governo federal
Monica de Bolle: A agenda Porcina
As reformas do governo Temer provar-se-ão conjunto de viúvas Porcinas, aquelas que terão ido, ou passado, sem jamais terem sido, de fato, reformas? Os riscos de que as reformas Temeristas sejam “Porcinadas” cresce a cada novo anúncio, a cada nova manchete eletrizante. O teto dos gastos, a reforma trabalhista, a TLP, as privatizações. Que fique claro – no Brasil acalorado, importante é clarear: cada uma dessas iniciativas foi formulada por razões louváveis, inquestionáveis, até. Mas há muitos mistérios entre o princípio e a prática. Mistérios da meia-noite, que voam longe, que você nunca, não sabe nunca, se vão se ficam, quem vai quem foi.
O teto dos gastos, tão aplaudido, não terá reforma da Previdência robusta para acompanhá-lo, fadado estará as virtudes ou vicissitudes do governo que vier a herdá-lo em 2018. A reforma trabalhista, ainda à deriva, em meio às demandas diversas de sindicatos e outros grupos de interesse, cuja força cresce em proporção à ascendente fragilidade de Temer, em breve engalfinhado com nova denúncia de Janot. A TLP, sobre a qual venho escrevendo alguns artigos: na semana passada tracei breve rascunho para este espaço delineando porque a TLP não é a reforma do sistema financeiro, mas o elemento de uma reforma que ainda não foi traçada. A TLP, a taxa que poderá incidir sobre 14% do crédito direcionado, não é a solução para as distorções que temos, mas um pequeno passo para começar o árduo trabalho de remover distorções que perduram há décadas.
Uma reforma financeira, para ser reforma de fato, precisa de muito mais do que uma TLP. Precisa, a meu ver, concentrar-se em três grandes pilares: (1) o que fazer com os fundos de poupança forçada do País (o FAT, o FGTS) que distorcem a alocação de recursos; (2) como reduzir o crédito direcionado – e subsidiado – que provém de outros bancos públicos, além do BNDES, e que representam 50% do crédito total da economia brasileira, tornando-nos uma anomalia entre os países emergentes, à exceção da China; (3) qual deve ser o mandato do BNDES? Definir o mandato do BNDES é fundamental para qualquer pretensão de reforma. A ausência de mandato com a qual o banco hoje opera o deixa sujeito às mais insidiosas pretensões do governo por ele comandado, e não há TLP que resolva.
Para entender o ponto, considerem o Banco Central. O Banco Central tem o mandato de conduzir o regime de metas de inflação e de garantir a estabilidade dos preços. Com essa atribuição de funções, é possível dar ao Banco Central autonomia operacional, sem que haja ingerência do governo. Ainda que tal ingerência tenha ocorrido no passado, é a existência de um mandato claro que nos permite observar atitudes indevidas do governo. Se fosse dado um mandato para o BNDES – seja para o financiamento à infraestrutura, seja para empréstimos para pequenas e médias empresas, seja para o apoio às exportações, ou seja lá o que for –, nós, a sociedade, poderíamos observar com maior clareza se o governo está ou não permitindo que o mandato seja cumprido. Mas preferimos o carro da TLP e esquecemos do boi do mandato do BNDES.
As privatizações. Houve encantamento com o anúncio das concessões e privatizações que farão parte do Plano de Parcerias de Investimento (PPI). Hoje, são 57 projetos. Quando anunciado originalmente em setembro de 2016, eram 34 projetos, lista que abarcava boa parte do malfadado plano de concessões de Dilma. Sem entrar no mérito de ser o plano de privatizações factível faltando pouco mais de um ano de governo, ou na questão da urgência em cobrir as rombo-metas fiscais de 2017 e 2018 – o que nunca é um bom motivo para vender ativos –, há algo mais. As privatizações de Temer nada têm em comum com as de FHC. As de FHC serviram, por certo, para cobrir rombos fiscais. Contudo, seu principal objetivo era modernizar o País, o que foi definitivamente alcançado no setor elétrico e no setor de telecomunicações. Embora exista a necessidade de modernizar sistemas logísticos, aeroportos, entre outros, não parece ser esse o grande objetivo da privatização Temerista. Tampouco parece que haverá tempo para tanto, haja vista que o PPI está parado desde que foi anunciado.
Continuamos, portanto, com a agenda "Porcinada". Ou com agenda por si, nada.
* Monica de Bolle é economista, pesquisadora do Peterson Institute for Internacional Economics e professora da Sais/John Hopkins University
José Roberto de Toledo: Desastre à espreita
Méritos e possíveis vantagens da privatização à parte, Michel Temer está querendo vender algo que não lhe pertence. A procuração dada pelos proprietários à representante que ele substituiu não fala nada em entregar patrimônio público para cobrir um buraco – buraco que Temer não foi o primeiro a cavar mas ajudou a aprofundar. Até que o eleitor diga que é isso que quer, alienar florestas e estatais causará desconfiança e suspeição – especialmente quando 93% desaprovam o presidente.
Collor e Dilma caíram após prometeram uma coisa em campanha e fazerem o oposto. Temer não prometeu nada, mas herdou cargo, compromissos e promessas da titular. Ele pode achar que não. Pode crer que chegou lá por suas ideias e convicções. Mas a “Ponte para o futuro” não recebeu um sufrágio sequer. Alavancou outras contrapartidas, eventualmente, mas voto nenhum.
Nem mesmo forçando a barra e considerando-se a votação que afastou Dilma como “eleição” de Temer. Aconteceu de tudo naquele plenário da Câmara, mas ninguém bradou “pela venda da Eletrobras e pela entrega da Reserva Nacional de Cobre” enquanto embargava a voz, vestia a bandeira brasileira e posava para as câmeras. Talvez uns tenham pensado no cobre, mas não puderam vocalizar.
Afundando o poço da crise política está a crise de representatividade. O eleito pode esquecer suas obrigações, mas quem o elegeu lembra. Lembra especialmente do que não delegou ao seu representante. Se vê o eleito fazendo algo que não estava combinado, é natural que se sinta contrariado. Se isso acontece sempre, é de se esperar que ele desacredite as instituições. Não à toa, estão todas nas valas mais fundas de sua credibilidade.
Temer acreditou em algum acólito de segunda mão que lhe vendeu uma ideia fora do lugar. Acha que vai entrar para a história como “o presidente das reformas”, como quem fez o que precisava ser feito mas ninguém tinha coragem de fazer. Não vai. Collor não é lembrado por abrir a economia do país, mas pelo Fiat Elba, por PC Farias e por ter sido o primeiro impedido pós-ditadura.
Se a preocupação de Temer é com a posteridade, algum sabujo poderia lembrá-lo de que ele já é histórico. É o presidente mais impopular que se tem registro. Não é pouco, considerando-se a concorrência. Ele superou Dilma, Collor e até Sarney. Dificilmente alguém vai conseguir batê-lo tão cedo. Parabéns.
A avalanche da desmoralização institucional demorou mas está alcançando também o Judiciário. Com a contribuição diária da toga falante e graças à omissão de seus colegas de tribunal, os autos se tornaram incomparavelmente menos loquazes do que as entrevistas, notas, tuítes e posts dos magistrados. Juízes que se julgam acima dos outros não têm quem os contradiga. Quem se arrisca a contrariá-los está a uma sentença do arrependimento.
Como diria aquele investigado, com o Supremo, com tudo. Partidos políticos, Congresso e Presidência da República estão perdendo os últimos traços de respeitabilidade aos olhos do público. O desastre está à espreita. É no pascigo do descrédito institucional que se alimentam vivandeiras e promotores do ódio. É também uma oportunidade de negócio para marqueteiros virtuais que fazem dinheiro sublocando MAVs e manipulando a mídia social.
Nesse ambiente insalubre, reproduz-se com velocidade exponencial o discurso militarista. Um jovem e seu computador criam uma página no Facebook, gravam um vídeo por dia e em menos de dois meses têm meio milhão de seguidores. Suas gravações são vistas e compartilhadas milhões de vezes. Não é hipótese, mas um exemplo. Como ele, há outros. E outros. No que isso vai dar? Estamos prestes a descobrir.
Samuel Pessôa: Gasto com os rentistas é alto, mas muito menos do que se diz por aí
O gasto do tesouro com serviço da dívida pública que é a renda dos rentistas, é muito muito menos do que se diz por aí
Na Semana passada, discuti as diversas meias-entradas que fazem com que o gasto público seja muito elevado. Argumentei que o inferno somos todos nós.
De uma forma ou de outra, há programas públicos que nos favorecem individualmente. A soma de todas essas distorções produz um Estado disfuncional. Não serve ao público e não consegue pagar suas contas. A dívida pública cresce ilimitadamente.
Houve comentários à coluna lembrando meias-entradas que esqueci. Por exemplo, a isenção de pagamento de impostos para as igrejas. Bem lembrado.
Outro desconforto comum dos leitores com a coluna é o tratamento dirigido aos juros da dívida pública. Por que não se trata de uma meia-entrada?
Apesar de ser uma conta salgada, o pagamento de juros da dívida pública não é uma meia-entrada. A característica da meia-entrada é ser um favorecimento na forma de lei. A dívida é salgada porque os juros são elevados. E esses são elevados porque a inflação é elevada.
É comum argumentar que seria melhor combater a inflação com maiores compulsórios e maiores controles diretos de crédito. Já praticamos os maiores compulsórios do mundo, e o mercado de crédito é supercontrolado.
Evidentemente a redução do crédito subsidiado —este sim uma bela meia-entrada— ajudará em muito a reduzir o custo de rolagem da dívida pública.
Finalmente há uma incompreensão da sociedade do real custo de rolagem da dívida pública.
Quando o setor público capta recursos, essa dívida é contabilizada como receita de capital. No vencimento, a recompra —quitação— da dívida é contabilizada como gasto de capital.
É comum o sindicato dos auditores fiscais considerar que a rolagem da dívida pública constitui um item do gasto público. Entretanto, a norma contábil não obedece ao conceito econômico.
Como sabemos desde o clássico "Valor e Capital", de John R. Hicks, "renda é o máximo valor que um indivíduo pode consumir durante uma semana e mesmo assim ter, no final da semana, o mesmo nível de riqueza que ele tinha no início".
A receita da captação da dívida não é renda, pois ela gerou um passivo, diminuindo a riqueza. E, analogamente, a recompra de títulos de dívida pública (a quitação) não é gasto, pois o Tesouro devolve ao público um recurso que nunca fora seu.
Segue desse conceito econômico que a renda que um indivíduo recebe por carregar um título público no seu portfólio —e que o governo gasta na gestão da dívida pública— é dada pelos juros pagos, líquidos da correção monetária e líquidos do Imposto de Renda que incide sobre a correção monetária (lembre que o IR sobre aplicações financeiras incide sobre o juro nominal e que parte do juro nominal, a correção monetária, não é renda).
Assim, para uma dívida de 70% do PIB e um juro nominal de 10% com inflação de 4% e alíquota de IR de 15%, temos: o juro nominal será de 7% do PIB; o juro real será de 4% do PIB; e o juro real líquido de IR sobre a inflação será de 3,6% do PIB. Ou seja, o gasto do Tesouro com serviço da dívida pública, que é igual à renda dos rentistas, será de 3,6% do PIB.
Está longe de ser um gasto pequeno, mas está igualmente distante dos valores exorbitantes que se divulgam por aí.
* Samuel Pessôa é físico com doutorado em economia, ambos pela USP, sócio da consultoria Reliance e pesquisador associado do Ibre-FGV.
Miriam Leitão: Privatizar é bom ou ruim?
Na Infraero, foi assinado um acordo coletivo que impede demissão até 2020. Só que a empresa está diminuindo pelas vendas de aeroportos ou de participações. Há quatro mil funcionários excedentes. Isso ao custo de R$ 1 bilhão por ano. O que faz essa irracionalidade é um velho defeito das estatais ao qual os dois governos passados cederam: o corporativismo.
Os funcionários das estatais têm sido eficientes em apresentar seus interesses como sendo o interesse coletivo. E mesmo o economista mais preocupado com as contas públicas, se trabalhar numa das empresas do governo, vai defender o próprio bolso quando a mudança o afetar. Há casos recentes disso. As estatais são empresas de propriedade coletiva, mas, na prática, seus donos têm sido os trabalhadores e os políticos. O poder nas empresas é distribuído aos políticos como se fosse o butim a que eles têm direito porque venceram a guerra eleitoral.
Não se pode privatizar pelos defeitos que o Brasil acumulou dentro da parcela estatal da economia e é melhor não se iludir sobre o caráter das empresas privadas. É velho — e velhaco — o patrimonialismo brasileiro. Muitas empresas privadas continuam a ordenhar o Estado. O capitalismo não é uma ideia vencedora no Brasil. Direita e esquerda, ao governarem, impuseram mais Estado e mais proteção e subsídio às empresas que se definem como nacionais.
O ideal é que não se privatize por ideologia, nem para cobrir o rombo do ano, mas com uma ideia do que se quer naquele setor. Na telefonia, deu certo. Eu sei que quem me lê já quis jogar um celular na cabeça de qualquer uma das operadoras que atuam no país. Eu mesma tenho ímpetos diários. Mas foi pela privatização que o brasileiro passou a ter telefone. Graham Bell registrou a patente da sua invenção em 1876. Noventa e seis anos depois foi criada a Telebrás. Até ser privatizada, em 1998, não havia conseguido, em quase 30 anos, universalizar o telefone. Mais de metade dos brasileiros não tinha acesso à invenção de Graham Bell, no final do século XX. O que deu certo nessa área foi o setor privado e a regulação. Nos últimos anos, o órgão regulador piorou.
A pergunta que está no ar agora é se será bom privatizar a Eletrobras. O modelo que o governo rascunhou parece interessante. Ele não privatiza, aceita ser diluído. Isso permite que a Eletrobras venha a ter o controle pulverizado. Se der certo, ela terá milhares de donos, será uma empresa pública, do público. Há inúmeras companhias assim pelo mundo afora. Mas nem isso é garantia de que dê certo.
É preciso boa governança para que uma empresa aberta e de capital diluído seja eficiente. E sempre será indispensável boa regulação. O governo começou a mudar as regras do setor elétrico, de um modelo intervencionista para um pró-mercado. A famosa MP 579 foi a intervenção que já custou muito caro ao país e ao mercado. Agora, se quer expurgar os efeitos dessa regulação do governo Dilma.
O setor elétrico é de uma complexidade espinhosa. É um mercado de múltiplos interesses e de equilíbrio frágil. As novas regras ainda não foram escritas. Apenas houve uma nota técnica de para onde se quer ir e uma consulta pública que recolheu boas sugestões. Os técnicos começariam a redigir a MP quando veio a decisão de privatizar a Eletrobras. Qual MP escrever primeiro? Esse é o dilema. Se as regras vierem depois da venda, pode haver zonas de confusão. Se forem escritas antes, pode atrasar a venda.
Durante a grande guerra provocada pela 579, a MP intervencionista, as empresas do setor perderam o medo de entrar na Justiça. Judicializaram tudo. Agora, ameaçam de novo, quando se fala em mudar as regras, mesmo que seja para melhor. A Justiça existe exatamente para definir contenciosos, mas uma nova temporada da discórdia judicial eleva a incerteza regulatória.
É bom privatizar, mas não é trivial. No caso da Infraero, a venda de Congonhas, aeroporto rentável, vai piorar o passivo trabalhista da estatal. O governo diz que vai exigir que o comprador financie parte de um plano de demissão voluntária e vai capitalizar a empresa com a venda das participações em aeroportos privatizados. Vamos ver. O diabo tem residência conhecida. Mora nos detalhes.
Merval Pereira: Infraestrutura defasada
Com as privatizações de volta ao debate político-econômico, um trabalho de Cláudio Frischtak da Inter.B Consultoria Internacional de Negócios para o Ipea esclarece a situação da infraestrutura brasileira e indica as razões pelas quais se torna necessário privatizar as empresas e os ativos de infraestrutura do país, inclusive, ressalta o economista, o fato de o Estado brasileiro — imerso na maior crise fiscal da República — não ser mais capaz de responder às necessidades de investimento.
Outra razão básica é má alocação de capital por conta da captura de órgãos e empresas públicas por grupos de interesses, tanto políticos como econômicos. Agora mesmo em sua caravana pelo Nordeste, o ex-presidente Lula teve a coragem de ir à Refinaria Abreu e Lima para defender o investimento feito em conjunto com o governo venezuelano. Hugo Chávez não pôs um mísero centavo na obra que seria conjunta, que já custa quase dez vezes mais do que o previsto e não se justifica em termos econômicos. O Ipea, no contexto do projeto Desafios da Nação, pediu à consultoria de Frischtak para calcular o estoque de capital em infraestrutura no país e qual seria um estoque-alvo que refletisse uma infraestrutura modernizada, e quantos anos seriam necessários para atingirmos esse alvo em função do que investiríamos no setor.
Os quatro grandes setores de infraestrutura — transportes, energia elétrica, saneamento e telecom — foram analisados, e o resultado é que estamos particularmente atrasados em saneamento e transportes; e mais próximos da fronteira em telecomunicações (privatização há duas décadas). No agregado, a estimativa central de estoque de capital em infraestrutura é de 36,1% do PIB em 2016, quando o alvo deve ser 60,4% do PIB.
Segundo Frischtak, se começássemos este ano de 2017, e investindo mais do que duas vezes o que fizemos em 2001-16 (ou seja, 4,15% versus 2,02%), levaríamos 20 anos para atingir o objetivo de modernização. Se continuarmos a investir o que vimos investindo, literalmente nunca modernizaremos a infraestrutura do país, afirma o economista.
O trabalho fez também um cálculo do impacto do sobrepreço nas obras públicas sobre o estoque de capital, que pode ter representado uma redução de até 4,6% do PIB no estoque, “uma medida bastante dramática do custo da corrupção”. Mas uma correção de rumos, nesse aspecto, pode ao longo dos anos diluir o impacto, ressalva Frischtak, que vê nessa possibilidade “mais uma razão premente para mudarmos as práticas deletérias que permeiam o sistema político e o Estado”.
Em síntese, diz ele, rótulos e ideologias à parte, mobilizar recursos, agentes e investimentos privados (inclusive e particularmente pelas privatizações) é a única forma de atualizarmos a infraestrutura do país — essencial para a competitividade da economia e o bem-estar da população.
O setor mais distante do estoque-alvo é o de transportes, que precisa mais do que duplicar o estoque de capital (para 26,5% do PIB), o que demandaria praticamente triplicar os investimentos feitos nos últimos anos, investindose quase 1,29% do PIB a mais do que já se investe para alcançar a meta em 20 anos. Dos 2,1 pontos de PIB necessários a mais por ano para modernizar a infraestrutura do país nesse horizonte temporal, o setor absorveria 61%. Já saneamento é o segundo maior desafio em termos relativos, demandando investimentos duas vezes e meia maiores do que a média do milênio. Em energia elétrica, haveria necessidade de um grande esforço em termos absolutos: investir em média 1,05% do produto ao ano, um incremento anual de 0,43 pontos de PIB.
Finalmente, o setor de telecomunicações é aquele mais próximo de alcançar o estoque-alvo em 20 anos, bastando expandir em 0,14% do PIB ou 24% os investimentos anuais em relação à média 2000-16.
Atingir o estoque-alvo nos anos estimados supõe uma execução eficiente dos investimentos ao longo dos anos — diferentemente do observado nas últimas décadas — e um reequilíbrio na sua alocação intrassetorial em muitos casos (a exemplo de transportes).
Nesse sentido, diz o estudo, a modernização da infraestrutura no país e a oferta de melhores serviços irão requerer nova governança pública dos investimentos, com o reforço no âmbito técnico dos processos de planejamento, e maior autonomia decisória e financeira das agências, “cujo fortalecimento é fundamental para reduzir a insegurança jurídica e a incerteza regulatória que afasta os investimentos privados, essenciais para a modernização da infraestrutura do país nas próximas décadas”.
Míriam Leitão: Os dados do ministro
Arrecadação federal caiu R$ 150 bi, diz ministro. O governo não sabe quantos servidores públicos ganham acima do teto constitucional, porque para isso o executivo precisaria ter os dados dos outros poderes e não tem, mas a estimativa é que se fosse respeitado o teto o país economizaria R$ 750 milhões por ano. Quem diz é o ministro do Planejamento, Dyogo Oliveira. “É uma estimativa conservadora. Pode ser muito mais.”
Entrevistei o ministro sobre alguns dos vários temas que estão em debate em sua área. Ele admite, por exemplo, que o BNDES pode vir a financiar a Cemig na compra das usinas. Segundo ele, o leilão está mantido para o dia 27 de setembro, mas até o dia 30 de agosto as conversas com a Cemig continuam. A estatal mineira argumenta que em três das quatro hidrelétricas cujas concessões não foram renovadas no governo Dilma há uma cláusula estabelecendo a renovação automática. Mas o governo colocou as usinas para serem leiloadas e já conta com o dinheiro para o fechamento da meta este ano:
— O leilão não está suspenso, mas até o dia 30 a Cemig me garantiu que apresentará uma estrutura financeira sólida. Nós não temos nenhum problema que a Cemig compre essas usinas, mas não podemos abrir mão do dinheiro delas. Se o BNDES decidir apoiar a Cemig dentro desse projeto, não vamos intervir. Não vamos impedir o banco de fazer um bom negócio.
O ministro diz que o governo tem condições de tocar a privatização da Eletrobras e dos outros 57 projetos de privatização que foram anunciados. Segundo ele, são equipes diferentes trabalhando e em algumas áreas já há a modelagem testada. Existem equipes especializadas em cada tipo de operação. Diz que na área das linhas de transmissão, por exemplo, serão 11 projetos privatizados, mas da outra vez foram 30:
— São coisas que a gente já fez em grande volume. As equipes já têm experiência e sabem fazer com tranquilidade. O que é importante é mostrar a correção de fazer isso.
Perguntei se o processo da Eletrobras, tão comemorado no mercado, não poderia parar por pressão política. Já há pressões para que se tire a Chesf por exemplo:
— A Eletrobras está com dificuldade de cumprir seus próprios planos de investimento, para desenvolver suas atividades, e através desse mecanismo ela passa a um patamar diferente de acesso a recursos. Importante mencionar que uma das partes da modelagem é exatamente a revitalização do Rio São Francisco. Então parte do ganho da privatização será revertido para investimento na área da Chesf. Esse era o projeto que o governo vinha realizando com dificuldade, por limitações orçamentárias.
Perguntei se o país escapa de um aumento de impostos, e o ministro não afirmou que sim nem garantiu que não. Disse que a carga tributária não aumentou. Pelo contrário:
— Nós tínhamos uma média histórica de 22,4% do PIB de arrecadação federal e nós estamos indo para 20% em 2018. Uma perda de 2,4 pontos percentuais do PIB, traduzindo em dinheiro, algo como R$ 150 bilhões. Não digo que os impostos vão aumentar, mas para que se tenha uma discussão objetiva sobre as coisas nós temos que falar com os números.
E o ministro apresentou números sobre a necessidade da reforma da Previdência. A despesa da Previdência total é de R$ 730 bilhões, e isso corresponde a 57% da despesa total do governo. Era 50% em 2010. Do ano passado para este ano, a Previdência aumentou em R$ 50 bilhões. Como o investimento total do governo será R$ 25 bi, só o acréscimo da despesa da Previdência é o dobro do que o setor público investe. O INSS tem um déficit de R$ 185 bilhões, mas atende a 30 milhões de aposentados e pensionistas. O déficit da Previdência dos servidores federais é de R$ 75 bilhões para atender apenas um milhão de aposentados e pensionistas:
— É uma desproporção muito grande. Quem ganha salário mínimo já se aposenta com quase 65 anos. O aposentado do setor público se aposenta mais cedo e ganhando mais. A reforma é para equilibrar e ter mais justiça no sistema.
Ele disse que a negociação para a reforma da Previdência dos militares prossegue e justificou o fato de eles terem sido poupados do congelamento dos salários afirmando que eles ganham menos que os servidores civis.
Luís Costa Pinto: Leilão operado por Moreira Franco é a fatura dos fiadores do impeachment
Programas de privatização precisam decorrer de um propósito. Não é o caso: feirão incinera patrimônio público brasileiro
DE SÁDICOS E DE NAJAS ALBINAS
Com o Brasil em liquidação, tendo à venda desde loteria –Lotex, onde a esperança é precificada– até a própria Casa da Moeda –onde se cunha e se imprime o preço de qualquer sonho– urge buscar a gênese de todo o mal. Fazer isso pode acelerar nosso processo de expiação de pecados e tornar menos árdua a autocrítica de cada cidadão em busca do seu naco de culpa em todo o processo que devasta a Nação, confisca a esperança e semeia ódios. Levado a cabo, pode se tornar uma catarse histórica.
Em sua página no Facebook, o filósofo e ex-ministro da Educação Renato Janine Ribeiro propõe um roteiro para que se inicie uma investigação acadêmica em torno do tema. O desafio é valoroso. Ei-lo (e sugestões podem ser encaminhadas no link que deságua na página de RJR):
“Roteiro para uma pesquisa essencial de História: saber como se montou o impeachment. Isso até agora não saiu.
Especificamente:
- Em que momento Michel Temer decidiu que queria ser presidente? Foi antes de sua declaração (ago/2015) de que alguém precisava unificar o País? O que o levou a tomar essa decisão?
- Quais grupos se formaram para articular o impeachment? Devem ter sido vários. Os principais protagonistas devem ter ficado longe das articulações, para não se exporem. Como isso se fez? (Único depoimento que conheço, o do deputado Heráclito Fortes, que disse que se reuniram durante um ano em sua casa vários articuladores).
- Que tentativas houve de negociação entre PT e PSDB para evitar o impeachment? Quem quis negociar, quem não quis? Quais condições foram apresentadas de parte a parte?
Nada disso é para insultar ou xingar. São questões que precisarão ser apuradas para se fazer a história desse momento tão difícil do País”.
Sugiro que a investigação comece dando a Wellington Moreira Franco o cetro de conspirador-mor. Ele o merece. Não se deve imaginar um cetro imperial, talhado em jacarandá e adornado por ouro e pedras preciosas. Não. Moreira contentar-se-ia com um cabo de vassoura adornado por cachos de bananas e retroses azuis. O retrós lembra diamantes, mas de tão barato termina sendo usado para adornar olhos de bonecas. Cetros tropicalizados, acessíveis assim, são mais compatíveis com o saldão de patrimônio público idealizado, lançado, administrado e cultuado pelo ministro-chefe da Secretaria de Governo. É dele a curadoria do PPI (Programa de Parcerias e Investimentos) onde se faz o escambo do Brasil.
Não deve haver prevenção alguma a programas de privatização. Mas eles precisam decorrer de um propósito. Têm de fazer sentido, de se encaixar em macroplanejamentos. E é recomendável que não prescindam de estratégias essenciais de conservação do controle público (não confundir com estatal) do objeto privatizado ou concedido.
Tais princípios norteavam a cabeça de Sérgio Motta, o ministro da Comunicações de Fernando Henrique Cardoso que iniciou o processo de privatização da área de telecomunicações e idealizou o modelo brasileiro de agências reguladoras. Motta, um tucano de espírito público e alma maior que seu corpanzil, vislumbrava um país com não mais do que 12 ou 14 ministérios na Esplanada e uma miríade de agências trabalhando coordenadamente sob o poder regulador do Estado e com o dedo no pulso dos cidadãos.
Como homem de máquinas políticas –partidárias ou clandestinas, pois foi um dos fundadores do PSDB e antes havia sido um dos grandes mantenedores da esquerda católica na resistência à ditadura, inclusive na clandestinidade– Serjão teve seus pecados. Mas eram veniais. Dele para cá, e mesmo durante o reinado do PSDB na Esplanada, as faltas foram se agravando e a regra agora é cometer pecados mortais. Incinerar patrimônio público como se queima palha de bananeira em fim de feira, como se faz hoje, não é só loucura. É crime. No papel dado a Sérgio Motta está Moreira Franco.
Venenoso qual uma naja albina, Franco lançou os primeiros acordes da conspiração para tomar o Palácio do Planalto quando recebeu a notícia de que não mais seria “ministro-chefe” da Secretaria de Aviação Civil no segundo mandato de Dilma Rousseff. Inventou a “Ponte para o Futuro”, rebatizada depois de “pinguela” pela verve de Fernando Henrique Cardoso, encomendou a Delfim Netto a redação final do texto, contratou o MBL (Movimento Brasil Livre), Alexandre Frota e outros malucos semelhantes para chacrinar a cena política e vendeu a República como se não houvesse amanhã.
O dia seguinte chegou, somos contemporâneos desse inferno, e os agiotas que providenciaram os exércitos mercenários pró-impeachment cobram seus preços e os juros altos do golpe institucional. Estão a pagá-lo. Moreira Franco é o guarda-livros da bodega, aceita transformar o Brasil numa boca de fumo em que toca o negócio quem impõe mais força para cima e subjuga mais sadicamente o povo para baixo.
Investigado por suspeita de operações junto ao Fundo de Investimentos do FGTS, ameaçado pelas delações premiadas do doleiro Lúcio Funaro e do presidiário Eduardo Cunha, de quem foi sócio em todo esse processo de liquidação do Estado brasileiro, e delatado por executivo da Odebrecht por ter pedido propina no processo de privatização do aeroporto do Galeão, o secretário-geral do Planalto encontra tempo para se converter num dos maiores fofoqueiros de Brasília. É considerado por repórteres fonte ferina, apesar de pouco confiável, das rotinas palacianas. Tem mandato para dialogar com as direções de grandes veículos de comunicação. Manda na verba publicitária do governo federal –e sabe o poder que advém disso: unindo órgãos ministeriais, Palácio do Planalto e estatais a soma bate R$ 2,1 bilhões.
José Sarney foi o último presidente da República que enxergou em Moreira Franco conselheiro digno de ser ouvido (nos anos FHC ele era deputado federal e integrava a 2ª divisão dos interlocutores palacianos. Não tinha voo próprio no Planalto. Navegava nas asas de Luís Eduardo Magalhães). Em 1987, quando a comitiva de Sarney visitava o Paço Imperial no Rio de Janeiro e Franco era governador do Estado, o comboio com ambos foi apedrejado por estudantes e funcionários públicos. Começava o ocaso de uma administração que se arrastaria por mais 3 anos e deixaria saldo devastador para a História. Não é necessário esperar outros 30 anos para concluir quem vem a ser o homem-bomba a implodir as estruturas nacionais unindo os vértices de nossas depressões econômicas nos gráficos que fotografam as derrocadas. Há o vértice M e o F.
* Luís Costa Pinto, 48 anos, trabalhou em publicações como Veja, Folha e O Globo. Teve livros e reportagens premiadas –por exemplo, "Pedro Collor conta tudo". É sócio da consultoria Idéias, Fatos e Texto.
Revista Veja: Poderes corrompidos
O ministro da Defesa defende a Lava Jato e diz que, no modelo atual, qualquer presidente, inclusive Temer, precisa render-se ao leilão de cargos e verbas, sob pena de não governar
Por Robson Bonin, Páginas Amarelas, Revista Veja
A agenda do ministro da Defesa, o pernambucano Raul Jungmann, de 65 anos, é espinhosa. É dele a responsabilidade de comandar a intervenção das tropas federais no Rio de Janeiro, contornar a insatisfação dos militares com a penúria orçamentária e intermediar a relação do presidente Michel Temer com o seu partido, o PPS, que, apesar de ter abandonado a aliança governista, ainda pode dar votos favoráveis à reforma da Previdência. Para encarar a dureza da rotina, Jungmann despacha ao som de óperas do compositor italiano Giuseppe Verdi. Na militância política, o ministro, que é suplente de deputado federal, lamenta o estado deplorável do sistema político-eleitoral, mas acha que a Lava-Jato está fazendo um necessário trabalho de saneamento. Hoje, tal como está, o sistema é um convite à corrupção mútua, em que um poder corrompe o outro. A seguir, os principais trechos de sua entrevista a VEJA.
O PPS, seu partido, deixou a base governista por causa das denúncias de corrupção. O senhor se sente à vontade no governo do presidente Michel Temer? Se não me sentisse à vontade, sairia. Houve uma precipitação do PPS, e eu disse isso ao presidente do partido. Não me senti obrigado a deixar o governo porque estou em uma função de Estado, em um momento de crise, e tenho compromisso de lealdade com o presidente Temer e os comandantes das Forças Armadas.
Não é constrangedor dividir o ministério com investigados na Lava-Jato? Essa purgação trazida pela Lava-Jato é necessária. Do mesmo jeito que no Brasil há capitalismo de laços, vivíamos uma política de laços, e acho que isso está sendo rompido pela Lava-Jato. Melhor seria se o próprio sistema político tivesse se antecipado. Não o fez, agora está pagando o preço. Esse processo não pode nem deve parar, para o bem do Brasil.
O senhor disse que o presidente Temer tem o direito de terminar o mandato. Não era direito da sociedade ver o STF investigando as denúncias que pesam contra ele? Lembro que o Congresso decidiu que não cabe investigar o presidente agora. A investigação deverá prosseguir, se assim o Judiciário entender, depois do mandato. Mas acho que há interesse público na continuidade de um governo que se propõe a retirar o país da crise a que o populismo nos lançou. Aceitar a denúncia lançaria o país numa turbulência ainda pior.
Como político, o senhor acha razoável destinar bilhões de reais para financiar campanhas eleitorais? Não é razoável. Fomos lançados nessa situação por uma decisão equivocada do Supremo ao proibir — e não limitar, que seria o correto — as doações privadas. O Brasil não tem tradição de doação de pessoa física às campanhas. A proibição do financiamento privado nos condenou à busca de saídas equivocadas como essa. Não é aceitável nem palatável concordar com essa saída neste momento.
Como o senhor avalia as negociatas e barganhas envolvendo o Congresso? Temos um sistema ingovernável, com mais de trinta partidos. Ressalvando meia dúzia que têm projeto, a grande maioria se transformou em negócios. A lassidão e a frouxidão no controle dos partidos levam à situação em que qualquer presidente da República, para fazer maioria, precisa barganhar cargos e emendas. É uma forma sofisticada e disfarçada de corromper um poder pelo outro.
O senhor cogita concorrer ao governo do Rio de Janeiro, como dizem? Se eu fizesse um movimento desses, jogaria no lixo todo o trabalho e a operação que aí estão. E teria de pedir demissão do cargo, porque as Forças Armadas, como instituição do Estado, não se prestam a ser cabo eleitoral de quem quer que seja. Não sou moleque para fazer uma coisa dessas.
"Lula teve chances incomparáveis, com condições econômicas favoráveis aqui e lá fora, de tornar o Brasil um país moderno e não o fez. Ele ficou no populismo econômico"
Lula tem chances de vencer a próxima corrida presidencial? Se o Lula tiver condições de ser candidato, acho difícil que ganhe as eleições. Ele tem teto eleitoral, e esse teto não lhe permite chegar à Presidência. Lula teve chances incomparáveis, com condições econômicas favoráveis aqui e lá fora, de tornar o Brasil um país moderno e não o fez. Ele ficou na esfera do populismo econômico e fiscal, torrou bilhões de reais e deu guarida ao maior esquema de corrupção já investigado na história brasileira.
O senhor foi ministro da Reforma Agrária no governo FHC. Aquele desafio era maior do que o atual? Eu peguei o auge dos conflitos fundiários no Brasil. Fui nomeado doze dias depois de Eldorado dos Carajás (quando a Polícia Militar do Pará, em abril de 1996, matou dezenove trabalhadores sem-terra). Brinco que aqui é o Ministério da Defesa. Lá era o Ministério da Guerra. Naquele momento, o PT usava o MST para fazer o governo FHC sangrar. Hoje as coisas mudaram. Os governos Lula e Dilma promoveram a cooptação do MST, que passou a ser chapa-branca e entrou em declínio, tendo agora um papel secundário.
Qual o impacto da penúria financeira na caserna? Estamos operando no limite. Se não houver a liberação de recursos até o início de outubro, teremos problemas operacionais nas Forças Armadas. Isso gera preocupação e desconforto como em qualquer outra instituição que depende de orçamento. A pressão existe, mas a área econômica prometeu liberar recursos agora que a meta fiscal foi revisada. O que o Brasil ganha investindo dinheiro e tropas em ações como a missão no Haiti? Em treze anos de operação, cerca de 36 000 soldados brasileiros passaram pelo Haiti. Foi uma grande oportunidade de treinamento para as tropas. O país ganhou respeito e reconhecimento internacional pelo desempenho dos nossos soldados em prover a paz, tanto que temos solicitações de dez países para coordenar uma futura missão. Depois do Haiti, iremos para a República Centro-Africana.
Qual o resultado das varreduras que o Exército vem fazendo em presídios de vários estados? É espantoso. Na 14ª de 21 varreduras realizadas até agora, o somatório da população carcerária revistada dava 12 000 homens e já contávamos mais de 4 000 armas brancas. Ou seja, você tinha uma arma branca para cada três apenados. Isso é a maximização da tragédia e do massacre. Ainda tinha celular, armas de fogo, drogas, munição, televisores, rádio, geladeira, freezer... Identificamos presídios em que o controle interno era feito pelos próprios presos. A superpopulação carcerária e o déficit de agentes penitenciários levaram os governos de alguns estados a realizar pactos não escritos com o crime organizado.
Se o sistema carcerário não impede a entrada de novas armas nos presídios, o que fazer? É exatamente essa a nossa preocupação. Por isso, tornamos público o resultado das varreduras nos presídios e chamamos a atenção dos governos estaduais e da opinião pública. O governo liberou recursos para a construção de pelo menos um presídio em cada estado. Mas é muito difícil que os municípios aceitem recebê-los e que haja velocidade em suas obras. É uma face da tragédia do sistema carcerário.
O uso das Forças Armadas em conflitos de segurança pública é adequado? Quando um governador solicita o emprego de Forças Armadas, o presidente da República se vê diante de um dilema. Ele não pode deixar a população exposta e vulnerável ao crime. Por outro lado, a utilização das tropas, cada vez mais recorrente em decorrência da crise de segurança, vem banalizando as operações de garantia da lei e da ordem. As Forças Armadas não são treinadas e preparadas para combater o crime. Costumo dizer que o emprego delas para esse fim faz com que o bandido simplesmente tire férias. As tropas entram, o bandido sabe que não pode ficar ali e se retrai. Quando as tropas saem do território, ele volta. A presença das Forças Armadas apenas inibe, mas não tira a capacidade operacional do crime. Isso quem pode fazer são as polícias. É como se fosse uma anestesia. A dor passa no primeiro momento, mas, quando cessa o efeito da anestesia, o mal está lá, continua.
É o que acontece no Rio de Janeiro? O Rio de Janeiro é um caso necessário de intervenção federal. Pelos dados que temos, o Rio tem mais de 800 comunidades controladas pelo crime organizado e pelas milícias. Quem controla a comunidade controla votos, e quem tem votos elege aliados e representantes. Essa cooptação do poder público, esse Estado paralelo é o grande problema do Rio. O estado foi cooptado pelo crime em suas mais diversas esferas. Precisamos criar uma força-tarefa federal que consiga fazer essa desintrusão do crime dentro do estado do Rio de Janeiro. É preciso golpear o comando do crime, os arsenais e o circuito financeiro. Isso se faz com integração de órgãos e inteligência de todas as forças. O presidente determinou que as Forças Armadas ficarão no Rio de Janeiro até o último dia de governo.
"As Forças Armadas inibem, mas não tiram a capacidade operacional do crime. A dor passa no primeiro momento, mas, quando cessa o efeito da anestesia, o mal está lá"
A crise na Venezuela pode trazer instabilidade para toda a região? A Venezuela definitivamente se tornou uma ditadura. A Constituinte de Maduro encerra a ideia de que somos o subcontinente da paz, que os nossos conflitos são de baixíssima intensidade e que o Brasil é líder nesse subcontinente. É muito provável que a gente venha a ter uma repressão de Estado. Se o cenário se degradar desse jeito, teremos um problema sério, porque isso pode provocar o envolvimento de outras potências de fora do subcontinente em assuntos sobre os quais o Brasil se vê como líder. Isso vai nos deixar diante de um grande dilema.
O que preocupa mais: uma escalada militar ou a questão dos refugiados? Não creio em intervenção militar, porque o Brasil tem na Constituição o respeito à soberania das nações e a paz como instrumento essencial. Creio em um período longo de dificuldades humanitárias crescentes. As nossas preocupações mais imediatas são com os refugiados e os brasileiros que vivem na Venezuela. São 17 000 legalizados, mas esse número pode chegara 30 000 com os ilegais. Estamos nos preparando para a hipótese de termos de criar um corredor humanitário para retirar esses brasileiros do país. Isso vai demandar um esforço logístico e uma atuação grande da Defesa.
Para evitar o impeachment, aliados da presidente Dilma cogitaram decretar no Brasil o Estado de Defesa. Era viável? Naquele instante, as Forças Armadas mandaram recado à presidente Dilma que de forma alguma consideravam necessário, tampouco se comprometiam com a decretação de um Estado de Defesa. Antes de isso ocorrer, houve algo mais sério, que foi o decreto que retirava dos comandantes a competência para a promoção das tropas. Isso, sim, representava um retrocesso democrático inaceitável.
Luiz Carlos Azedo: Notícia boa, notícia ruim
A notícia boa foi a reação do mercado financeiro à decisão de que o governo pretende privatizar a Eletrobras. O Ibovespa, principal índice de ações brasileiras, fechou em alta de mais de 2%, atingindo, pela primeira vez em mais de seis anos, o patamar de 70 mil pontos. Com valorização de quase 50% nos papéis ordinários da Eletrobras, a empresa ganhou R$ 9,13 bilhões num único dia, muito mais do que renderia qualquer plano de reestruturação que fosse anunciado para melhorar seu desempenho.
Falou em vendê-la e a Eletrobras mudou significativamente de valor. As ações ordinárias, que dão direito aos acionistas de voto nas assembleias, subiram 49,3%, para R$ 21,20. Já as ações preferenciais, que permitem aos acionistas prioridade no recebimento dos lucros da empresa, avançaram para R$ 23,55 (32,08%). Os analistas de mercado exultaram com a decisão, que deixará de fora do pacote a Itaipu binacional, de propriedade do Brasil e do Paraguai, e a Eletronuclear, responsável pela produção e programas de energia nuclear.
A notícia ruim, porém, foi a assinatura do acordo de delação premiada do doleiro Lúcio Funaro, anunciada pela Procuradoria-Geral da República. Trata-se do principal operador do caixa dois do ex-presidente da Câmara Eduardo Cunha (PMDB-RJ) e de outros caciques do PMDB. Funaro promete revelar novos detalhes de esquemas de corrupção envolvendo o presidente Michel Temer e alguns de seus ministros. A prisão de Roberta Funaro, irmã do doleiro, a partir da delação premiada dos executivos da JBS, levou-o a fazer o acordo.
Com isso, o fantasma de uma nova denúncia do procurador-geral da República, Rodrigo Janot, contra o presidente Michel Temer voltou a rondar o Palácio do Planalto. Cumpriria a promessa que fez ao anunciar que a faria até a entrega do cargo para Raquel Dodge, sua sucessora no cargo. Essa expectativa nos meios políticos acaba repercutindo no mercado e deixa inseguros os agentes econômicos. De certa forma, a antecipação do anúncio da privatização da Eletrobras pode ter sido provocada pela informação de que Funaro havia assinado a delação. Ao fazê-lo, Temer passou à ofensiva novamente junto aos meios empresariais, neutralizando o desgaste da notícia.
A narrativa do Palácio do Planalto de que a Operação Lava-Jato é autoritária e atrapalha a recuperação da economia já salvou o presidente da República de afastamento pela Câmara, com a rejeição da denúncia de Janot baseada nas gravações da conversa de Temer com o empresário Joesley Batista, da JBS. A privatização da Eletrobras é um sinal muito forte de que o governo o avança nas reformas econômicas, ainda que não consiga enxugar os gastos na Esplanada dos Ministérios e desencalhar a reforma da Previdência no Congresso. E que a Lava-Jato se tornou o maior problema para o país reencontrar seu rumo. Isso não resolve o problema de popularidade de Temer, mas ajuda a blindá-lo contra uma nova denúncia.
Reforma política
O presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), adiou pela segunda vez a votação da reforma política. Os deputados não conseguem se entender em relação às propostas em discussão. Afora as questões de mérito, a confusão quanto ao processo de votação é grande. Parte dos deputados queria analisar a PEC ponto a ponto, não o relatório completo. Mas, pelo regimento, o requerimento para fatiar a votação deve ser apresentado pelo relator ou ter o consentimento dele. Vicente Cândido (PT-SP), relator do projeto, havia concordado com o fatiamento, mas acabou pressionado e voltou atrás.
Pra aumentar a confusão, a relatora de outra comissão, a deputada Shéridan (PSDB-RR), anunciou mudanças na proposta de regras da cláusula de desempenho eleitoral para beneficiar partidos menores. Flexibilizou as exigências para ter direito ao tempo gratuito de rádio e televisão e acesso ao Fundo Partidário, da ordem de R$ 819 milhões em 2017.
Também propôs a formação de federações regionais, que teriam que se manter durante toda a legislatura. A exigência para ter direito ao dinheiro do fundo era o partido eleger pelo menos 18 deputados distribuídos em pelo menos nove estados; o número foi reduzido para 15 deputados.
Na fase de transição, até a implementação efetiva das medidas, de 2018 a 2030, o número de deputados eleitos pelo partido para ter acesso ao fundo também diminuiu. Manteve-se a regra alternativa, que determina que terão acesso ao fundo os partidos que alcançarem pelo menos 3% dos votos válidos nas eleições para a Câmara, distribuídos em pelo menos nove estados, com um mínimo de 2% dos votos em cada um. A federação é uma saída para os partidos que não atingirem as exigências mínimas de acesso ao fundo. Esta proposta abre espaço para manutenção do atual sistema de votação proporcional.
FHC deu aval à crítica em propaganda
Ex-presidente FHC aprovou peça do PSDB veiculada na televisão em que o partido admite erros e fala em ‘presidencialismo de cooptação’
Julia Lindner e Igor Gadelha
O Estado de S.Paulo
A propaganda do PSDB veiculada nesta quinta-feira, 16, em cadeia nacional de rádio e TV aumentou as divergências internas, levando uma ala de governistas do partido a iniciar um movimento para tentar afastar o presidente interino da sigla, senador Tasso Jereissati (CE), do cargo. Tasso é apontado como o responsável pelo vídeo, produzido pelo publicitário Einarth Jacomé. O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso também ajudou a elaborar a propaganda.
“Isso não faz o menor sentido, porque, se vai substituir o presidente do partido, tem que substituir também o presidente honorário, já que o vídeo passou pelo crivo do presidente FHC”, disse o senador tucano Cássio Cunha Lima (PB).
Segundo integrantes do partido, FHC foi responsável por sugerir o uso da expressão “presidencialismo de cooptação” para criticar o modelo de governo brasileiro, considerada uma das frases mais polêmicas da peça e vista como crítica ao governo Michel Temer. “A expressão ‘cooptação’ foi sugestão do próprio FHC. Ia ser coalizão e ele sugeriu cooptação”, disse Cunha Lima.
Segundo Jacomé, o material foi exibido ao ex-presidente em São Paulo e recebeu sua aprovação. De acordo com o publicitário, FHC disse, na ocasião, que era preciso “chacoalhar a política”. FHC afirmou que, no primeiro caso, da “cooptação”, dá-se uma relação com pessoas, mediada por nomeações e interesses pessoais, chegando aos financeiros. O outro modelo, presidencialismo de coalizão, supõe uma convergência de pontos programáticos em consequência de apoios aos quais se abre espaço no governo.
Autocrítica. No programa de dez minutos, o PSDB fez uma “autocrítica” por ter “aceitado o fisiologismo”. “O presidencialismo de cooptação que vigora no Brasil faliu, tendo gerado crises sucessivas e muita instabilidade política”, diz o locutor, sem citar que a sigla ocupa quatro ministérios do governo.
Aliados de Tasso apontaram a participação de integrantes do Palácio do Planalto no movimento para afastar o senador da presidência interina do partido. Ele é pró-desembarque do governo. “A reação que vem (contra o programa do PSDB) é dos governistas, está evidente a participação do governo nessas declarações”, disse o senador Ricardo Ferraço (PSDB-ES).
Ferraço afirmou ainda que há movimentos para que o PSDB se transforme “em força auxiliar do governo”. “Há esforço (do governo) para que o PSDB se anule”, afirmou.
Interlocutores de Temer, no entanto, disseram que o presidente tem perfil ponderado, não radical, e que o peemedebista conversou com Tasso por telefone. O tucano ligou para Temer para explicar a peça e, segundo interlocutores, o presidente não fez nenhum tipo de cobrança.
Nos bastidores, auxiliares de Temer consideraram um “tiro no pé” a propaganda. Segundo um interlocutor do presidente, ao reconhecer erros, os tucanos, além de darem munição a adversários na eleição do ano que vem, escancaram a crise vivida dentro partido.
Disputa. Tucanos da ala governista querem que o senador Aécio Neves (MG) reassuma a presidência da sigla temporariamente e escolha outro vice-presidente para comandar o partido até 9 de dezembro, quando está prevista nova eleição da Executiva. Nos bastidores, apostam no senador Flexa Ribeiro (PA) ou no deputado Giuseppe Vecci (GO) como substitutos de Tasso.
Enquanto isso, líderes do PMDB e do Centrão, grupo do qual fazem parte PP, PSD, PR e PRB, passaram a cobrar publicamente que o PSDB entregue os quatro ministérios que detém no governo: Cidades, Secretaria de Governo, Relações Exteriores e Direitos Humanos.
Interlocutores do Planalto voltaram a afirmar que o governo não vai retaliar os atuais ocupantes de cargos no primeiro escalão da Esplanada. Os ministros tucanos Antonio Imbassahy (Secretaria de Governo), Aloysio Nunes (Relações Exteriores) e Bruno Araújo (Cidades) foram rápidos ao se manifestar contra o programa e dizer que a peça não os representa. Auxiliares de Temer lembrara ainda que os três atuaram para ajudar a derrubar a denúncia contra Temer. / Colaboraram Carla Araújo, Tânia Monteiro e Pedro Venceslau
Luiz Carlos Azedo: A volta do parlamentarismo
A principal experiência parlamentarista na nossa história é a do Império, na qual saquaremas (conservadores) e luzias (liberais) se revezaram no poder e produziram uma das mais perenes de nossas tradições políticas: a conciliação. Seu maior legado foi a nossa integridade territorial, pois assim se resolveu pela política o ciclo de rebeliões do período regencial que ameaçou dividir o país, desde a Revolução Pernambucana, que completou 200 anos. O pior legado são as sequelas da escravidão, que, graças à política de conciliação, foi mantida até 1888.
Na Corte de D. Pedro II, o parlamentarismo funcionou muito bem como um pacto de elites; o povo, a rigor, não contava. A proclamação da República, espelhada nos Estados Unidos e não na França, embalada pelas ideias positivistas de Benjamin Constant e a forte personalidade do presidente Floriano Peixoto, nosso primeiro grande caudilho, sepultou o parlamentarismo, mas não a conciliação, que ressurgiu das cinzas com a política café com leite.
Foi como subproduto da conciliação que o parlamentarismo voltou a ser adotado, em 1961, para garantir a posse do ex-presidente João Goulart, após a renúncia de Jânio Quadros. Evitou-se com ele o golpe de Estado que viria a ocorrer alguns anos depois, embalado pelas mesmas forças que haviam forçado o suicídio de Vargas e tentaram impedir a posse de Juscelino. A vitória do presidencialismo no plebiscito convocado por Jango impôs a radicalização política como destino, num momento em que a guerra fria por muito pouco não se tornou guerra quente.
Jânio renunciaria sete meses depois de tomar posse, num gesto que nunca foi muito bem explicado, mas resultou de uma contradição de seu governo: a adoção de uma política externa independente, que não se coadunava com o sistema de forças que havia garantido sua eleição. Com a renúncia do presidente Jânio Quadros, em agosto de 1961, João Goulart deveria assumir o governo. Naquela época, o vice eleito era o mais votado, independentemente da chapa. Uma manobra de trabalhistas e comunistas paulistas viabilizou a eleição do vice com a chapa Jan-Jan. O general Henrique Lott, candidato oficial do PTB, foi cristianizado.
Golpe
Mas a UDN (União Democrática Nacional) e os militares tentaram impedir a sua posse. Jango, que era aliado do PCB, estava em visita oficial à China comunista. O golpe fracassou porque o governador do Rio Grande do Sul, Leonel Brizola, cunhado de Jango, encabeçou a chamada Campanha da Legalidade, a fim de garantir o direito previsto na Constituição de 1946 de que, na falta do presidente, assume o candidato eleito a vice.
Com o apoio do Comando Militar do Rio Grande do Sul e de líderes sindicais, de movimentos estudantis e de intelectuais, o golpe foi frustrado, mas para isso foi feito um acordo político no Congresso, com a adoção do sistema parlamentarista e consequente limitação dos poderes do presidente. Ele indicava os ministros, mas interferia muito pouco na vida dos ministérios. O primeiro-ministro indicado foi Tancredo Neves, do PSD (Partido Social Democrata) mineiro, que ocupou o cargo de setembro de 1961 até junho de 1962.
Plebiscitos
A eleição de Tancredo foi esmagadora: 259 votos a favor, 22 votos contra e sete abstenções. Mas Jango não aceitava o parlamentarismo e resolveu antecipar o plebiscito que referendaria o sistema de governo, marcado para 1965. Foi substituído por Brochado da Rocha, um político trabalhista, e Hermes Lima, que exerceu um mandato-tampão. Em janeiro de 1963, houve um plebiscito (consulta popular), para decidir sim ou não à continuidade do parlamentarismo. Com 82% dos votos, o povo optou pela volta do presidencialismo.
Restavam ainda três anos de mandato para João Goulart. Elaborado pelo economista Celso Furtado, acabou lançado o Plano Trienal, que previa geração de emprego, diminuição da inflação, entre outras medidas para pôr fim à crise econômica. Porém, o plano não atingiu os resultados esperados. A crise política se reinstalou e o golpe militar retomou sua marcha, consumando-se em março de 1964.
A adoção do parlamentarismo voltou a ser cogitada na Constituinte de 1987, mas fracassou por causa das idiossincrasias de políticos que se diziam parlamentaristas, mas abriram mão do regime de governo de olho na Presidência. O então presidente, José Sarney, chegou a admitir a aprovação do plebiscito, em troca de seis anos de mandato. Relator da Constituinte, Mario Covas rejeitou o acordo, com apoio de Ulysses Guimarães, que sempre foi presidencialista. Hoje, temos o “presidencialismo de coalizão” porque a Constituição de 1988 tem viés parlamentarista. Tanto que a legislação sobre o impeachment, enxertada no texto constitucional, se baseia numa lei da década de 1950.
O plebiscito convocado pela Constituinte para decidir entre os regimes republicano ou monarquista e os sistemas presidencialista e parlamentarista, em 1993, deu o resultado que já se esperava. Vitória da república presidencialista. Agora, o tema do parlamentarismo volta à pauta, defendido por partidos tradicionalmente parlamentaristas, mas com o apoio velado do presidente Michel Temer. A crise ética e a reforma política de fato criam condições para a aprovação de uma emenda constitucional estabelecendo o parlamentarismo mitigado, que poria fim a crises políticas de longa duração (em tese, essa é a vantagem). Mas também pode dar margem à existência de um projeto continuísta a la Putín, que bloqueie ainda mais a nossa democracia.
Fernando Henrique Cardoso: Convicção e esperança
É hora de sonhar com 2018, deixar de lado o desânimo e preparar o futuro
Escrevo antes de saber o resultado da votação pela Câmara da autorização para o STF poder julgar a denúncia oferecida pelo procurador-geral contra o presidente da República. É pouco provável que a autorização seja concedida. Houve precipitação da Procuradoria, que fez a denúncia sem apurações mais consistentes. Entretanto, para o que desejo dizer, pouco importa a votação: a denúncia em si mesma e a fragmentação dos partidos no encaminhamento da matéria já indicam um clima de quase anomia, no qual algumas instituições do Estado e os partidos políticos se perderam.
Esta não é uma crise só brasileira. Em outros países onde prevalecem sistemas democrático-representativos também se observa a descrença nas instituições, por seu comportamento errático, sobretudo no caso dos partidos. Mesmo nos Estados Unidos, na Inglaterra ou na França – países centrais na elaboração de ideologias democráticas e na formação das instituições políticas correspondentes – se nota certa falta de prestígio de ambas. Não falta quem contraste as deficiências dos regimes democráticos com as supostas vantagens dos regimes autoritários e mesmo ditatoriais.
O contraste é falacioso, sobram exemplos de ineficiência nos regimes autoritários, sem falar na perda da liberdade, individual e pública, cujo valor não pode ser medido em termos de eficiência dos governos. Nem faltam casos para mostrar o quanto podem levar ao desastre os regimes que de autoritários passam a ditatoriais, como na Turquia atual ou, mais impressionantemente ainda, na Venezuela, onde acontece um verdadeiro horror perante os céus. Nela, a inexistência das garantias democráticas se soma ao descalabro econômico-financeiro.
Não é, contudo, o caso do Brasil. Houve, é certo, a perda de controle das finanças públicas pelo governo anterior. Mas nunca se chegou a ameaçar diretamente a democracia. Aqui o que houve foi a generalização e a sacralização da corrupção, com as ineficiências decorrentes, aprofundando a perda de confiança popular no governo e na vida política. Nesse sentido, estamos imersos num mar de pequenos e grandes problemas e tão atarantados com eles que somos incapazes de vislumbrar horizonte melhor. É isso o que mais me preocupa, a despeito da gravidade tanto dos casos de corrupção quanto dos desmandos que vêm ocorrendo.
Falta alguém dizer como De Gaulle disse quando viu o desastre da Quarta República francesa e a derrocada das guerras coloniais: que era preciso manter uma “certa ideia da França” e mudar o rumo das coisas. Aqui e agora, guardadas as proporções, é preciso que alguém – ou algum movimento – encarne uma certa ideia de Brasil e mude o rumo das coisas. Precisamos sentir dentro de cada um de nós a responsabilidade pelo destino nacional. Somos 210 milhões de pessoas, já fizemos muito como país, temos recursos, há que voltar a acreditar no nosso futuro.
Diante do desmazelo dos partidos, da descrença e dos fatos negativos (não só a corrupção, mas o desemprego, as desigualdades e a falta de crença no rumo) é preciso responder com convicções, direção segura e reconstrução dos caminhos para o futuro. Isso não significa desconhecer que existam conflitos, incluídos os de classe, nem propor que política se faça só com “os bons”. Significa que chegou a hora de buscar os mínimos denominadores comuns que nos permitam ultrapassar o impasse de mal-estar e pessimismo.
Infelizmente, os partidos, sozinhos, não darão respostas a essa busca. O quadro desastroso – quase 30 partidos atuando no Congresso, separados não por crenças, mas por interesses grupais que se chocam na divisão do bolo orçamentário e no butim do Estado – isola as pessoas e os líderes, enclausurando-os em partidos que se opõem uns aos outros sem que se veja com clareza o porquê.
Penso que o polo progressista, radicalmente democrático, popular e íntegro precisa se “fulanizar” numa candidatura que em 2018 encarne a esperança. As dicotomias em curso já não preenchem as aspirações das pessoas: elas não querem o autoritarismo estatista nem o fundamentalismo de mercado. Desejam um governo que faça a máquina burocrática funcionar, com políticas públicas que atendam às demandas das pessoas. Um governo que seja inclusivo, quer dizer, que mantenha e expanda as políticas redutoras da pobreza e da desigualdade (educação pública de maior qualidade, impostos menos regressivos, etc.); que seja fiscalmente responsável, atento às finanças públicas, e ao mesmo tempo entenda que precisamos de maior produtividade e mais investimento público e privado, pois sem crescimento da economia não haverá recuperação das finanças públicas e do bem-estar do povo.
Um governo que, sobretudo, diga em alto e bom som que decência não significa elitismo, mas condição para a aceitação dos líderes pelos que hão de sustentá-los. Brizola, referindo-se a Lula, disse que ele era a “UDN de macacão”, lembrando a pregação ética dos fundadores do PT. Infelizmente, Lula despiu o macacão e se deixou engolfar pelo que havia de mais tradicional em nossa política: o clientelismo e o corporativismo, tendo a corrupção como cimento. Não é desse tipo de liderança que precisamos para construir um grande País.
Ainda que venham a ocorrer novos episódios que ponham em causa o atual governo, e melhor seria que não houvesse, de pouco adianta substituir quem manda hoje por alguém eleito indiretamente: ao líder faltaria o sopro de legitimidade dado pelo voto popular, necessário para enfrentar os desafios contemporâneos. É tarde para chorar por impeachments perdidos ou por substituições que nada mudam. É hora de sonhar com 2018 e deixar de lado o desânimo. Preparemos o futuro juntando pessoas, lideranças e movimentos políticos num congraçamento cívico que balance a modorra dos partidos e devolva convicção e esperança à política.
*Fernando Henrique Cardoso é sociólogo, foi Presidente da República.