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William Waack: De Dilma a Bolsonaro
As questões básicas não resolvidas do País permanecem as mesmas
A década que começou com Dilma e vai terminando com Bolsonaro tem uma extraordinária constância. Nossas mazelas continuam praticamente as mesmas. Apenas mais escancaradas por uma pandemia que expôs (e também agravou) problemas que já existiam. Nesse sentido, não se pode falar de uma década que começa e termina com sinais trocados. A incompetência governamental e nossa complacência em sua essência seguem as mesmas.
Sim, Dilma foi a vítima da tortura praticada por um regime de exceção, que Bolsonaro teima em exaltar. Por mais abjetas e fracassadas as ideias que ela defendia, não há nada que justifique tortura especialmente por órgãos de Estado, como aconteceu na ditadura militar brasileira. É um aspecto que o capitão Bolsonaro ignora e que exércitos profissionais de democracias abertas, como na França (na Argélia), Estados Unidos (por último, no Iraque) e Israel (na Intifada de 1987) reconhecem como destruidor da moral da força armada e se empenham em condenar.
A sociedade brasileira segue exibindo a mesma tolerância em relação a pragas nacionais há tempos estabelecidas: injustiça social, miséria disseminada, violência endêmica, corrupção e incompetência governamental. São características com as quais se podia descrever o Brasil de 10 ou 20 anos atrás, e a onda disruptiva de 2018 não ofereceu resultados até aqui convincentes para alterar fundamentalmente esse quadro. As comparações internacionais nada proporcionam para nos orgulharmos em termos de nível de desenvolvimento humano e, especialmente, educação, que continua sendo entendida no Brasil como ferramenta e não como valor em si.
Nas comparações mais recentes estamos capengando para proteger nossa população da covid-19. Os que primeiro começaram a vacinar estão em todas as regiões do mundo. Nessa lista figuram ricos e emergentes, países gigantes e pequenos, regimes abertos, democracias liberais, monarquias absolutistas, a ditadura comunista da China, variadas etnias, as principais denominações religiosas (entre os latino-americanos, governos de esquerda e de direita).
O atraso brasileiro na questão da vacinação é uma vitrine expondo nossos limites estruturais. O sistema de governo, possivelmente o pior do mundo, mantém Executivo e Legislativo em choque constante, agravado pela insegurança jurídica emanada de um Judiciário que não foi eleito para governar, mas está governando. O podre sistema de representação política é fator preponderante para entender a falta de lideranças abrangentes e enraizadas – um grande deficit em situações de crise econômica e sanitária que se reforçam mutuamente. A força dos regionalismos e o egoísmo de suas respectivas elites – não só as geográficas, mas as de diversos segmentos sociais e econômicos nos fazem assistir à concorrência dos entes da federação.
Há aspectos peculiares na incompetência demonstrada pelo atual governo no trato da pandemia, mas incompetência em várias questões, agudas ou não, causadas pela “sabedoria” de chefes de Executivo (só lembrar o que Dilma fez com o setor elétrico, por exemplo) tem sido recorrentes. No plano mais abrangente, para um País que cultiva a imagem de ser dono de um futuro brilhante, estamos sendo extraordinariamente incompetentes em chegar lá. Nossa distância nesses dez anos em relação às economias mais avançadas aumentou – e estamos há mais tempo do que isso estagnados em matéria de produtividade e competitividade internacionais.
É confortável apontar o dedo acusador para este ou aquele governo do começo ou do fim da década. O fato é que nós os colocamos lá.
Luiz Carlos Azedo: O ano mais longo
São inovações que podem evitar que a pandemia tome conta de 2021. Mas o que explica o sucesso das novas vacinas é o maciço investimento em pesquisas
Certo mesmo é que 2020 vai entrar 2021 adentro, por causa da pandemia do novo coronavírus, cuja segunda onda é o fantasma que ronda a Europa e os Estados Unidos às vésperas do ano-novo. Aqui, no Brasil, será um pouco pior, porque a vacina contra covid-19 está muito atrasada e, por isso mesmo, os efeitos predatórios das atitudes e decisões do presidente Jair Bolsonaro em relação à pandemia serão também mais duradouros. Como já disse antes, quem deveria liderar a luta contra a doença sabota os esforços de prefeitos, governadores, dos sanitaristas e infectologistas, socorristas e enfermeiros, intensivistas e fisioterapeutas para controlar a doença e salvar vidas.
O próprio Ministério da Saúde é sabotado, sob comando de um general bem mandado, nomeado para o cargo por ser especialista em logística de transportes de tropas, armas e suprimentos, mas que se revelou o ministro mais incompetente da história da saúde pública no Brasil: Eduardo Pazuello. Provavelmente, ainda será condecorado e promovido a general de quatro estrelas por maus serviços prestados. Vivemos tempos distópicos.
Como não lembrar do jovem rapper Emicida, que acaba de lançar um documentário excepcional na Netflix: AmarElo, é tudo pra ontem. “Talvez seja bom partir do final/ Afinal, é um ano todo só de sexta-feira treze/ ‘Cê também podia me ligar de vez em quando/ Eu ando igual lagarta, triste, sem poder sair/ Aqui o mantra que nos traz o centro/ Enquanto lavo um banheiro, uma louça, querendo lavar a alma/ Na calma da semente que germina/ Que eu preciso olhar minhas menina”. O historiador Daniel Aarão Reis, em artigo publicado no jornal O Globo (26/12), fez uma belíssima crítica sobre o filme, que se passa em torno de uma apresentação no Teatro Municipal de São Paulo, lotado por pessoas da periferia paulista, que nunca haviam entrado naquele templo da nossa cultura.
“A construção do futuro melhor dependerá da capacidade de articulação, vontade determinada e raiva no coração. Que é como cantam, em trio, Majur, Pablo Vittar e Emicida, os belos versos de Belchior: ‘Tenho sangrado demais, tenho chorado pra cachorro, ano passado eu morri, mas este ano eu não morro’. Nesta sinistra pandemia, a ideia de que viveremos livres, corajosos e solidários foi o melhor presente de Natal que poderíamos ter. Obrigado, Emicida”, escreve o professor titular de História Contemporânea da Universidade Federal Fluminense (UFF).
A pandemia é o espectro por trás da letra de É tudo pra ontem: “A folha amarela, igual comida, envelhece”/ É a vida, acontece com pessoa e documento/ É tão triste ter que vir, coisa ruim pra nos unir/ E nem assim agora, mano, vamo’ embora a tempo/ Viver é partir, voltar e repartir (é isso)/ Partir, voltar e repartir (é tudo pra ontem)/ Viver é partir, voltar e repartir/ Partir, voltar e repartir”. Ninguém tem dúvida de que a vacina era para ontem, a vacinação já começou em mais de 40 países, inclusive na vizinha Argentina, que comprou a vacina russa, Sputnik V, feita a partir de uma tecnologia nova, que utiliza adenovírus — vírus causadores de resfriado comum. O governo do Paraná também comprou essa vacina.
As vacinas
A primeira e a segunda dose da Sputnik V utilizam adenovírus diferentes, algo exclusivo do Instituto Gamaleya. Por meio de engenharia genética, são removidos os genes de reprodução viral dos adenovírus, ou seja, ele não vai causar resfriado, será utilizado apenas como “meio de transporte”. Dentro desses adenovírus são colocados genes codificando a proteína S do coronavírus (SARS-CoV- 2). Estas proteínas são as que ficam na coroa do vírus causador da covid-19 e se ligam aos receptores no corpo humano. Uma vez inoculado, o adenovírus com o gene do coronavírus induz uma resposta imunológica no corpo humano. Após 21 dias, ocorre a segunda vacinação, com outro tipo de adenovírus, mas o mesmo material genético do SarsCoV-2. Então, segundo os dados russos, ocorre uma imunidade ainda mais forte e duradoura.
O método é semelhante ao usado pela Universidade de Oxford — a vacina na qual o Ministério da Saúde apostou todas as fichas e que será produzida pela Fiocruz. As vacinas BioNTech/Pfizer e Moderna, que já estão sendo aplicadas nos Estados Unidos, também resultam de uma abordagem revolucionária, “aplicável a quaisquer vacinas futuras”, segundo o geneticista Richard Dawkins: “Sequencie um vírus e digite uma parte inofensiva em mRNA, corrigido de modo a não ser imuno-rejeitado. mRNA faz o resto para você. Funciona com qualquer vírus”, explica no Twitter.
São inovações desse tipo que podem evitar que a pandemia tome conta de 2021. Mas o que explica a velocidade e sucesso da produção dessas vacinas é o maciço investimento feito em pesquisas. Sem as vacinas, a economia mundial entrará em colapso. Entretanto, desculpe-me o trocadilho, a manipulação genética é dose pra leão para os negativistas, que não confiam nem nas vacinas que utilizam o método mais tradicional: o vírus atenuado da própria doença, como acontece com a vacina chinesa CoronaVac, que já está em produção no Instituto Butantan. Eppur se muove, diria Galileu Galilei.
Feliz ano-novo, em 2021 estarei de volta.
Luiz Carlos Azedo: Espinhos do recesso
Esquentam a disputa pelo comando da Câmara dos Deputados e a polêmica jurídica sobre a Lei da Ficha Limpa, flexibilizada pelo do STF ministro Kassio Nunes Marques
No jargão jornalístico, flores do recesso são os assuntos que tomam conta do noticiário político quando o Congresso e o Judiciário estão sem funcionar, geralmente alimentados pelo Executivo, pelos candidatos ao comando da Câmara e do Senado e pelos ministros de plantão no Judiciário. São tão frondosas como as flores da primavera, porém, menos decisivas do ponto de vista do processo político. Entretanto, nesses tempos bicudos de pandemia do novo coronavírus, com mais de 190 mil mortos e sem data marcada para o começo da vacinação, estamos diante é de flores com espinhos.
As principais são a disputa pelo comando da Câmara dos Deputados, que a oposição encara como uma espécie de batalha de Stalingrado, para conter o avanço de Jair Bolsonaro rumo à reeleição à Presidência da República, e a polêmica jurídica sobre a Lei da Ficha Limpa, cuja flexibilização, pelo ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Kassio Nunes Marques, o novo integrante da Corte indicado pelo presidente, supostamente possibilitaria — entre outras — a candidatura do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva ao Palácio do Planalto em 2022. Esse seria o adversário que Bolsonaro gostaria de ter no segundo turno, para uma espécie de vitória de Waterloo particular. Essas duas disputas, durante o recesso, podem nos trazer alguma emoção política, ao lado da polêmica sobre as vacinas contra a covid-19.
Há momentos que catalisam as forças da história e mudam o seu rumo. A Batalha de Stalingrado, por exemplo, durou um pouco mais de seis meses, do fim de julho de 1942 até 2 de fevereiro de 1943, tempo suficiente para mudar os rumos da guerra, ao preço de 1,5 milhão de mortos. Teve quatro fases distintas: a avassaladora ofensiva alemã; a obstinada reação russa, ao norte e ao sul, que cercou as tropas alemãs; a fracassada tentativa de Hitler de socorrer seu exército; e a rendição do que restou dele, faminto, sem combustível nem munição.
Mesmo com a vantagem numérica, os alemães não conseguiram vencer a resistência do Exército Vermelho, em razão do conhecimento do terreno, das condições climáticas, da experiência em batalhas de rua, das táticas antitanque, da artilharia de barragem e da capacidade logística. O exército alemão rendeu-se em 2 de fevereiro, com cerca de 91 mil soldados, entre eles 22 generais. Entretanto, 11 mil alemães decidiram lutar até a morte, dois mil foram mortos, e os demais foram levados presos. O resto da história todos conhecem.
Napoleão
Outra batalha decisiva foi a de Waterloo, na Bélgica, que durou menos de 24 horas, envolvendo forças francesas, britânicas e prussianas. Iniciada a 18 de junho de 1814, a guerra colocou, de um lado, Napoleão Bonaparte — que já havia sido derrotado na Rússia — e seu exército de 72 mil homens recrutados às pressas, e de outro, o exército aliado de 68 mil homens comandados pelo britânico Arthur Wellesley, duque de Wellington, composto de unidades britânicas, neerlandesas, belgas e alemãs, reforçado, mais tarde, pela chegada de 45 mil homens do exército prussiano.
Napoleão havia fugido da ilha de Elba a 26 de fevereiro de 1815, em direção ao sul da França, e logo conseguiu apoio popular para fazer frente a Inglaterra, Prússia, Áustria e Rússia, montando um exército com 125 mil homens e 25 mil cavalos. Marchou para a Bélgica, a fim de impedir a coalizão dos exércitos inglês e prussiano. Ao alcançar Charleroi, o exército de Napoleão dividiu-se em dois, com uma parte seguindo em direção a Bruxelas, para encontrar as tropas de Wellington, e outra, comandada pelo próprio Napoleão, em direção a Fleuru, contra o exército prussiano de Gebhard von Blücher. A ideia de Napoleão era derrotar um de cada vez.
Napoleão venceu os prussianos na chamada Batalha de Ligny. Partiu, depois, para Waterloo, onde encontrou os ingleses, em 17 de junho, em solo encharcado, que dificultava o posicionamento dos canhões. Estava certo de que as forças prussianas não se reagrupariam e chegariam a tempo para socorrê- los. Seu erro foi dar a tarefa de perseguir os prussianos em retirada ao marechal Grouchy, “homem medíocre, valente, íntegro, honrado, confiável, um comandante de cavalaria de valor várias vezes comprovado, mas um homem de cavalaria e nada mais”, nas palavras de Stefan Zweig, em Momentos decisivos da humanidade (Record).
Iniciada a batalha, a artilharia inglesa surpreendeu Napoleão, com um novo armamento: granadas. Mesmo assim, os franceses avançaram e deixaram Wellington por um fio. Entretanto, o general prussiano Blücher enganou os franceses. Encarregado de persegui-lo, Grouchy recusou-se a voltar para Waterloo, apesar dos apelos de seu Estado Maior, que tomara conhecimento do início da batalha contra Wellington; para não contrariar as ordens que recebera, continuou em busca das tropas prussianas, supostamente em retirada. Blücher, porém, flanqueou os franceses e chegou em socorro de Wellington; as tropas de Grouchy, o disciplinado marechal, não. A contraordem de Napoleão, pedindo a sua ajuda, chegara tarde demais.
Luiz Carlos Azedo: Mudar ou ser mudado
Nada será como antes depois de controlada a pandemia — no decorrer de 2021, na maioria dos países desenvolvidos —, um novo ciclo de globalização está sendo iniciado
A segunda onda da pandemia de covid-19, que registra mutação do novo coronavírus — há evidências de que já transborda da Inglaterra para outros países europeus e, provavelmente, chegou ou chegará por aqui — é a face mais visível de uma contradição com a qual teremos que lidar durante muitos anos: a globalização é um fenômeno objetivo e irreversível, mas carece de mecanismos de governança mundial eficazes para neutralizar seus efeitos mais perversos, que aprofundam as desigualdades no mundo.
A pandemia é uma lente de aumento sobre o problema, se levarmos em conta que as transformações na estrutura produtiva do planeta, cujo dinamismo é ditado pelas inovações tecnológicas e os novos conhecimentos, colocaram em xeque as políticas ultraliberais. Revelou que a saúde pública, por exemplo, continua sendo uma prioridade para a economia. Muitos imaginavam, com o advento do não-trabalho e a inutilidade de grandes exércitos industriais de reserva, que políticas universalistas de saúde deixariam de ser necessárias para a reprodução do capital em escala global, assim como a boa formação educacional pública e gratuita, pois supostamente já não se precisaria da mesma abundância de mão de obra saudável e escolarizada disponível para o desenvolvimento.
Quem diria, por exemplo, que o home office se generalizaria em decorrência de um problema de saúde pública e não apenas da existência da tecnologia necessária para a reestruturação da organização do trabalho. Foi mais ou menos o que ocorreu com a telefonia fixa, criada no final do século XIX, mas somente incorporada à vida doméstica após a Segunda Guerra Mundial, com a diferença de que o smartphone se popularizou num intervalo de tempo muito menor (o iPhone foi criado em 2007). O que aconteceu com a grande indústria mecanizada, na qual a maior parte dos operários foi substituída por robôs, está se dando, agora, nos grandes escritórios e lojas de departamento, por causa da pandemia, numa velocidade maior do que se imaginava, e de forma irreversível.
É nesse contexto que a eleição de Joe Biden, nos Estados Unidos, com a derrota do nacionalismo e do negacionismo de Donald Trump, dará um novo impulso aos debates que já estavam em curso nos grandes fóruns internacionais, sobre o problema da governança global e a necessidade de um desenvolvimento mais sustentável, cujo epicentro vinha sendo o Fórum Econômico Mundial, em Davos. Que ninguém se iluda, nada será como antes depois de controlada a pandemia — o que deve acontecer no decorrer de 2021, na maioria dos países desenvolvidos, com a vacinação em massa —, um novo ciclo de globalização está sendo iniciado, com o 5G e a plena implantação da Internet das Coisas, com ênfase na economia limpa e no combate às desigualdades.
Modernização
Não se espantem com o aumento da frequência com que a sigla ESG (environmental, social and corporate governance) — não confundir com a Escola Superior de Guerra — entrará no glossário do nosso economês. Sustentabilidade, responsabilidade social e governança corporativa formam, agora, uma espécie de Santíssima Trindade para os principais fundos de investimentos e grandes corporações. Estima-se que 45 trilhões estão sendo aplicados em empreendimentos com essas características, ou seja, metade dos investimentos previstos em todo o mundo. Multinacionais como Nestlé, Walmart e Tesco já excluíram de sua lista de fornecedores, por exemplo, os produtores associados ao desmatamento do cerrado brasileiro. O resultado prático já se faz sentir no agronegócio, que vende cada vez menos para a Europa.
No Brasil, os ciclos de modernização sempre foram impulsionados pelo Estado, concentraram renda e descartaram mão de obra dos ciclos anteriores (açúcar, ouro, café, borracha). O que os historiadores chamam de “revolução passiva” resultou na industrialização, na modernização da agricultura e na urbanização acelerada dos país, porém, aprofundou desigualdades regionais e sociais. O ciclo de substituição de importações se esgotou, mas as consequências perversas, que dispensam maiores detalhes, de tão escancaradas estão, perduram. O conceito de “revolução passiva” — mais do que “modernização autoritária” ou “via prussiana” —, valoriza os aspectos políticos desse processo, em boa parte ocorrido durante a ditadura Vargas (1930-1945) e o regime militar (1964-1965). Nesse sentido, devemos destacar os governos de Juscelino Kubitscheck (1956-1960), Fernando Henrique Cardoso (1995-2002) e Luiz Inácio Lula da Silva (2002-2010), nos quais houve crescimento econômico e redução da pobreza, num ambiente democrático, sem prejuízo das ressalvas à inflação, à focalização dos gastos sociais e à corrupção generalizada, respectivamente.
No Brasil, pesos pesados da economia, nacionais e estrangeiros, já se articulam em defesa da economia sustentável, da boa governança corporativa e da transparência nas relações público-privadas. Saem na frente diante de um novo ciclo da globalização, mas esbarram numa situação em que o governo Bolsonaro realiza uma marcha forçada na direção contrária. De certa forma, a disputa de narrativas que já se estabeleceu na sociedade — em torno de temas como nossa política externa, a Amazônia, a política de saúde pública, a violência urbana etc. — reflete essa contradição. De alguma maneira, o Brasil terá que se reposicionar diante do que está em curso no mundo. Ou o governo muda ou será mudado em 2022.
Luiz Carlos Azedo: A vacina do Natal
Sim, os mais fortes sobreviverão. E por que não os mais fracos? É para isso que serve a medicina. Fé e confiança na ciência, por isso, são o melhor remédio contra a desesperança
Talvez esse seja o pior Natal de nossas vidas, em termos sociais, é claro, porque a experiência de vida de cada um é que determina a avaliação. Festa que congrega a família, confraterniza os amigos, dissemina amor e solidariedade, neste ano, a data magna do cristianismo, que é comemorada por todas as religiões ecumênicas, está sendo marcada pela maior tragédia humanitária já vista por nossas gerações, desde a Segunda Guerra Mundial. Aqui no Brasil, só não é maior por causa do nosso Sistema Único de Saúde (SUS), público e universal, apesar de um presidente da República que, com seu negativismo, no combate à crise sanitária, sabota seu povo, seu governo e, em ultima instância, a si próprio.
Entretanto, é Natal. Os miseráveis, os enfermos, os condenados, todos sem exceção, de alguma forma, são acarinhados com votos de esperança e compaixão. Os poetas, os cantores, os cronistas, todos que podem espalhar amor e esperança se encarregam de fazer chegar sua mensagem àqueles que estão na pior. De igual maneira, os trabalhadores dos serviços essenciais, de plantão, mesmo privados da convivência com suas respectivas famílias, com sua labuta, principalmente os cientistas e o pessoal da saúde, mandam o recado: confiem, estamos cuidando de vocês. A magia do Natal é uma enorme força transformadora da sociedade, no sentido civilizatório, mesmo agnósticos e ateus devem reconhecê-lo.
A propósito, o biólogo evolucionista Richard Dawkins, no livro O Gene egoísta, publicado em 1976, sua obra-prima, tenta explicar a evolução biológica ao mostrar como certas moléculas replicadoras (ancestrais dos genes) poderiam ter evoluído de modo a formar as primeiras células e, a partir daí, todos os seres vivos existentes. O microscópico encontro de um vírus com uma bactéria, por exemplo, é um grande evento histórico da criação, que se reproduz na natureza a todo instante e provoca mutações genéticas. A covid-19 é fruto desse fenômeno.
Dawkins tentar explicar o problema profundo de nossa existência ao sugerir que os organismos vivos são sofisticadas máquinas de sobrevivência, eficientemente moldadas pelo processo de evolução para promover a replicação sexuada dos genes nelas contidos. Entretanto, essa abordagem levanta sérios questionamentos filosóficos. Seremos meros replicadores de genes, controlados por eles. Onde entra a consciência? Dawkins afirma que genes não têm vontades próprias ou valores morais. Aqueles genes que apresentam um comportamento que seria visto como egoísta pelos seres humanos são os que se mantêm representados dentro dos genomas das espécies, ao longo do processo evolutivo, com o passar dos anos e milênios. O altruísmo seria uma estratégia de sobrevivência, principalmente nos seres humanos.
Eugenia
Genes são polímeros químicos de fósforo e carbono, associados a uma molécula de açúcar e bases nitrogenadas, encapsulados em duas fitas reversas e complementares; ou seja, genes são codificados em moléculas de DNA. Dawkins sugere uma forma de seleção natural darwiniana na qual as moléculas quimica- mente mais estáveis perduravam — enquanto aquelas mais instáveis eram destruídas. A evolução sempre dependeu da adaptação, uma molécula mais estável é mais adaptada ao universo em que vivemos. Assim como existe luta pela sobrevivência na sociedade humana, existe, também, num ambiente molecular.
Hoje, sabemos que os replicadores que sobreviveram foram aqueles que construíram as máquinas de sobrevivência mais eficazes para morarem; aqueles que foram menos aptos não deixaram descendentes. Cerca de 4 bilhões de anos depois, Dawkins explica: “Com certeza, eles não morreram, pois são antigos mestres na arte da sobrevivência. (…) Eles estão em mim e em você. Eles nos criaram, corpo e mente. E sua preservação é a razão última de nossa existência. Transformaram-se, esses replicadores. Agora, eles recebem o nome de genes e nós (todos os organismos vivos) somos suas máquinas de sobrevivência.”
O gene passa de corpo em corpo através das gerações, manipulando as máquinas de sobrevivência por meio de instruções escritas em linguagem digital (A, C, T e G), abandonando tais corpos mortais na medida que eles vão ficando senis e duplicando-se em sua prole. As instruções dizem basicamente: copie-me, ou seja, viva e reproduza. A reprodução é o processo de cópia dos genes, é o processo que os mantém vivos ao longo dos tempos. Socialmente falando, porém, essa eugenia (seleção de certos genótipos para a reprodução em lugar de outros) é totalmente inaceitável. Lembra as teorias de superioridade ariana e o Holocausto.
Sim, os mais fortes sobreviverão. E por que não os mais fracos? É para isso que serve a medicina. A postura do presidente Jair Bolsonaro em relação à pandemia do novo coronavírus — “a melhor vacina é pegar o vírus” — é um inaceitável darwinismo social. Fé e confiança na ciência, por isso, são o melhor remédio contra a desesperança. Que venham as vacinas contra a covid-19. Feliz Natal!
Luiz Carlos Azedo: No fio do bigode
Há meses, Lira vem negociando individualmente com as bancadas de oposição; além de verbas e cargos, oferece para cada grupo de interesse uma pauta específica
O presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), anunciou, ontem, o nome do candidato do seu bloco político ao comando da Casa, o deputado Baleia Rossi (MDB-SP), o jovem presidente do maior partido do país e líder de sua bancada federal, com 34 deputados. Rossi conseguiu reverter as resistências da maioria dos deputados do bloco de esquerda, o que levou o deputado Aguinaldo Ribeiro (PB), um dissidente do PP, a desistir de disputar a indicação no grupo de Maia. Formalmente, juntos, os dois blocos somam 282 deputados, número mais do que suficiente para ganhar a disputa com o candidato governista, Arthur Lira (PP-AL), mas isso é apenas uma projeção otimista. A disputa será no corpo a corpo, voto a voto.
É aí que entra a história do bigode. Quando houve a fusão dos antigos esta dos do Rio de Janeiro e Guanabara, em 1975, o brigadeiro Faria Lima, interventor federal, fez um acordo com o ex-governador Chagas Freitas, cacique do MDB da antiga Guanabara, para que fosse possível formar uma maioria que aprovasse a Constituição do novo estado. Para chegar ao acordo, teve que atropelar a líder do governo, deputada Sandra Cavalcanti (Arena), e entregar a relatoria da nova Constituição a um deputado “chaguista”, José Maria Duarte (MDB). Originário do antigo PSP, Chagas era um político populista, dono dos jornais O Dia e A Notícia.
Duarte era amigo do lendário distribuidor de cinema Luiz Severiano Ribeiro, que o chamava para ver os filmes antes da estreia e sugerir a tradução dos títulos, que muitas vezes não tinha nada a ver com o nome original, como em “A morte não manda recado” (The Ballad of Cable Hogue), “Os brutos também amam” (Shane), clássicos do faroeste norte-americano, ou “Django não perdoa…mata” (L’Uomo, L’Orgloglio, La vendetta), o western italiano inspirado na ópera Carmem, de George Bisset. Frasista de primeira, chamava o anteprojeto de Constituição de “boneca” e mantinha segredo absoluto sobre os acordos envolvendo o interventor Faria Lima, Chagas Freitas e o senador Amaral Peixoto (MDB), velho cacique pessedista, que era o líder da oposição no antigo Estado do Rio.
Nessa época, o time de jornalistas que fazia a cobertura da Constituinte da fusão era de primeira linha: Mauricio Dias, Marcelo Pontes, André Luiz Azevedo, Rogério Coelho Neto, Carlos Vinhais e Dácio Malta, entre outros. Mesmo assim, a crise no dispositivo parlamentar do interventor era mantida em sigilo, até que Sandra Cavalcanti resolveu chutar o balde. Nessa época, o antigo Diário de Notícias ainda era o jornal dos professores e dos militares. Graças a isso, fui escolhido por Sandra Cavalcanti para uma entrevista exclusiva, na qual denunciou o acordo e renunciou à liderança, em caráter irrevogável. Foi então que resolvi perguntar ao líder do MDB, Cláudio Moacir, deputado eleito por Macaé, homem ligado a Amaral Peixoto, se a oposição pretendia formar a nova base do governo. Em off, para minha surpresa, respondeu: “Não, nós vamos ficar como bigode: na boca, mas do lado de fora”.
Traições
Esse é o problema de Baleia Rossi. O Palácio do Planalto está jogando muito pesado para eleger Arthur Lira, o principal líder do Centrão, que articulou a nova base governista na Câmara e sempre teve o apoio dos deputados do baixo clero. Tece sua candidatura com a promessa de liberação de verbas e cargos no governo, acenando com uma reforma ministerial que estaria prevista para o começo do próximo ano. Arthur Lira anunciou sua candidatura com apoio dos 135 deputados do Centrão — PL (41), PP (40), PSD (33), Solidariedade (13) e Avante (8). De imediato, recebeu apoio do PL (41), do PTB (11), do Pros (10), do PSC (9) e do Patriota (6), ou seja, teoricamente, de mais 77 deputados. Tenta montar uma espécie de rolo compressor, já integrado por 212 deputados, que avança nos bastidores para seduzir os deputados de oposição.
O grupo de Maia soma 158 deputados, dos seguintes partidos: DEM (28), MDB (34), PSDB (31), PSL (53), Cidadania (8) e PV (4). O PT, com 54 deputados, lidera a oposição, que soma 124 deputados, com as bancadas do PSB (31), do PDT (28), do PSol (10) e da Rede (1). Esse acordo de bancada precisa ser confirmado por cada deputado, que negocia no fio do bigode; porém, como o voto é secreto, a palavra empenhada não pode ser cobrada depois. Como dizia Tancredo Neves, a vontade de trair é muito grande na cabine de votação.
Ninguém sabe o que vai, de fato, acontecer. Lira vem negociando individualmente há meses, inclusive com as bancadas de oposição, com uma agenda que não pode ser subestimada, porque além de verbas e cargos, oferece pra cada grupo de interesse uma pauta específica. Aos evangélicos, promete levar adiante a agenda dos costumes; aos ruralistas, desmontar a legislação ambiental; aos sindicalistas, a volta do imposto sindical; aos enrolados na Lava-Jato, blindagem contra o Ministério Público Federal (MPF) e a flexibilização da contagem do tempo de ilegibilidade da Lei da Ficha Limpa, na linha da liminar do novo ministro do Supremo Tribunal federal (STF) Kassio Nunes Marques, indicado por Bolsonaro. Muitos estão comprometidos com Lira.
Em tempo, feliz Natal!
Luiz Carlos Azedo: O espelho estilhaçado
É impressionante o paralelo do governo Bolsonaro com o governo Trump, a partir da crítica de Hannah Arendt à degradação política do governo de Nixon
Instigante artigo do ex-chanceler Celso Lafer, professor emérito da Faculdade do Largo do São Francisco (Direito-USP), publicado no último domingo, no O Estado de S. Paulo, faz um diagnóstico político preciso do governo de Donald Trump, que merece muita reflexão entre nós, pelo paralelo que podemos projetar, a partir do texto, para o governo do presidente Jair Bolsonaro.
O “mote” do artigo é uma carta enviada, em 1975, pelo presidente eleito dos Estados Unidos, Joe Biden, à filósofa judia-alemã Hannah Arendt, autora de Origens do Totalitarismo (Companhia de Bolso) e a A Condição Humana (Forense Universitária), na qual solicita à escritora que lhe envie o texto de uma palestra que fizera nas comemorações do bicentenário da independência dos Estados Unidos. Intitulada Tiro pela culatra, na tradução para o português, seu texto fui publicado no Brasil, na coletânea Responsabilidade e Julgamento (Companhia das Letras), organizada por Jerome Kohn.
Lafer destaca a iniciativa de Biden, quando integrante da Comissão de Relações Exteriores do Senado, como uma espécie de preocupação germinal do que pode vir a ser a linha de atuação do novo presidente dos Estados Unidos, de resto já anunciada na campanha eleitoral. O texto de Arendt trata da crise do governo Nixon e da degenerescência da política norte-americana nos anos 1970, cujos elementos se reproduzem durante o governo Trump, na visão de Lafer:
(1) a mentira por princípio, para manipular o Congresso e o povo americanos e, nesse caminho, pôr em questão a credibilidade dos EUA perante outros Estados;
(2) o empenho em abolir qualquer lei, constitucional ou não, que se interpusesse aos objetivos da presidência;
(3) o inserir da criminalidade nos processos políticos do país;
(4) o valer-se do “privilégio do Executivo” para proteger os colaboradores atraídos pela aura do poder;
(5) o não aceitar a derrota, qualquer derrota, da maior potência sobre a Terra, cujo poder estava em declínio;
(6) o equívoco de respaldar uma economia de desperdício, sem atentar para “as ameaças ao nosso ambiente” (Arendt);
(7) o cobrir com um tecido de mentiras os problemas do desemprego e da automação.
Espelho quebrado
A dimensão histórica da vitória de Biden vem sendo destacada não somente por Lafer como por outros analistas da cena brasileira. Sua repercussão na política mundial já se faz sentir, em todos os aspectos, inclusive em relação à pandemia da covid-19. Como ignorar, por exemplo, o gesto de ontem, quando o novo presidente dos Estados Unidos foi a um posto de saúde de sua cidade para tomar a vacina da Pfizer-Biontech? Quanta diferença em relação ao nosso presidente da República, que já disse e repetiu que não vai tomar e vacina e põe em dúvida a eficácia e segurança de qualquer uma delas. A troca de comando e rumo nos Estados Unidos, porém, transcende esse plano imediato das políticas públicas: a prática dos costumes democráticos repercute no fortalecimento das instituições republicanas e servem de exemplo para o mundo.
“A campanha eleitoral americana deste ano teve entre suas características uma batalha pela ‘alma’ dos Estados Unidos”, destaca Lafer. Nessa batalha, Biden personificou os valores e as instituições americanas, suas práticas e seus costumes. “Foi uma contraposição aos modos de proceder da presidência Donald Trump, que trouxe com o personalismo do seu bullying a erosão generalizada do softpower de atração dos Estados Unidos.”
E, aqui, no Brasil? É impressionante como Donald Trump serviu de espelho para o presidente Jair Bolsonaro, nas mais diversas áreas. Na política externa brasileira, por exemplo, toda a respeitabilidade de nossa diplomacia está sendo jogada pela janela, apesar de sua cultura secular, cujas raízes são as negociações com os países vizinhos, nas quais garantimos a consolidação de nossas fronteiras, sem derramamento de sangue. Ou na questão ambiental, na qual nosso protagonismo, da Rio-92 ao Acordo de Paris, deu lugar à vexatória condição de “pária” internacional, nas palavras do chanceler Ernesto Araújo.
As mentiras (1); as afrontas legais aos demais poderes (2); a promiscuidade com as milícias e outras atividades transgressoras (3); a proteção aos apaniguados (4); o não-reconhecimento dos fracassos (5); os incentivos à grilagem de terras, ao garimpo ilegal e ao desmatamento (6); e a terceirização dos problemas nacionais (7) tecem impressionante paralelo do governo Bolsonaro com o governo Trump (derrotado na reeleição), a partir da crítica de Hannah Arendt à degradação política do governo de Nixon (afastado por impeachment). Com a vitória de Joe Biden, esse espelho se quebrou.
Luiz Carlos Azedo: A grande sabotagem
Países de dimensões continentais têm inércia de manobra comparada aos grandes navios. Erros estratégicos na economia e nas políticas públicas têm graves consequências
A história universal tem inúmeros exemplos de tragédias humanitárias, causadas por fenômenos geológicos, climáticos, biológicos e/ou decisões políticas equivocadas, às vezes a combinação de duas ou mais causas. Essas tragédias deixam traumas sociais e provocam mudanças culturais e políticas. Uma das calamidades mais devastadoras da humanidade foi a peste negra, entre 1347 e 1351, que matou 50 milhões de pessoas na Europa e na Ásia. Causada por uma bactéria (Yersinia Pestis), a doença foi transmitida ao ser humano por meio das pulgas dos ratos e outros roedores. A peste disseminou o antissemitismo, provocou revoltas camponesas e a Guerra dos 100 Anos, mas, também, deu origem ao Iluminismo, em contraposição às teses místicas que atribuíam a doença ao castigo divino.
Em 1755, o grande terremoto de Lisboa resultou na destruição da capital portuguesa. O número exato de vítimas da tragédia é desconhecido, mas estima-se que pode ter chegado a 90 mil pessoas. Como consequência, o primeiro-ministro Sebastião José de Carvalho e Melo, o Marquês de Pombal, precisando de recursos para reconstruir Lisboa, acabou com as capitanias hereditárias no Brasil, transferiu a capital de Salvador para o Rio de Janeiro, criou o Distrito Diamantino, aumentou a cobrança de impostos nas Minas Gerais e fortificou as fronteiras na Amazônia, entre os quais o grande Forte Real do Príncipe da Beira, à margem direita do Guaporé, em Rondônia. Em contrapartida, a “derrama” deflagrou o movimento de Independência, cujo marco histórico foi a Inconfidência Mineira.
Em abril de 1986, um reator da central nuclear de Chernobyl explodiu e liberou uma imensa nuvem radioativa, contaminando pessoas, animais e o meio ambiente de uma vasta extensão da Europa. Na Ucrânia, Belarus e Rússia foram evacuadas e reassentadas 200 mil pessoas. O negacionismo e a censura agravaram a tragédia. Mais de 90 mil pessoas ainda poderão morrer de câncer, causado pela radiação do acidente nuclear. O episódio foi decisivo para Gorbatchov iniciar a glasnost (transparência) e desistir da corrida nuclear, o que acabou com a guerra fria com os Estados Unidos e foi um dos catalisadores do fim da própria União Soviética.
Pandemias e fome
No final da I Guerra Mundial, em 1918, uma pandemia do vírus Influenza se espalhou por quase todo o mundo. A gripe espanhola afetou 50% da população mundial. O número de mortos pode ter chegado a 100 milhões de pessoas. O vírus Influenza A, do subtipo H1N1, matou mais gente do que qualquer outra enfermidade na história e desapareceu tão misteriosamente como surgiu, mas ajudou a acabar com o conflito, provocou grandes reformas urbanas, uma revolução nas pesquisas médicas e nas políticas de saúde pública.
A maior tragédia humanitária do século passado, porém, não teve nada a ver com eventos geológicos, climáticos ou biológicos. Foi fruto do nacionalismo extremado de algumas nações e da ambição de poder de Adolf Hitler. A II Guerra Mundial, entre 1939 e 1945, mobilizou mais de 100 milhões de militares e deixou mais de 70 milhões de mortos. Foi a única vez que armas nucleares foram utilizadas em combate, resultando na morte de mais de 140 mil pessoas no Japão, nos bombardeios feitos pelos Estados Unidos nas cidades de Hiroshima e Nagasaki. Além disso, a loucura de Hitler resultou no Holocausto. Dos 6 milhões de judeus mortos somente em Auschwitz, o mais conhecido campo de concentração nazista, 1 milhão foi assassinado nas câmaras de gás e cremados.
Mortes em massa também foram provocadas por decisões políticas e econômicas equivocadas de líderes comunistas. As coletivizações forçadas de Josef Stálin, na antiga União Soviética, nos anos de 1932-33, mataram de fome 10 milhões de camponeses na Ucrânia, e 1,25 milhão no Cazaquistão. O Grande Salto Adiante de Mao Tse Tung, na China, de 1958 a 1961, matou de fome 20 milhões de chineses. Entre 1994 e 1998, na Coreia de Norte, o fim da ajuda soviética, fatores climáticos e erros de planejamento de Kim Jong-un provocaram a morte de, pelo menos, 600 mil pessoas por desnutrição (fala-se em até 3 milhões de norte-coreanos).
Países de dimensões continentais, por sua escala demográfica, têm inércia de manobra comparada aos grandes navios. Erros no rumo estratégico, principalmente na economia e políticas públicas, têm consequências de grande envergadura. O que está acontecendo nos EUA, por exemplo, devido ao negacionismo de Donald Trump, entrará para os anais da história como uma dessas grandes tragédias. O país é o epicentro da pandemia de covid-19, com 17 milhões de casos confirmados e 300 mil mortos pelo novo coronavírus, mais do que o número de soldados americanos mortos na II Guerra.
Aqui, no Brasil, com quase 7 milhões de infectados e 190 mil mortos, o presidente Jair Bolsonaro vai pelo mesmo caminho, com seu negacionismo, que chega a aponto de se recusar a tomar a vacina contra a covid-19. Sabota, assim, os esforços realizados por autoridades de saúde, prefeitos, governadores e até mesmo pelo governo federal — cuja atuação deixa muito a desejar — para conter a epidemia e imunizar a população contra a doença, única maneira de salvar a economia de profunda recessão e do desemprego em escala sem precedentes, ou seja, de voltar à vida normal. A história não perdoa erros dessa magnitude.
Luiz Carlos Azedo: Maia articula centro-esquerda
Do ponto de vista prático, o Centrão conseguiu se unificar em torno de Lira, e o bloco de centro-esquerda que Maia organiza ainda não tem um nome de consenso
O presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), articula com os partidos de esquerda um nome de centro que possa derrotar a candidatura governista de Arthur Lira (PP-AL), o candidato do presidente Jair Bolsonaro. Ontem, em reunião com os partidos de esquerda — PT, PDT, PSB, PSol e PCdoB —, fechou acordo para uma composição ampla, evitando candidaturas avulsas, para formar um bloco majoritário na Câmara. Com isso, fracassaram as articulações de Lira com setores desses partidos. O PT, com 54 deputados, ou seja, a maior bancada, teve um papel decisivo. Com o PSB (31), o PDT (28), o PSol (10) e a Rede (1), o bloco soma 124 deputados.
Entretanto, Maia ainda precisa coesionar os partidos do seu próprio bloco em torno dessa aliança. Caso consiga um nome de consenso, que também seja aceito pela esquerda, pode se formar um bloco majoritário na Câmara, pois o grupo de Maia soma 158 deputados, dos seguintes partidos: DEM (28), MDB (34), PSDB (31), PSL (53), Cidadania (8) e PV (4). Em tese, os dois blocos juntos podem chegar a 282 deputados, ou seja, a maioria da Câmara, que tem 513 deputados. O problema é que essa contabilidade é formal, pois os acordos de bancada precisam ser confirmados por cada deputado e o índice de traição é grande, principalmente quando envolve a negociação de cargos e a liberação de verbas federais, como está acontecendo.
Do ponto de vista prático, o Centrão conseguiu se unificar em torno de Lira, e o bloco de centro-esquerda que Maia organiza ainda não tem um nome de consenso. Baleia Rossi (SP), o líder do MDB, continua sendo o candidato mais forte, mas não é o que tem melhor trânsito junto aos partidos de esquerda. Aguinaldo Ribeiro (PP-PB) teria mais passagem, porém não tem apoio de seu próprio partido, cujo candidato é Lira. Havia conjecturas em torno do nome do vice-presidente da Câmara, Marcos Pereira (Republicanos-SP), mas ele descolou do bloco e decidiu apoiar Lira, supostamente em troca de uma vaga na Esplanada. Tereza Cristina (DEM-MS), atual ministra da Agricultura, com ampla passagem na bancada do agronegócio, por hora, é uma articulação da cúpula do DEM.
Aprovação
Uma das variáveis que influenciam a disputa na Câmara é a popularidade do presidente Jair Bolsonaro. Segundo pesquisa CNI-Ibope, divulgada ontem, a aprovação de Bolsonaro (bom e ótimo) caiu de 40% para 35%, de setembro a dezembro. No entanto, é seis pontos maior que a registrada em dezembro de 2019, quando chegou a 29%. Os números apontam, também, que a confiança no presidente praticamente não mudou, oscilando de 46% para 44%, dentro da margem de erro. A aprovação da maneira de governar do presidente diminuiu, no limite da margem de erro, de 50% para 46%, e a desaprovação subiu, de 45% para 49%. A pesquisa CNI-Ibope ouviu 2 mil pessoas entre 5 e 8 de dezembro, em 126 municípios. A margem de erro é de dois pontos percentuais para mais ou para menos, e a confiança, de 95%.
O número dos que avaliam o governo como ruim ou péssimo cresceu, no limite da margem de erros, de 29% para 33%. A aprovação na área de segurança pública despencou 7 pontos, era a única com saldo positivo. A atuação do governo é desaprovada em temas como juros, que nunca estiveram tão baixos, inflação, saúde e combate à fome e à pobreza. A popularidade de Bolsonaro é maior entre os residentes das cidades pequenas e da Região Sul, enquanto é menor entre os jovens, sobretudo aqueles que têm de 16 a 24 anos de idade e os que moram nas cidades grandes.
As regiões Sudeste e Nordeste reúnem a maior parcela descontente com o presidente. Para 36%, no Sudeste, e 34%, no Nordeste, o governo está sendo ruim ou péssimo; 52% dos residentes no Sudeste e 51% dos que moram no Nordeste não aprovam a maneira de governar do presidente Bolsonaro. No Sul, 44% dos entrevistados consideram o governo como ótimo ou bom, 52% afirmam confiar no presidente e 55% aprovam sua maneira de governar. Mais da metade dos moradores de cidades pequenas — aquelas com até 50 mil habitantes — confia em Jair Bolsonaro e aprova sua maneira de governar, com índices de 53% e 55%, respectivamente.
Luiz Carlos Azedo: MDB quer dar as cartas
A linha divisória entre governo e oposição no Senado é sinuosa, por causa da relação dos governadores com o governo federal, que funciona na base da velha política de conciliação
O velho MDB quer o comando do Congresso. Em decisão salomônica, seus senadores decidiram lançar candidato próprio à sucessão de Davi Alcolumbre na Presidência do Senado e definiram o critério para escolha do nome que unificará o partido, que tem quatro pré-candidatos: o líder do governo no Senado, Fernando Bezerra (PE); o líder do governo no Congresso, Eduardo Gomes (TO); o líder da bancada, Eduardo Braga (AM); e a presidente da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado, Simone Tebet (MS). Será aquele que trouxer mais votos. Velhos caciques, Renan Calheiros (AL) e Jader Barbalho (PA) atuam nos bastidores para que o nome seja Bezerra. A maioria dos senadores do MDB é governista de primeira hora.
O protagonismo de Davi Alcolumbre (DEM-AP) na Presidência da Casa está em ocaso, que pode ser maior do que se imagina, caso o irmão dele seja derrotado, neste fim de semana, na disputa pela Prefeitura de Macapá. Josiel Alcolumbre é candidato à reeleição, mas sua estrela foi eclipsada pelo apagão no Amapá, que durou três semanas. A oposição se unificou em torno da candidatura de Dr. Furlan (Cidadania), que chegou ao segundo turno. O prestígio de Alcolumbre no comando do Senado era resultado de um movimento pendular: o primeiro, à esquerda, garantiu a sua própria eleição, contra Renan Calheiros, com apoio do grupo Muda Senado, na onda do tsunami eleitoral de 2018; o segundo, à direita, possibilitou a aproximação com a ala da bancada do MDB que queria apoiar o governo.
Dono das pautas do Senado e do Congresso, hábil nas negociações de cargos e avesso às grandes polêmicas, Alcolumbre foi um boa-praça no comando da Casa, a ponto de sua reeleição ter sido desejada pela maioria dos senadores. O problema é que faltou combinar a recondução com o Supremo Tribunal Federal (STF), que a vetou, na mesma legislatura, como determina a Constituição de 1988. Aliado do governo, não deixa de ser um interlocutor importante na própria sucessão, mas não recebeu o apoio que esperava do presidente Jair Bolsonaro para indicar o senador Rodrigo Pacheco (DEM-MG) como seu sucessor, num “dedazo”. Dificilmente, portanto, o DEM terá condições de manter o comando do Senado.
Unido ao PL, o DEM forma um bloco com oito senadores, muito pouco para enfrentar as velhas raposas do MDB, cuja bancada tem 13 senadores. Unidos ao PP do se Ciro Nogueira (PI), somam 23 senadores num só bloco parlamentar. O PSDB forma um bloco de 10 senadores com o PSL, porém, com a desistência do senador Tasso Jereissati (CE), anunciada ontem, também não terá candidato. Outro possível candidato, o senador Antônio Anastasia (PSD-MG) desistiu da candidatura; pleiteia o comando da poderosa Comissão de Constituição e Justiça (CCJ). Pode ser que Nelsinho Trad (MS) mantenha a candidatura pelo PSD, mas a tendência da legenda é buscar um bom acordo com o MDB.
É muito provável que surja um candidato da oposição à Presidência do Senado, mas essa articulação passa pelo PT, que forma um bloco com o PROS, de nove senadores, e o Podemos, com 10. O bloco independente, integrado por Cidadania, Rede, PSB e um dissidente do PDT, com nove deputados, defende uma candidatura de renovação, na linha do movimento Muda Senado, mesmo que apenas para marcar posição. A linha divisória entre governo e oposição no Senado é sinuosa, por causa da relação dos governadores com o governo federal, que funciona na base da velha política de conciliação. Por isso, um governista que dialogue bem com a esquerda e seja bom negociador tem mais chances de ser eleito.
Câmara
A vida não está fácil para ninguém na Câmara, nem para Arthur Lira (AL), candidato do Centrão, que se apresenta como favorito na disputa pelo comando da Casa, em razão de contar com o apoio de um bloco de, aproximadamente, 170 deputados. Ontem, ganharam força as articulações para que a ministra da Agricultura, Tereza Cristina (DEM-MS), se lance candidata, com forte apoio da bancada do agronegócio. Seu nome unificaria a bancada do DEM, tem trânsito na oposição e agrada aos setores governistas que não gostam do estilo de negociação de Lira, que é comparado ao do ex-deputado Eduardo Cunha (MDB-RJ).
O atual presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), vem subindo o tom contra o presidente Jair Bolsonaro por causa da interferência do Palácio do Planalto na disputa pelo comando da Casa. Entretanto, enfrenta dificuldades para unificar seu grupo e costurar uma aliança com a esquerda. O nome mais forte do grupo ainda é o líder do MDB, Baleia Rossi (SP), que sofre muitas restrições do PT. Outro problema de Maia é a cobrança que sofre dos correligionários, inclusive do presidente da legenda, o prefeito de Salvador, ACM Neto, por não ter articulado uma candidatura de seu próprio partido, que agora se mobiliza para viabilizar a candidatura de Tereza Cristina.
Bruno Boghossian: Bolsonaro pede que governo divulgue perigos de vacinas contra a Covid
Uso da máquina em campanha contra imunização aumenta responsabilidade por mortes na pandemia
Jair Bolsonaro trabalha para que o governo faça uma campanha oficial contra a vacinação do coronavírus. Em entrevista à Band, o presidente revelou ter pedido ao ministro da Saúde que comece "a mostrar o que seria a bula desse medicamento". Em vez de garantir um processo seguro, ele quer que as autoridades digam que a imunização é perigosa.
"Lá no meio dessa bula está escrito que a empresa não se responsabiliza por qualquer efeito colateral. Isso acende uma luz amarela. A gente começa a perguntar para o povo: você vai tomar essa vacina?", declarou.
Além de abastecer a desconfiança da população e alimentar teorias conspiratórias em discursos públicos, o presidente acionou também a máquina do governo em sua cruzada contra a imunização. Se alguém tinha dificuldades para enxergar a responsabilidade direta de Bolsonaro pelo morticínio na pandemia, não é preciso perder mais tempo.
Enquanto se empenha para desestimular a imunização, o presidente tenta empurrar medicamentos sem eficácia comprovada, como a cloroquina. "Eu não sou contra a vacina, mas sou plenamente favorável a esse tratamento preventivo que a gente tem no Brasil", afirmou, na entrevista desta terça-feira (15).
Bolsonaro também disse que o governo vai determinar que cada brasileiro assine um termo de responsabilidade ao receber o imunizante. Ele só não disse que é preciso fazer o mesmo para receber cloroquina. O texto alerta que o medicamento pode causar disfunção cardíaca e que não há provas de que ele funcione.
Quando a morte de um voluntário forçou a interrupção nos testes da Coronavac em São Paulo, o presidente comemorou: "Mais uma que Jair Bolsonaro ganha". Se as vacinas desenvolvidas até aqui se mostrarem seguras, cada cidadão que recusar o imunizante também poderá ser incluído em sua conta.
Desde agosto, o percentual de brasileiros que não querem se vacinar subiu de 9% para 22%. São 46 milhões de pessoas que podem sofrer com a doença ou espalhar o vírus.
Luiz Carlos Azedo: Quem chega por último…
Pode ser que a estratégia de reaproximação do governo brasileiro com a Casa Branca se dê pelo baixo instinto, ou seja, pela via do alinhamento contra a China
Citando o Hino dos Estados Unidos — “a terra dos livres e o lar dos corajosos” —, o presidente Jair Bolsonaro reconheceu, ontem, a eleição do presidente Joe Biden, um dia após o democrata ter sido referendado pelo colégio de delegados que consagra o resultado das urnas. Foi o penúltimo chefe de Estado a fazê-lo; falta, ainda, o norte-coreano Kim Jong-Un. Vladimir Putin, da Rússia, e López Obrador, do México, também enviaram suas mensagens. Como a aposta de Bolsonaro era a reeleição de Donald Trump, que defendeu abertamente, inclusive, endossando suas acusações de que a apuração das urnas estaria sendo fraudada, não será fácil a reconstituição das relações com a Casa Branca. Como se diz na política, só quem chega primeiro bebe água limpa…
A mensagem de ontem não deixa, porém, de ser um marco na nossa política externa. É o registro de um fracasso retumbante do chanceler Ernesto Araújo, que apostou na construção de um eixo político-ideológico reacionário nas relações internacionais, cujo vértice era Donald Trump. Uma política negacionista do aquecimento global, da pandemia do novo coronavírus e de guerra comercial com a China, que nunca teve a menor chance de dar certo. A evidência de que Trump fracassaria veio logo que a União Europeia passou a obstruir suas iniciativas nos foros internacionais, principalmente na questão ambiental. Um outro sinal foi a guinada de Boris Johnson em relação à pandemia da covid-19, após contraí-la.
Isso significa que Bolsonaro dará um cavalo de pau na política externa brasileira? A torcida para que isso aconteça é muito grande, mas não há sinais de que isso venha a ocorrer no curto prazo, a não ser que Ernesto Araújo seja demitido. Pode ser que a estratégia de reaproximação do governo brasileiro com a Casa Branca se dê pelo baixo instinto, ou seja, pela via do alinhamento contra a China. Não é à toa que Xi Jinping não enviou, ainda, sua mensagem pessoal de congratulações a Joe Biden, embora a chancelaria chinesa já tenha reconhecido sua eleição. Ainda não está claro qual será a nova política norte-americana em relação à China, por causa da disputa comercial entre os dois países, principalmente na área de tecnologia.
Um dos grandes equívocos da política externa de Trump foi retirar os Estados Unidos da Aliança do Pacífico, um êxito diplomático do seu antecessor, Barack Obama. Isso abriu espaço para que a China entrasse no acordo comercial dos países asiáticos. Negociado desde 2012, com o nome de Parceria Comercial Regional Abrangente (RCEP), na sigla em inglês, reúne 15 países, sem os Estados Unidos, somando 2,1 bilhões de consumidores e 30% do PIB mundial. China, Japão, Coreia do Sul, Austrália e Nova Zelândia assinaram o pacto, com os 10 países da Associação de Nações do Sudeste Asiático: Indonésia, Tailândia, Singapura, Malásia, Filipinas, Vietnã, Myanmar, Camboja, Laos e Brunei. Somente a Índia ficou fora, temendo a concorrência chinesa, mas ainda pode entrar no acordo.
Internet
É muito provável que Biden mantenha, em termos mais elegantes e sofisticados, a guerra comercial com a China. Pode ser que a tentação de Bolsonaro, para se reaproximar da Casa Branca, seja manter o alinhamento do governo brasileiro com os Estados Unidos nesse contencioso. É aí que mora o maior perigo, pois a sobrevida da atual política externa, nessas condições, pode ter consequências terríveis de médio e longo prazos para a nossa economia, porque a China é o nosso maior parceiro comercial. O divisor de águas, com toda certeza, será a forma como a tecnologia 5G será implantada no Brasil.
A Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) deve realizar o leilão das faixas de 5G no primeiro semestre de 2021. Por elas vão passar os dados que chegam aos nossos smartphones, numa velocidade que permitirá implantar a chamada “internet das coisas”. Em outubro passado, os Estados Unidos pressionaram o governo brasileiro para que banissem da disputa a gigante chinesa Huawei, que já tem forte presença no Brasil, como fornecedora de equipamentos e serviços. Ofereceu em troca US$ 1 bilhão em financiamentos de projetos nas áreas de energia, infraestrutura e telecomunicações. Na ocasião, o conselheiro de segurança dos Estados Unidos, Robert O’Brien, disse que a empresa chinesa poderia ter acesso a informações sigilosas do governo e de empresas.
Esse posicionamento vai na contramão da orientação da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), que recomendou ao Brasil não restringir a competição entre os fornecedores de tecnologia 5G. Mesmo assim, o governo brasileiro resolveu apoiar a Clean Network (Rede Limpa), iniciativa de Trump para limitar o avanço chinês nas redes de 5G. Comentário do deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP) sobre o tema, no Twitter, acusando os chineses de usarem a Huawei para espionagem, provocou dura reação da Embaixada da China no Brasil, também na rede social, e igual resposta do Itamaraty. Diplomatas experientes alertam para os sinais de que a China já está se reposicionando para reduzir a sua dependência alimentar em relação ao Brasil, ou seja, da importação de soja e de carnes brasileiras.