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Luiz Carlos Azedo: O vírus não brinca
O negacionismo de Bolsonaro funciona como sabotagem aos esforços governamentais para conter a pandemia, inclusive os do Ministério da Saúde, cada vez mais enrolado na própria burocracia
Não há sanitarista no Brasil que não tenha estudado o caso da epidemia de meningite ocorrida durante a década de 1970, em pleno regime militar, bem como a campanha de vacinação que controlou a doença. A epidemia começou em Santo Amaro, na Grande São Paulo, causando 2.500 mortes na capital paulista. Mesmo com a incidência de casos saltando a cada ano, e com mortalidade oscilando de 12% a 14% dos doentes, o regime militar escondia os números da população e negava a existência de epidemia, estabelecendo censura prévia aos veículos de comunicação para que não divulgassem o que estava ocorrendo. Médicos e sanitaristas não podiam dar entrevistas.
Só a partir de 1974, quando a doença já grassava em áreas centrais de São Paulo, e não havia mais como negar a situação, com hospitais em colapso, os generais começaram a reconhecer o problema. Na época, o Brasil vivia o chamado “milagre econômico” e os militares temiam que a divulgação da epidemia gerasse pânico na população e prejudicasse as atividades econômicas.
Enquanto a meningite matava moradores da periferia, conseguiram abafar o assunto, mas, quando a epidemia atingiu bairros nobres de São Paulo, as autoridades foram obrigadas a admitir que havia uma crise de saúde. O estrago já estava feito. A incidência em São Paulo subiu de 2,16 casos por 100 mil habitantes, em 1970, para 5,90 casos em 1971. Em 1972, chegou a 15,64 diagnósticos por 100 mil habitantes e, em 1973, atingiu os 29,38 casos por 100 mil habitantes. A partir de 1974, houve uma explosão, motivada pela circulação do meningococo A, gerando uma sobreposição de surtos. Em 1974, a taxa de meningite chegou a 179,71 casos por 100 mil habitantes.
Com a curva de casos em ascensão sobre áreas centrais do Sudeste e em Brasília, não havia mais como impedir o fluxo da informação. Em março de 1974, o general Ernesto Geisel assumiu o poder e reconheceu a existência do problema, criando a Comissão Nacional de Controle de Meningite, que importou milhões de doses da vacina. Somente em 1977, porém, a epidemia foi controlada. Havia se expandido de tal forma que a campanha de vacinação teve de atingir 97% dos municípios brasileiros. Se os nossos sanitaristas aprenderam com a epidemia de meningite, parece que os militares no Ministério da Saúde esqueceram completamente a experiência do passado, com a diferença de que, agora, vivemos numa democracia e eles não têm mais como evitar a revelação dos fatos e a discussão dos problemas.
Perde perde
Não dá mais para escamotear: estamos numa segunda onda da epidemia do novo coronavírus. O Brasil registrou, nas últimas 24 horas, 433 mortes e 25.193 novos casos da covid-19; o número de vítimas fatais da doença no país subiu para 181.835, e o total de casos confirmados aumentou para 6.927.145. A única maneira de evitar uma tragédia maior do que a da primeira onda é manter a política de distanciamento social e promover a vacinação em massa da população. O vírus não está para brincadeira, a segunda onda já atinge 18 estados e o Distrito Federal.
Entretanto, o presidente Jair Bolsonaro e o governador de São Paulo, João Dória, se digladiam. É um jogo de perde-perde. O primeiro dispõe de recursos para vacinar a população, mas não dispõe ainda de uma vacina, pois a de Oxford, já comprada pelo governo brasileiro, não está pronta, e a da Pfizer, que havia sido oferecida e fora desprezada, não está disponível, embora o governo federal agora queira comprá-la. O segundo tem a vacina chinesa CoronaVac, produzida pelo Instituto Butantan, mas precisa ainda de aprovação da Anvisa, que negaceia os prazos e tenta mudar as regras do jogo.
Em algum momento, a realidade falará mais alto. Com a velocidade com que a segunda onda está se propagando, será inevitável a adoção de novas medidas de distanciamento social, para evitar o colapso do sistema hospitalar. O reiterado negacionismo de Bolsonaro, porém, funciona como uma espécie de sabotagem aos esforços governamentais para conter a pandemia, inclusive os do próprio Ministério da Saúde, cada vez mais enrolado na própria burocracia. Uma campanha de vacinação em massa precisa de mobilização da sociedade, de convencimento da necessidade e da eficácia da vacina. Retardar a aprovação da vacina produzida pelo Butantan, porque seria um êxito de Doria, e desacreditar sua eficácia, em razão de sua procedência chinesa, é um tiro no próprio pé.
Ontem, a Anvisa divulgou uma nota mudando de 72 horas para 10 dias o prazo de aprovação das vacinas, além de fazer referência a supostas implicações geopolíticas de cada vacina, que precisariam ser analisadas, o que levou o governo de São Paulo a desistir de pedir o uso emergencial da vacina e apostar na sua iminente aprovação definitiva, pela agência reguladora da China. É um contrassenso sob todos os aspectos: praticamente todas as vacinas que estão sendo desenvolvidas no mundo têm algum nível de participação da China, pois foram os cientistas chineses que forneceram o sequenciamento genético utilizados nas pesquisas.
Evandro Milet: Como governos inovam para captar recursos
Dezessete trilhões de dólares giram no mercado mundial de dívida, remunerados a juros negativos segundo a revista Exame. Então não falta dinheiro, faltam bons projetos que dêem remuneração razoável de forma segura
Claudio Frischtak, consultor de investimentos em infraestrutura, vê o Brasil com necessidade de investir R$ 150 bilhões a mais por ano no setor. Mas a agenda prioritária no momento, ele diz, tem "custo zero" para o Tesouro: pavimentar o caminho institucional para aumentar a participação do setor privado. Diante da impossibilidade de o setor público contribuir com recursos neste momento histórico, é preciso pavimentar o caminho para o setor privado. Um ponto chave é reduzir a insegurança jurídica. Frischtak considera imprescindível um esforço consistente e sistemático de diálogo entre analistas, técnicos e o Executivo com o Poder Judiciário. Decisões recentes, como a do presidente do STJ, que monocraticamente manteve a retomada da Linha Amarela pela Prefeitura do Rio, são absolutamente destrutivas para a segurança jurídica.
Outro ponto é reduzir a carga regulatória. Frischtak considera que a nova Lei das Agências é positiva. “Outra medida de custo zero é indicar excelentes diretores para as agências reguladoras”, acrescenta.
Um terceiro ponto da agenda é simplesmente tocar para valer a fila do conjunto de marcos legais a ser aprovado. O do saneamento já foi, mas há ainda os marcos do gás natural, da eletricidade e das ferrovias. A agenda é simplesmente fazê-los andar e garantir que mantenham a qualidade, como no caso da aprovação do marco do gás natural pela Câmara.
Frischtak observa que houve avanços no financiamento da infraestrutura, com a Lei Geral de Concessões, de 1995, a das parceria público-privadas (PPP), em 2004, e o advento das debêntures de infraestrutura em 2010 e 2011.
O mercado se sofisticou, mas ainda falta caminhar mais na direção do “project finance”, os projetos que se financiam a partir do fluxo de caixa, e dos quais há modalidades que até já existem em alguns países latino-americanos e que poderiam ser exploradas no Brasil.
Interessantes modalidades para atração de investimentos privados são o PMI(Procedimento de Manifestação de interesse) e o MIP(Manifestação de interesse privado). O primeiro é instituído e proposto pela própria Administração. Já o segundo, permite a apresentação espontânea de projetos pelo mercado.
As PPP(Parcerias público-privadas) permitem viabilizar projetos onde a cobrança de tarifas não é suficiente para remunerar o investimento e abre-se espaço para uma complementação de receitas pelo setor público. PPP vem sendo utilizadas para vários tipos de empreendimentos: iluminação pública, resíduos sólidos urbanos, saneamento básico, educação(creches), segurança(câmeras de segurança, centros de gestão integrada), saúde(hospitais), mobilidade(gestão de semáforos, terminais de ônibus, estacionamento, serviços de bikes), habitação popular, mobiliário urbano(pontos de ônibus, totens, bancos de praças), turismo(centros de convenções, parques) e redes de dados. A Caixa e o Bndes têm apoiado estados e municípios na formatação de PPP.
Outra forma de atrair investidores é com as Operações Urbanas Consorciadas, onde o governo municipal faz intervenções buscando requalificar uma área da cidade concedendo aumento do Coeficiente de Aproveitamento ou de modificação dos usos permitidos para o local em troca do investimento privado.
Antes de ir de pires na mão à Brasília é interessante que os novos prefeitos, individualmente ou em consórcio, trabalhem esses formatos mais sofisticados para captar os muitos recursos da iniciativa privada com bons projetos.
Luiz Carlos Azedo: O atraso na vanguarda
Estamos diante de uma nova ofensiva do presidente Bolsonaro para aumentar seu poder, desta vez voltada para controlar o Congresso e impor sua agenda política, social e ambiental regressiva
Uma das variáveis fortes das eleições municipais passadas – com exceção da disputa de Macapá, cujo segundo turno será domingo próximo, mas que ainda pode confirmar a regra — foi a atuação de forças centrífugas que fragilizaram a participação do presidente Jair Bolsonaro no pleito. O grande número de candidatos, o fim das coligações e as dimensões continentais do país atuaram nessa direção. O presidente Jair Bolsonaro subestimou esses aspectos e misturou o impacto do auxilio emergencial nas famílias de mais baixa renda e o peso específico da União como se fossem uma mesma coisa que o seu carisma pessoal, o que o levou a apostar suas fichas abertamente em Celso Russomano (Republicanos), em São Paulo, e no prefeito Marcelo Crivella (Republicanos), no Rio, julgando-se o grande eleitor do país. O primeiro sequer foi ao segundo turno; o segundo, perdeu a reeleição. Essas derrotas, como as da maioria das demais cidades onde interferiu no pleito, caíram no seu colo.
Entretanto, é um erro avaliar que as eleições municipais transformaram Bolsonaro num pato manco. Seria uma transposição mecânica do resultado eleitoral para o pleito de 2002. Pode ser até que isso ocorra, mas por outros motivos, que não são propriamente as eleições municipais: a desastrada atuação do Ministério da Saúde na pandemia do novo coronavírus, mitigada graças ao abono emergencial, mas cuja conta já está chegando; a falta de empatia em relação às vítimas da pandemia, que está provocando ojeriza em todo o pessoal da saúde e em parcelas da população que o haviam apoiado em 2018. Em plena segunda onda, vamos entrar o ano sem abono emergencial nem vacinação em massa, com déficit fiscal astronômico, inflação em alta e a economia ainda sem rumo.
Contraditoriamente, porém, o mesmo fator que levou à fragmentação da base eleitoral de Bolsonaro nas eleições municipais, agora, atua a seu favor, ao desagregar as forças de oposição, que continuam dispersas, em razão do mesmo pragmatismo que impera na política local. Além disso, abre-se novo ciclo de centralização política, cujo eixo é a força da União junto aos estados e municípios. Essa é uma tradição da política brasileira marcada por ciclos longos, como já foi demonstrado por Alberto Torres, no começo do século; Oliveira Viana, no Estado Novo; e general Golbery do Couto e Silva, em célebre palestra na Escola Superior de Guerra, em 1980, intitulada Sístoles e Diástolesl. A metáfora da contração e dilatação do coração serviu de base para a estratégia adotada por Geisel para que os militares se retirassem da política em ordem e tutelassem a transição à democracia. A Revolução de 1930, com a posterior implantação do Estado Novo (1937), e o golpe militar de 1964, com a fascistizaçao do regime militar a partir do Ato Institucional no. 5, em 1968 (que hoje completa 52 anos), foram grandes sístoles do período republicano.
Coincidentemente, esses dois ciclos foram encerrados em momentos de grandes mudanças na política mundial: a derrota do nazi-fascismo na II Guerra Mundial (1945) e o fim da guerra-fria, com a derrubada do Muro de Berlim, em 1989. Acontece que o federalismo brasileiro, consagrados nas Constituições de 1891, 1946 e 1988, sempre esteve sobre pressão da União. O mestre José Honório Rodrigues (Conciliação e Reforma no Brasil, 1965), grande estudioso das raízes do pensamento reacionário e das elites conservadoras sempre destacou que a tensa relação entre a União com estados e municípios como vetor um permanente da política brasileira. Em plena vigência do regime democrático, promoveu, desde eleição de Tancredo Neves, para o mal (Plano. Cruzado) e para bem (Plano Real), sucessivas ondas de centralização política e financeira.
Tutela militar
O fim da tutela militar, a partir da Constituição de 1988, que consagrou um Estado democrático ampliado, mais permeável às pressões da sociedade, e as eleições diretas para a Presidência, com alternância de poder, encerraram os ciclos longos, mas as forças de sístole permanecem existindo, sendo que a eleição de Jair Bolsonaro trouxe de volta ao poder, pelo voto, um grupo de militares saudosos do regime militar, que mantem a ambição de tutelar o Estado brasileiro — por favor, não generalizem. A primeira tentativa de tutela se traduziu na ofensiva de Bolsonaro e de setores de ultra-direita contra o Supremo Tribunal Federal (STF), mas esbarrou na reação da própria Corte e do Congresso, apoiados pelas forças políticas mais responsáveis, pela sociedade civil organizada e pelos grandes meios de comunicação de massa. O golpismo que rondava os quartéis não contaminou as Forças Armadas.
Agora, estamos diante de uma nova ofensiva de Bolsonaro para aumentar seu poder, desta vez voltada para controlar o Congresso, com objetivo de impor a sua agenda política, social e ambiental regressiva, o que surpreendeu aqueles que tratavam Bolsonaro como um pato manca. Nunca é demais lembrar que o governo é sempre a forma mais concentrada de poder, mesmo quando é um mau governo; quando nada, porque porque arrecada, normatiza e coage. Mas o que está fazendo a diferença não é a truculência verbal de Bolsonaro, é a velha política de conciliação, que Bolsonaro opera com sinal trocado: desta vez, a vanguarda é o baixo clero do Congresso, que conhece na palma da mão, porque dele fez parte.
Ao atrair para o campo do governo os setores oligárquicos mais fisiológicos e patrimonialistas da política brasileira, principalmente do Norte e Nordeste, Bolsonaro anabolizou o atraso na Câmara, a partir da candidatura de seu principal aliado, o deputado Arthur Lira (PP-AL), que articula um arrastão parlamentar, com farta distribuição cargos e distribuição de verba. No Senado, já estava tudo dominado. Engana-se, porém, quem imagina que mira apenas a reeleição. Seu projeto é inaugurar um ciclo longo de centralização do poder e resgate da tutela militar sobre a democracia brasileira, a partir do controle do Congresso. Para isso, porém, é preciso também subjugar as instituições de Estado, principalmente as que têm o monopólio da força, o Judiciário e os órgãos de comunicação de massa, além de intimidar agentes econômicos e a sociedade civil. Entretanto, ainda não existe correlação de forças favorável, interna e externa.
Luiz Carlos Azedo: Faltou combinar com os russos
Como previu o ex-ministro da Saúde Henrique Mandetta, chegamos ao final do ano com 180 mil mortos. Novamente, precisamos do distanciamento social, enquanto não chega a vacina
Tem momentos da política que Brasília descola do Brasil, não a dos candangos que nasceram na cidade e nela ganham o pão com o suor de cada dia, mas aquela que todos conhecem pela arquitetura monumental de Oscar Niemeyer: a da Esplanada dos Ministérios e da Praça dos Três Poderes. Esta semana foi um desses momentos, com o centro político e administrativo do país completamente descolado da realidade nacional e voltado para a disputa pelo controle do Congresso, embora a eleição dos presidentes da Câmara e do Senado estejam marcada para 1º. de fevereiro. O drama do país é a segunda onda da pandemia do novo coronavírus.
Cercado de áulicos por sete lados — o oitavo, na Rosa dos Ventos, é a trincheira dos filhos —, Bolsonaro parece aquele Presidente prisioneiro de uma jaula de cristal a que se referia o economista Carlos Mattus, o ex-ministro do Planejamento de Salvador Allende, o caso clássico do líder isolado, prisioneiro da Corte “que controla os acessos à sua importante personalidade”. O presidente sem “vida privada, sempre na vitrine da opinião pública”, com a diferença de que não precisa representar um papel, Bolsonaro aparece ante os cidadãos que representa e dirige como realmente é: um líder sem empatia, indiferente ao luto dos familiares e amigos das vítimas da pandemia do novo coranavírus, cujo carisma está associado à truculência e ao conservadorismo.
Ontem, quando atingimos a marca dos quase 180 mil mortos e 6,78 milhões de infectados, Bolsonaro anunciou o “finalzinho” da “gripezinha”, ao inaugurar o vão central de uma ponte em Porto Alegre (RS). No mesmo dia, a segunda onda da pandemia do novo coronavírus atingiu 21 estados e o Distrito Federal, pressionando o sistema de saúde pública com uma velocidade muito superior à primeira. Para não desmentir o chefe, os militares que aparelharam o Ministério da Saúde atrasam a divulgação de dados, minimizam a expansão da doença e fazem uma ginástica danada para escamotear o que todo mundo já sabe: não fizeram o dever de casa e a vacinação em massa contra a COVID-19 aqui no Brasil vai atrasar, e muito.
No mundo, a segunda onda atinge com força a Europa, a ponto de a primeira-ministra Angela Merkel fazer um apelo dramático aos alemães, para que façam o isolamento social. Nos Estados Unidos, epicentro da segunda onda, a FDA, agência reguladora norte-americana, aprovou a toque de caixa a utilização da vacina da Pfizer-Biontech, justamente a vacina que havia sido descartada pelo Ministério da Saúde, porque sua logística exigia armazenamento 70º abaixo de zero. Agora, o ministro Eduardo Pazuello, um general de divisão do Exército, supostamente especialista em logística, tenta comprar a vacina que lhe fora oferecida e recusou em agosto passado.
Vacinas
Bolsonaro deu ordens para que o Ministério da Saúde comece a vacinação antes do ano-novo, uma missão quase impossível, porque a vacina da Pfizer não estará disponível. Enquanto o governo federal tenta adquirir uma vacina para chamar de sua, o Instituto Butantan já está produzindo, “24 horas por dia, sete dias na semana”, 1 milhão de doses/dia da CoronaVac. A vacina chinesa foi adquirida pelo governador João Doria (PSDB), que anunciou o início da vacinação em massa em São Paulo para o dia 25 de janeiro, aniversário da capital paulista, fundada por Manoel da Nóbrega, José de Anchieta, João Ramalho e o Cacique Tibiriçá, em 1554, contra a orientação do Bispo Sardinha e da Corte portuguesa.
Desculpe-me o trocadilho, mas Pazuello me lembra o Sargento Tainha. Como nas estórias em quadrinhos do Recruta Zero, erros de conceito costumam levar qualquer estratégia ao desastre. Além do conceito correto, uma estratégia exitosa pressupõe, ainda, um método adequado e um ambiente favorável. A militarização do Ministério da Saúde foi um erro de conceito, não tem a menor chance de dar certo. Os métodos autoritários, centralizadores e sem transparência contribuem ainda mais para o fracasso, além de se somarem ao ambiente desfavorável criado pelo negacionismo do presidente Jair Bolsonaro, tanto na sociedade como na própria estrutura do Sistema Único de Saúde (SUS).
Como previu o ex-ministro da Saúde Henrique Mandetta, chegamos ao final do ano com 180 mil mortos. Como no começo da pandemia, novamente precisamos do distanciamento social e do uso generalizado das máscaras de proteção individual para conter a expansão da pandemia e evitar o colapso dos hospitais, enquanto não chega a vacina. Felizmente, a corrida mundial para fabricá-la está chegando ao final. O conhecimento acumulado no caso da SARS-CoV-1 e a cooperação científica mundial, com destaque para a divulgação, pelos chineses, do sequenciamento genético da SARS-CoV-2, possibilitaram o desenvolvimento de 80 vacinas, que estão sendo testadas em todo o mundo. Apostar apenas numa delas, no caso, a vacina de AstraZeneca-Oxford, como fez Bolsonaro, foi um tiro pela culatra. Custava nada manter a parceria com São Paulo; afinal, quem vai sair na frente mesmo é a Argentina, cujo presidente, Alberto Fernández, comprou a vacina russa Sputinick V e será o primeiro a ser vacinado, antes do Natal, para mostrar que o medicamento é seguro.
Luiz Carlos Azedo: Tudo ou nada na Câmara
Arthur Lira tenta montar uma espécie de rolo compressor, já integrado por 205 deputados, para atropelar Maia, que ainda não tem candidato à própria sucessão
Troca de farpas pelas redes sociais e depois, um bate-boca na antessala do presidente Jair Bolsonaro, derrubaram antes da hora o ministro do Turismo, Marcelo Álvaro Antônio, e podem resultar também no deslocamento do general Luiz Ramos, que sai desgastado do episódio, da Secretaria de Governo, ou seja, do cargo de articulador político do governo. A trombada entre ambos foi um efeito colateral das articulações de Ramos para fortalecer a candidatura do deputado Arthur Lira (PP-AL) a presidente da Câmara, da qual também faz parte a reforma ministerial em discussão no Palácio do Planalto. Marcelo Álvaro Antônio é ligado aos filhos de Bolsonaro, que vivem às turras com os militares do governo.
Ramos teria colocado o Ministério do Turismo na mesa de negociações com o Centrão, convidando para o cargo o deputado Roberto Lucena (Podemos-SP). O ministro ficou sabendo e partiu pra cima do general, acabou demitido por Bolsonaro. O presidente da Embratur, Gilson Machado, assumiu interinamente a pasta. Agora, cogita-se que Ramos vá para Secretaria-Geral da Presidência, entregando a Secretaria de Governo para o deputado Aguinaldo Ribeiro (PP-PP),um dissidente do PP e aliado de Rodrigo Maia, que passaria a ser o novo articulador político do governo. Bolsonaro está indo para uma espécie de tudo ou nada no Congresso, que pretende controlar. Contava com a reeleição de Alcolumbre, mas o veto do Supremo Tribunal Federal (STF) à recondução atrapalhou seus planos; em contrapartida, a candidatura de Arthur Lira na Câmara está de vento em popa.
Não foi à toa que o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM—RJ), que ainda não tem candidato à própria sucessão, acusou Bolsonaro de estar “desesperado” para controlar o Congresso. A pauta da Câmara é o ponto de partida para a agenda de Bolsonaro, cujo eixo é o desmonte da legislação relativa aos direitos humanos e ao meio-ambiente, e dos instrumentos de controle institucional da sociedade sobre o Executivo. Para levar adiante muitas de suas propostas, o presidente da República precisa do apoio do presidente da Câmara. Quando Maia diz que o Palácio do Planalto está jogando pesado, isso significa que não está economizando cargos e verbas para obter apoio parlamentar, o tradicional toma lá dá cá.
Rolo compressor
Arthur Lira anunciou sua candidatura ontem com apoio dos 135 deputados do Centrão — PL (41)), PP (40), PSD (33), Solidariedade (13) e Avante (8). De imediato, recebeu apoio do PL (41), do PTB (11), do PROS (10), do PSC (9) e do Patriota (6), ou seja, teoricamente, de mais 77 deputados. Tenta montar uma espécie de rolo compressor, já integrado por 205 deputados, aproveitando o fato de que a liderança de Maia se enfraquece, porque ainda não tem um candidato que atraia os votos da oposição e seu mandato está terminando. A expectativa de poder que Lira oferece não é a ocupação de espaços na própria Câmara, moeda de troca com a qual Maia não conta mais, são os cargos e verbas do governo federal, com os quais o presidente da Câmara aí é que não conta mesmo.
Para um presidente da República que chegou ao poder com uma narrativa antissistêmicas, que renegava o jogo parlamentar e o chamado presidencialismo de coalizão, a mudança de rumo só tem uma explicação: o fracasso na implementação da agenda de governo. As reformas de Bolsonaro não foram adiante , com exceção da previdenciária, que já estava com meio caminho andado no governo de seu antecessor, Michel Temer. Ontem, Maia chegou a ironizar o atraso na aprovação da PEC Emergencial, cuja tramitação o governo resolveu iniciar pelo Senado. Disse que vai encomendar um bolo para comemorar um ano de atraso da proposta do governo, que está parada até hoje.
Não se sabe ainda o custo das articulações para garantir a vitória de Lira, as negociações para isso são feitas no âmbito da pequena política, com todos os riscos que isso oferece do ponto de vista republicano. Na grande política, o governo Bolsonaro perdeu completamente o rumo, ninguém sabe em que direção pretende ir. A base que montou no Congresso tem um viés conservador nos costumes e populista na economia, o que vai complicar o enfrentamento da crise.
A propósito, ontem, o Banco Central (BC) manteve a taxa Selic em 2%, apesar da alta da inflação, interrompendo as especulações do mercado. Atribuiu a alta de preços ao impacto do dólar nas exportações e avaliou que a situação é sazonal, ou seja, os preços vão cair. No mercado, porém, as maiores preocupações são com a dívida pública, que chegará a R$ 1 trilhão, e com a segunda onda da pandemia, cujo impacto nas atividades econômicas vai depender da efetividade da campanha de vacinação contra o novo coronavírus.
Luiz Carlos Azedo: A derrota do negacionismo
Chegamos a 178 mil mortos, 6,65 milhões de infectados e 796 mortes nas últimas 24 horas. A média móvel está em 617 mortes, ou seja, 25 pessoas por hora, vítimas da “gripezinha”
A primeira pessoa vacinada contra a covid-19 no Ocidente foi uma senhora de 90 anos; por ironia, a segunda pessoa, um homem de 81 anos, homônimo do dramaturgo inglês William Shakespeare, para quem era uma infelicidade da época, que “os doidos governassem os cegos”. O primeiro-ministro do Reino Unido, Boris Johnson, porém, só tem cara de doido. Quis o destino que seu negacionismo em relação ao novo coronavírus e à qualidade do sistema de saúde pública britânico durasse apenas o tempo suficiente para que fosse alcançado pelo vírus. A dura realidade da doença fez com que mudasse radicalmente de opinião. Ontem, deu início à vacinação em massa dos britânicos. Não esperou a conclusão dos testes da vacina de Oxford, ainda envolta na polêmica sobre a eficácia de suas dosagens; optou pela aplicação da vacina da Pfizer-Biontech, americana.
Essa é segunda derrota acachapante do negacionismo, no campo objetivo da vacina como caminho mais eficaz para conter a pandemia, erradicar a doença e voltar à vida normal. A primeira grande derrota foi a eleição de Joe Biden nos Estados Unidos, que até hoje o presidente Jair Bolsonaro não reconheceu. Não se deu conta ainda da envergadura estratégica da mudança de governo norte-americano, que deixa em colapso a atual política externa brasileira. Suas consequências também serão sentidas na política interna, a começar pela política sanitária. Nos Estados Unidos, a segunda onda da pandemia do novo coronavírus foi fatal para a reeleição de Donald Trump, de quem Bolsonaro é aliado incondicional. Como Boris Jonhson, porém tardiamente, o presidente norte-americano encerra o mandato correndo para começar a vacinar sua população. Vladimir Putin, na Rússia, e Xi Jinping, na China, já estão vacinando.
Bolsonaro manobra para disfarçar o que todo mundo já sabe: fez tudo errado durante a pandemia. É deprimente ver o general de divisão da ativa do Exército Eduardo Pazuello à frente do Ministério da Saúde: com marcial arrogância, corrobora uma política sanitária desastrosa para o país, cuja estratégia equivocada sai da cabeça de Bolsonaro. Os números da pandemia estão em ascensão e o governo anuncia que a Anvisa vai levar 60 dias para autorizar o uso de vacinas que já estão aprovadas por agências controladoras de outros países. Como diria o Bussunda, é brincadeira. Ok, existe uma disputa política entre o presidente Jair Bolsonaro e o governador de São Paulo, João Doria, mas quem fez a aposta errada foi o governo federal. A vacina chinesa chegou primeiro, o Instituto Butantan está sendo mais eficiente, nada disso acontece por acaso.
Atraso
Um governo que demite dois ministros em plena pandemia, Henrique Mandetta e Nelson Teich, e substitui um time experiente de sanitaristas por um grupo de militares paraquedistas no Ministério da Saúde, cujo secretário-executivo exibe na lapela uma faca ensangüentada, símbolo do 1º. Batalhão de Operações Especiais do Exército, agora corre atrás do prejuízo. Está tudo atrasado, falta planejamento e logística para a campanha de vacinação. O ministro anunciou que o governo terá 300 milhões de doses de vacina, mas não disse quando nem como será a campanha. O plano estaria pronto, mas até agora é secreto. Se tivesse mais grandeza, Bolsonaro criticaria o governador João Doria por tirar partido da situação, mas não retardaria a vacinação em massa. Entretanto, sempre desdenhou da eficácia da vacina chinesa ; agora, negaceia sua aprovação. O negacionismo em relação à vacina Coronavac é um bordo perdido do governo, que largou mal e ficou para trás, por uma aposta ideológica e não-científica.
A história está cheia de exemplos de decisões políticas equivocadas que causaram grandes tragédias. Quando a Itália entrou na I Guerra Mundial, em 1915, ao lado da “Entente” (aliança entre França, Inglaterra e Rússia), os italianos acreditavam que aquela seria uma oportunidade de libertar Trento e Trieste do jugo estrangeiro e declararam guerra ao Império Austro-Húngaro. Centenas de milhares de jovens foram recrutados e lançados à batalha. No primeiro confronto, porém, o exército inimigo manteve as suas linhas de defesa de Izonso e o ataque foi contido. Morreram 15 mil italianos.
Na segunda batalha, foram 40 mil mortos; na terceira, 60 mil. Os italianos lutaram “por Trento e por Trieste” em mais oito batalhas, até que, em Caporreto, na décima-segunda, foram derrotados fragorosamente e empurrados pelas forças austro-húngaras às portas de Veneza. O episódio, citado no livro Homo Deus, de Yuval Noah Harari (Companhia das Letras), ficou conhecido como a síndrome “Nossos rapazes não morreram em vão”: foram 700 mil italianos mortos e mais de 1 milhão de feridos ao final da guerra.
Na maioria das guerras, não são os generais que morrem, é o cidadão que vai para a frente de batalha. Ontem, chegamos a 178 mil mortos, 6,65 milhões de infectados e 796 mortes nas últimas 24 horas. A média móvel das duas últimas semanas está em 617 mortes, isso significa que estão morrendo mais de 25 pessoas por hora, vítimas da “gripezinha”. Não são números que possam ser naturalizados como o general Pazuello e sua equipe estão fazendo, porém, a mentalidade marcial leva a isso. Embora esteja no vértice do Sistema Único de Saúde (SUS), o Brasil é uma federação e o sistema é tripartite, a União não tem o monopólio da política de vacinação, cabe-lhe coordenar e não obstruir. A legislação, inclusive, faculta aos demais entes federados — estados e municípios — o direito de formarem consórcios para resolverem problemas comuns e desenvolver políticas conjuntas.
Luiz Carlos Azedo: Regresso em marcha forçada
O desmonte das políticas públicas voltadas para os direitos humanos está em pleno curso, mas é uma contradição com as necessidades imediatas os brasileiros
Na sua primeira e única visita ao Jardim Botânico, o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles — o homem que conduz as boiadas do desmatamento, das queimadas e das demais agressões ao meio ambiente — anunciou a intenção de transformar o Museu do Meio Ambiente, no Jardim Botânico do Rio de Janeiro, num hotel-boutique, espécie de pousada de alto luxo, acessível apenas aos mais privilegiados. O cara tem uma mentalidade mais atrasada do que a do D. João VI, o rei português que fugiu de Napoleão Bonaparte para o Brasil e mandou criar a instituição, nos idos de 1808, ou seja, mais de 212 anos atrás, com objetivo de aclimatar e cultivar especiarias e árvores exóticas, entre as quais, palmeiras imperiais, nogueiras, mangueiras, jaqueiras e cravos-da-Índia, que vieram do Oriente, das Ilhas Maurício a Macau.
Mal sabe o ministro: os cariocas têm apego àquele espaço privilegiado nas bordas da Lagoa Rodrigo de Freitas e ao pé da Serra do Mar, polo irradiador da cultura ecológica de suas crianças e adolescentes, parte integrante da memória afetiva da cidade; e da importância científica de suas pesquisas e do seu acervo, que preserva 7,5 mil espécies em pé, um herbário com 600 mil amostras e a maior biblioteca de botânica do país, com 32 mil volumes. Como a arrogância de Ricardo Salles não tem limites, ficamos imaginando: até onde vai essa sanha regressista em marcha forçada? O governo Bolsonaro se comporta como se estivesse no antigo regime militar (1964-1985) e não tivesse que dar satisfações a ninguém.
A propósito, a postura de Salles não difere muito da adotada pelo ministro da Saúde, o general da ativa Eduardo Pazuello, que não presta contas à comunidade científica nem à sociedade, e cumpre as ordens do presidente da República sem pestanejar. Vamos ver o que vai acontecer em 25 de janeiro, quando o governo de São Paulo, segundo anunciou o governador João Doria (PSDB), pretende iniciar a vacinação em massa da população residente e de quem mais estiver por lá. A vacina ainda depende da aprovação da Anvisa, que hoje está sob absoluto controle de militares negacionistas como Bolsonaro, mas há controvérsias, porque a legislação é ambígua. Diz que as autoridades, no âmbito de sua competência, podem importar e distribuir medicamentos e outros materiais, equipamentos e insumos sem registro na Anvisa, desde que autorizados pela FDA, EMA ou entidade similar — a legislação nomeia – do Japão e da China.
Direitos humanos
Se ligarmos uma coisa com a outra, veremos que o regresso está em marcha forçada em toda linha, como na educação, por exemplo. Ontem mesmo, um manifesto de pediatras pedia que as crianças voltassem às aulas. A mesma coisa na área da segurança pública, onde a política do tipo compre uma arma e se defenda sozinho é narrativa dos violentos, e deixa a população à mercê de traficantes, milicianos e policiais despreparados. Temos um governo que não está nem aí para os direitos humanos, que remontam à Revolução Francesa, um mix de direito liberal, moral cristã e política humanista. Bolsonaro despreza esses valores, embora faça apologia da liberdade individual.
É falsa a ideia de que os direitos humanos perderam seu significado e limites com a globalização e a revolução digital. Direitos como atributos individuais, apenas, não podem combater a desigualdade, nem são sinônimos de justiça. Direitos humanos são prescrições: as pessoas não são livres e iguais, mas deveriam ser. O “direito à vida”, por exemplo, por si só, não responde as perguntas sobre o aborto. Nem às necessidades da sobrevivência, como alimento, abrigo ou cuidados de saúde. Na maioria dos casos, uma reivindicação de direitos humanos é o começo de um processo de desenvolvimento social e não o fim.
A Constituição brasileira de 1988 consagrou como direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados. Três emendas constitucionais, em 2000, 2010 e 2015, incluiram no artigo 6º da Carta Magna, os direitos à moradia, à alimentação e ao transporte. Sempre houve muitas críticas ao texto constitucional, mas essa é uma agenda que corresponde às necessidades do nosso desenvolvimento social. O desmonte das políticas públicas voltadas para esses objetivos está em pleno curso, mas é uma contradição com as necessidades mais prementes da grande maioria da população. De certa forma, a pandemia do novo coronavírus tornou isso mais evidente e desnudou o caráter regressivo da atuação do governo federal nessas áreas. Isso ficará mais evidente com o fim do auxílio emergencial, que mitigou os efeitos mais perversos desse desmonte.
Luiz Carlos Azedo: Como perder a guerra
Bolsonaro cria mais obstáculos para o desenvolvimento do país do que se imagina, pois aprofunda nosso atraso econômico e tecnológico e retarda a recuperação da economia
Quando invadiu a antiga União Soviética, Adolf Hitler já havia conquistado boa parte da Europa: além da Áustria, Tchecoslováquia e Polônia — o que deflagrou a Segunda Guerra Mundial —, a Noruega, a Dinamarca, a Bélgica, a Holanda, a França, a antiga Iugoslávia e a Grécia, além de ex-colônias europeias na África. A Operação Barbarrosa foi iniciada pelos alemães em 22 de junho de 1941 e mobilizou mais de três milhões de soldados. Sua intenção era conquistar a URSS em oito semanas. Três objetivos estratégicos foram estabelecidos por Hitler. Ocupar Moscou, a sede do governo; obter a rendição de Leningrado (São Petersburgo), a grande porta russa para o Ocidente; e controlar Stalingrado (antiga Tsarítsin, hoje, Volgogrado), para garantir petróleo em abundância. Foram passos maiores que as pernas. A 30 quilômetros de Moscou, que chegou a ser evacuada, os alemães foram repelidos; apesar da fome, a população de Leningrado resistiu até o cerco ser quebrado, em 1944. Estratégica para o controle do Cáucaso, área considerada vital para o abastecimento das tropas alemãs, em Stalingrado, a batalha foi a mais longa e sangrenta de toda a guerra, mudando seu curso.
Os alemães não tinham recursos suficientes para manter uma guerra de longa duração em território soviético, na qual exauriram suas energias. Além disso, a derrota em Stalingrado quebrou a aura de invencibilidade do Exército alemão, que acabou cercado e se rendeu. Cerca de 400 mil alemães, 200 mil romenos, 130 mil italianos e 120 mil húngaros morreram, foram feridos ou capturados. Dos 91 mil alemães feitos prisioneiros em Stalingrado, apenas 5 mil voltaram para a Alemanha. Os soviéticos sofreram cerca de 1,13 milhão de baixas, sendo 480 mil mortos e prisioneiros e 650 mil feridos em toda área de Stalingrado. Quando se rendeu, o comandante do 6º Exército alemão, marechal de campo Friedrich Paulus, referindo-se a Hitler, declarou: “Não tenho intenção de me suicidar por aquele cabo da Baviera”. Nunca antes um marechal de campo alemão havia se rendido numa frente de batalha; preferiam o suicídio à desonra. Ele havia cumprido as ordens de não se retirar de Stalingrado, a qualquer preço, mas acabou isolado, sem munição nem suprimentos.
Tem gente que considera a política uma guerra sem derramamento de sangue. Geralmente, trata os adversários como inimigos a serem exterminados. Entretanto, eles ressuscitam. Um dos três protagonistas da Conferência de Yalta, que dividiu o mundo em áreas de influência — ao lado de Franklin Delano Roosevelt (EUA) e Josef Stálin (URSS) —, o primeiro-ministro britânico Winston Churchill dizia: “A política é quase tão excitante como a guerra e não menos perigosa. Na guerra a pessoa só pode ser morta uma vez, mas na política diversas vezes.”
Frentes de batalha
Não por acaso, analogias de cunho militar são usadas na análise política. Por exemplo, a chegada do presidente Jair Bolsonaro ao poder resultou de uma “guerra de movimento” bem-sucedida na campanha eleitoral de 2018, uma espécie de “britzkrieg”. Na Presidência, manteve essa tática no primeiro ano de governo para ampliar seus poderes, até trombar com o Supremo Tribunal Federal (STF), que investiga o chamado “gabinete do ódio” (a disseminação de fake news e ataques a autoridades nas redes sociais por colaboradores encastelados no Palácio do Planalto) e o caso “rachadinhas” da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro, no qual está envolvido o senador Flavio Bolsonaro (Republicanos-RJ). Desde então, opera uma “guerra de posições”, na qual tenta envolver as Forças Armadas, mobiliza os órgãos de controle do Estado, entre os quais o Ministério Público Federal (MPF), e pretende controlar o Congresso, o Judiciário e os grandes meios de comunicação de massa. Mutatis mutandis, foi essa estratégia de Wladimir Putin na Rússia para garantir sua longa permanência no poder.
O problema de Bolsonaro é que a verdadeira guerra está sendo travada em outros terrenos, nos quais não tem a menor chance de vitória. A primeira frente é a política ambiental, que nos levou a um grave litígio com a União Europeia, principalmente, com a Alemanha, a França e a Noruega. Os resultados de sua política são uma contradição em si mesma: quanto mais “passa com a boiada”, mais isolado internacionalmente fica.
A segunda, a crise sanitária, na qual Bolsonaro chegou a um ponto crítico, em razão do seu negacionismo: entrou numa guerra particular com o governador João Doria (SP), de São Paulo, por causa da vacina chinesa, e não tem mais como sair dela, a não ser se rendendo e comprando a CoronaVac, que já começou a ser produzida em grande escala pelo Instituto Butantan. Se não o fizer, a segunda onda da pandemia será uma tragédia ainda maior do que a primeira, porque a vacina de Oxford não está pronta e levará mais tempo para ser produzida pela Fiocruz e aplicada em massa.
A terceira frente é o não-reconhecimento da vitória do presidente norte-americano Joe Biden, que nos leva a um isolamento internacional sem nenhum precedente na História. Com isso, a política externa de Bolsonaro, como a ambiental e a sanitária, está em colapso. Em rota de colisão com a China, nosso maior parceiro comercial, agora ficou de mal com novo presidente dos Estados Unidos, o segundo parceiro, tudo em solidariedade ao presidente Donald Trump, que não se reelegeu. Essas três frentes de batalhas criam mais obstáculos para o desenvolvimento do país do que se imagina, pois aprofundam nosso atraso econômico e tecnológico e retardam a recuperação da economia.
Luiz Carlos Azedo: Poderia ser pior?
Não temos um plano efetivo de vacinação em massa por parte do Ministério da Saúde, cujo titular é um general de divisão da ativa, especialista em logística
Não gosto de análises catastróficas nem do quanto pior, melhor. Prefiro a teoria das duas hipóteses do humorista Aparíccio Apporelly, o Barão de Itararé, descrita por Graciliano Ramos em Memórias do Cárcere. O escritor alagoano deliciava-se com as anedotas e os comentários espirituosos do jornalista gaúcho, encarcerado durante a ditadura de Getúlio Vargas. Com sua voz pastosa e hesitante, dono de um “otimismo panglossiano”, o Barão sustentava que tudo ia bem e poderia melhorar, fundado numa demonstração de que diante de cada situação haveria sempre uma pior: “Excluía-se uma, desdobrava-se a segunda em outras duas; uma se eliminava, a outra se bipartia, e assim por diante, numa cadeia comprida”, explicava Graciliano. Com a palavra, o próprio Apporelly quando estava preso:
“Que nos poderia acontecer? Seríamos postos em liberdade ou continuaríamos presos. Se nos soltassem, bem: era o que desejávamos. Se ficássemos na prisão, deixar-nos-iam sem processo ou com processo. Se não nos processassem, bem: à falta de provas, cedo ou tarde nos mandariam embora. Se nos processassem, seríamos julgados, absolvidos ou condenados. Se nos absolvessem, bem: nada melhor, esperávamos. Se nos condenassem, dar-nos-iam pena leve ou pena grande. Se se contentassem com a pena leve, muito bem: descansaríamos algum tempo sustentados pelo governo, depois iríamos para a rua. Se nos arrumassem pena dura, seríamos anistiados, ou não seríamos. Se fôssemos anistiados, excelente: era como se não houvesse condenação. Se não nos anistiassem, cumpriríamos a sentença ou morreríamos. Se cumpríssemos a sentença, magnífico: voltaríamos para casa. Se morrêssemos, iríamos para o céu ou para o inferno. Se fôssemos para o céu, ótimo: era a suprema aspiração de cada um. E se fôssemos para o inferno? A cadeia findava aí. Realmente. Realmente ignorávamos o que nos sucederia se fôssemos para o inferno. Mas, ainda assim, não convinha alarmar-nos, pois essa desgraça poderia chegar a qualquer pessoa, na Casa de Detenção ou fora dela”.
O raciocínio irônico do Barão de Itararé é altamente filosófico e serve para qualquer situação. Por exemplo, para a turma enrolada na Lava-Jato, que agora assiste, de tornozeleira eletrônica ou no xadrez, o ex-juiz Sergio Moro ser contratado como especialista em combate à corrupção por um grande escritório de consultoria que presta serviços à Odebrecht. Como se sabe, Emilio Odebrecht, para salvar a empresa e aliviar a cana de seu filho, Marcelo Odebrecht, negociou uma delação premiada com o então procurador-geral da República, Rodrigo Janot, que quase implodiu o sistema político brasileiro. Alguns imaginam que o impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff pavimentou o caminho para a eleição de Jair Bolsonaro; não, essa estrada foi asfaltada pelo escândalo da Petrobras e o uso generalizado de caixa dois nas campanhas eleitorais.
Pandemia
Mas, voltemos à teoria das duas hipóteses. O ano da pandemia do novo coronavírus está acabando, porém a covid-19 recrudesceu. Há uma corrida mundial para conter a segunda onda na Europa e nos Estados Unidos, que é repetição do que ocorreu com a gripe espanhola, 100 anos atrás. Agora, além do isolamento social, estarão sendo utilizadas vacinas em caráter emergencial. No Brasil, em razão do negacionismo do presidente Jair Bolsonaro e da mentalidade castrense do ministro da Saúde, general Eduardo Pazuello, estamos numa guerra entre o governo federal, que comprou a vacina de Oxford, inglesa, que será produzida pela Fundação Oswaldo Cruz, e o governo de São Paulo, que adquiriu a vacina chinesa CoronaVac, cuja fabricação será iniciada pelo Instituto Butantan. Há, também, uma vacina russa, a Sputnick V, adquirida pelo governo do Paraná.
Entretanto, não temos um plano efetivo de vacinação em massa por parte do Ministério da Saúde, cujo titular é um general de divisão da ativa, especialista em logística, que será o grande responsável pelo atraso da campanha de vacinação. No momento, sua grande preocupação é negar a existência de uma segunda onda da pandemia, sabotar as medidas de isolamento social e atrasar a liberação da vacina chinesa. Vidas não importam, afinal, não existe guerra sem defuntos. E onde aplica-se a teoria das duas hipóteses? Ao comparar o número de mortos com os que sobreviveram à covid-19, graças aos esforços heróicos dos profissionais da saúde.
Nas últimas 24 horas, houve 776 mortes, somando 175.307 óbitos desde o começo da pandemia. A média móvel de mortes no Brasil, nos últimos sete dias, foi de 544. Desde o começo da pandemia, 6.487.516 brasileiros já tiveram ou têm o novo coronavírus, com 50.883 desses casos confirmados nas últimas 24 horas. Em média, nos últimos sete dias, houve 40.421 novos diagnósticos por dia, a maior desde agosto, que registrou 40.526 mortes. O aumento no número de casos foi de 37%. A pandemia recrudesceu nos seguintes estados: PR, RS, SC, ES, MS, AC, AP, RO, CE, PB, PE, RN e SE.
Luiz Carlos Azedo: A volta do Febeapá
A sorte do general Pazuello , ministro da Saúde, é que ainda não apareceu um novo Sérgio Porto, o cronista Stanislaw Ponte Preta, para reeditar o famoso Festival de Besteira que Assola o País
Consta que o general Zenildo Gonzaga Zoroastro de Lucena, ministro do Exército nos governos Itamar Franco e Fernando Henrique Cardoso, que faleceu aos 89 anos, em março de 2017, teria sido o grande responsável pela formação da atual elite militar do país, pela ênfase que deu ao aperfeiçoamento e à formação de oficiais superiores, inclusive, estimulando a graduação e pós-graduação em áreas civis, como economia e finanças, administração, ciências políticas, comunicação social, direito etc.
O general assumiu o mais alto posto do Exército Brasileiro logo após o afastamento do ex-presidente Fernando Collor de Melo, em outubro de 1992, durante a transição entre a posse de Itamar Franco e as eleições de 1994. Ao assumir o cargo de ministro do Exército, em meio à crise que culminou com o impeachment de Collor, teria atuado para evitar uma intervenção dos militares. Em junho de 1993, por exemplo, rebateu as declarações do deputado federal e capitão da reserva Jair Bolsonaro favoráveis ao fechamento do Congresso e à volta do regime de exceção, garantindo o apoio do Exército ao governo.
Por causa da perda de privilégios e do corte de verbas destinados às Forças Armadas durante o ajuste fiscal do Plano Real, os militares não gostam de lembrar dos anos do governo FHC, nos quais houve um grande sucateamento de seus equipamentos. No fundo, foram mais felizes durante o governo Lula, que apostou na criação de uma indústria nacional de Defesa, com a produção de veículos de transporte de tropas e carros blindados, lança-foguetes, novos caças e avião cargueiro, e dos novos submarinos, um deles nuclear, além articular missões internacionais a serviço da ONU, entre as quais a do Haiti, onde estiveram alguns dos atuais integrantes do governo Bolsonaro.
Os tempos de vacas magras e confinamento nos quartéis, porém, haviam servido para reconstruir a imagem dos militares perante a sociedade, depois do desgaste causado por 20 anos de ditadura, restabelecendo o prestígio que se perdera nas décadas de 1970 e 1980. Operações humanitárias na Amazônia e no Nordeste e de Garantia da Lei e da Ordem (GLO) nos estados, em momentos de colapso do sistema de segurança pública, nos anos mais recentes, contribuíram para essa reconstrução de imagem.
Entretanto, a militarização do governo de Jair Bolsonaro ameaça pôr tudo a perder. A preocupação já tomou conta dos altos-comandos das Forças Armadas, por uma série de episódios que colocam em xeque a competência dos oficiais generais, alguns da ativa, que, hoje, controlam postos estratégicos do governo. É o caso do general de divisão Eduardo Pazuello, cuja subserviência mascarada de disciplina e respeito à hierarquia fica evidente quando fala besteiras com o claro propósito de agradar o presidente Bolsonaro, um negacionista da gravidade da covid-19, da vacina e do isolamento social.
Nova onda
Ontem, houve mais um desses casos, durante audiência na Câmara, quando o ministro da Saúde tratou com desdém e ironia as medidas que estão sendo adotadas por governadores e prefeitos para conter a segunda onda da pandemia da covid-19, como acontece em outros países que enfrentam o problema. Disse que as eleições demonstram que o isolamento social é desnecessário, quando a lotação das enfermarias nas redes privada e pública estão demonstrando exatamente o contrário. Para completar, numa espécie de quem manda aqui sou eu, voltou a advertir, sem necessidade, que nenhuma vacina será aplicada sem autorização da Anvisa, deixando no ar que o governo federal criará dificuldades para a imediata aplicação da vacina chinesa CoronaVac pelo governo de São Paulo.
A sorte do general é que ainda não apareceu um novo Sérgio Porto, o cronista Stanislaw Ponte Preta, para reeditar o famoso Febeapá (Festival de Besteira que Assola o País), uma coletânea de “causos” de políticos, militares e delegados proeminentes durante o regime militar. O livro foi publicado em 1966, antes do Ato Institucional nº 5, de 13 de dezembro de 1968, que legitimou a censura prévia e acabou com habeas corpus, entre outras medidas antidemocráticas. Sérgio Porto morreu três meses antes, aos 45 anos.
O Brasil registrou 669 mortes pela covid-19 nas últimas 24 horas, chegando ao total de 174.531 óbitos desde o começo da pandemia. A média móvel de mortes no país, nos últimos sete dias, foi de 533. Desde o começo da crise sanitária, 6.436.633 brasileiros já tiveram ou têm o novo coronavírus, com 48.107 desses confirmados no último dia. A média móvel nos últimos sete dias foi de 38.534 novos diagnósticos por dia, a maior desde 6 de setembro — quando chegou a 39.356. Isso representa uma variação de +35% em relação aos casos registrados em duas semanas, o que indica tendência de alta nos diagnósticos em 11 estados: PR, RS, SC, ES, MS, AC, AM, RO, CE, PE e SE.
Luiz Carlos Azedo: Esperando Godot
Estragon: O que a gente faz agora?
Vladimir: Não sei.
Estragon: Vamos embora.
Vladimir: A gente não pode.
Estragon: Por quê?
Vladimir: Estamos esperando Godot.
Estragon: É mesmo.
Escrita no pós-Segunda Guerra Mundial, a peça do irlandês Samuel Beckett, que empresta o título à coluna, é uma obra-prima do chamado Teatro do Absurdo. Faz sucesso no mundo desde 1953, quando estreou em Paris. No Brasil, teve duas montagens amadoras na década de 1950, até o estrondoso sucesso de sua montagem profissional, no Teatro TBC, em São Paulo, sob direção de Flávio Rangel, em 1969, com Cacilda Becker no papel de Estragon e seu marido, Walmor Chagas, no de Vladimir. O contexto político da época, em plena vigência do Ato Institucional nº 5 do regime militar, e o fato de Cacilda Becker sofrer um derrame cerebral em pleno palco, numa apresentação para estudantes em São Carlos, agonizando por 38 dias, deram à peça um lugar na história da cultura brasileira.
A peça somente faz sentido quando serve de analogia para um contexto de incertezas. Sua essência é a espera. É a desconstrução completa do teatro, pois não tem história, as falas não são coesas e nada acontece do ponto de vista da ação dos personagens. Tudo parece obscuro e pessimista, mas provoca uma profunda reflexão sobre a vida e a sua incessante busca por respostas. O palco vazio desconstrói o mundo ao redor, os diálogos repetitivos reproduzem as relações humanas e a inação dos personagens mostra a paralisia que a incerteza provoca. Na espera, nada acontece.
A fábula de Becker tem tudo a ver com o momento que o Brasil está vivendo. Os resultados das eleições municipais, em vez de dissiparem as incertezas, aumentaram-nas. Em 9 de outubro passado, a pouco mais um mês das eleições, segundo a pesquisa Exame-Ideia, o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) seria reeleito para um segundo mandato. No primeiro turno, teria 30% das intenções de voto, contra 18% do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e 10% do ex-ministro da Justiça Sergio Moro (sem partido).
A pesquisa mostrava, ainda, Ciro Gomes (PDT), com 9%, Luciano Huck (sem partido), com 5%, e João Doria (PSDB), com 4%. A pesquisa também apontava Luiz Henrique Mandetta (DEM) com 3%, Marina Silva (Rede) com 2%, João Amoedo (Novo) com 1%, e Flávio Dino (PCdoB) com 1%. Brancos e nulos somavam 9%. Os que “não sabiam” eram 10%. Em uma projeção de segundo turno, Bolsonaro venceria Moro com 41% dos votos contra 35% do ex-ministro. Em relação a Lula, Bolsonaro teria 43%, contra 33% do petista. Numa disputa contra Doria, a vantagem do Bolsonaro seria ainda maior: 42% das intenções de voto contra 21%.
Incógnitas
Menos de dois meses depois, Bolsonaro, que venceria em todos os cenários e regiões, sofreu uma derrota acachapante nas eleições municipais. Continua sendo o principal polo de atração de forças políticas, mas viu a extrema-direita que o levou ao poder definhar e tem de disputar o centro político com o governador de São Paulo, João Doria (PSDB), que busca alianças nesse campo, principalmente com o DEM, o MDB e o PSD.
O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que opera a mesma estratégia de 2018, viu o PT ser volatilizado completamente nas capitais, a ponto de não eleger nenhum vereador em Rio Branco (AC). A nova estrela da esquerda é Guilherme Boulos, do PSol, que não tem o passivo de corrupção petista. O novo líder paulista também é um problema para Ciro Gomes, do PDT, por outros motivos: fecha-lhe a porta do Sudeste.
Restam as duas incógnitas que justificam a analogia: Sergio Moro, que acabou de assinar um contrato milionário de trabalho com um escritório que presta serviços de consultoria à Odebrecht, e o apresentador Luciano Huck, que tem até junho para decidir se mantém seu contrato, também milionário, com a TV Globo. São nomes que podem aglutinar forças de centrodireita e/ou centroesquerda para construir uma alternativa de poder, mas somente serão candidatos se as pesquisas mostrarem que têm chances de vencer. Enquanto isso, o diálogo de nossos personagens reproduz as incertezas:
Vladimir: Amanhã nos enforcamos. (Pausa)
A não ser que Godot venha.
Estragon: E se vier?/
Vladimir: Estaremos salvos.
Estragon: Então, vamos?
Vladimir: Sim, vamos lá.
(Eles não se mexem)
A cortina se fecha.
Luiz Carlos Azedo: Quem larga na frente?
Bolsonaro saiu do pleito muito menor do que entrou, embora os partidos de Centrão, principalmente o PP e o PSD, tenham revelado um excelente desempenho eleitoral
Quando começa a próxima campanha eleitoral? Para a maioria dos políticos, quando a última eleição termina. Se tiver juízo, porém, o presidente Jair Bolsonaro, que tirou o gênio da garrafa antecipando sua estratégia de reeleição, levará em conta o resultado das eleições municipais e puxará o freio de mão nas articulações eleitorais para 2022, para acelerar as reformas. Do jeito que as coisas vão, não terá nenhuma grande realização para entregar no terceiro e quarto anos de governo, apenas obras iniciadas por seus antecessores e ainda em fase de conclusão.
A estratégia de Bolsonaro nas eleições municipais fracassou: esperava conquistar as prefeituras de São Paulo, com Celso Russomano (Republicanos), que nem chegou ao segundo turno, e do Rio de Janeiro, com Marcelo Crivella (Republicanos), que não conseguiu se reeleger. Saiu do pleito muito menor do que entrou, embora os partidos de Centrão, principalmente o PP e o PSD, tenham revelado um excelente desempenho eleitoral. Para manter sua base no Congresso, Bolsonaro terá de fazer mais concessões a esses aliados.
Os partidos do grupo saíram muito fortalecidos, principalmente o PP, que venceu em 685 municípios; o PSD, com 655; e o PL, com 345 prefeituras. Com as demais legendas, o Centrão controla cerca de 2,4 mil cidades, nas quais residem 35% da população: PTB, 212; Republicanos, 211; PSC, 115; Solidariedade, 94; Avante, 82; Patriotas, 49; e PROS, 41. Os líderes desses partidos pressionam Bolsonaro para fazer mudanças na Esplanada, na qual desejam ocupar mais espaços, sobretudo os ministérios de Minas e Energia e da Saúde.
João Doria
Enquanto Bolsonaro precisa reorganizar suas forças, o governador de São Paulo, João Doria (PSDB), e o ex-governador do Ceará Ciro Gomes saem na frente, embalados por vitórias eleitorais dentro de casa. Com a vitória de Bruno Covas, em São Paulo, o PSDB manteve seu poder de fogo, sob controle dos tucanos paulistas. Dória tem dois trunfos na manga: o vice Rodrigo Garcia (DEM), que assumiria o Palácio dos Bandeirantes; e a aliança com o deputado Baleia Rossi (SP), que preside o MDB, e pode vir a ser o futuro presidente da Câmara. O que perde em números absolutos na eleição, Doria pode ganhar com a política de alianças, se atrair o MDB e o DEM.
O MDB continua sendo o maior partido do país, com 766 prefeitos, 7.300 vereadores e 10,9 milhões de votos. O partido teve um desempenho excepcional nas capitais, aumentando de três para cinco o número de prefeitos, sendo duas cidades polos regionais importantes: Porto Alegre, (RS), no Sul; e Goiânia (GO), no Centro-Oeste. O problema é que o MDB tem tradição de se dividir e/ou cristianizar os aliados, principalmente os paulistas. O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, macaco velho em disputas nacionais, já advertiu Doria de que ele precisa se “nacionalizar”. O DEM também foi um campeão nas eleições municipais, vencendo em quatro capitais, sendo duas entre as mais populosas do país: Rio de Janeiro (RJ), com Eduardo Paes, e Salvador (BA), com Bruno Reis.
Ciro e Boulos
Com sua vitória em Fortaleza, Ciro Gomes também larga na frente, pois o PDT manteve Fortaleza (CE), com Sarto Nogueira, e Aracaju (SE), com Edvaldo Nogueira. Mas a grande aposta de Ciro, a delegada Marta Rocha (RJ), no Rio de Janeiro, não se materializou. Ocorreu no Rio o que pode vir a acontecer em nível nacional, um confronto com o PT. Os trabalhistas perderam votos na eleição (6,4 milhões para 5,3 milhões). A candidatura de Ciro, para se consolidar como alternativa de poder, precisaria ao menos de uma coligação com o PSB, cujas contradições com o PT se aprofundaram por causa da disputa no Recife (PE), na qual João Campos (PSB) consolidou-se como herdeiro do espólio do pai, Eduardo Campos, mas dividiu a base eleitoral do clã com a petista Marília Arraes, numa disputa familiar sangrenta.
Outro que larga na frente é Guilherme Boulos (PSol), com um desempenho espetacular em São Paulo, com 40% dos votos, o que praticamente consolida sua candidatura à Presidência pela legenda. O PSol elegeu o prefeitos de Belém, Edmilson Rodrigues, e a maior bancada de vereadores do Rio de Janeiro, mas não teve um grande desempenho nacional em termos de prefeituras. Mesmo assim, Boulos ganhou projeção nacional e pode ameaçar os demais candidatos de esquerda.
O PT precisa resolver o que deseja fazer em 2022. A candidatura do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva é inviável, embora exista esperança de que sua condenação na Lava-Jato no caso do triplex de Guarujá seja anulada. O ex-prefeito paulistano Fernando Haddad, que seria a opção, está sendo desidratado.