governo federeal

Monica De Bolle: O custo do negacionismo

O negacionismo pandêmico tem um custo para lá de elevado aos cofres públicos federais

Em artigo recente para o Jama, o prestigiado Journal of the American Medical Association, os igualmente prestigiados economistas David Cutler e Larry Summers apresentaram os custos do negacionismo pandêmico aqui nos Estados Unidos. Partindo de evidências apresentadas em vários artigos científicos recentes sobre a covid-19, além de cálculos do Congressional Budget Office para a queda estimada do PIB associada à pandemia na próxima década, e de estudos atuariais e demográficos, os autores concluíram que a conta pode chegar a US$ 16 trilhões até outubro de 2021. Vou repetir: o custo do negacionismo nos EUA poderá chegar a cerca de 90% do PIB supondo que a epidemia seja controlada em meados de 2021. A hipótese de que a crise de saúde pública estaria resolvida daqui a um ano é, como ressaltam os próprios autores, muito otimista. Caso isso não ocorra, o custo poderá ser maior.

Cutler e Summers levam em conta não só os dados econômicos, como os aumentos inéditos de pedidos de seguro-desemprego a cada mês, mas também o custo de tantas vidas perdidas, seja diretamente pela infecção com o SARS-CoV-2, seja indiretamente pelas mortes excedentes provenientes de outras doenças já que tantos recursos estão sendo inevitavelmente destinados a atender os atingidos pela epidemia. Nós não temos contas semelhantes feitas para o Brasil, mas precisamos urgentemente fazê-las, sobretudo para ter alguma noção do montante de recursos que teremos de destinar ao SUS, além das medidas que precisam ser adotadas para alterar a preocupante trajetória brasileira. Nossa população está envelhecendo, o que significa que a carga de doenças associadas à idade – diabetes, câncer, hipertensão, cardiopatias, entre outras – vai subir nos próximos anos. Além disso, a obesidade já é um problema urgente que não só afeta a carga de doenças associadas ao envelhecimento como fator de comorbidade, mas influencia o número de pacientes com casos graves ou severos de covid-19 e as possíveis sequelas. Não faltam estudos para mostrar que a obesidade é um fator de risco considerável.

No artigo citado, os autores utilizam evidências demonstradas em pesquisas científicas para calcular o número de pessoas que poderão apresentar graves sequelas até o fim do ano que vem como parte dos custos calculados. Contas semelhantes podem ser feitas para o Brasil. Supondo que o número de casos graves ou severos é cerca de 7 vezes maior do que o de óbitos e que cerca de 30% dos que sobrevivem aos quadros mais preocupantes de covid-19 apresentam alguma sequela séria, o Brasil poderia ter até cerca de 350 mil pessoas nessa situação até o final de 2021. São 350 mil pessoas a mais a depender muito provavelmente do SUS em um período de tempo muito curto. Esse cálculo pressupõe, como o dos autores, hipótese demasiado otimista em relação ao controle da epidemia – portanto, não é uma cifra exata, mas algo para dar uma ideia da ordem de magnitude dos problemas que iremos enfrentar apenas no próximo ano.

Caso queiramos aplicar as contas dos autores ao Brasil, é possível fazê-lo somente de forma muito parcial. Eles partem de uma vasta literatura acadêmica que calcula o “valor estatístico das vidas”, definido como o quanto que os indivíduos estariam dispostos a pagar para reduzir seu risco de vida em determinadas situações. O montante pode chegar a US$ 7 milhões de dólares para cada vida estatística, ou cerca de R$ 40 milhões a depender da taxa de câmbio que se utilize. Já contamos com mais de 150 mil óbitos, muitos dos quais prematuros. Caso o número de óbitos entre hoje e outubro do ano que vem chegue ao nível mais otimista que se pode conjecturar hoje, isto é, que nos próximos doze meses registremos a metade dos óbitos que temos até agora no Brasil, teremos 225 mil mortes, muitas delas prematuras. O custo econômico dessa catástrofe seria de R$ 9 bilhões. Caso o número de óbitos dobre até o fim do ano que vem, o custo econômico atrelado apenas às mortes prematuras seria de R$ 12 bilhões. Não estão contabilizados nessas cifras os diversos outros custos calculados pelos autores com maior precisão.

O negacionismo pandêmico tem um custo para lá de elevado. Se o governo e parte da população brasileira não conseguem se sensibilizar com a absurda perda de vidas, em boa parte evitável com a adoção dos protocolos de segurança e de mudanças no padrão de comportamento, quem sabe se sensibilizem com as perdas econômicas que haverão de perdurar por muitos anos. Não é improvável que ultrapassemos 90% do PIB do Brasil nesse quesito.

*Economista, pesquisadora do Peterson Institute for International Economics e professora da Sais/Johns Hopkins University


Eliane Cantanhêde: Além do churrasco

Polícia Federal, Forças Armadas e Itamaraty cercados de dúvidas e na boca do povo

Dos ministérios da Educação e do Meio Ambiente, nem se fala mais, mas três instituições historicamente respeitadas e admiradas andam na boca do povo: Polícia Federal, Forças Armadas e Itamaraty. Dúvidas e temor de ingerência na PF, risco de imagem e contaminação política nas FA, uma política externa que atrai perplexidade e crítica mundo afora.

Jogada no centro de mais uma crise política, num país que viveu impeachment duas vezes em três décadas, a PF tem dificuldade de entender o que está acontecendo. O delegado Maurício Valeixo, uma referência, quase unanimidade, foi demitido. Alexandre Ramagem foi impedido de assumir pelo Supremo. Rolando Alexandre de Souza fez as escolhas certas e ia bem, até que, na sexta-feira, foi chamado ao Planalto e o governo tentou novamente emplacar Ramagem.

Os acertos de Rolando desagradam ao presidente Jair Bolsonaro? Essa pergunta não quer calar na PF, onde a percepção é de que está em curso um processo de enfraquecimento do novo diretor-geral, visto agora como “tampão”, achando que tem uma autonomia que na verdade não tem. O foco é a Superintendência do Rio.

Rolando nomeou para o Rio o delegado Tácio Muzzi, elogiado pelos seus pares e bom conhecedor da praça, onde trabalhou com os antecessores Ricardo Saadi e Carlos Henrique – justamente com quem Bolsonaro implica. Saadi, aliás, está na lista de depoentes desta semana sobre as acusações do ex-ministro Sérgio Moro ao presidente. Logo, o que paira na PF é: até quando Rolando Alexandre fica? E Muzzi? E para que novas trocas?

Nas FA, até onde se possa perceber, há três grupos. Os generais do Planalto, apoiando tudo o que seu mestre mandar até o fim, seja lá que fim seja. Os comandos, onde há incômodo com sacolejos entre poderes, atos golpistas até diante do QG do Exército, descaso com pandemia e mortes, churrasco (fake?) no sábado. E as bases, da ativa e reserva, com várias centenas de cargos, DAS camaradas e famílias felizes. Ser leal a quem, ou ao quê?

No Itamaraty, nenhum outro termo define melhor a situação: perplexidade. Num país de diplomacia sólida, estável, baseada em princípios e independência, o atual governo segue cegamente os Estados Unidos e cria atritos e crises com França, Alemanha, Noruega, Argentina, Chile, mundo árabe e, toda hora, com a China.

Em movimento inédito, Fernando Henrique, Aloysio Nunes Ferreira, Celso Amorim, Celso Lafer, Francisco Rezek, José Serra, Rubens Ricupero e Hussein Kalout, de cinco governos diferentes, assinam o manifesto “Reconstrução da política externa”: “Além de transgredir a Constituição, a atual orientação impõe ao País custos de difícil reparação como desmoronamento da credibilidade externa, perdas de mercados e fuga de investimentos”.

Pelo twitter, o chanceler Ernesto Araújo, que guerreia contra o multilateralismo, endeusa Donald Trump, demoniza a China e vive assombrado por um comunismo delirante, acusou os autores de “paladinos da hipocrisia” e o texto de “clichês globalistas”, para desferir: “Não fiquem usando a Constituição como guardanapo para enxugar da boca a sua sede de poder”. Pode ser tudo, menos linguagem diplomática.

Assim, o Brasil atinge 10 mil mortos e vai chegando a epicentro mundial da Covid-19 e ao colapso de redes de saúde e funerária, mas o presidente insiste na apologia da aglomeração, brinca com churrasco para 30 ou 30 mil pessoas, só pensa na PF do Rio e está às voltas com a tal reunião apocalíptica de 22 de abril. Quanto à ida ao STF: segundo arguto personagem, ele procura “sócios para carregar as alças dos caixões”. Porém, o que vale hoje vale amanhã: “Quem manda sou eu”. Não se esqueçam