governo genocida
Adriana Fernandes: Quem vai disparar as medidas de socorro e apertar o botão de guerra?
Saúde e Economia caminham em passos distintos, enquanto o colapso do sistema de saúde de Manaus atinge o resto do País
Na briga insana contra as medidas de isolamento social para frear a pandemia, Jair Bolsonaro repete a toda hora que a economia e a saúde “andam juntas”. No seu governo, essas duas áreas, porém, não se conversam.
Não se tem notícia de nenhuma reunião de cúpula dos Ministérios da Economia e da Saúde – Paulo Guedes e Eduardo Pazuello – para a organização de uma estratégia conjunta, a não ser por repasse de dinheiro. Nenhum encontro sequer dos “generais” de Bolsonaro num gabinete de guerra, de crise.
Saúde e Economia caminham em passos distintos enquanto o cenário mais catastrófico do início do ano se confirmou: a disseminação do colapso do sistema de saúde de Manaus para o resto do País. Tudo ao mesmo tempo.
Vírus avançando, com famílias inteiras contraindo a doença, UTIs lotadas, retrocesso na retomada econômica, alta volatilidade dos mercados e desconfiança dos investidores em relação ao que vai acontecer com o Brasil. A paciência deles com o País indo embora.
É a tempestade perfeita, que ocorre quando um evento ruim é drasticamente agravado pela ocorrência de uma rara combinação de circunstâncias que se transforma em um desastre sem proporções.
É bem verdade que vão dizer no governo que a coluna está equivocada. Que em março do ano passado foi criado um comitê de crise para a supervisão e monitoramento dos impactos da covid-19. Que o comitê já publicou uma série de resoluções com ações para o enfrentamento e está em pleno funcionamento. Que o comitê está atuando conjuntamente e tem uma lista de medidas para provar isso. Que está dando tudo certo e dentro do previsto.
Oficialmente, o discurso é o de que Guedes e Pazuello mantêm diálogos constantes e frequentes em relação às medidas para o enfrentamento da pandemia no Brasil, o que não traria a necessidade de encontros presenciais.
Quem viu essa tropa em ação reunida? O Ministério da Economia diz que faz a sua parte com o repasse de dinheiro e o Ministério da Saúde faz a dele cobrando os recursos que estão em falta.
No domingo passado, Bolsonaro postou nas suas redes sociais uma foto enfileirado ao lado dos presidentes Arthur Lira (Câmara), Rodrigo Pacheco (Senado), e os ministros Walter Braga Neto (Casa Civil), Luiz Eduardo Ramos (Secretaria de Governo), Guedes e Pazuello. O assunto oficial: vacina e a PEC do auxílio emergencial.
O tema de maior interesse foi outro: mostrar que Bolsonaro fez a sua parte repassando recursos para os Estados no ano passado. Tudo isso para desmontar o aperto nas restrições que estão sendo tomadas pelos governadores e prefeitos e que a disponibilidade de caixa dos Estados e municípios fechou 2020 em patamar 70% maior do que um ano antes.
Isso demonstra que ter mais dinheiro não basta. A prova disso é que o governo já pagou R$ 524 bilhões em medidas emergenciais e o Brasil está no topo entre os países com pior situação na pandemia.
Depois da cloroquina e do tratamento precoce, a prova de energia gasta fora do lugar é o envio de uma comitiva a Israel para conhecer o spray para o combate da covid-19.
Mas nunca mandaram uma comitiva de peso – de alto nível – atrás de vacina. Por que não Guedes e Pazuello juntos numa comitiva? A equipe econômica pode e deveria ter se engajado mais nessa cobrança e articulação da diplomacia, pois tem seus canais particulares de diálogo internacional e instrumentos outros econômicos. A compra de vacina é uma guerra internacional e se deve disputá-la com todas as armas possíveis.
Com o temor de uma desorganização econômica, Guedes repete que o Brasil precisa de vacina. Mas não temos vacina. Com lucidez, disse que a guerra sem fim não vai chegar a nenhum lugar. Guedes conta para o presidente? O pior temor de Bolsonaro ao se lançar contra o combate duro da pandemia, o desastre econômico, pode acabar se concretizando.
O ministro já falou diversas vezes que aguardaria o sinal de Pazuello para disparar as medidas de socorro e acionar o botão da calamidade. No fim de janeiro, afirmou que o governo poderia retomar os programas de socorro, caso houvesse o entendimento de que o número de mortes por covid-19 continuará acima de mil por dia com a vacinação atrasada. Nessa situação, seria declarado novamente “estado de guerra”.
Infelizmente, esse é o quadro de hoje no Brasil. Quem aperta o botão?
Miguel Reale Júnior: Presidente de cemitério
O Ministério Público, a Câmara e o Senado precisam cumprir o dever de salvar o País
Em que momento a considerável parcela da população que ainda acorre às aglomerações ilícitas provocadas pelo presidente vai se dar conta de estar, em crença fanática, a louvar um perverso para quem o medo da morte por asfixia é “mimimi”? Até quando o Brasil será conduzido pelo quarto cavaleiro do apocalipse?
Bolsonaro não é presidente para administrar o País, mas tão só para se reeleger em 2022, seu único interesse, mesmo que venha a ser apenas presidente do cemitério. Jamais assumiu a liderança do enfrentamento da covid-19, preocupado só em atribuir a crise econômica e a perda de empregos a governadores e prefeitos, para se livrar dessa responsabilidade e angariar votos.
Bolsonaro, absolutamente indiferente ao crescente número de mortos, muitos sem oxigênio ou nos corredores por falta de leitos em UTIs, passeia pelo País sem máscara, promovendo aglomerações, nunca se compungindo diante da dor ou visitando algum hospital. Somente mandou sequazes invadir hospitais para flagrar ser mentira sua superlotação!
Continuamente conspirou contra a importância da vacina, cuja pressa em obtê-la ridicularizou, proclamando mentirosamente haver efeitos colaterais nocivos, desorientando a população.
Os obstáculos ao combate ao vírus não se limitaram aos maus exemplos. Deixou de adquirir, em julho, vacinas Coronavac e da Pfizer, impôs vetos de verbas e ignorou a cooperação com Estados e municípios na precaução e reação contra a doença, como ressalta estudo realizado pela Universidade de São Paulo, por meio do Centro de Pesquisas e Estudos de Direito Sanitário (Cepedisa) da Faculdade de Saúde Pública, em conjunto com a Conectas Direitos Humanos (Direitos na Pandemia – Mapeamento e Análise das Normas Jurídicas de Resposta à Covid-19 no Brasil, em https://www.conectas.org/publicacoes/download/boletim-direitos-na-pandemia-no-3).
Esse estudo revelou a existência de uma “estratégia institucional de propagação do vírus”, entendendo ser “razoável afirmar que muitas pessoas teriam hoje” a mãe, o pai, irmãos e filhos vivos “caso não houvesse esse projeto institucional”. Conclui-se, então, não haver tão só incompetência e negligência, mas “empenho em prol da ampla disseminação do vírus no território nacional, declaradamente com o objetivo de retomar a atividade econômica o mais rápido possível e a qualquer custo”.
A comprovar tal conclusão, verifica-se que, de R$ 24 bilhões disponíveis no Orçamento para compra de vacinas, apenas R$ 2 bilhões foram gastos em 2020 (Folha de S.Paulo, 1.º/3, pág. A13). Tão grave quanto isso foi o corte de financiamento de leitos de UTI nos Estados para atendimento a pacientes com covid-19, que o STF acaba de mandar seja realizado (Estado, 1.º/3, A12).
Ao pôr a ambição política acima da proteção da saúde de seu povo, Bolsonaro revela egocentrismo incompatível com a permanência como primeiro mandatário, pois brasileiros foram lançados, por sua insensibilidade, na tragédia que a OMS reconhece estar instalada entre nós.
Quatro ex-ministros da Saúde clamam por um governo de salvação nacional ou pela criação de um gabinete de crise que dirija e coordene o enfrentamento da pandemia, sob o risco de afundarmos definitivamente na desgraça. Como fazer?
Há meio breve, justo e correto, já aventado antes por vários juristas. Ao Ministério Público, que tem por missão a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos direitos sociais, entre eles o da saúde, cumpre promover, em face desses fatos, ação penal por crimes contra a saúde pública e contra a paz pública, o primeiro previsto no artigo 268 do Código Penal: “Infringir determinação do poder público, destinada a impedir introdução ou propagação de doença contagiosa”.
Ademais, ao estimular a população a se aglomerar, não usar máscara e não se vacinar, o presidente incita-a a praticar o crime acima mencionado, configurando-se, então, o delito do artigo 286 do Código Penal: “Incitar, publicamente, a prática de crime”. Ou seja, compele a se infringir determinação do poder público destinada a impedir a propagação de doença contagiosa.
Há, evidentemente, dois desafios: 1) fazer o procurador Aras sair de seu imobilismo, sendo essencial a pressão da sociedade e de colegas procuradores; e 2) a Câmara dos Deputados, ciente da gravidade do momento, aceitar a denúncia, afastando o presidente, para o vice, em governo de união nacional, atuar em prol da salvação de nossa gente.
Outra forma seria a assunção da condução da área da Saúde pelo Congresso Nacional, via CPI ou promovendo o impeachment do ministro (artigo 14 da Lei n.º 1.079/50), cabendo ao novo titular da pasta atuar em conjugação com secretários de Saúde dos Estados.
A sociedade civil organizada, hoje silente, deve se manifestar por via de suas inúmeras entidades, exigindo que Ministério Público (competente, sim, para processar o presidente, como o fez contra Temer), Câmara dos Deputados e Senado cumpram o dever de salvar o País. Mexa-se, Brasil!
*Advogado, professor titular sênior da Faculdade de Direito da USP, membro da Academia Paulista de Letras, foi ministro da Justiça
Bolívar Lamounier: Temos um governo genocida?
Bolsonaro não tem estatura para isso. Sinais de insanidade já dá – e não são poucos
Disseminar um vocábulo raramente usado no Brasil, como genocídio, é uma proeza. Jair Bolsonaro conseguiu, hoje tal vocábulo aparece nas redes sociais praticamente todo dia.
É certo que o termo é empregado para xingar o próprio Bolsonaro. Muita gente se vale dele para afirmar que o Brasil tem atualmente um presidente genocida. Dito assim, mesmo reconhecendo que algo há de verdade, devemos convir que se trata de um enorme exagero. Bolsonaro não tem estatura para carregar um peso desses. O que ele tem feito, dia sim e outro também, é sabotar o trabalho dos agentes de saúde no combate à covid-19, atrapalhando ação dos governadores e prefeitos, formando aglomerações e até criticando o uso de máscaras.
Lá atrás, em sua fase mais cômica, aventurou-se na charlatanice médica, receitando remédios que liquidariam o coronavírus num abrir e fechar de olhos. Hoje, parece-me inegável que ele é culpado por uma parcela dos 260 mil óbitos já registrados, mas não tenho, e penso que ninguém tem, como estimar a quanto monta tal parcela. Cabe, portanto, a suposição de que ele tem responsabilidade por certo número de mortes, mas daí a designá-lo como genocida vai uma longa distância.
Onde tem fumaça, tem fogo. A questão é séria e deve ser debatida, mas sem partir de cara para o exagero. Genocídio, como já sugeri, é uma coisa muito maior. Briga de cachorro grande. Se nossa intenção é compreendê-la e chegar a uma avaliação plausível do papel de Jair Bolsonaro, é indispensável começar pelo começo. Pelo conceito e por alguns exemplos históricos.
O termo baseia-se em dois componentes fundamentais. O primeiro, uma matança em larga escala, a intenção de exterminar todo um povo ou toda uma etnia, não necessariamente porque ela tenha feito alguma coisa, mas pelo simples fato de que ela existe, extermínio a ser conduzido com o máximo concebível de atrocidade. Segundo, tal matança compõe-se de ações conscientes, uma ordem premeditada e levada a cabo por um governo, um partido ou um órgão qualquer que tenha poder para tanto.
Historicamente, a ideia (mas não necessariamente o termo) genocídio remonta à Revolução Francesa e, especificamente, à guerra da Vendeia. Católica e monarquista, uma parte dos habitantes daquela província francesa reagiu violentamente à execução do rei Luís XVI, em fevereiro de 1793. No transcurso de dois anos, o confronto evoluiu para a guerra civil, levando os comandantes militares da revolução (o chamado Comitê de Salvação Pública, Robespierre à frente) a recorrer indiscriminadamente ao terror. Esse é o tempo das noyades (afogamentos coletivos, principalmente de mulheres e crianças, no rio Loire). O confisco de alimentos, a fim de sujeitar a população à morte pela fome.
Nesse quadro de absoluta insanidade, o nome que logo vem à mente é o de Jean-Baptiste Carrier, organizador do “trabalho de campo”, o mais demente dos dementes que chegaram ao poder com a revolução. A ideia passou a ser aniquilar toda a população daquela região. Gracchus Babeuf, autor da primeira narrativa circunstanciada dos fatos, deu-lhe o expressivo título de A guerra na Vendeia e o sistema de despopulação.
Stalin provavelmente não conhecia os detalhes do que ocorrera na França, mas levou a cabo com intensidade ainda maior o projeto de “matar por inanição”, vale dizer, de fome, como forma sistemática de terror, imposto à Ucrânia no inverno de 1932-33. Confisco geral de todos os alimentos, levando à morte pelo menos 3 milhões de indivíduos, muitos deles até a prática do canibalismo. Em ucraniano, o termo Homolodor significa exatamente isso, matar por inanição, e é o título de um magnífico filme ucraniano disponível no YouTube. Mas, como sabemos, a insanidade sempre pode aumentar.
A partir de 1942, trens lotados de judeus, ciganos e outras etnias começaram a ser descarregados na estação de Birkenau, na Polônia. Os passageiros (se assim os podemos chamar) passavam por uma triagem, sendo os mais fortes mandados para o trabalho forçado e os fracos, doentes, bem como as mulheres e crianças, para as câmaras de gás e os fornos crematórios. O saldo é bem conhecido: o Holocausto, no qual pereceram cerca de 6 milhões de judeus.
Carreguei bastante nas tintas para sublinhar o que afirmei no início: Bolsonaro é, se tanto, uma partícula minúscula na história dos genocídios. Dá-se, entretanto, que os conceitos precisam ser repensados à medida que as instituições humanas e a História avançam.
No século 18, bastava um salto para se passar de A a Z: de uma relativa normalidade para o terror. No século 21, com o País afundando numa pandemia terrível, um presidente que entretém seus convidados do almoço com gracejos e ataca a imprensa no preciso momento em que ela cumpre o seu dever, informando que chegamos aos 260 mil mortos, por certo não chegou ao Z, mas já saiu do A. Quando coloca seu interesse eleitoral a léguas do interesse público, deu mais alguns passos. Sinais de insanidade já está dando – e não são poucos.
*Sócio-Diretor da Augurium Consultoria, é membro das Academias Paulista de Letras e Brasileira de Ciências