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Luiz Carlos Azedo: Como perder a guerra

Tanto a produção da vacina do Butantan quanto a da Fiocruz precisam de insumos importados da China, dos quais somos tão dependentes como os chineses da nossa soja

Há derrotas por antecipação. Geralmente, como já disse, ocorrem quando se comete um erro de conceito estratégico. A partir daí, os planejamentos tático e operacional são desastres sucessivos. Em tese, oficiais superiores são treinados para serem bons estrategistas. O marechal Castelo Branco, por exemplo, conquistou essa fama nos campos da Itália, na II Guerra Mundial, ao elaborar o bem-sucedido plano da tomada de Monte Castelo, que veio a ser uma das glórias de nossos pracinhas da Força Expedicionária Brasileira (FEB). Não é o caso do general Eduardo Pazuello, ministro da Saúde, apesar da fama de craque em logística.

O primeiro erro de conceito de Pazuello é considerar a pandemia uma guerra. Como figura de linguagem, ainda se pode dar um desconto; como conceito de política sanitária, porém, leva a conclusões equivocadas. Logo no começo da pandemia, o sanitarista Luiz Antônio Santini, médico e ex-diretor do Inca, publicou um artigo no site do Centro de Estudos Estratégicos da Fiocruz chamando atenção para isso: “A metáfora da guerra, embora frequente, não é adequada para abordar os desafios da saúde, até porque, por definição, uma guerra visa derrotar um inimigo e, para isso, vai requerer a mobilização de recursos das mais variadas naturezas que, em geral, levam a uma brutal desorganização econômica e social do país. Essa visão belicosa, no caso de uma pandemia, além de limitar, é seguramente ineficiente”.

Segundo o sanitarista, uma pandemia não representa um ataque inesperado de um agente inimigo da humanidade, como a tese da guerra sugere. “O processo de mutação dos vírus é uma atividade constante na natureza e o que faz com que esse vírus mutante alcance a população, sem proteção imunológica, são, além das mudanças na biologia do vírus, mudanças ambientais, no modo de vida das populações humanas, nas condições econômicas e sociais. Muito além, portanto, de um ataque insidioso provocado por um agente do mal a ser eliminado.” Muito provavelmente, o que está acontecendo em Manaus, e pode se repetir em outras cidades, é consequência de uma mutação genética do vírus da covid-19, que fez com que a doença se propagasse mais rapidamente e a subestimação da importância do distanciamento social e outros cuidados, como uso de máscaras.

A pandemia não é culpa de Pazuello, mas um fenômeno da natureza. Entretanto, deveria ter sido mitigada pelo Ministério da Saúde, enquanto a ciência busca respostas com vacinas, medicamentos, mais conhecimentos e tecnologias. O problema é que Pazuello não foi nomeado para o cargo de ministro da Saúde por seus conhecimentos em saúde pública, mas porque obedece cegamente ao presidente Jair Bolsonaro, um capitão que pauta sua atuação na Presidência pelo improviso e, no caso da pandemia, pelo negacionismo.

Aposta errada

Por ordem de Bolsonaro, Pazuello apostou no “tratamento precoce” à base de um coquetel cuja eficiência é contestada pelos epidemiologistas. No caso de Manaus, segundo depoimentos de intensivistas, a maioria dos mortos havia tomado hidroxicloroquina, azitromicina, zinco e vitamina D, além da ivermectina. O general foi a Manaus recomendar esse tratamento alternativo em massa, na expectativa de que isso contivesse a pandemia, em vez de dar a devida importância à escalada da doença, que provocou o colapso dos hospitais, a começar pela falta de oxigênio. Pesaram na sua avaliação a sua autossuficiência e ignorância em matéria de saúde pública.

A mentalidade bélica também cobra um preço na questão das vacinas. O tempo todo o governador de São Paulo, João Doria, foi tratado como inimigo por Bolsonaro, que demitiu Henrique Mandetta por ciúmes. O ex-ministro havia alcançado grande popularidade, ao liderar a luta contra a pandemia, e havia se encontrado com o governador paulista para discutir a colaboração entre os governos federal e estadual no enfrentamento da crise sanitária. À época, Bolsonaro considerava a covid-19 uma “gripezinha”, sabotava o distanciamento social e desacreditava a vacina, que ainda se recusa a tomar, com argumento de que foi imunizado pela doença, embora os casos de reinfecção estejam aumentando.

O resultado todo mundo sabe. A vacina do Butantan (CoronaVac) é a única disponível até agora. O governador João Doria começou a campanha de vacinação no domingo. Pazuello corre contra o prejuízo. As vacinas disponíveis — 6 milhões de doses, equivalentes à vacinação de 3 milhões de pessoas, a maioria profissionais de saúde — são insuficientes para imunizar a população. Além disso, tanto a produção da vacina do Butantan quanto a da Fiocruz precisam de insumos importados da China, dos quais somos tão dependentes como os chineses da nossa soja. Outro erro estratégico de Bolsonaro, nesta pandemia, foi falar mal da China. Pode nos custar muito mais caro do que se imagina.

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Luiz Carlos Azedo: Faca manchada de sangue

Erros de conceitos, geralmente, provocam fracassos estratégicos, e transformam eventuais qualidades em grandes defeitos. O sujeito vira o “burro operante”

O colapso do sistema de saúde pública em Manaus, por falta de oxigênio, indignou a sociedade, além de traumatizar os profissionais de saúde do país inteiro, porque o episódio provocou a morte por asfixia de pacientes que estavam estabilizados e chegou a obrigar a transferência de crianças recém-nascidas para outros estados, ou seja, que não tinham nada a ver com a pandemia de covid-19. Dois dias antes do colapso, o ministro da Saúde, general Eduardo Pazuello, fora avisado da falta de oxigênio. Esteve em Manaus, com o propósito de convencer as autoridades locais a prescreverem em massa o “tratamento precoce” da covid-19, que vem sendo a opção preferencial dos militares à frente da pasta para combater a pandemia.

Trata-se de um coquetel utilizado em larga escala por médicos clínicos, como tratamento alternativo: hidroxicloroquina, azitromicina, zinco e vitamina D, além da ivermectina, já usada preventivamente, a cada 15 dias, de forma generalizada, por parte da população de baixa renda, como santo remédio contra o novo coronavírus. Rejeitada pelos infectologistas, por falta de comprovação científica, na surdina, essa fórmula virou o eixo da política sanitária do Ministério da Saúde. Na cabeça do presidente Jair Bolsonaro, o coquetel é mais eficiente e mais barato do que as vacinas, além de dispensar as políticas de distanciamento social, ao supostamente transformar a covid-19 numa “gripezinha”.

Apesar de criticado por infectologistas e sanitaristas, o “tratamento precoce” é uma prerrogativa da clínica médica, ao qual muitos recorreram e acham que, por isso, foram salvos da morte. Entretanto, a essência da política de saúde pública é preventiva. Por essa razão, o descaso em relação à necessidade de distanciamento social, para desacelerar a propagação da pandemia, e o atraso na vacinação em massa, para imunizar a população, mais cedo ou mais tarde, além da falta de insumos, como oxigênio, seringas e agulhas, resultarão em investigações e processos criminais na Justiça.

Vacinas

O general Pazuello está no cargo por ter fama de especialista em logística e para levar adiante o “tratamento precoce”. Mas esse é clamoroso erro de conceito, tanto assim que os dois ministros que o antecederam se recusaram a cumprir essa orientação do presidente Bolsonaro. Erros de conceitos, geralmente, provocam fracassos estratégicos, e transformam eventuais qualidades de seus executantes em grandes defeitos. O sujeito vira o “burro operante”. É o caso, por exemplo, do secretário-executivo do Ministério da Saúde, o coronel do Exército reformado Antônio Elcio Franco Filho, cuja experiência como secretário de Saúde de Roraima o guindou ao cargo operacional mais importante de todo o Sistema Único de Saúde (SUS). Nas entrevistas, exibe na lapela uma faca ensangüentada, broche de ex-integrante de equipe de operações especiais, cujo lema é “O ideal como motivação/ A abnegação como rotina/ O perigo como irmão e/ A morte como companheira”. Sem dúvida, o Brasil precisa de soldados treinados para “causar o máximo de confusão, morte e destruição na retaguarda do inimigo”, mas o lugar deles não é o Ministério da Saúde.

Na quarta-feira, em entrevista coletiva, o “faca manchada de sangue” se jactava da operação que estava sendo montada para buscar 2 milhões de doses da vacina de Oxford produzidas na Índia. O governo federal pretendia realizar uma grande jogada de marketing, iniciando a campanha nacional de imunização com a vacina que também será produzida pela Fiocruz, antes de autorizar o uso da vacina do Instituto Butantan, cuja eficácia o presidente Bolsonaro não perde uma oportunidade de colocar em dúvida. O avião da Azul adesivado para transportar as vacinas não pode decolar, porque as autoridades da Índia não haviam liberado as vacinas.

O Brasil, porém, é um grande país, mas não é para principiantes. Começamos a produzir 8 milhões de doses/mês da vacina russa Sputnik V, em Santa Maria, no Distrito Federal, e em Valparaíso de Goiás, no Entorno de Brasília. Os russos contrataram a União Química, que possui mais 7 fábricas no Brasil, para produzir a vacina desenvolvida pelo Instituto Gamaleya de Pesquisa em Epidemiologia e Microbiologia e financiada pelo Fundo de Investimentos Diretos da Rússia. Todas as doses da vacina russa produzidas no Brasil serão exportadas para países da América Latina que já registraram o imunizante, como Argentina e Bolívia, enquanto aguarda autorização da Anvisa para realização de testes clínicos no Brasil. Ou seja, em breve teremos 3 vacinas produzidas aqui: a CoronaVac, do Instituto Butantan; a Oxford, da Fiocruz; e a Sputnik V, da União Química (privada), um “business” russo. Apesar de tanta incompetência, a esperança não morreu.

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Luiz Carlos Azedo: Pra chamar de nossas

Há uma revolução na produção de vacinas. Essa é a notícia boa. A notícia ruim é o que está acontecendo em Manaus, onde o SUS entrou em colapso por falta de oxigênio

A guerra das vacinas entre o presidente Jair Bolsonaro e o governador João Doria é como um copo pela metade: de um lado, gera muita desinformação sobre imunização da população; de outro, promove uma corrida para ver quem vai vacinar primeiro. Entretanto, vamos tratar das vacinas que estão sendo produzidas no Brasil, tanto pelo Instituto Butantan quanto pela Fiocruz, que são as que vão resolver o nosso problema. A Sociedade Brasileira de Imunologia (SBI) divulgou nota na qual esclareceu que os estudos realizados para testagem de diferentes imunizantes utilizaram critérios distintos.

Por exemplo, no estudo da americana Moderna, foram considerados dois sintomas de um grupo formado por febre, arrepios, dor no corpo, dor de cabeça, dor de garganta, perda de olfato ou paladar com diagnóstico viral confirmado ou um sintoma grave, como falta de ar, tosse, diagnóstico radiológico como casos de covid-19. Ou seja, dois sintomas leves ou um sintoma grave. No estudo da AstraZeneca (Oxford), um sintoma do grupo formado por febre, tosse, falta de ar, perda de olfato ou paladar; ou seja, a maioria sintomas leves, mais um grave (falta de ar), para fechar o diagnóstico.

No estudo do Instituto Butantan, foram considerados casos com qualquer um dos sintomas leves, mais sintomas não incluídos por outros estudos: náusea, vômito e diarreia. Em consequência, esse estudo abriu margem para detecção de mais casos por diagnóstico molecular, que, nos demais estudos, provavelmente, não foram detectados — por não serem considerados sintomáticos. Além disso, focou nos graus de gravidade da doença sugeridos pela Organização Mundial da Saúde (OMS), ao contrário dos demais.

A diferença de parâmetros parece maluquice, mas é um reflexo do avanços da ciência em busca da vacina. Na verdade, as tecnologias também são diferentes e não existe uma padronização para os estudos da fase III, embora a Food and Drug Administration (FDA), dos Estados Unidos, e a nossa SBI recomendem isso. Por exemplo, enquanto a CoronaVac utiliza os métodos tradicionais de produção de vacina, os imunizantes da Oxford e a Sputnik V, por meio de engenharia genética, usaram os adenovírus como “meio de transporte” de genes codificando a proteína S do novo coronavírus (Sars-CoV- 2). Uma vez inoculado, o adenovírus com o gene do coronavírus induz uma resposta imunológica no corpo humano.

Segunda onda
As vacinas BioNTech/Pfizer e Moderna, que já estão sendo aplicadas nos Estados Unidos, também resultam de uma abordagem revolucionária, aplicável a quaisquer vacinas futuras: um vírus é sequenciado, recebe uma parte inofensiva em mRNA, corrigido de modo a não ser imuno-rejeitado, que garante a imunização. Há uma revolução na produção de vacinas. Essa é a notícia boa.

A notícia ruim é o que está acontecendo em Manaus, onde o SUS entrou em colapso por falta de oxigênio, tragédia que pode se reproduzir em outros estados onde a segunda onda já chegou. Não foi à toa que o Reino Unido fechou suas fronteiras para passageiros oriundos do nosso país e de nossos vizinhos. A existência de uma variante brasileira do vírus, confirmada em Manaus, é ainda mais ameaçadora porque os anticorpos de quem já teve a doença, segundo recente pesquisa, garantem imunidade por um período de cinco a seis meses, o que explica o aumento de casos de reinfecção.

O ministro da Saúde, general Eduardo Pazuello, corre para conseguir uma vacina para o presidente Jair Bolsonaro chamar de sua, no caso, a vacina da Oxford produzida na Índia. Ao mesmo tempo, faz suspense sobre a aprovação da CoronaVac. Não estamos, porém, numa guerra civil, como a Revolução Constitucionalista de 1932, estamos numa pandemia. Segundo a SBI, os números totais dos estudos das vacinas da Fiocruz (Oxford) e da vacina do Instituto Butantan (CoronaVac) são muito semelhantes. Entretanto, a vacina da Fiocruz foi testada na população geral, e a do Instituto Butantan, em profissionais de saúde atendendo pacientes da covid-19. O que o estudo do Instituto Butantan diz é que houve redução em 50% de qualquer sintoma na população de profissionais da saúde; e o da Oxford, em 62% de toda a população. Em ambos os casos, o mais importante é que evitam internações e mortes, desde que haja, realmente, vacinação em massa.

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Luiz Carlos Azedo: Embolou a disputa no Senado

Qualquer que seja o resultado da eleição, porém, a ‘política de conciliação’ continuará predominando entre os parlamentares no Senado

A sucessão de Davi Alcolumbre (DEM-AP) na Presidência do Senado está embolada, com ligeira vantagem para o candidato apoiado pelo presidente Jair Bolsonaro, o senador Rodrigo Pacheco (DEM-MG), que largou na frente. Somente na terça-feira, o MDB escolheu a senadora Simone Tebet (MDB-MS) como candidata da bancada, com a desistência dos demais postulantes. O jogo bruto do Palácio do Planalto, que desprezou as candidaturas de seus líderes no Senado, Fernando Bezerra (MDB-PE), e no Congresso, Eduardo Gomes (MDB-TO), levou o líder Eduardo Braga (MDB-AM), que também postulava a indicação, a concluir que a senadora teria melhores condições de equilibrar a disputa do que ele próprio.

Num primeiro momento, a impressão que havia passado era de que as raposas do partido se recolheram para fazer um acordo de bastidor com Rodrigo Pacheco, cristianizando Simone Tebet. Mas, não foi isso que aconteceu: dos 15 senadores emedebistas, somente Luiz do Carmo (MDB-GO) admitiu que ainda não decidiu seu voto. Os caciques da legenda chegam à conclusão de que foram tratados como uma força de segunda classe, embora tenham a maior bancada. A narrativa de Alcolumbre, de que o MDB já teria muita força na Casa, por controlar a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), e o fato de partido não ter sido consultado na escolha de Pacheco irritaram a cúpula do MDB.

Simone tornou-se competitiva porque conta, supostamente, com o apoio de 34 senadores na largada: além dos 15 do MDB, nove do Podemos, sete do PSDB e três do Cidadania. Não se decidiram, ainda, os três do PDT, dois da Rede, um do PSL e um do PSB. Precisaria de mais cinco votos para vencer. Entretanto, Rodrigo Pacheco conseguiu manter a vantagem, com um bloco muito amplo de partidos, com cinco senadores do DEM, 11 do PSD, sete do Progressistas, seis do PT, três do Pros, dois do Republicanos, um do PSL e um do PL. A grande surpresa foi a adesão do PT à candidatura de Rodrigo Pacheco, mas isso é resultado da longa convivência do senador com os petistas, em Minas.

A disputa do Senado parecia menos polarizada porque a Casa, tradicionalmente, faz uma política de conciliação entre o presidente da República, qualquer presidente, e os governadores, uma vez que o papel do Senado é representar os estados, de maneira equitativa, junto à União. A escolha de líderes governistas do MDB pelo Palácio do Planalto foi uma demonstração de que essa cultura se reproduzira na gestão de Alcolumbre, que havia derrotado o senador Renan Calheiros (MDB-AL), na onda de renovação política do Congresso, com um discurso contra o establishment do Senado.

Conciliação

O arranjo político estava tão consolidado que a eventual reeleição de Alcolumbre, caso fosse permitida pelo Supremo Tribunal Federal (STF), com apoio do MDB e do PT, já era dada como favas contadas. Como o Supremo vetou a reeleição do comando do Congresso na mesma legislatura, com base em dispositivo da Constituição de 1988, o acordão de Alcolumbre com o MDB implodiu, mas se manteve com o PT, em torno do nome de Pacheco, que é um senador de primeiro mandato, mas um político mineiro, com muita cancha de negociação. Qualquer que seja o resultado da eleição, porém, a “política de conciliação” continuará predominando no Senado, que tem grande número de ex-governadores ou candidatos aos governos de seus respectivos estados.

Desde o golpe da maioridade de D. Pedro II, em 1840, durante o Império, liberais e conservadores se revezaram no conselho de ministros. Como tinham a mesma origem social — a maioria era formada por senhores de escravos —, havia muitos interesses comuns. Essa convivência começou logo depois das vitórias liberais nas províncias, porque os conservadores, em oposição aos governos locais, onde foram derrotados nas eleições, permaneceram leais ao Imperador. Em 1853, essa aproximação de interesses resultou no “Ministério da Conciliação”, encabeçado por Honório Carneiro Leão, o Marquês de Paraná, com a presença simultânea de liberais e conservadores. Desse modo, o Segundo Reinado conseguiu manter a sua estrutura centralizada sem maiores sobressaltos na esfera política, até o fortalecimento do movimento abolicionista, que desaguou na proclamação da República (1889), logo após a Abolição. (1888).

Em momentos decisivos da História republicana, a “política de conciliação” renasceu das cinzas. Por exemplo, na posse do presidente João Goulart, em 1961 — que os militares tentaram impedir —, quando foi adotado o parlamentarismo. O restabelecimento do presidencialismo, por meio de plebiscito, em 1963, trouxe de volta a radicalização política que resultou no golpe de 1964. De certa forma, o presidente José Sarney (MDB), para garantir a transição à democracia, praticou essa política. De igual maneira, com sinal trocado, os presidentes Fernando Henrique Cardoso(PSDB) e Luiz Inácio Lula da Silva (PT).

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Luiz Carlos Azedo: O recado da Ford

Pode-se responsabilizar o governo Bolsonaro pela saída da Ford do Brasil? Por não ter feito nada para evitar, sim; mas essa não foi a causa principal

Neste episódio do encerramento das operações da Ford no Brasil há mais coisas entre o céu e a terra do que os aviões da Embraer. A propósito, a mais importante empresa de tecnologia da indústria nacional, que foi a consagração do modelo de substituição das importações, luta para sobreviver, depois do fracasso da bilionária parceria com a Boeing. A indústria de aviação passa por uma reestruturação mundial, agravada pela pandemia do novo coronavírus, que teve forte impacto no transporte de passageiros. De certa forma, a redução do fluxo de pessoas pode ajudar a volta por cima da Embraer, que produz aviões menores, como o E190, para 100 passageiros, ideal para a aviação regional. A startup EGO Airways divulgou, recentemente, que o avião brasileiro vai operar 11 rotas italianas, inicialmente, tendo por hubs os aeroportos de Forli e de Catânia, no norte e no sul da Itália, respectivamente; depois, na rota Milão-Roma.

Pode-se responsabilizar o governo Bolsonaro pela saída da Ford do Brasil? Por não ter feito nada para evitar, sim; mas essa não foi a causa principal. Em tese, poderíamos ter disputado a permanência das fábricas com a Argentina e o Uruguai, mas isso exigiria um arranjo institucional impossível de ser feito sem reforma tributária, política industrial e política de comércio exterior adequadas. Além disso, poderia ser uma solução de curto prazo, porque a indústria de automóveis passa por uma revolução tecnológica, na qual a Ford ficou para trás. Já são vendidos no Brasil, por exemplo, cerca de 20 modelos diferentes de carros elétricos Audi, Chevrolet, Nissan, Jaguar, BMW, Renault, JAC, Mercedes-Benz, BYD e Tesla. A briga boa é para produzi-los aqui no Brasil, mas, aí, surge o problema da automação: modernas plantas industriais são automatizadas, a mão de obra barata deixou de ser um atrativo.

As grandes marcas não são imortais, mesmo quando a empresa opera no país há mais de 100 anos. A Esso, com 50 anos de mercado, tinha 1,7 mil postos de combustíveis quando deixou de existir. Estava no Brasil desde 1912. No início, os postos se chamavam “Standard Oil Company of Brazil”. Não se sabe, ao certo, quando a marca e sua mascote, o tigre, foram adotados. Mas, na década de 1940, quando o Repórter Esso estreou na Rádio Nacional do Rio de Janeiro, a marca já tinha alguma popularidade. Em 2008, a rede Esso foi comprada pela Cosan. Três anos depois, a própria Cosan se uniu à Shell, formando a Raízen. Na ocasião, Cosan e Shell anunciaram que a marca Esso seria substituída.

Tecnologia
A troca de bandeira não é uma operação fácil. Só para vestir os frentistas da Esso com o uniforme da Shell a companhia precisou de 300 mil macacões e 60 mil bonés. A Raízen investiu R$ 130 milhões para trocar a bandeira pela Shell. E como será com o carro elétrico, cujas baterias são recarregadas na garagem? Foi melhor a Petrobras vender logo a BR Distribuidora — corre o risco de que faltem compradores interessados — e investir na exploração do pré-sal, antes que seja tarde demais. Inovação é o que mantém as empresas vivas. Para isso, precisam conversar com startups ou criar programas de pesquisa e desenvolvimento. Entretanto, preferimos subsídios e reservas de mercado, que têm pernas curtas quando ocorre uma revolução tecnológica, como agora, com forte impacto na divisão internacional do trabalho.

A Blockbuster era uma companhia gigante e com uma grande clientela. Morreu de maneira surreal. Deixamos de alugar DVDs para assistir a vídeos por meio de serviço de streaming em demanda, como Netflix e o Net Now. Teve a oportunidade de comprar a Netflix em 2000 e não comprou, preferiu focar na atenção ao cliente de suas lojas. Na época, a Netflix era só um serviço de delivery de DVD. A empresa faliu em 2013. Na década de 1970, a Kodak chegou a ser dona de 80% da venda das câmeras e de 90% de filmes fotográficos. E, na mesma década, inventou o que ia falir a empresa: a câmera digital. Como ia prejudicar a venda de filmes, eles engavetaram a tecnologia. Duas décadas depois, as câmeras digitais apareceram com força e quebraram a Kodak. Faliu em 2012.

Em 2005, o Yahoo! era o maior portal de internet do mundo e chegou a valer US$ 125 bilhões. Pouco mais de 10 anos depois, a companhia foi vendida para a Verizon, por apenas US$ 4,8 bilhões. Ela poderia ser o maior portal de pesquisa da internet, mas decidiu ser um portal de mídia. O PARC (Palo Alto Research Center) da Xerox tinha objetivo de criar tecnologias inovadoras: computadores, impressão a laser, Ethernet, peer-to-peer, desktop, interfaces gráficas, mouse e muito mais. Conseguiu. Steve Jobs só criou a interface gráfica de seus computadores após uma visita ao centro da Xerox, no coração do Vale do Silício. Quem menos lucrou com essas inovações foi a própria Xerox.

MySpace, Orkut e Atari tiveram trajetórias parecidas: estagnaram e foram engolidas pela concorrência. Os dois primeiros, por Facebook e Twitter; o terceiro, pela Nintendo. Mas, nada foi mais espetacular do que a ultrapassagem do Blackberry. Chegou a ter mais de 50% do mercado de celulares nos Estados Unidos, em 2007. Contudo, naquele mesmo ano, começou a sua derrocada. O primeiro iPhone foi lançado em 29 de junho de 2007. A Blackberry ignorou as tecnologias que o concorrente estava trazendo, como o touch screen. Resultado: a Apple dominou o mercado de consumidores pessoas-físicas.

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Luiz Carlos Azedo: No dia D, na hora H

Historicamente, o Sistema Único de Saúde (SUS) tem condições de vacinar 10 milhões de pessoas por dia, mas passa por um de seus piores momentos

O ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, evita cravar uma data de início para a vacinação contra a covid-19 no país. Disse ontem, em Manaus, que a imunização vai começar “no dia D e hora H”. Parece piada pronta: o começo da vacinação está sendo tratado como um segredo militar. O mais provável, porém, é que o Ministério da Saúde não saiba mesmo quando terá vacinas, seringas e agulhas disponíveis. Desculpem-me o trocadilho, o Dia D é um agá.

Na História, o chamado Dia D foi um segredo guardado a sete chaves pelos Aliados na Segunda Guerra Mundial. No dia 6 de junho de 1944, a Operação Overlord iniciou o desembarque das tropas aliadas na Normandia, no norte da França. A Alemanha passava por um momento delicado na guerra. A força do exército alemão havia sido contida pelos soviéticos a partir de 1942. Os desgastes que o fronte na União Soviética geraram foram muito altos, principalmente em Stalingrado e Kursk, e a Alemanha carecia de recursos para manter a guerra no nível necessário.

Os objetivos dos Aliados, ao planejar a invasão da Normandia, foram: (1) libertar a França do controle nazista, ao qual estava submetida desde 1940 e, ao criar uma nova frente de batalha (a oeste), (2) aumentar a pressão sobre a Alemanha, atacada ao leste pela União Soviética e ao sul (na Itália) por americanos e britânicos. A Operação Overlord foi vista com desconfiança pelos britânicos, ainda traumatizados pela dramática retirada de Dunquerque, no começo da invasão da França, quando foram encurralados na praia pelos alemães. Temiam um fracasso, ainda mais em razão das ofensivas desastradas no Mar Mediterrâneo e na costa italiana, onde faltou apoio aéreo.

A operação, porém, foi um sucesso; as batalhas mais duras ocorreram depois do desembarque, principalmente em Ardenas, quando os alemães tentaram uma contraofensiva ao se retirar da França. A Alemanha nazista sabia que um ataque Aliado contra a Normandia aconteceria, mas não quando e onde exatamente isso seria feito. As vãs esperanças de Hitler estavam depositadas na famosa Muralha do Atlântico, linha defensiva criada pelos alemães nos territórios ocupados na costa francesa. As operações do Dia D contaram com 5.300 navios, que realizaram o transporte de cerca de 150 mil homens e de 1.500 tanques, com apoio de 12 mil aeronaves, em cinco praias francesas, cuja conquista permitiu que os Aliados conseguissem posicionar mais 300 mil soldados na Normandia até o final do dia 7 de junho, com perda de apenas três mil soldados mortos.

Guerra da vacina
O custo da guerra da vacina entre o Ministério da Saúde e o governo de São Paulo no Brasil está sendo muito maior. A média móvel da última semana foi de 1.016 mortes por dia por covid-19, chegando à marca de 203.140 mortos, ontem, de um total 8,104 milhões de contaminados. Historicamente, o Sistema Único de Saúde (SUS) tem condições de vacinar 10 milhões de pessoas por dia, mas passa por um de seus piores momentos. “No primeiro dia que chegar a vacina, ou que a autorização for feita, a partir do terceiro ou quarto dia, já estará nos estados e municípios para começar a vacinação no Brasil”, garante o general Pazuello.

Pela primeira vez, o objetivo não será a imunidade completa, mas frear a contaminação, com a aplicação de, pelo menos, uma dose do imunizante do laboratório Astrazeneca em parceria com a Universidade de Oxford, importado às pressas da Índia (2 milhões de doses), enquanto a Anvisa faz novas exigências para liberação das vacinas produzidas pelo Instituto Butantan (CoronaVac) e pela própria Fiocruz (Oxford).

Para iniciar a campanha antes de São Paulo, que pretende imunizar a partir do dia 25 de janeiro, data de aniversário de fundação da capital paulista, Pazuello quer reinventar a roda, a pedido do presidente Jair Bolsonaro: “Com duas doses você vai a 90 e tantos por cento (de imunização); com uma dose, vai a 71%. Com 71%, talvez a gente entre para imunização em massa, é uma estratégia que a Secretaria de Vigilância em Saúde vai fazer para reduzir a pandemia. Talvez, o foco seja não na imunidade completa, mas, sim, a redução da contaminação e, aí, a pandemia diminui muito. Podendo aplicar a segunda dose na sequência, chegando a 90%”, disse. Trocando em miúdos, é tudo para inglês ver; pois, por enquanto, faltam vacinas para atender até mesmo os grupos de risco.

Pazulello, porém, garante que o Ministério da Saúde nunca deixou de trabalhar tecnicamente com o Butantan para comprar a vacina, “quando estiver registrada e garantida a segurança e eficácia pela Anvisa ou autorização de uso emergencial (…). Onde está a dificuldade? Não há registro na China nem autorização de uso emergencial ainda. E a Anvisa tem tido dificuldades de receber toda essa documentação pronta. Nós estamos trabalhando com o Butantan direto para que ele forneça essa documentação”, justifica Pazuello. O Butantan, em parceria com um laboratório chinês Sinovac, já produziu 2,8 milhões de doses, além de 6 milhões que importou diretamente da própria China e que serão destinadas ao Ministério da Saúde.

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Luiz Carlos Azedo: Muitas tensões à vista

O Supremo Tribunal Federal (STF) e o Congresso foram amortecedores dos conflitos gerados pela mentalidade castrense e centralizadora que predomina no Palácio do Planalto

O ano de 2021 começa com sinais fortes de que será marcado por muitas tensões políticas e poucas entregas do governo Jair Bolsonaro. Dois episódios apontam nessa direção: um é a guerra das vacinas, na qual o governo federal, por meio de medida provisória, tentou requisitar vacinas, seringas e agulhas já adquiridas pelos estados para viabilizar a campanha nacional de vacinação; o outro, o jogo bruto do Palácio do Planalto para eleger os presidentes da Câmara e do Senado, com apoio ostensivo, a base de liberação de verbas e loteamento de cargos, ao deputado Arthur Lira (PP-AL), e ao senador Rodrigo Pacheco (DEM-MG), respectivamente. Vamos por partes:

A medida provisória que pongava vacinas, seringas e agulhas dos estados foi uma saída do ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, para resolver um problema criado por sua própria equipe: a não-aquisição dos insumos básicos para a campanha nacional da vacinação em tempo hábil e a aposta numa única vacina, a de Oxford, que será produzida pela Fiocruz. São tarefas que as equipes do Ministério da Saúde, em todos os governos, e todos os ministros que o antecederam, tiravam de letra, porque havia expertise de gestão no setor para vacinar até 10 milhões de pessoas por dia. Essas equipes foram desmanteladas e substituídas por militares arrogantes e inexperientes, a começar pelo secretário-executivo da pasta, aquele que anda com uma faca ensangüentada na lapela, o broche de ex-integrante de unidade de operações especiais do Exército.

O papel de Robin Hood ensaiado pelo general Pazuello — tirar dos estados com vacinas para dar aos sem vacinas — foi frustrado por decisão do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Ricardo Lewandowski, que proibiu a requisição das vacinas, seringas e agulhas já adquiridas por alguns governos estaduais e prefeituras, entre os quais o de São Paulo. Por ironia, a vacina produzida pelo Instituto Butantan, em parceria com os chineses, a CoronaVac, que o presidente Jair Bolsonaro tentou desacreditar, acabou sendo comprada pelo Ministério da Saúde. São 100 milhões de doses que salvarão o governo federal do vexame de não ter como começar a vacinar imediatamente a população.

O episódio promete ter um final feliz, mas merece uma reflexão mais profunda sobre a natureza do governo Bolsonaro e a relação que pretende manter com os demais entes federados, a imprensa e a sociedade. Primeiro, adota os métodos da caserna em atividades civis, o que não tem chance de dar certo. Segundo, não compreende a natureza democrática do Estado brasileiro, regido pela Constituição de 1988, que é federativo e ampliado, ou seja, garante a independência dos demais poderes, a autonomia de estados e municípios, os direitos dos cidadãos e presta contas aos órgãos de controle e à sociedade. O Ministério da Saúde, muito mais do que o vértice, é o centro do Sistema Único de Saúde (SUS), que tem uma gestão compartilhada horizontalmente com os demais entes federados e outros órgãos e autarquias, e não uma cadeia de comando vertical e militarizada, ou seja, trabalha na base da coordenação e cooperação. O ministro da Saúde precisa fazer a sua parte e liderar; se achar que manda em tudo, vira rainha da Inglaterra.

Congresso
Em maior ou menor grau, esse tipo de conflito se manifesta em todas as áreas e de todas as formas — inclusive nas Forças Armadas —, e tende a aumentar no decorrer desse ano, em razão das crises sanitária e econômica, além da generalizada baixa performance administrativa. Até agora, o Supremo Tribunal Federal (STF) e o Congresso têm funcionado como amortecedores dos conflitos gerados pela mentalidade castrense e centralizadora que predomina no Palácio do Planalto. No ano passado, o Supremo foi fundamental para barrar os arroubos autoritários do presidente Bolsonaro; o Congresso foi decisivo para aprovação da reforma da Previdência, sem a qual o governo já teria se inviabilizado, e para as medidas emergenciais adotadas durante a pandemia, entre as quais o auxílio emergencial, do qual o presidente Bolsonaro foi o grande beneficiário político.

Entretanto, o Congresso também foi uma barreira à agenda regressiva nos costumes e às medidas que atropelavam ou abduziam prerrogativas de estados e municípios, ampliando a centralização administrativa, política e financeira da vida nacional por parte da União. Esse é o centro do embate em curso nas disputas pelo comando da Câmara e do Senado. No primeiro caso, o líder do PP, Arthur Lira (AL), apoiado abertamente pelo Palácio do Planalto, foi o grande artífice da reestruturação da base parlamentar do governo, qualificando-se como aliado principal de Bolsonaro por ter reunido votos suficientes para barrar qualquer proposta de impeachment do presidente da República.

Sua eleição pode garantir ao presidente Bolsonaro, com apoio do chamado Centrão, passar da defensiva à ofensiva, implementando propostas que visam aumentar o poder do Executivo em relação aos demais poderes, estados e municípios, além de restringir direitos das minorias, razão da unidade que se formou entre as forças de oposição — PT, PDT, PSB e Rede — e o bloco articulado por Rodrigo Maia (DEM-RJ) — MDB, DEM, PSDB, CIDADANIA, PV e PSL —, para eleger o deputado Baleia Rossi (MDB-SP) e garantir a independência da Câmara.

É uma disputa dura, que pode ser levada para o segundo turno devido a existência das candidaturas avulsas do deputado Fábio Ramalho (MDB-MG) e do Capitão Augusto (PL-SP), que trafegam no baixo clero e na antiga base ideológica de Bolsonaro, respectivamente. No Senado, a situação é esquizofrênica: Bolsonaro desprezou os líderes do governo na Casa, Fernando Bezerra (MDB-PE), e no Congresso, Eduardo Gomes (MDB-TO), para apoiar o candidato de Davi Alcolumbre, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), que sempre dialogou com esquerda mineira. Com isso, porém, pode ter catapultado a candidatura do líder do MDB, Eduardo Braga (AM), também com amplo trânsito na oposição.

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Luiz Carlos Azedo: O normal e o patológico

O Brasil já registra 200 mil mortos por vítimas da covid-19. Por ora, objetivamente, nem o ministro da Saúde nem os brasileiros sabem quando começa a vacinação

O ministro da Saúde, general Eduardo Pazuello, numa longa entrevista coletiva de sua equipe — na qual falou muito e foi embora sem responder perguntas —, anunciou a intenção de compra de 100 milhões de doses da vacina CoronaVac, de origem chinesa, produzida pelo Instituto Butantan, do governo de São Paulo, com o propósito de iniciar a vacinação dos grupos de risco, primeiramente, o pessoal da área de saúde. Aproveitou a ocasião para criticar duramente a imprensa, acusando a mídia de não se ater aos fatos e fazer interpretações fantasiosas sobre a atuação do governo e a sua própria no combate à pandemia.

Ao cobrar objetividade da imprensa, Pazuello tangenciou um universo que, talvez, tenha estudado na Escola de Comando e Estado-Maior do Exército, por onde passam oficiais de alta patente: a sociologia. É uma disciplina desprezada pelo presidente Jair Bolsonaro, ao qual, diga-se de passagem, se aplicariam com perfeição as críticas que fez à interpretação dos fatos relacionados à pandemia por parte dos jornalistas. Émile Durkheim, o pai da sociologia moderna, foi o primeiro a defender a objetividade dos fatos sociais, ou seja, sua externalidade em relação ao observador, como pilar metodológico de estudo das sociedades.

A grande sacada de Durkheim foi distinguir o fato social normal — aqueles que decorrem do desenvolvimento da sociedade dentro de uma norma comum, um padrão que visa o aprimoramento dos indivíduos e a manutenção da coesão e da vida em sociedade — do patológico. O fato social normal observa a ordem institucional, a vida individual mantém em funcionamento os laços solidários que unem os indivíduos de um grupo. O fato social patológico desenvolve-se fora da norma, como uma doença. Ele é perigoso, e quando atinge uma dimensão maior, pode afetar negativamente a sociedade.

Quando uma sociedade é tomada pela criminalidade e pela violência, como o Rio de Janeiro, ou regiões de periferia de outras cidades, como o Sol Nascente, aqui no Distrito Federal, é possível dizer que há um fato social patológico, que foge da normalidade esperada por uma sociedade. Durkheim partiu do pressuposto de que as sociedades apenas se mantêm coesas quando, de alguma forma, compartilham sentimentos e crenças comuns, mas, também, compreendeu que os povos não são, necessariamente, superiores uns aos outros, apenas são diferentes em sua estrutura, seus valores, seus conhecimentos, sua forma organizacional.

Vacinação

Em razão disso, estabeleceu alguns pressupostos: (1) os fatos sociais devem ser tratados como coisas; (2) a análise dos fatos sociais exige reflexão prévia e fuga de ideias preconcebidas; (3) o conjunto de crenças e sentimentos coletivos são a base da coesão da sociedade; (4) a própria sociedade cria mecanismos de coerção internos que fazem com que os indivíduos aceitem, de uma forma ou de outra, as regras estabelecidas; (5) a explicação dos fatos sociais deve ser buscada na sociedade e não nos indivíduos. Os estados psíquicos, na verdade, são consequências e não causas dos fenômenos sociais, daí serem objeto de outras ciências, como a antropologia, nos casos coletivos, ou a psicologia e a psiquiatria, nos casos individuais. Loucos no poder, como Nero, Hitler e — por que não? —, Donald Trump, porém, são um problema político.

Pazuello prestou contas das negociações para compra de vacinas, seringas e agulhas, defendendo-se da acusação de atraso nas aquisições. Estariam assegurados 2 milhões de doses de vacinas da AstraZeneca importadas pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz); 100,4 milhões de doses da Fiocruz/AstraZeneca até julho (produção nacional com ingrediente farmacêutivo ativo (IFA) importado; 110 milhões da Fiocruz/AstraZeneca (produção integral nacional) de agosto a dezembro; 42,5 milhões (provavelmente da AstraZeneca) a serem adquiridas por meio do mecanismo internacional Covax/Facility; e 100 milhões de doses do Instituto Butantan. No total, afirmou que o Brasil tem assegurados 354 milhões de doses de vacinas para 2021, mas não disse quando começa a vacinação em massa da população.

“Na hipótese média, estaríamos do dia 20 de janeiro ao dia 10 de fevereiro. Contamos aí com as vacinas produzidas no Brasil, tanto no Butantan quanto na Fiocruz. E, na hipótese mais alongada, a partir do dia 10 de fevereiro até o começo de março, que seria caso os registros e produção tenham quaisquer percalços”, disse Pazuello. Jornalistas não são sociólogos, mas foram treinados para distinguir um tigre de um elefante, mesmo sem saber sua anatomia. O problema de Pazuello — vamos deixar o presidente Jair Bolsonaro de lado — foi tratar como “coisa” normal a escalada da pandemia no Brasil, que já registra 200 mil mortos por vítimas da covid-19. Trata-se de uma patologia. Por ora, objetivamente, nem o ministro nem os brasileiros sabem quando começa a vacinação.

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Luiz Carlos Azedo: Perdido na pandemia

Bolsonaro não sabe o que fazer em meio à pandemia do novo coronavírus, pois nem crise sanitária nem recessão se resolvem com negacionismo, mas com ações governamentais

“O Brasil está quebrado. Não consigo fazer nada” — disse, com todas as letras, o presidente Jair Bolsonaro, ontem, queixando-se da situação em que se encontra o governo federal. Para não variar, culpou a imprensa e se fez de vítima, mas o estrago está feito. Além de terem virado piada pronta nas redes sociais e motivo de chacota nos meios políticos, suas palavras são um desastre para a economia. O impacto de uma afirmação dessa natureza junto aos agentes econômicos e investidores estrangeiros pode ser avassalador.

Poderiam ser ditas por qualquer empreendedor em dificuldades financeiras ou trabalhador desempregado, porém, na boca do presidente da República, essas afirmações funcionam como uma mensagem de desesperança. Revelam que Bolsonaro não sabe o que fazer em meio à pandemia do novo coronavírus, pois nem crise sanitária nem recessão se resolvem com negacionismo, mas com ações governamentais. Não chega a ser uma novidade, porque o presidente da República sempre disse que não entende de economia e que, nesse métier, quem daria as cartas seria o ministro da Economia.

Entretanto, o Ministério da Economia passou recibo de que não tem dinheiro em caixa. O governo brasileiro não honrou o pagamento da penúltima parcela de US$ 292 milhões para o aporte de capital no Novo Banco de Desenvolvimento (NDB), a instituição financeira criada pelos cinco países do Brics (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul). O prazo para a quitação da parcela terminou no último dia 3. Agora, o Brasil está inadimplente com o banco que ajudou a fundar e é um dos acionistas.

Por incompetência do Palácio do Planalto, o dinheiro para o pagamento da parcela da dívida com o Banco do Brics e outros compromissos com os bancos multilaterais ficou fora do projeto de lei que foi votado no fim do ano para remanejar despesas do Orçamento de 2020 e atender a demandas de obras de interesse do governo e emendas de parlamentares aliados. É um vexame: ficamos inadimplentes justamente no ano em que o brasileiro Marcos Troyjo assumiu a presidência da instituição por indicação do governo Bolsonaro, com US$ 3,5 bilhões em financiamentos aprovados para o Brasil, em 2020.

Fora de foco
No fim do ano, o argumento para votar correndo o texto de remanejamento das verbas do Orçamento do ano passado, na frente de votação de outros projetos importante — como o aumento do Bolsa Família ou a revisão da tabela do Imposto de Renda — foi o de que o governo precisava honrar os seus compromissos com organismos multilaterais e não podia ficar com a imagem arranhada na comunidade internacional.

Não à toa, o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), subiu nas tamancas ontem. O Ministério da Fazenda tentou responsabilizar o Congresso, mas foi a própria base do governo que manobrou para que não houvesse convocação extraordinária durante o recesso parlamentar. A prioridade do Palácio do Planalto é a disputa pelo controle das Mesas da Câmara e do Senado e, para os candidatos governistas, reunir o Congresso daria palanque para a oposição.

Mesmo assim, Bolsonaro se faz de vítima: “Queria mexer na tabela de Imposto de Renda. Esse vírus potencializado pela mídia que nós temos, essa mídia sem caráter que nós temos. É um trabalho incessante de tentar desgastar para retirar a gente daqui para voltar alguém para atender os interesses escusos da mídia”, disse. Assim, o presidente passou recibo de que não está fazendo as entregas que deveria, depois de dois anos de mandato.

Talvez por isso tenha sido organizada a sua “visita técnica” ao Ministério da Saúde, que durou quase duas horas. Segundo o ministro Eduardo Pazuello, Bolsonaro se inteirou das providências que estão sendo tomadas para comprar vacinas, agulhas e seringas para a campanha de vacinação contra a covid-19. O presidente da República saiu da reunião sem dar entrevistas. Moral da história: continuamos sem saber quando começará a campanha de vacinação.

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Luiz Carlos Azedo: O ano que não começou

No calendário do Executivo, o terceiro ano de mandato é o das entregas. Pelo andar da carruagem, até aqui, Bolsonaro levou o governo no gogó

2021 é uma espécie de ano que ainda não começou, perdoem-me o trocadilho com o título do livro de Zuenir Ventura, 1968: o ano que não terminou. Talvez, o sinal mais emblemático de que ainda estamos vivendo no ano passado sejam os passeios do presidente Jair Bolsonaro em Guarujá (SP), nos quais voltou a provocar aglomerações e circular sem máscaras com assessores e seguranças da Presidência. Mais déjà-vu, impossível. 2020 foi um ano perdido, com 196 mil mortos pela covid-19, e parece que não quer acabar.

Para a maioria da população, o ano somente vai começar quando a vacina chegar. O negacionismo do presidente Jair Bolsonaro e suas declarações sobre a real necessidade de as pessoas se vacinarem são uma cortina de fumaça para a incompetência do seu governo no enfrentamento da crise sanitária. O aumento exponencial do número de casos no mês de dezembro é um recado claro de que é impossível restabelecer plenamente as atividades econômicas sem a imunização em massa da população. A chegada do vírus mutante da Inglaterra é uma preocupação a mais, pela velocidade de sua propagação.

O tempo, porém, não corre igual para todo mundo. Por exemplo, para alguns ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) — Alexandre de Moraes, Ricardo Lewandowski, Gilmar Mendes e Marco Aurélio Mello —, que resolveram voltar a trabalhar em janeiro, em pleno recesso, o ano começou mais cedo. No Congresso, o ano só começará com a eleição das Mesas da Câmara e do Senado.

Pega fogo a disputa entre o líder do Centrão, Arthur Lira (PP-AL), apoiado pelo presidente Bolsonaro, e Baleia Rossi (MDB-SP), o candidato de Rodrigo Maia (DEM-RJ) à sua sucessão no comando da Câmara, que, ontem, recebeu o apoio formal da maioria da bancada do PT. Lira ainda é o favorito, mas ninguém ganha eleição de véspera. No Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP) tenta emplacar o senador Rodrigo Pacheco (DEM-MG) na Presidência, mas esbarra nas candidaturas do MDB, que tem quatro postulantes cabalando votos: Simone Tebet (MS), presidente da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ); Eduardo Braga (AM), líder da bancada; Fernando Bezerra (PE), líder do governo no Senado; e Eduardo Gomes (TO), líder do governo no Congresso. Quem conseguir mais apoio será o candidato de toda a bancada da legenda, pactuaram.

Entregas

No calendário do Executivo, o terceiro ano de mandato é o das entregas. Pelo andar da carruagem, até aqui, Bolsonaro levou o governo no gogó. Além da vacina, não entregou a reforma tributária, as privatizações, a reforma administrativa, a retomada do crescimento etc. Manteve sua popularidade em plena pandemia muito mais em razão do auxílio emergencial do que das suas realizações, à custa da expansão exponencial do deficit fiscal. Como tem a pretensão de se reeleger, agora começará uma corrida contra o relógio, porque o tempo que lhe resta de mandato cada vez será o recurso mais escasso no governo.

No calendário das entregas, a vacina é a principal demanda da população. Seu ano de entregas somente vai começar quando as pessoas forem imunizadas. Mesmo assim, uma parcela enorme da população continuará desempregada, porque a economia somente deve entrar em recuperação no segundo semestre. Sem auxílio emergencial, a vida não será fácil para quase 68 milhões de brasileiros que receberam o benefício no ano passado. Muitos terão que se reinventar, porque as atividades econômicas estão passando por muitas transformações.

Com a pandemia, o trabalho remoto e a concentração de capital avançaram bastante. A maioria das empresas que sobreviveram mudou suas operações, em maior ou menor grau, impactando outras atividades. Por exemplo, o mercado imobiliário e as companhias de aviação sofreram impactos irreversíveis a curto prazo. A concentração de capital também é visível a olho nu, basta entrar num shopping center e ver as lojas que fecharam e as que estão sendo abertas. As empresas de logística também se beneficiaram tremendamente do comércio eletrônico.

Como em todo ano-novo, porém, somos passageiros da esperança. Toda crise é sinônimo de oportunidades. Elas aparecem e é preciso agarrá-las com as duas mãos. Ciência e tecnologia, ao longo da história, sempre abriram novos horizontes para a humanidade. Não será diferente agora. Que 2021 venha logo para todos.

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Ricardo Noblat: Sem seringas e agulhas, governo revoga a lei da oferta e da procura

E segue o baile

Por seis meses, dormiu sem resposta em uma gaveta do Ministério da Saúde o ofício onde o Ministério da Economia perguntava se tinha interesse ou não em comprar da China seringas e agulhas para a aplicação de vacinas contra o coronavírus.

Só no fim do ano passado, por meio de pregão eletrônico, foi que o Ministério da Saúde, às pressas, tentou comprar 331 milhões de conjuntos desses produtos. Conseguiu apenas 7,9 milhões. O presidente Jair Bolsonaro alegou que o preço subira muito.

Que fazer então o quê? Contrariar a lei da oferta e da procura que determina a formação de preços no mercado. Ela diz que quando há muita procura por um produto, o preço sobe. Quando cai a procura, o preço baixa. É assim que funciona.

A pedido do Ministério da Saúde restou ao governo Bolsonaro, por meio de portaria da Secretaria de Comércio Exterior do Ministério da Economia, restringir a venda para outros países de seringas e agulhas fabricadas no Brasil. Dane-se a lei do mercado, ora!

Nas redes sociais, o Ministério da Saúde havia chamado de “fake news” notícias sobre a dificuldade do governo de comprar seringas. Mas seu fracasso no processo de compra foi o argumento apresentado para pedir o veto às exportações.

Segue o baile!

Baleia Rossi será o candidato do PT a presidente da Câmara

Eleição será marcada por traições

2021 começará mal para o presidente Jair Bolsonaro caso o PT, logo mais à tarde, confirme seu apoio a Baleia Rossi (MDB-SP), candidato a suceder Rodrigo Maia (DEM-RJ) na presidência da Câmara dos Deputados a partir de 1º de fevereiro próximo.

Restará a Arthur Lira (PP-AL), candidato de Bolsonaro, apostar em traições a Rossi, o que sempre será possível. Para eleger o presidente em primeiro turno são necessários 257 votos de um total de 513. O voto é secreto.

Com a adesão do PT, o grupo comandado por Maia reúne 11 partidos – PT, PSL, MDB, PSB, PSDB, DEM, PDT, Cidadania, PV, PC do B e Rede. Juntos, eles somam 269 votos. Ao grupo ainda poderão se juntar o NOVO e o PSOL.

Lira conta com o apoio do PP, PL, PSD, Republicanos, Solidariedade, PTB, Pros, PSC, Avante e Patriota que, juntos, somam 204 votos. Ou seja: 65 votos a menos do que tem hoje o grupo de Maia. O Podemos (10 deputados) deverá aderir a Lira.

A bancada de deputados federais do PT se reunirá a partir das 15 horas em sessão virtual. Lula está em Havana para as filmagens de um documentário sobre sua trajetória política, mas se pôs de acordo com a decisão que será anunciada.

Tão logo seja, Rossi entrará em cena para agradecer o apoio e reafirmar o compromisso assumido de ceder ao PT uma vaga na direção da Câmara caso se eleja. O cargo cobiçado pelo PT é o de Secretário-Geral, o segundo mais importante.

Lira dará início nesta semana a uma maratona de viagens pelos Estados atrás de votos dissidentes. O governo tem jogado pesado para elegê-lo, mas ainda dispõem de muito para oferecer a quem se dispuser a votar em Lira.

O cargo de presidente da Câmara é vital para Bolsonaro, candidato à reeleição no ano que vem. O presidente da Câmara tem o poder de pôr em votação no plenário o que quiser e de retardar votações que não interessem ao governo.

Solitariamente, é ele que aceita a abertura de processo de impeachment contra o presidente da República. E é isso o que Bolsonaro mais teme. Cobiçar votos de traidores implica em pagar mais caro por eles, o que costuma desagradar os demais.


Elio Gaspari: O Apocalipse Já de Bolsonaro

Depois do festival de bobagens de 2020, governo começar o novo ano poupando a plateia de teorias conspiratórias, novas catástrofes e bodes expiatórios

Em agosto de 2019, quando Alberto Fernández venceu as primárias para a Presidência da Argentina, Jair Bolsonaro resolveu atravessar a fronteira para escorregar numa casca de banana em terras alheias:

“Não esqueçam do que, mais ao Sul, na Argentina, aconteceu nas eleições de ontem. A turma da Cristina Kirchner, que é a mesma de Dilma Rousseff, que é a mesma de Hugo Chávez, de Fidel Castro. (...) Se essa esquerdalha voltar aqui na Argentina, nós poderemos ter no Rio Grande do Sul um novo estado de Roraima”.

Era o tempo em que venezuelanos atravessavam a fronteira e vinham para o Brasil. Hoje os brasileiros gostariam de dar um pulinho na Argentina. Lá, desde a semana passada, a população está sendo vacinada contra a Covid.

Virou o ano, o Brasil não tem vacinas, a Anvisa do almirante e o ministério da Saúde do general estão atordoados pelo negacionismo que Bolsonaro impôs ao seu governo. Ganha uma fritada de morcego do mercado de Wuhan quem souber o que fez o comitê interministerial criado em março para lidar com a pandemia.

Na exortação de agosto de 2019, Bolsonaro mostrou o lado apocalíptico de sua retórica. Quando ele falou na “gripezinha”, quando defendeu as virtudes da cloroquina e até mesmo quando classificou a segunda onda da pandemia de “conversinha”, manipulava a ignorância num processo de simples empulhação. Se tivesse razão (e não a tinha), as coisas poderiam melhorar. Quando falou num possível êxodo de argentinos, manipulava o apocalipse, e aí está o perigo, pois a Constituição lhe assegura mais dois anos de mandato.

O catastrofismo tem algo de impessoal. Quem anuncia catástrofes dissocia-se dos problemas. O capitão despediu-se de 2020 no meio da segunda onda de contágio, encostando nos 200 mil mortos. Aproveitou a oportunidade para anunciar que “nós podemos trazer o caos para cá” com “essa política de fechar”: “Esse inferno, essa assombração, está voltando, por irresponsabilidade de fechar tudo .”

Conversa velha. Em março, quando havia apenas um morto, Bolsonaro dizia que “se ficar todo mundo maluco, as consequências serão as piores possíveis”. Ninguém ficou maluco. Ele acrescentava: “Tem locais em alguns países em que já tem saques acontecendo, isso pode vir para o Brasil, pode ter aproveitamento político em cima disso”. Salvo os desordeiros que organizam aglomerações, nada disso aconteceu.

O profeta da catástrofe sempre tem um medo. Bolsonaro explicitou o seu: “Está havendo uma histeria. Se a economia afundar, afunda o Brasil. (...) Se acabar a economia, acaba qualquer governo. Acaba o meu governo. É uma luta pelo poder”.

Quando surgiu um boato delirante de decretação do estado de sítio, Bolsonaro desmentiu-o, com uma ressalva: “Ainda não está no nosso radar isso, não.” Não estava? Na semana seguinte, diante das manifestações que aconteciam em Santiago, profetizou:

“O que aconteceu no Chile vai ser fichinha perto do que pode acontecer no Brasil. Todos nós pagaremos um preço que levará anos para ser pago, se é que o Brasil não possa ainda sair da normalidade democrática que vocês tanto defendem. (...) O caos está aí na nossa cara”.

Um dia, Bolsonaro viu o caos e divulgou-o: Era um vídeo que mostrava a central de abastecimento de Belo Horizonte, deserta. “São fatos e realidades que devem ser mostradas”, escreveu o presidente. Era mentira e desculpou-se.

Na tenebrosa reunião do ministério de abril, Bolsonaro expôs seu medo:

“A desgraça tá aí. Eles vão querer empurrar essa ... essa ... essa trozoba pra cima da gente.”

Não foi Bolsonaro quem criou o vírus, nem foi o vírus quem inspirou o almirante da Anvisa e o general da Saúde para criarem uma situação na qual faltam vacinas, seringas, agulhas e sabe-se lá mais o quê.

Depois do festival de bobagens de 2020, esses doutores poderiam começar o novo ano poupando a plateia de teorias conspiratórias, novas catástrofes e bodes expiatórios. Como são todos militares, podem recordar o exemplo do general Dwight Eisenhower na véspera do desembarque Aliado na Normandia, em 1944. Ele redigiu uma curta nota para a hipótese do fracasso.

Elogiava todo mundo e concluía: “Se alguma culpa deve ser atribuída à tentativa, ela é só minha”.

O tenente alemão

No início da manhã de 6 de junho de 1944, o tenente alemão Cornelius Tauber estava na Normandia e viu o início do desembarque dos Aliados.

Ele esperava que as coisas acontecessem como nas guerras passadas e surpreendeu-se: “Não vieram cavalos. Toda aquela tropa e nenhum cavalo.”

A logística dos Aliados não incluía quadrúpedes, só veículos e tanques. (Em 1941, quando a Alemanha invadiu a Rússia, seu Exército ainda dependia de 600 mil cavalos.)

O general e os oficiais que Bolsonaro botou no ministério da Saúde ficaram sem vacinas e seringas. Achavam que, como grandes compradores, estavam numa posição em que poderiam impor condições aos fornecedores. Como disse o capitão:

“O Brasil tem 210 milhões de habitantes, um mercado consumidor de qualquer coisa enorme. Os laboratórios não tinham que estar interessados em vender para a gente?”

Se Bolsonaro tivesse feito essa pergunta ao economista Paulo Guedes, teria descoberto o tamanho de seu terraplanismo econômico. Segundo a lei da oferta e da procura, quando há muita oferta, manda quem compra, mas quando há muita procura, manda quem vende. Com sua experiência no mundo do papelório, Guedes poderia lhe explicar também os mecanismos de condicionantes para compras antecipadas.

Mando, logo existo

Para quem não sabe, existe um Comitê para Gestão da Rede Nacional para a Simplificação do Registro e da Legalização de Empresas e Negócios. A girafa mora na capitania do ministro Paulo Guedes e decidiu criar o “licenciamento urbanístico integrado”.

Ele estabelece que obras de até 1.750 metros quadrados podem ser liberadas com a ajuda de um processo eletrônico.

Sabe-se que há muita roubalheira nas burocracias que liberam obras. Sabe-se também que o ministro Rogério Marinho, do Desenvolvimento Regional, deixou de ser flor do orquidário de seu colega Paulo Guedes. Não custava ter ouvido alguns interessados, e não só alguns operadores do mercado imobiliário.

Eremildo, o idiota

Eremildo é um idiota e acha que os ministros do Supremo são todos infalíveis. Ele se assustou com a saia justa revelada pelo ministro Marco Aurélio: a sinopse de notícias enviadas aos doutores sumiu com duas reportagens que tratavam da operação fura-fila das vacinas. Armada em nome da Corte.

O que o cretino não entende é por que os ministros precisam de sinopses das notícias. Como ele é um idiota, talvez precisem do mimo. Nesse caso, porque não o colocam na rede, para usufruto de quem lhes paga os salários?