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Luiz Carlos Azedo: Bolsonaro e o mito de Sísifo
Como disse Camus, “sempre houve homens para defender os direitos do irracional”. O problema é quando se trata do presidente da República
O consagrado escritor francês Albert Camus foi um existencialista, para quem o homem vive em busca de sua essência, do seu sentido, e encontra um mundo desconexo, ininteligível, guiado por religiões e ideologias políticas. Num de seus ensaios filosóficos, Camus classifica Sísifo, um dos grandes personagens da mitologia grega, como um herói absurdo. “Tanto por causa de suas paixões como por seu tormento. Seu desprezo pelos deuses, seu ódio à morte e sua paixão pela vida lhe valeram esse suplício indizível no qual todo seu ser se empenha em não terminar coisa alguma. É o preço que se paga pelas paixões desta terra”, resumiu.
Os deuses condenaram Sísifo a rolar incessantemente uma rocha até o cume de uma montanha, de onde a pedra se precipitava por seu próprio peso. “Imaginaram que não haveria punição mais terrível que o trabalho inútil e sem esperança”, afirma Camus, que publicou O Mito de Sísifo em 1942. Nessa obra, destaca o mundo imerso em irracionalida- des. “Ou não somos livres, e o responsá- vel pelo mal é Deus todo-poderoso, ou somos livres e responsáveis, mas Deus não é todo-poderoso”, questionava.
Àquela época, em plena Segunda Guerra Mundial, o mundo parecia mesmo absurdo: a guerra, a ocupação da França, o triunfo aparente da violência e da injustiça, tudo se opunha ao humanismo e à ideia de civilização. O trabalho de Sísifo, ao empurrar incessantemente uma pedra até o alto da montanha, até ela tornar a cair, é uma analogia perfeita com o esforço empreendido por profissionais da saúde, prefeitos e governadores para combater a pandemia do novo coronavírus: a covid-19. Entretanto, esse não é um trabalho inútil e sem esperança, como no caso do mito grego. É uma batalha que acabará sendo ganha, apesar de tudo.
Como disse Camus, porém, “sempre houve homens para defender os direitos do irracional”. O problema é quando se trata de um governante, como o presidente Jair Bolsonaro, que combate as medidas de isolamento social e mobiliza seus aliados para sabotar os esforços dramáticos que estão sendo realizados para evitar que a pandemia mantenha sua escalada, que pode chegar a mais de 500 mil mortos em julho, segundo estimativas dos principais centros de estudos epidemiológicos do mundo.
Liminares
A polêmica do momento é a liminar do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Kassio Marques, o mais novo da Corte, indicado por Bolsonaro, que autoriza o funcionamento de templos religiosos durante a pandemia, mesmo contrariando as medidas de restrição de circulação de pessoas e aglomerações adotadas por prefeitos e governadores de cidades e estados nos quais a pandemia saiu do controle. Apesar de o Sistema Único de Saúde (SUS) estar entrando em colapso, por falta de leitos, respiradores e insumos para atender tantos infectados graves, o ministro acolheu pedido da Associação Nacional de Juristas Evangélicos, apresentada em junho do ano passado, para libertar os cultos.
Houve reação entre seus colegas do Supremo. Além das críticas públicas do decano Marco Aurélio Mello, ontem, o ministro do STF Gilmar Mendes, ao negar uma ação do PSD, manteve o decreto do governador de São Paulo, João Doria (PSDB), que restringiu as atividades religiosas de igrejas no estado. Contrariou a decisão de Kassio Marques, que havia liberado celebrações presenciais em todo o país. À tarde, o procurador-geral da República, Augusto Aras, aliado de Bolsonaro e cotado para a vaga do ministro Marco Aurélio Mello, que está prestes a se aposentar, protocolou no Supremo um pedido para retirar de Gilmar Mendes e transferir para Kassio Marques a ação do PSD contra a proibição de cultos e missas coletivas em São Paulo, porque é relator de uma ação mais antiga: a do PSD é de março deste ano.
O presidente do STF, ministro Luiz Fux, decidiu pôr o assunto em votação amanhã, na reunião plenária da Corte. A decisão de Kassio Marques, a pretexto de garantir a liberdade religiosa, está em contradição com a jurisprudência do Supremo, que atribuiu aos estados e municípios autoridade para fixar medidas restritivas de enfrentamento da pandemia, inclusi- ve, o fechamento de templos e igrejas.
Cristovam Buarque: Olhe a responsabilidade, gente
Sem o PT, pode não chegar ao segundo turno, só o PT, pode não ganhar no segundo
Nesta semana, a reforma ministerial mostrou que Bolsonaro já está trabalhando para o pós-segundo turno, enquanto os líderes e partidos de oposição continuam no pré-primeiro. Com o novo Ministro da Defesa, ele deseja controlar as Forças Armadas; com o novo Ministro da Justiça busca o controle sobre as polícias estaduais; com a liberação da compra e porte de armas, equipa sua milícia paralela. Com Forças Armadas, polícias e milícias, Bolsonaro passa a ter forças armadas nas ruas, para contestar derrota por pequena margem de eleitores, caso não consiga argumento para contestar o resultado na Justiça Eleitoral.
Enquanto isto, as oposições continuam divididas entre os possíveis candidatos que depois disputarão entre eles qual vai ao segundo turno. Estes embates deixam marcas que poderão levar outra vez a abstenções e votos nulos no segundo turno, como aconteceu em 2018. Difícil imaginar os eleitores do PT votando em Ciro ou outro candidato, e eleitores do Ciro e de outros candidatos votando no Lula ou outro do PT, salvo se fosse construída uma aliança ampla de todos desde o primeiro turno.
Felizmente, tudo indica que o exército não está aceitando o papel de milícia do Bolsonaro, e alguns dos candidatos pela oposição assinaram um manifesto conjunto em defesa da democracia. Mas todos que percebem as consequências da reeleição do atual governo sobre o futuro do Brasil, deveriam se encontrar em um debate franco sobre qual deles tem mais chance de vencer a eleição; também quais as qualidades, erros e méritos que se reconhecem; em que princípios estariam unidos no governo seguinte. Esta reunião poderia ter a participação de entidades da sociedade civil, como ocorreu em momentos decisivos da história. Poderia inclusive ser presidida por uma ou mais destas entidades.
Pena que a política é mais dominada pela arrogância do otimismo do que pela consciência dos riscos. Cada candidato já se considera com um pé no segundo turno, e tem confiança que unirá os eleitores dos que ficaram para trás. Imaginaram isto em 2018, mas nem a boa qualidade do candidato do PT foi suficiente para evitar a rejeição que o partido tinha. Pode ser diferente agora, se o candidato for Lula e o PT tiver rejeição menor, sobretudo depois da anulação Lava Jato de Curitiba; ainda mais com o reconhecimento oficial de que houve parcialidade do juiz contra Lula. Mesmo assim, não é claro se ele e o PT teriam menos rejeição. É possível que mesmo sabendo o que Bolsonaro representa, muitos eleitores ficarão em casa, ou viajarão para não votar, ou votarão nulo, induzidos pela ideia divulgada pela própria oposição, de “nem Bolsonaro, nem PT”. Possível também que eleitores do PT façam agora o que foi feito com Haddad em 2018, anulando o voto e se abstendo.
Estes líderes precisam entender que, divididos, dificilmente qualquer deles tomará o lugar do candidato do PT, mas o PT deve entender que, solitário, dificilmente ganhará no segundo turno se não tiver o apoio dos outros candidatos e partidos. Sem o PT, pode não chegar ao segundo turno, só o PT, pode não ganhar no segundo.
Os candidatos e líderes de partidos que se opõem à estratégia da reeleição de Bolsonaro têm diante deles a imensa responsabilidade de não falharem por arrogância, por vaidade, preconceito. Não podem neste momento colocar seus partidos e suas propostas na frente do interesse maior da democracia e do futuro do país. É preciso unidade com um candidato de baixa rejeição que leve a uma vitória expressiva, cale os fanáticos e desarme as milícias, oficiais ou não.
*Cristovam Buarque foi senador, governador e ministro
Luiz Carlos Azedo: A Páscoa na pandemia
O presidente da República desperdiça seu ativo mais valioso: o tempo do mandato. É impressionante a falta de foco e o empenho em desconstruir certos consensos
Antes de mais nada, feliz Páscoa para todos. É uma data ecumênica por sua própria origem, pois foi ressignificada pelos cristãos como um momento de renovação das esperanças. A origem da Páscoa é o Pesach, a comemoração judaica da libertação dos hebreus da escravidão do Egito. Narrada nos Pentateucos, os primeiros cinco livros da Bíblia, em hebraico, a palavra significa “passagem” e faz menção ao anjo da morte no Egito — a décima praga, conforme a narrativa bíblica. A festa foi reinventada pelos cristãos, passando a se remeter à crucificação e à ressurreição de Cristo.
“E, se Cristo não ressuscitou, logo logo é vã a nossa pregação, e também é vã a vossa fé”, diz o apóstolo Paulo, em I Coríntios 15:14. Na fé católica, foi por meio da ressurreição que a humanidade teve a redenção de seus pecados. Jesus Cristo sacrificou-se para redimir o povo e dar-lhe uma nova chance de salvação. No seu sacrifício, o poder de Deus teria se manifestado.
Estamos encerrando a Semana Santa sem procissões nem missas campais, porém, plena de simbolismo. O Brasil vive uma das maiores tragédias de sua história, com uma média de mais de 3 mil mortos por dia nas últimas semanas, em razão do descontrole da pandemia da covid-19. Existe uma energia humana nos subterrâneos dessa tragédia social que, em algum momento, transbordará para as ruas. Essa resiliência, que seria traduzida nas cerimônias religiosas tradicionais, de alguma forma, acabará se transformando em manifestação política.
Além do agravamento da crise sanitária, também há desorganização da economia. Não estamos falando da redução das atividades econômicas em razão do distanciamento social, mas da desestruturação das contas públicas e da falta de um projeto de retomada do crescimento econômico. É um problema anterior à pandemia, mas que se agravou com ela, principalmente agora, com a aprovação de um Orçamento da União completamente fora da realidade, que agrava as dificuldades já existentes e cria novos problemas, contratados para o pós-pandemia.
Perda de tempo
Há um estresse político criado por arroubos autoritários e tentativas de ruptura do pacto federativo da Constituição de 1988. À época da Constituinte, como tudo estava em discussão, havia moedas de troca suficientes para construção dos acordos entre União, estados e municípios. Agora, uma das dificuldades para aprovação da reforma tributária, por exemplo, é a escassez dessas moedas. O xis da questão acaba sendo sempre a polêmica sobre a arrecadação do ICMS na origem ou no destino das mercadorias, além dos termos da partilha das receitas dos impostos entre os entes federados.
O presidente da República desperdiça seu ativo mais valioso: o tempo do mandato. É impressionante como a falta de foco e o empenho em desconstruir certos consensos políticos — na política externa e na Defesa, no meio ambiente e na segurança pública, no respeito aos direitos humanos e às minorias —, desloca a ação do governo dos verdadeiros problemas do nosso desenvolvimento. A janela de oportunidade das reformas, o primeiro ano de mandato, foi desperdiçada. Agora, em plena pandemia, antecipou-se a disputa eleitoral, porque Bolsonaro conseguiu fazer com que sua reeleição subisse no telhado.
A expectativa de poder está se deslocando de Bolsonaro para a oposição. Mesmo com os desgastes causados pela Lava-Jato, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) se coloca na arena em vantagem, ao comparar suas realizações de governo com as de Bolsonaro. A última proeza do presidente da República foi unir os demais pré-candidatos, no episódio de demissão do general Fernando Azevedo do Ministério da Defesa e dos comandantes da Marinha, do Exército e da Aeronáutica. O governador paulista João Doria (PSDB), o ex-governador cearense Ciro Gomes (PDT), o ex-ministro da Saúde Henrique Mandetta (DEM), o empresário João Amoedo (Novo) e o comunicador Luciano Huck (sem partido) mandaram o recado: Bolsonaro, não! Podem não se unir no primeiro turno, mas estão contra a reeleição.
Luiz Carlos Azedo: Como no quartel de Abrantes
A crise militar foi pura perda de tempo, tirou o foco do principal problema do país: a pandemia da covid-19, que ontem registrou novo recorde, 3.869 óbitos em 24 horas
A frase “tudo como dantes no quartel de Abrantes” é uma herança lusitana. Chegou ao Brasil em 1808, a bordo dos navios que trouxeram a família real e sua corte para o Rio de Janeiro. Surgiu durante a invasão de Napoleão Bonaparte à Península Ibérica. Portugal havia se oposto ao Bloqueio Continental, que obrigava o fechamento dos seus portos a qualquer navio inglês. Em 1807, o general Jean Androche Junot, braço-direito de Napoleão, atravessou a fronteira com a Espanha e ocupou Abrantes, a 152 quilômetros de Lisboa, na margem do rio Tejo. Lá, instalou seu quartel-general e, meses depois, se fez nomear duque d’Abrantes.
Com a fuga do príncipe-regente Dom João VI para o Brasil, o general francês praticamente não enfrentou oposição. Isso despertou a ironia popular, registrada por Orlando Neves no Dicionário de Expressões Correntes (Editorial Notícias, Lisboa): “‘Tudo como dantes, quartel-general em Abrantes”. Esse é o saldo da crise militar provocada pela demissão do ex-ministro da Defesa Fernando Azevedo e dos comandantes militares do Exército, Edson Leal Pujol; da Marinha, Ilques Batista; e da Aeronáutica, tenente- brigadeiro Antônio Carlos Bermudez.
Ontem, o presidente Jair Bolsonaro escolheu os novos comandantes militares, apresentados pelo novo ministro da Defesa, general Braga Netto: Exército, general Paulo Sérgio Nogueira de Oliveira; Marinha, almirante de esquadra Almir Garnier Santos; e Aeronáutica, tenente- brigadeiro do ar Carlos Baptista Junior. A péssima repercussão da forma como Azevedo e os comandantes militares foram despachados para casa levou a uma solução de compromisso: Bolsonaro aceitou o nome do general Paulo Sérgio, autor da entrevista ao Correio Braziliense, de domingo passado, que tanto o desagradou, mas levou a melhor na Marinha e na Aeronáutica, cujos comandantes serão mais afinados com o Palácio do Planalto do que os antecessores.
O novo ministro da Defesa, general Braga Netto, saiu do episódio desgastado com seus colegas. Foi a primeira vez, desde 1985, que os comandantes das três Forças Armadas deixaram o cargo ao mesmo tempo sem ser em período de troca de governo. A escolha do general Paulo Sérgio foi uma imposição do Alto-Comando do Exército. Com 62 anos, cearense de Iguatu, é general do Exército desde março de 2018. Serviu em unidades de infantaria em João Pessoa (PB), Garanhuns (PE), Belém (PA) e Juiz de Fora (MG). Antes de chefiar o Departamento de Pessoal do Exército, foi comandante militar do Norte, em Belém (PA). Ao contrário de Pujol, Paulo Sérgio mantém ativa presença nas redes sociais.
Perda de tempo
Almir Garnier Santos, 60 anos, é almi- rante de esquadra desde novembro de 2018. Carioca de Cascadura (RJ), é especialista em guerra eletrônica e logística naval. Tem traquejo político, tendo assessorado os ex-ministros da Defesa Celso Amorim, Jaques Wagner, Aldo Rebelo e Raul Jungmann. Carlos de Almeida Baptista Júnior é tenente-brigadeiro desde março de 2018. Carioca, é filho do ex- comandante da Aeronáutica Carlos de Almeida Baptista. Serviu como adido adjunto de Defesa e Aeronáutica nos Estados Unidos e foi comandante da Base Aérea de Fortaleza. Em Brasília, foi assessor de Orçamento da Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência.
A crise militar foi pura perda de tempo, tirou o foco do governo do principal problema do país: a pandemia da covid- 19, que ontem registrou novo recorde: 3.869 óbitos em 24 horas. É a quinta vez que o país registra mais de 3 mil vítimas por dia. Enquanto isso, Bolsonaro continua combatendo prefeitos e governadores que adotam medidas de distanciamento social mais rígidas. Sabota os esforços do novo ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, e do presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-RJ).
Em tempo: Junot marchou tranquilamente para Lisboa. Na Praça do Rossio, em janeiro de 1808, hasteou a bandeira francesa, declarou extinta a Casa Real de Bragança e dissolveu o Exército português.
Luiz Carlos Azedo: É autoritarismo mesmo
Não se trata de uma guinada populista à vista, mas de um comportamento típico de governantes em apuros, que começam a recorrer à força do Estado contra a opinião pública
O professor e historiador Alberto Aggio é um estudioso da política latino-americana, seu livro Um lugar no mundo (Fundação Astrojildo Pereira/ Fondazione Instituto Gramsci) dedica especial atenção à discussão do conceito de populismo. É um crítico tanto de sua “banalização”, como um termo que expressa estilos políticos de caráter depreciável, quanto do seu uso como “teoria explicativa” do desastrado percurso histórico latino- americano rumo à modernidade, “na qual a presença do Estado na vida social e econômica se fixa como seu elemento mais negativo e que necessita ser superado ou destruído”. Na sua avaliação, o populismo emergiu num cenário de crise do liberalismo, buscava a construção de uma sociedade industrial e moderna, politicamente orientada pelo Estado, incorporando as massas à cidadania pela via dos direitos sociais. Foi “uma fuga para frente”.
Tratava-se de promover transformações sem rupturas violentas, revolucionárias, como em outros processos de industrialização. Interditou a via clássica de passagem à modernidade, caracterizada pela incorporação dos trabalhadores à democracia liberal. No caso brasileiro, o populismo emergiu após a Revolução de 1930, com Getúlio Vargas, e ganhou feições democráticas em seu segundo governo, na década de 1950. Caracterizou-se como um Estado de bem-estar social incompleto, com programa nacionalista que estatizava alguns setores da economia e legislação trabalhista e corporativista, que organizou e concedeu direitos sociais aos trabalhadores, mas também lhes retirou a autonomia.
O que isso tem a ver com o governo Bolsonaro? Nada! Por isso mesmo, não tem sentido as preocupações com uma possível “guinada populista” do atual governo. O risco é outro: a transformação de um governo bonapartista, com clara hegemonia de um determinado grupo de militares, num governo autoritário que confronta os demais Poderes e, de certa forma, o regime democrático no qual se instalou e funciona. O presidente Jair Bolsonaro não esconde de ninguém que seu espelho é o regime militar instalado após o golpe de 1964, que fará aniversário no último dia deste mês, cujas comemorações estão sendo preparadas por seus aliados, dentro e fora dos quartéis.
Desastre sanitário
No momento mais dramático da pandemia de covid-19, Bolsonaro insiste em suas teses negacionista, apesar de forçado a substituir o general Eduardo Pazuello no comando do Ministério da Saúde, em razão do seu fracasso. Colocou no cargo o médico cardiologista Marcelo Queiroga, que ainda não substituiu os militares neófitos em saúde pública corresponsáveis pelo desastre sanitário que estamos vivendo. Sua mais recente decisão sobre a pandemia foi entrar com uma ação contra governadores e prefeitos que adotaram o “toque de recolher”, que são medidas de restrição de circulação noturna dos habitantes das cidades nas quais a pandemia está fora de controle, preconizadas por sanitaristas, não se compara a um “estado de sítio”. Bolsonaro sabe que está afrontando o pacto federativo, a autonomia de estados e municípios. Sua intenção é responsabilizar o Supremo pela crise econômica provocada pela pandemia. Prefeitos e governadores também não são responsáveis pelo colapso sanitário e a crise econômica, a grande responsabilidade é do presidente da República, pessoal e indivisível.
Há outros fatos ainda mais graves em relação aos impulsos autoritários de Bolsonaro, como as ações da Advocacia-Geral da União (AGU), do Ministério da Justiça e da Polícia Federal com intuito de processar, investigar e prender oposicionistas. O uso político e abusivo desses aparatos de coerção do Estado para intimidar àqueles que criticam seu governo e sua atuação, com base numa anacrônica Lei de Segurança Nacional herdada da ditadura, é muito preocupante. Não, não se trata de uma guinada populista à vista, mas de um comportamento típico de governantes autoritários em apuros, que começam a recorrer à força do Estado para exercer o poder contra a opinião pública, sem considerar os direitos das minorias e a legitimidade do dissenso numa ordem democrática.
Luiz Carlos Azedo: Covid-19 traumatiza o Congresso
Bolsonaro continua sabotando os esforços de governadores e prefeitos para reduzir a propagação do vírus com medidas mais rígidas de isolamento social
A morte do senador Major Olimpio (PSL-SP) traumatizou o Congresso, principalmente o Senado, cujo presidente, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), decretou luto oficial de 24 horas no Legislativo. Na Câmara, o presidente Arthur Lira (PP-AL) restringiu ao máximo o funcionamento da Casa: proibiu reuniões presenciais das comissões e ampliou o trabalho em home office dos funcionários. Com a morte do terceiro senador por covid-19, a pressão sobre o presidente Jair Bolsonaro para uma mudança na política sanitária aumentou muito. Mesmo na base do governo, a insatisfação é generalizada.
Major Olimpio foi o terceiro senador a falecer vítima da doença, com a diferença de que, aos 58 anos, era bem mais jovem do que Arolde de Oliveira (PSD-RJ), que faleceu em outubro, aos 83 anos, e José Maranhão, de 87 anos, que morreu em fevereiro passado. Dois senadores também contraíram a covid-19, provavelmente na mesma reunião com prefeitos da qual participou Major Olimpio: Lasier Martins (Podemos-RS), que teve alta do Hospital São Lucas, em Porto Alegre, ontem, após 13 dias de internação; e Alessandro Vieira (Cidadania-SE), que deve receber alta hoje, depois de ser internado na semana passada.
Com a falta de empatia que o caracteriza, o presidente Jair Bolsonaro deu novas declarações colocando em dúvida as informações sobre ocupação de leitos de hospitais, além de criticar, mais uma vez, a política de isolamento social. Suas declarações geraram reações de governadores e prefeitos, ainda mais porque os hospitais, por causa das UTIs lotadas, estão começando a esgotar os estoques de oxigênio e medicamentos usados na intubação de pacientes. Numa live, Bolsonaro anunciou que a nomeação de Marcelo Quei- roga para o Ministério da Saúde será publicada hoje no Diário Oficial da União. O novo ministro está tendo dificuldades para montar sua equipe de trabalho e terá de atuar com o grupo de militares que assessoravam o general Eduardo Pazuello, até que encontre co- legas dispostos a assumir a responsabilidade de combater a pandemia.
Bolsonaro continua sabotando os esforços de governadores e prefeitos para reduzir a propagação do vírus com medidas mais rígidas de isolamento social: “Tem um pessoal que continua insistindo no fique em casa e outros que querem trabalhar por ne- cessidade. Eu acho que ficar em casa é uma coisa bacana, quem não quer ficar de férias em casa aí? Mas pouquíssimas pessoas têm poder aquisitivo para ficar sem trabalhar”, disse. Insiste em res- ponsabilizar as medidas sanitárias pela crise econômica: “Temos no Brasil servidores públicos, civis e militares, que podem ficar em casa, que, por enquan- to, não veem sua remuneração, proventos, aposentadorias, pensões ameaçadas. Agora, uma grande parte dos brasileiros, os que vivem na formalidade, com carteira assinada, perde emprego, tem redução de salário.” Chegou a dizer que recorreria ao Supremo Tribunal Federal (STF) contra as medidas de isolamento, o que será mais um fator de tensão institucional, em nada contribuindo para o enfrentamento da crise sanitária.
Banco do Brasil
O presidente do Banco do Brasil (BB), André Guilherme Brandão, entregou o cargo ontem, por discordar da interferência do presidente Jair Bolsonaro na instituição. É mais uma baixa importante na equipe do ministro da Economia, Paulo Guedes, cada vez menos liberal e mais pragmática. É o segundo presidente do banco a deixar o cargo por divergências com o chefe do Executivo. Para evitar especulações sobre o perfil do novo presidente do banco, o Ministério da Economia anunciou que o cargo será assumido pelo atual diretor do BB Consórcios, Fausto de Andrade.
Bolsonaro quer reforçar o papel social do Banco do Brasil, sendo contrário ao fechamento de agências, apesar da informatização cada vez maior do sistema bancário. O presidente da Caixa, Pedro Guimarães, tem o perfil desejado por Bolsonaro, que não cansa de elogiá-lo pelo desempenho na distribuição do auxílio emergencial, apesar do alto número de fraudes já identificadas. Fausto de Andrade será o terceiro presidente do Banco do Brasil em pou- co mais de dois anos do governo Bolsonaro. Antes de Brandão, ocupou o cargo Rubem Novaes. O mercado e os funcionários temem a instrumentalização do banco para fins eleitorais.
Luiz Carlos Azedo: Pior momento de Bolsonaro
A estratégia de responsabilizar governadores e prefeitos pela crise sanitária, adotada por Bolsonaro, fracassou: 56% dos entrevistados o consideram incapaz de liderar
A pesquisa DataFolha de ontem confirmou o que mundo político já estava esperando: o governo Bolsonaro vive o seu pior momento, acumulando desgastes, principalmente em razão das suas atitudes negacionistas em relação à pandemia da covid-19, cujo descontrole assombra o mundo. Segundo o instituto, cresceu para 56% o número de brasileiros que consideram o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) incapaz de liderar o país. Em janeiro, eram 50%. A pesquisa caiu como uma bomba no Palácio do Planalto, a jaula de cristal na qual a bolha dos partidários do presidente da República nas redes sociais tem mais influência nas decisões do que todos os demais interlocutores do governo juntos.
Segundo o levantamento, o percentual de brasileiros que consideravam Bolsonaro capaz de liderar caiu de 46% para 42% de janeiro para março, com oscilação negativa no limite da margem de erro. Em abril de 2020, ele era considerado capaz de liderar o país por 52% dos brasileiros, em detrimento de 42% que o julgavam incapaz. Entre os que hoje julgam o presidente mais incapaz estão os mais ricos, que ganham acima de 10 salários mínimos (62%), os que têm curso superior (também com 62%) e moradores da região Nordeste, dos quais 63% julgam o presidente incapaz de liderar o Brasil. A base de apoio de Bolsonaro mais resiliente é formada por moradores das regiões Sul (51%) e Norte/Centro-Oeste (49%) e evangélicos 52%.
O desempenho de Bolsonaro na pandemia é que puxa sua avaliação para baixo: 54% dos entrevistados avaliam como ruim ou péssimo. Na pesquisa anterior, realizada em janeiro, esse índice era de 48%. Segundo o levantamento, 22% consideram ótima ou boa a performance do presidente da República na condução do enfrentamento à pandemia. O índice anterior era de 26%. Esse desempenho fortalece os aliados do governo no Congresso, que pediram a cabeça do general Eduardo Pazuello, defenestrado do Ministério da Saúde, mas não conseguiram emplacar no cargo o deputado Dr. Luizinho (PP-RJ), presidente da Comissão de Seguridade Social da Câmara. Bolsonaro nomeou o médico paraibano Marcelo Queiroga, presidente da Sociedade Brasileira de Cardiologia.
A estratégia de responsabilizar governadores e prefeitos pela crise sanitária, adotada por Bolsonaro duramente a crise sanitária, fracassou completamente: para 42% dos entrevistados, a responsabilidade é do presidente da República. Os demais responsáveis se- riam: governadores, 20%; e prefeitos: 17%. As atitudes de Bolsonaro contra o isolamento social e o uso de máscaras, e a falta de uma campanha publicitária nacional de mobilização contra a pandemia, fruto também do negacionismo, se refletem no grau de responsabilidade atribuída à própria população: 1%. No ranking dos mais empenhados na luta contra a covid-19, governadores (38%) e prefeitos (28%) deixam Bolsonaro (16%) na rabeira.
Resiliência
Mas que ninguém se iluda, mesmo assim, Bolsonaro tem uma base de apoio muito resiliente, o que ainda lhe assegura um piso confortável de aprovação para quem pretende disputar a reeleição. Por exemplo, em relação ao impeachment, o índice oscilou dentro da margem de erro: 53% eram contrários à abertura de impeachment em janeiro, ante 50% agora; 42% eram favoráveis àquela ocasião; agora, são 46%. A mesma coisa em relação à renúncia de Bolsonaro: 51% avaliam que não deveria renunciar, contra 45% favoráveis. São números desagradáveis, mas não são irreversíveis se o governo se reposicionar em relação à pandemia.
A aposta de Bolsonaro é de que a situação pode ser revertida com a vacinação em massa da população, que está muito atrasada, porém, o governo iniciou uma corrida para comprar imunizantes, todos os que forem possíveis. O atraso nas vacinas existe porque a prioridade era outra, o tratamento precoce com cloroquina. Em outra frente, o Ministério da Cidadania prepara a medida provisória do auxílio emergencial, que Bolsonaro pretendia levar pes- soalmente ao Congresso ainda ontem, mas não ficou pronta. Sua aposta é de que o auxílio mitigará os desgastes com a pandemia, ao possibilitar um alívio à chamada população de “invisíveis”, que perdeu as fontes de renda com a pandemia.
Luiz Carlos Azedo: Apagão logístico na Saúde
Queiroga assume o ministério deslumbrado com o cargo e alinhado com Bolsonaro, mas completamente perdido diante da gravidade da crise sanitária
O novo ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, assume o cargo em meio a um apagão logístico: faltam vacinas, mesmo com o escalonamento da programação, leitos, respiradores, oxigênio, material para intubação, sedativos e pessoal treinado em várias regiões do país. Em São Paulo, o estado com mais recursos, maior rede hospitalar e principal produtor de imunizantes do país, a situação é dramática, com uma morte a cada dois minutos. Queiroga fez, ontem, um discurso ambíguo, no qual defendeu a “política de saúde do presidente Jair Bolsonaro” e, ao mesmo tempo, destacou a importância das “evidências científicas” na condução da pasta, o que é uma contradição. Bolsonaro é contra as medidas de governadores e prefeitos para conter a propagação do vírus e evitar o colapso do Sistema Único de Saúde (SUS). Está deslumbrado com o cargo, mas completamente perdido diante da gravidade da situação.
Com a saída de Pazuello, não haverá uma transição, mas continuidade da política que estava sendo implementada por ele. Nenhuma mudança na equipe do ministério, formada por militares, foi anunciada. O novo ministro assumiu a pasta no dia em que o Brasil registrou 2.841 mortes por covid-19 nas últimas 24 horas, recorde absoluto desde o início da pandemia, e 84.362 novos casos, segundo o Conselho Nacional de Secretários de Saúde. Com isso, o número de vítimas fatais da doença chegou a 282.128, e o total de casos, a 11,603 milhões. Falta uma coordenação nacional de combate à pandemia, agravada pelo fato de que o presidente Bolsonaro estimula a desobediência civil e o desrespeito às medidas de isolamento social.
Rio Branco, Rio de Janeiro, João Pessoa, Macapá e Aracaju interromperam a aplicação da primeira dose da vacina contra a covid-19 porque o estoque acabou. Maceió suspendeu a imunização programada para ontem. Em Belford Roxo (RJ), milhares de pessoas se aglomeraram nos postos de vacinação sem conseguir receber a dose, todos idosos. Até agora, o Brasil vacinou cerca de 10 milhões de pessoas, o que equivale a 4,7% da população. É muito pouco, porque a chamada P1, originária de Manaus, já se espalhou por todo o país. Esse vírus mutante é responsável pelo novo perfil da pandemia, com taxa de contaminação mais alta e letalidade maior. Também está hospitalizando pacientes mais jovens, por longo tempo.
Falta de insumos
Em São Paulo, foram 679 novas mortes provocadas pela covid-19 em 24 horas, a maior taxa desde o início da pandemia. O estado totaliza 64.902 óbitos causados pelo coronavírus. Nessa escalada, será inevitável um lockdown em muitas cidades, pois 90% dos leitos de unidade de terapia intensiva (UTI) para covid-19 estão ocupados. O índice considera hospitais públicos e particulares. Na Grande São Paulo, a taxa média é ainda maior, 90,6%. Em todo o estado, 69 cidades já alcançaram 100% de ocupação de leitos de UTI. São 24.992 pessoas internadas, sendo 10.756 em UTIs e 14.236, em enfermaria.
No Rio Grande do Sul, foram 502 óbitos nas últimas 24 horas. É o maior registro diário em toda a pandemia. A taxa de ocupação dos leitos de UTIs estava em 109,6%. Dos 3.461 pacientes hospitalizados em leitos críticos, 2.534 são de pessoas confirmadas com covid (73,2%). Na rede privada, a situação é ainda mais grave: 135% das vagas de UTI adulto estão ocupadas. No Sistema Público de Saúde (SUS), a taxa é de 99%. Faltam equipamentos; os profissionais de saúde estão esgotados e adoecendo.
Em Mato Grosso, faltam respiradores. Em Várzea Grande, região metropolitana de Cuiabá, médicos que trabalham na Unidade de Pronto Atendimento (UPA) do Bairro Ipase desmontaram estetoscópios para usar a mangueira do aparelho como mangueira de oxigênio, já que o insumo está em falta. No Ceará, todos os hospitais da rede privada de Fortaleza estão em colapso, com 100% dos leitos de enfermaria e UTI ocupados. No Paraná, 28 hospitais de Curitiba e região estão em colapso, mesmo com o lockdown. Em Santa Catarina, faltam bloqueadores neuromusculares e anestésicos para a realização de intubação de pacientes em tratamento contra a doença. Acabaram os estoques de medicamentos, como Rocuronio, Propofol e Atracúrio.
Luiz Carlos Azedo: A crise continua
A troca de ministro não está ocorrendo para mudar a política sanitária ou porque Bolsonaro estava insatisfeito com Pazuello, mas para evitar a instalação de uma CPI na Saúde
O presidente Jair Bolsonaro indicou o médico paraibano Marcelo Queiroga, presidente da Associação Brasileira de Cardiologia, para o cargo de ministro da Saúde, no lugar do general de divisão da ativa Eduardo Pazuello, que deve voltar à caserna. Foi o desfecho de três dias de muita confusão e intensa fritura do militar, que atuou de forma desastrada à frente da pasta, seguindo cegamente a orientação do presidente da República durante a pandemia da covid-19. Queiroga assumirá o cargo sob forte desconfiança, depois da recusa da médica goiana Ludhmila Hajjar, que fora convidada por Bolsonaro, mas recusou o convite por discordar da orientação do chefe do Executivo.
O convite à cardiologista e intensivista do Hospital das Clínicas foi um tiro no pé. Hajjar pretendia promover um choque de gestão à frente do Ministério da Saúde, defendendo a criação de leitos e preparação das equipes de atendimento à covid-19; o apoio ao lo- ckdown decretado por governadores e prefeitos; a formação de um comitê de crise 24 horas para apoiar as demais autoridades do Sistema Único de Saúde (SUS); e mobilização das sociedades médicas, a rede de saúde privada e as empresas para combater a pandemia. A médica também é contrária ao uso de cloroquina e outros medicamentos sem eficácia comprovada no “tratamento precoce”, defendendo um protocolo unificado de atendimento aos pacientes de covid-19 que adote as melhores práticas comprovadas.
As conversas entre Bolsonaro e Hajjar, no domingo e ontem pela manhã, foram um desastre, por causa das divergências entre ambos e do fato de que os bolsonaristas fizeram intensa campanha de difamação contra a médica, que sofreu ameaças de morte e até tentativas de invasão do seu quarto no hotel de Brasília, onde pernoitou. Ingenuamente, estimulada por políticos e autoridades de quem tratou de covid-19, Hajjar imaginou que Bolsonaro estava disposto a mudar a orientação do Ministério da Saúde. Suas posições críticas em relação à pandemia eram públicas e conhecidas. Frustrada pelo fato de que o presidente não pretende mudar a orientação do Ministério da Saúde e assustada com os ataques que sofreu dos partidários do chefe do Planalto, Hajjar resolveu revelar à imprensa a conversa com Bolsonaro e denunciar as agressões dos bolsonaristas, reiterando, também, suas posições sobre o combate à pandemia.
Bolsonarista raiz
Com as horas contadas no cargo, Pazuello fez uma prestação de contas de sua atuação à frente da pasta na tarde de ontem. Focou na aquisição de vacinas contra covid-19, cujo atraso está sendo desastroso. Em nenhum momento reconheceu seu fracasso ou fez autocrítica. Na verdade, a troca de ministro não está ocorrendo para mudar a política do Ministério da Saúde ou porque Bolsonaro estava insatisfeito com Pazuello. O general foi defenestrado porque os líderes do Congresso exigiram sua substituição para evitar a instalação de uma CPI voltada a investigar a sua atuação à frente da pasta, como deseja a oposição.
Enquanto Pazuello concedia sua entrevista de despedida, Queiroga se reunia com Bolsonaro no Palácio do Planalto. Logo depois, o próprio presidente anunciou sua indicação: “Foi de- cidido, agora à tarde, a indicação do médico, doutor Marcelo Queiroga, para o Ministério da Saúde. Ele é presidente da Sociedade Brasileira de Cardiologia. A conversa foi excelente, já conhecia há alguns anos, então não é uma pessoa que tomei conhecimento há poucos dias. Tem tudo, no meu entender, para fazer um bom trabalho, dando prosseguimento em tudo que o Pazuello fez até hoje”, afirmou à porta do Palácio da Alvorada.
Queiroga é bolsonarista raiz, será o quarto ministro da Saúde desde o começo da pandemia da covid-19, há pouco mais de um ano; seus antecessores foram o médico e ex-deputado Luiz Henrique Mandetta (DEM-MS) e o médico oncologista Nelson Teich, além de Pazuello. Formado em medicina pela Universidade Federal da Paraíba, fez residência em cardiologia no Hospital Adventista Silvestre, no Rio de Janeiro. Tem especialização em hemodinâmica e cardiologia intervencionista. Indicado por Bolsonaro para ser um dos diretores da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), não chegou a ocupar o cargo, porque dependia ainda de aprovação do Senado. Assume para dar continuidade à política de Bolsonaro. Ou seja, a crise continua.
Marcelo Godoy: Oposição compara Bolsonaro ao general argentino Leopoldo Galtieri
Entre colegas de Pazuello, saída do ministério seria alívio, mas críticos não acreditam que ela diminua o estrago feito pela pandemia
Caro leitor,
a crise sanitária, as críticas à gestão de Jair Bolsonaro do combate à covid-19 e a decisão do ministro Edson Fachin de anular as sentenças que condenaram o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva reacenderam em generais desvinculados de Jair Bolsonaro o receio do retorno da esquerda ao poder. Alguns procuram se afastar do estigma de terem apoiado um governo que a oposição ora compara ao de Chaves, o coronel que governou a Venezuela, ora ao de outro militar, o general Leopoldo Galtieri, da Argentina.
O prócer do Exército argentino foi responsável por uma das maiores desmoralizações armadas do século passado: a derrota na Guerra da Malvinas. Esse desastre nacional retirou os militares da política do país, depois de a terem dominado por mais de 50 anos, de forma quase ininterrupta. Era 1982. Galtieri lançou mão de uma aposta: a invasão das Ilhas Falkland galvanizaria o país, unindo a nação vizinha em torno de seu governo. Não contava com a resposta britânica. Assim como os coronéis gregos não esperavam a reação turca quando, em 1974, resolveram se envolver na política cipriota.
Na análise dos descontentes com o governo, Bolsonaro e os generais que o apoiam criaram as condições para a crise quando trataram as decisões da Saúde como se nelas houvesse espaço para palpiteiros desinformados e inconsequentes. Nomearam um general amigo, paraquedista como Bolsonaro e tantos outros do Planalto, para cuidar do desafio. A manobra do grupo de amigos da Brigada Paraquedista parecia imaginar que o protagonismo de Eduardo Pazuello daria o crédito pela vitória sobre a pandemia a um general, inaugurando-lhe – quem sabe? – um futuro político, como senador ou governador.
Faltou combinar com o vírus. O Sars-Cov-2 não perdoou o descaso bolsonarista com a doença. Não são poucos os oficiais que se queixam do fato de que mantém em suas unidades protocolos rigorosos de segurança sanitária – ignorados no Planalto pelo presidente e seu entourage. Após um ano de pandemia, dificilmente, cada militar não conhece alguém – familiar ou não – que tenha sido atingido de forma grave pela doença.
Muitos tiveram colegas, amigos e familiares mortos; outros que sobreviveram ao coronavírus estão sequelados, com as perdas parciais da audição, do olfato ou do paladar, além do comprometimento da capacidade pulmonar e de locomoção. O coronel Ubiratan Ângelo, ex-comandante da PM do Rio, perdeu 70% da audição após passar 47 dias internado em razão da covid. Existe quem entrou em coma e dele não saiu até hoje. No Exército, entre os militares da ativa, o total de mortos é de cerca de 40. Mas quem suporta o maior peso da pandemia são os seus 77 mil homens da reserva.
Foi o caso do coronel Fanoel Santos, cavalariano da turma de 1981 da Academia Militar das Agulhas Negras. Ele é lembrado por seus ex-alunos do Centro de Preparação de Oficiais da Reserva (CPOR), de São Paulo, como um instrutor respeitado, duro, mas que estava sempre ao lado deles nos acampamentos e sabia o que estava fazendo. Com chuva ou frio, motivava a todos em suas “voltas pelo mundo”, da sede do CPOR à marginal do Tietê até retonar ao quartel, em Santana. “Ele era um cara que dava a cara a bater. Isso é uma tristeza para todos que o conheceram”, contou o jornalista Wilson Baldini Júnior, repórter do Estadão que teve Fanoel como seu instrutor em 1986.
Fanoel lutava contra a covid-19 desde dezembro. Tinha 62 anos e apoiava Bolsonaro. A doença o levou há uma semana. Há mortos e feridos aos borbotões pelo País e um general na Saúde e um capitão no Planalto que não visitam os hospitais para agradecer aos médicos e levar conforto aos doentes. Até o general Patton – aquele que esbofeteou um soldado com shell shock e foi interpretado no cinema por George C. Scott – visitava enfermarias para honrar seus heróis. E quem enfrentou o vírus, como pedia o presidente? Que palavra receberam do presidente? Um ‘e daí’? Um ‘eu não sou coveiro’. Eles merecem indiferença? Um líder não pode fazer pouco da vida de seus compatriotas.
Apoiadores de Bolsonaro lotam ruas, festas e praias para depois encher hospitais. Ocupam os mesmos leitos que tratam de quem se contaminou no trabalho ou pelo contato familiar. Ao ver o presidente comparecer de máscara a uma reunião no Planalto, na quarta-feira, um general ouvido pela coluna comemorou. Pensou que, talvez, a novidade sinalizasse para uma Presidência que procuraria a moderação, a fim de recuperar apoios que ameaçam cair no colo de sua nêmesis, o petista Lula. Sua ilusão durou algumas horas. A reação de Eduardo Bolsonaro ao aconselhar um uso heterodoxo das máscaras desvelou outra vez a natureza do governo. É conhecido o brocardo: o fruto não cai longe da árvore.
Se os militares sabem o que esperar de um governo Bolsonaro – aumentos salariais, verbas blindadas, diretorias de estatais e prestígio –, as incertezas sobre o seu futuro fazem com que se interessem sobre o que pensam as outras forças políticas que disputarão com o presidente a eleição de 2022. No PSDB, encontram a defesa da criação de uma Guarda Nacional, o que levaria ao afastamento das Forças Armadas de parte das operações de Garantia de Lei e Ordem. Fernando Henrique Cardoso também já deixou claro que considera um privilégio a manutenção da integralidade e da paridade nas aposentadorias.
E o PT? Em artigo recente, o ex-deputado federal José Genoino afirmou que não “há como separar as Forças Armadas da catástrofe que é o governo Bolsonaro”. Ele defendeu a introdução de uma regra de quarentena para que militares possam ocupar cargos públicos – a medida seria extensiva a juízes e promotores. Ela impediria, por exemplo, não só que Pazuello fosse ministro ainda sendo general da ativa, mas o obrigaria a estar um certo tempo na reserva antes de ocupar a função. A medida encontra apoio de outros líderes do partido, como o ex-governador mineiro Fernando Pimentel.
Não só. Genoino defende a adoção do modelo americano, com cada Força tendo um chefe de Estado-Maior subordinado ao ministro da Defesa, e a criação de uma Guarda Costeira e de uma polícia de fronteiras – como nos EUA –, para retirar as Forças Armadas das ações de Garantia de Lei e Ordem. Há ainda receios entre os petistas de que Bolsonaro se radicalize diante da perspectiva de derrota para um candidato do centro ou de esquerda em 2022. O próprio presidente reforça esse temor, como o leitor viu no editorial Nem o Diabo, publicado na edição de domingo do Estadão.
A crise na Saúde pode não ser suficiente para derrotar Bolsonaro. O desastre militar fez Galtieri perder o poder. Entregar a cabeça de Pazuello para se salvar do pesadelo que seu nome evoca não fará diferença para um presidente que não sabe a distinção entre comandar e governar. É verdade que a retirada do general da Saúde agradaria aos colegas que se incomodam com sua presença no ministério –há semanas já havia até no Planalto quem reconhecesse o erro do governo com as vacinas. Mas isso não encerra a novela, assim como o torpedeamento do cruzador Belgrano não concluiu o drama das Malvinas.
É que Bolsonaro continuará à frente de um governo sem propor nada para deter o vírus que ameaça os brasileiros, além da vacinação atrasada. Resta saber se os generais vão acompanhar o presidente até o fim, apoiando tratamentos sem eficácia científica comprovada e o boicote ao distanciamento social e ao uso de máscaras. O erro nas vacinas causou demora na imunização, abrindo espaço para milhares de novas mortes. Já são quase 300 mil. Não há ministro novo que possa remediá-las. O cardeal Richelieu dizia ser preciso ouvir muito e falar pouco para se agir bem no governo. Definitivamente, este não é o caso de Bolsonaro.
*Marcelo Godoy é jornalista formado em 1991, está no Estadão desde 1998. As relações entre o poder Civil e o poder Militar estão na ordem do dia desse repórter, desde que escreveu o livro A Casa da Vovó, prêmios Jabuti (2015) e Sérgio Buarque de Holanda, da Biblioteca Nacional (2015).
Pedro Doria: Caso da ex-futura ministra da Saúde mostra como opera a rede bolsonarista
O episódio que expôs a médica Ludhmila Hajjar à sede de sangue nas redes sociais de direita ilustra como o lado raiz do bolsonarismo opera. Após a onda de cancelamento digital a qual foi submetida, Hajjar vai informar ao presidente Jair Bolsonaro que não aceitará o convite que lhe foi feito para assumir o Ministério da Saúde, conta Lauro Jardim. Mas até esta sua decisão, vale retomar o que ocorreu.
A notícia de que o ministro Eduardo Pazuello estava de saída já circulava quando Hajjar chegou domingo a Brasília, no início da tarde, para se encontrar com o presidente no Palácio do Alvorada. Ela estava conversando com Bolsonaro quando o presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira, se manifestou publicamente no Twitter defendendo sua indicação para o cargo.
E foi durante a conversa, também, que, numa onda, começaram a pipocar, a partir de perfis bolsonaristas, imagens de Hajjar com o ex-presidente da Câmara Rodrigo Maia, com o ministro do Supremo Tribunal Federal Gilmar Mendes, o vídeo de uma live no Instagram em que ela conversava com a ex-presidente Dilma Rousseff, e o áudio, que tudo indica ser falso, no qual, ainda no início da pandemia, a médica teria chamado o presidente de “psicopata”.
Esta onda não acontece simultaneamente sem ser planejada. É preciso fazer a pesquisa das imagens, o que leva tempo e exige quantidade de pessoas dedicadas nos sites de busca. O áudio, que teria circulado por WhatsApp, é ainda mais difícil de ser localizado. E, se falso, como garante a médica, precisa ser fabricado. O nome da cardiologista, sugerido pelo Centrão como resposta do governo ao discurso pró-ciência do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, não podia ser recusado de bate-pronto. Era preciso criar uma situação que o tornasse inviável.
Foi o que as redes que o presidente controla fizeram. E fizeram num momento em que ela, reunida com o próprio Jair Bolsonaro, não poderia se defender.
O método de fritura agressiva tem consequências políticas que, com o desgaste do governo neste momento agudo da pandemia, se tornam maiores. O presidente da Câmara dos Deputados se expôs em defesa da cardiologista. Ali está um recado de como Bolsonaro deseja construir o relacionamento com o Centrão. Se não gostar de um dos nomes sugeridos, vai trabalhar para uma humilhação pública. Indicados pelo Centrão, em alguns casos, poderão ver a citação de seus nomes como um presente de gregos para troianos — não sinal de prestígio, mas uma maldição que pode lhes custar caro em suas carreiras.
Só que Bolsonaro precisa mais do Centrão do que o Centrão de Bolsonaro. O método é, politicamente, suicida.
Celso Rocha de Barros: Como Bolsonaro reagirá a Lula?
Presidente dirá que causou a recuperação gerada pela vacinação que sabotou
Como disse em meu artigo publicado na Ilustríssima, a entrada de um Lula moderado na disputa eleitoral de 2022 mudou completamente o quadro político brasileiro. Lula moderado é um polo de oposição muito mais forte do que os que havia até agora. O choque, inclusive, levou o “centro” a acelerar suas articulações por uma candidatura competitiva. Como a extrema direita que governa o Brasil desde 2019 vai reagir?
No dia do discurso de Lula, a reação de Bolsonaro foi de evidente terror. Pela primeira vez em muito tempo, apareceu de máscara em uma solenidade pública. Não tenho nenhuma dúvida de que seu pessoal nas redes sociais notou que as declarações ponderadas de Lula sobre vacinas e máscaras foram bem-recebidas pelo público.
Seria maravilhoso se a ameaça Lula forçasse Bolsonaro a finalmente começar a se comportar como presidente da República, mas talvez seja tarde demais. Se Jair acordou na quinta-feira decidido a se comportar como um estadista responsável para derrotar Lula, imediatamente deve ter percebido que o Jair de 2020 não comprou as vacinas que um Jair responsável de 2021 teria que aplicar. Como a única outra alternativa de combate à Covid-19, o lockdown, prejudicaria o Jair candidato de 2022, não sobrou nada de responsável para qualquer Jair fazer no Brasil da pandemia.
Sempre trabalhando com a premissa testada e provada de que Bolsonaro não fará a coisa certa, o que lhe restará? No momento, seu plano parece simples: incapaz de achar um cenário de combate à pandemia que lhe beneficie eleitoralmente, Bolsonaro vai deixar os brasileiros morrerem na fila da UTI e falar de outra coisa.
Jair sabe que sua popularidade vai cair, mas aposta que não chegará a níveis de rejeição que o tornem eleitoralmente inviável. E conta que a vacinação, eventualmente, permitirá a recuperação econômica antes da eleição.
Se você quer fazer uma aposta sem qualquer chance de perder, aposte que Paulo Guedes e Bolsonaro vão dizer que causaram a recuperação econômica gerada pela vacinação que sabotaram desde o início.
O que é muito menos seguro é cravar se Guedes dirá isso como ministro ou como ex-ministro. Bolsonaro certamente gostaria de substitui-lo por um ministro gastador, mas o resultado eleitoral seria incerto. Certamente haveria turbulência no mercado, ela bateria no dólar, o dólar bateria nos preços, os preços bateriam nos juros, e os juros bateriam no desempenho econômico. Talvez isso melhorasse com o tempo, mas Bolsonaro tem cada vez menos tempo até a eleição.
A única certeza sobre isso tudo é que Jair Bolsonaro não perderá eleição para agradar a turma de Guedes.
Mas a maior certeza sobre o que Bolsonaro fará agora que a competição eleitoral ficou mais acirrada é que jogará muito, muito sujo.
Causará estrago enorme ao Brasil. Voltará a ameaçar golpe de Estado —já o fez na live de quinta-feira— aparelhará as Forças Armadas, destruirá a credibilidade de órgãos públicos, atacará a imprensa livre, disseminará notícias falsas, incentivará o conflito e a instabilidade social, enfim, fará o Brasil pagar o preço de não tê-lo impichado.
Mesmo para gente que já se comportou com dignidade em outros momentos da vida, é difícil fazê-lo na hora da derrota. Imaginem para Jair Bolsonaro.