao projeto econômico de grupos no poder. Os opositores, como ele disse, devem ser levados à “Ponta da Praia”, referindo-se a um local de tortura e desova de cadáveres na ditadura, no Rio de Janeiro. Já os indígenas, principal obstáculo ao projeto de exploração da Amazônia, são tratados como uma espécie inferior: “cada vez mais humanos iguais a nós”. Aos quilombolas, outro obstáculo, ele se refere com termos usados para animais: “nem para procriadores servem”.
De certo modo, Bolsonaro vai além da ditadura militar na qual se inspira ao tornar “brasileiros de verdade” apenas os fiéis de seu culto político ― e falsos todos os outros. Porque ele não é apenas um “mau militar”, como definiu o ditador e general Ernesto Geisel. Bolsonaro está também aliado aos pastores de mercado e ao ruralismo mais predatório. Bolsonaro emprestou à lógica da guerra dos generais uma versão bíblica do bem contra o mal, explicitada pelos brasileiros de verdade e pelos brasileiros de mentira. Estes devem ser expulsos ou eliminados não apenas como inimigos, mas como infiéis da pátria. Para consolidar sua vitória colocou em campo uma máquina de propaganda, o chamado “gabinete do ódio”, que poderia ser elogiada por Joseph Goebbels, ministro da propaganda de Hitler. O bolsonarismo converteu todos aqueles que se opõem a ele em inimigos da pátria, do mesmo modo que o nazismo fez com os judeus num primeiro momento. Com os indígenas e com os negros, ele já entra numa segunda etapa, ao considerá-los apenas quase humanos como “nós”.
Bolsonaro e o bolsonarismo, que vai muito além dele, faz uma colagem dos totalitarismos do século 20 com a versão bíblica do evangelismo de mercado que se consolidou na política partidária neste século e alcançou o poder central com a eleição de 2018. Se fossem contemporâneos, Adolf dificilmente teria prazer em se sentar à mesa com Jair, porque a vulgaridade do presidente brasileiro o escandalizaria. Hitler queria criar sua própria arte e estética. Bolsonaro, pelo menos por enquanto, só quer destruir qualquer forma de arte. É o supremacista que prega (também) a supremacia da estupidez como a vingança dos ressentidos.
Bolsonaro não precisou criar seus campos de morte. Deixou a covid-19 avançar e agiu para reter recursos públicos destinados ao enfrentamento da doença, para afastar os quadros técnicos com experiência em saúde pública e epidemias, para vetar medidas decisivas de prevenção e para tumultuar o combate ao vírus. Também incentivou a invasão das terras indígenas e das áreas protegidas por grileiros e garimpeiros. Se a pandemia acabasse hoje, este já é um Brasil sem muitas das grandes lideranças que lideraram seus povos na luta pelo direito a viver em suas terras ancestrais e para manter a floresta amazônica e outros biomas em pé. Parte dos opositores de Bolsonaro, na Amazônia que mais uma vez volta a queimar, morreram nos últimos meses. E a pandemia ainda está longe de acabar.
A mais recente liderança indígena morta por covid-19, em 31 de agosto, foi Beptok Xikrin, 78 anos, conhecido como Cacique Onça. Voltou à sua aldeia, no Médio Xingu, em um caixão fechado, enfiado em uma lona, amarrado a uma caminhonete como se coisa fosse, na mais abjeta indignidade. Não basta matar ou deixar morrer, é preciso humilhar, quebrar a espinha dos povos indígenas também pelo insulto e pela desonra.
Mesmo para quem tem baixa expectativa com relação à decência das várias elites brasileiras, é custoso compreender como ainda chamam o que hoje há no Brasil de democracia. O que aí está não é bom nem mesmo para o “mercado”, essa entidade pronunciada com reverência. Que tipo de crença leva alguns setores, mesmo da imprensa, a considerar, depois de um ano e meio de governo, que há alguma composição possível com o bolsonarismo? A ação das elites não foi diferente nos processos totalitários do século 20, mas ainda assim é espantoso.
Muitos dos que votaram em Bolsonaro usaram o discurso anticorrupção como desculpa para votar num homem que se anunciava publicamente como defensor da ditadura e da tortura e que festejava como herói Carlos Alberto Brilhante Ustra, coronel, assassino e o único torturador reconhecido pelo judiciário brasileiro. E agora, quando não há mais desculpa? Quando Bolsonaro se abraça ao Centrão para se proteger de um impeachment? Quando Bolsonaro se abraça a Michel Temer para se aproximar do MDB? Quando o procurador-geral da República, escolhido fora da lista tríplice, se tornou office-boy de Bolsonaro, cobrindo de vergonha a instituição chamada Ministério Público Federal? Quando o herói da Lava Jato foi expelido do Governo? Quando Adriano da Nóbrega, miliciano chefe do grupo de assassinos de aluguel Escritório do Crime, foi morto e enterrado com tudo o que sabia sobre as ligações perigosas da família Bolsonaro? Quando Fabrício Queiroz, depois de meses escondido em uma das casas do advogado de Bolsonaro, e sua mulher, Márcia Aguiar, foragida, conseguem uma surpreendente prisão domiciliar? Quando um desembargador, sozinho, é capaz de afastar um governador do Estado inimigo de Bolsonaro e com poder para decidir os cargos de quem vai tocar (ou não) os processos sobre a família presidencial? Quando as denúncias de corrupção batem no peito de Bolsonaro, na forma da pergunta que faz Bolsonaro querer “encher a boca” do repórter “de porrada”? Esta pergunta aqui:
“Presidente Bolsonaro, por que a sua esposa, Michelle, recebeu 89 mil de Fabrício Queiroz?”
Agora, quando há duas enormes perguntas assombrando a família Bolsonaro. Esta e a outra, que se repete há mais de 900 dias sem nenhuma resposta:
“Quem mandou matou Marielle Franco? E por quê?
A pauta anticorrupção como justificativa para votar em um homem com o passado e o presente de Bolsonaro sempre foi fingimento. Desconfio que alguns fingiram tanto que até acreditaram. E assim chegamos ao 7 de Setembro com uma oposição partidária fraca, a esquerda ocupada brigando entre si e a direita buscando se consolidar como uma espécie de poder moderador da extrema direita no poder. Dilma Rousseff (PT) foi arrancada da presidência supostamente por ter praticado “pedaladas fiscais”. A folha corrida de crimes de responsabilidade muito mais graves de Bolsonaro está dando volta no quarteirão. E, mesmo assim, Rodrigo Maia (DEM) acomodou seu traseiro sobre uma pilha de dezenas de pedidos de impeachment, um deles da Coalizão Negra por Direitos, com base no agravamento do genocídio dos negros.
Gostaria de dizer que há momentos em que um povo decide se é um povo ou um amontoado de gente “tocando a vida”, como mandou o déspota eleito que nos carrega para a morte. Gostaria de dizer, mas não digo. Porque não acredito que temos um povo, no sentido de uma massa de pessoas com a mesma nacionalidade que luta por valores comuns. Talvez não tenhamos um povo. Mas temos povos. Nas periferias e favelas urbanas deste país há gente se organizando e lutando e criando possibilidades de viver apesar de todas as formas de morte. Se ainda existe a Amazônia é porque camponeses e povos da floresta lutam, mesmo sendo abatidos a tiros ― e agora também pela covid-19. Nas cidades, os movimentos de sem-teto se organizam pelo direito da ocupação da cidade para a vida e não para a especulação imobiliária. No campo, os agricultores familiares insistem em alimentar o país sem agrotóxicos enquanto Bolsonaro libera mais de um veneno por dia. Há homens e mulheres barrando a destruição da natureza com seus corpos em cada dobra do país. Há rebeliões por todos os Brasis, avançando nas fissuras, pelas bordas.
Não são os mais frágeis que se mantêm em pé. São os fortes. Há 500 anos há um Brasil tentando matar todos os indígenas ― pela assimilação, pela contaminação ou por bala. E, ainda assim, a população indígena cresceu nas últimas décadas. Desde a abolição formal da escravidão, os negros foram deixados para morrer, e ainda assim os negros se tornaram a maioria ― 56% ― da população brasileira. Viver ― contra todas as formas de extermínio ― tem sido o ato mais radical de resistência das populações invisibilizadas, oprimidas e tratadas como subalternas.
Neste momento, as gerações que hoje vivem enfrentam seu maior desafio. Bolsonaro converteu o Estado numa máquina de morte. Tão perversa que viu na covid-19 uma maneira de eliminar aqueles que barravam com seus corpos seu projeto de poder. Suas ações deliberadas são encobertas com aparições midiáticas, discursos golpistas, o jogo de cena da cloroquina e a falácia da defesa da economia. O bolsonarismo controla quase que totalmente o noticiário enquanto o genocídio é a política persistente que avança na camada atrás dos holofotes dos factoides, sem encontrar oposição capaz de pará-la.
Hoje, Bolsonaro alcançou mais do que o seu sonho. Ele queria que a ditadura militar, que formou os generais que o apoiam, “tivesse matado pelo menos mais uns 30 mil”. Sua negligência intencional na resposta à covid-19, sua campanha oficial de desinformação, seu exemplo pessoal de irresponsabilidade são a principal causa da ampla disseminação da doença no Brasil. Também neste momento, a Amazônia queima mais uma vez e se aproxima velozmente do ponto de não retorno. O Parlamento Europeu já estuda considerar a destruição da maior floresta tropical do mundo, praticada deliberada e sistematicamente por Bolsonaro, um crime contra a humanidade.
Neste 7 de Setembro, chegamos ao ponto no Brasil em que afirmar que o presidente é “apenas” incompetente significa ajudá-lo a se safar de ser responsabilizado por crimes contra a humanidade. Incompetência é terrível e traz graves consequências, mas não é crime. Os fatos mostram que Bolsonaro foi deliberadamente incompetente, intencionalmente negligente, sistematicamente irresponsável. Bolsonaro e seu Governo planejaram e agiram, como mostra o Diário Oficial da União, suas manifestações nas redes e os vídeos com suas declarações públicas.
A data mais simbólica do Brasil não pode passar como se fosse normal ter um genocida no poder. Se deixarmos o genocídio se normalizar, não haverá vida neste país nem mesmo para aqueles que, por sua posição na cadeia alimentar da desigualdade brasileira, acreditam sempre estar a salvo. Neste 7 de Setembro, há movimentos de resistência dos Brasis insurgentes se levantando contra a máquina de morte do bolsonarismo. Há gente com coragem de nomear o que está acontecendo no Brasil. Não sei se seremos muitos ou poucos. Provavelmente poucos, mas, como os mortos da covid-19, inumeráveis. Há momentos em que tudo o que podemos fazer é lutar, mesmo sabendo que vamos perder porque a maioria vai estar tocando a vida ― e seguirá tocando a vida enquanto considerar que é só a vida do outro que está em risco. Talvez a pergunta mais importante deste 7 de Setembro seja: como pode barrar seu próprio genocídio um povo que se acostumou a morrer?
Resistindo. Declarando sua independência, porque morte já há demais. No momento, quase 125 mil corpos. Rebelando-se. Não porque agora seja possível ganhar. Mas para não ser obrigado a baixar os olhos quando as crianças perguntarem no futuro próximo de que lado você estava e o que você fez para impedir Bolsonaro de seguir matando.
Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora de Brasil, Construtor de Ruínas: um olhar sobre o país, de Lula a Bolsonaro (Arquipélago). Site: elianebrum.com Email: elianebrum.coluna@gmail.com Twitter, Instagram e Facebook: @brumelianebrum