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Renato Janine: "Brasil corre risco de ter apagão científico"
Presidente da SBPC avalia que corte de mais de R$ 600 milhões é uma escolha política com consequências devastadoras
"Corremos risco de ver laboratórios fechando. É como ter uma Ferrari e deixar o motor fundir porque não se coloca óleo"
Em uma manobra que pegou a comunidade científica de surpresa, o Ministério da Economia provocou um corte drástico em recursos aguardados pelo Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações (MCTI). Dos R$ 690 milhões previstos por meio de um projeto de lei, apenas R$ 55,2 milhões foram direcionados para a pasta. A redução foi feita pela comissão mista de orçamento do Congresso Nacional a pedido do ministério comandado por Paulo Guedes.
O montante inicial abasteceria principalmente o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), que contava com a verba para viabilizar uma nova chamada de projetos – que tinha sido suspensa em 2018 por falta de recursos.
Para Renato Janine Ribeiro, ex-ministro da Educação e atual presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), a decisão do governo ameaça a continuidade da pesquisa no país. "É uma situação inacreditável", afirma em entrevista à DW Brasil, apontando que o Brasil pode estar diante de um "apagão científico".
Numa carta voltada aos parlamentares, a SBPC e as demais entidades que compõem a Iniciativa para a Ciência e Tecnologia no Parlamento (ICTP.br) – Academia Brasileira de Ciências, Andifes, Confap, Conif, Confies, Consecti e IBCHIS – classificam o corte de uma afronta e fazem um apelo para que os políticos revertam a decisão. "Está em questão a sobrevivência da ciência e da inovação no país", alertam.
Sem ciência, o país está fadado ao atraso, considera Janine Ribeiro. "O Brasil está perdendo chances gigantescas de se projetar", diz.
Renato Janine Ribeiro: "Temos que fazer uma grande mobilização para mostrar à sociedade brasileira a importância da ciência"
DW Brasil: O corte nos recursos pegou a comunidade científica de surpresa?
Renato Janine Ribeiro: Foi uma surpresa total. Imagine o projeto de lei (PLN 16/2021) estar para ser votado, na hora chega uma carta do ministro que desautoriza tudo o que estava sendo feito, e que muda todas as coisas… Isso não existe. É uma situação inacreditável o que aconteceu, um choque muito grande para a comunidade científica. As pessoas ficaram sem saber o que fazer diante disso.
É o choque e a preocupação. O ministro da Economia nem avisou o colega da Ciência, o Marcos Pontes, do que estava acontecendo, segundo o que sabemos. Isso também é uma atitude que não é usual, tratar um colega do ministério dessa maneira.
Quais são as consequências imediatas desse corte que vocês já conseguem vislumbrar?
São devastadoras. Ficamos praticamente sem financiamento para fazer pesquisa. Fica muito limitado. Desse valor total (R$ 690 milhões), R$ 200 milhões iriam para o chamado Edital Universal do CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico).
Ele lança editais específicos e, de vez em quando, um edital universal. O específico pode ser, por exemplo, para pesquisar uma vacina, para tratar de um problema específico, para desenvolver uma área que está precisando de aportes novos, etc. Já o edital universal está aberto para todas as áreas do conhecimento e tem finalidade de atender todas as áreas que se qualifiquem. Esse edital tinha R$ 250 milhões, dos quais R$ 200 milhões viriam desse dinheiro novo. E agora não virá, foi cortado.
Foram 30 mil pedidos de investimentos que entraram para esse edital até o dia 30 de setembro, que seriam analisados agora e que não terão mais como seguir.
Bolsas também serão afetadas?
Pelo o que sabemos até agora, foram afetados alguns auxílios, como as bolsas RHAE, que são bolsas de recursos humanos para atender empresas. Elas servem para financiar um aluno, um mestrando ou doutorando, para melhorar o desempenho econômico de uma empresa. Essas bolsas foram cortadas também na faixa de centenas de milhões de reais.
O que é possível fazer para minimizar esse impacto que o senhor classifica como devastador?
Temos que fazer uma grande mobilização. Já convocamos para o dia 15 próximo uma jornada de defesa da ciência. Nossa ideia é mostrar para a sociedade brasileira a importância da ciência, mostrar como a ciência se traduz numa melhor vida para as pessoas, como isso pode ser decisivo.
Tem que ficar claro que nós não estamos pedindo coisas para nós, que somos da área da ciência. Nós estamos querendo mostrar o papel decisivo que a ciência tem para o desenvolvimento econômico e social do país.
Na visão do senhor, a busca por soluções para frear a pandemia deveria ter mostrado isso aos governantes e à sociedade?
Nós fomos capazes de muito. Nós temos Jaqueline Goes de Jesus, a biomédica negra que fez o sequenciamento do genoma do vírus SARS-CoV-2 em apenas 48 horas após a confirmação do primeiro caso de covid-19 no Brasil.
Se o governo tivesse canalizado recursos para vacina, nós já teríamos tido uma vacina brasileira. Cuba tem sua própria vacina, e o Brasil tem mais cientistas e PIB (Produto Interno Bruto) que Cuba. Mas, em vez disso, o governo colocou dinheiro na cloroquina. É muito complicado isso.
O que pode acontecer com as universidades públicas, que já vêm sofrendo com cortes e falta de verbas?
Corremos risco de ver laboratórios fechando. É como ter uma Ferrari e deixar o motor fundir porque não se coloca óleo. Temos laboratórios que receberam investimento, construíram muitos resultados, com muita dedicação e, de repente, param de funcionar. Eles não se atualizam, os equipamentos não são mais reparados, não se recebem mais pesquisadores, estudantes não são mais enviados ao exterior para conhecer novas tecnologias e novas descobertas científicas. É algo tenebroso. Não consigo entender a lógica disso.
Como o senhor enxerga o futuro de um país que não investe em ciência?
O futuro é contrário, por exemplo, ao futuro alemão. A Alemanha é a atual potência que é devido à ciência. O país conseguiu chegar aonde chegou porque usou muito o resultado de pesquisas científicas. Laboratórios como os do Instituto Max Planck são fundamentais.
Se o Brasil não for capaz de fazer isso, nós vamos ficar um país atrasado. É como exportar o pó de café para importar as cápsulas feitas para as máquinas da bebida. É uma linha divisória que a industrialização pretendia romper na década de 1960, mas não basta ter indústria, é preciso ter conhecimento científico aprimorado.
O Brasil está perdendo chances gigantescas de se projetar. Assim como a mudança na diplomacia ambiental brasileira significou a perda de protagonismo internacional, já que o Brasil sempre foi um país respeitado por suas políticas de meio ambiente e serenidade na diplomacia, nós estamos tendo agora o risco de ter um apagão científico. E um apagão desse é algo que acontece depressa, e, depois, para reaver é muito demorado.
É possível reverter de imediato parte desse dano?
Existe dinheiro. Tanto que estão sendo perdoadas multas ambientais em grande valor. O governo está abrindo mão de recursos para outras áreas. Por que ele abre mão de multas de crimes ambientais e não canaliza esses recursos para a ciência? É uma escolha política.
Fonte: DW Brasil
https://www.dw.com/pt-br/brasil-corre-risco-de-ter-apag%C3%A3o-cient%C3%ADfico/a-59477235
Bolsonaro é denunciado em Haia por desmatamento da Amazônia
ONG pede que Tribunal Penal Internacional investigue o presidente por crimes contra a humanidade devido à destruição da floresta
O presidente brasileiro é alvo de uma nova denúncia no Tribunal Penal Internacional (TPI). Uma organização não governamental austríaca apresentou nesta terça-feira (12/10) uma queixa contra Jair Bolsonaro, acusando-o de crimes contra a humanidade por causa do desmatamento da Amazônia, com impacto na saúde mundial.
Na denúncia, a que o tribunal, sediado em Haia, na Holanda, não é obrigado a dar prosseguimento, a ONG AllRise afirma que o governo brasileiro é responsável anualmente pela destruição de cerca de 4 mil quilômetros quadrados da Floresta Amazônica e que a taxa de desmatamento aumentou 88% desde que Bolsonaro chegou ao poder.
A entidade ambientalista o acusa ainda de realizar uma ampla campanha que resultou no assassinato de defensores ambientais e de colocar em risco a população mundial através das emissões provocadas pelo desmatamento.
Também afirma que o governo de Bolsonaro buscou "sistematicamente remover, neutralizar e estripar as leis, agências e indivíduos que servem para proteger a Amazônia", ressaltando que tais ações "estão diretamente ligadas aos impactos negativos das alterações climáticas em todo o mundo".
180 mil mortes
A peça contou com a participação de especialistas em direito internacional, como os advogados Maud Sarlieve e Nigel Povoas, assim como da climatologista Friederike Otto, da Universidade de Oxford, uma das autoras do último relatório de avaliação do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC, na sigla em inglês), apresentado em agosto, descrito como um "alerta vermelho" para a humanidade e que traça uma relação direta entre eventos climáticos extremos, o aquecimento global e a degradação ambiental.
Peritos citados no documento consideram que as emissões resultantes do desmatamento ocorrido durante o mandato de Bolsonaro poderão provocar mais de 180 mil mortes adicionais em todo o mundo até o final do século.
DESMATAMENTO NO BRASIL
O que dizem os juristas que denunciaram Bolsonaro ao TPI
"Crimes contra a natureza são crimes contra a humanidade. Jair Bolsonaro está alimentando a destruição em massa da Amazônia com os olhos amplamente abertos e com pleno conhecimento das consequências", afirma o fundador da AllRise, Johannes Wesemann, em nota. "O TPI tem um claro dever de investigar crimes ambientais de tamanha gravidade global."
A queixa também visa vários funcionários de alto escalão do governo brasileiro, disse à AFP o advogado Nigel Povoas, que liderou processos contra alguns dos mais notórios criminosos internacionais. "Afirmamos que, devido às políticas que prosseguem, eles são cúmplices na ajuda aos que no terreno cometem homicídios, perseguições e outros atos desumanos", afirmou.
Outras denúncias
Bolsonaro já é alvo de várias queixas apresentadas no TPI.
Em janeiro passado, o cacique Raoni Matuktire, defensor emblemático da Floresta Amazônica, já tinha pedido ao TPI para investigar "crimes contra a humanidade" alegadamente cometidos pelo presidente brasileiro, acusado de "perseguir" os povos indígenas, destruir o seu habitat e violar os seus direitos fundamentais.
Em julho de 2020, profissionais do setor da saúde no Brasil também pediram ao TPI que abra um inquérito por "crimes contra a humanidade" alegadamente praticados por Bolsonaro, desta vez pela sua gestão da pandemia de covid-19.
Mais recentemente, em agosto deste ano, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) também acusou o governo Bolsonaro de genocídio da população nativa, pedindo ao TPI que abra um inquérito.
Em novembro de 2019, uma denúncia contra Bolsonaro foi apresentada pelo Coletivo de Advocacia em Direitos Humanos e pela Comissão de Defesa dos Direitos Humanos Dom Paulo Evaristo Arns, acusando-o de incitação ao genocídio de povos indígenas e crimes contra a humanidade, ao minar a fiscalização de crimes ambientais na Amazônia.
Mais recentemente, em agosto deste ano, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) também acusou o governo Bolsonaro de genocídio da população nativa, pedindo ao TPI que abra um inquérito.
O TPI não é obrigado a dar prosseguimento aos milhares de pedidos apresentados à procuradora-geral, que decide de forma independente quais os casos serão submetidos aos juízes.
Para que uma investigação formal seja aberta, a procuradoria do TPI, criado em 2002 para julgar as piores atrocidades cometidas no mundo, tem de concluir que tem mandato para tal e que a denúncia é suficiente sólida para justificar o inquérito.
Fonte: DW Brasil
https://www.dw.com/pt-br/bolsonaro-%C3%A9-denunciado-em-haia-por-desmatamento-da-amaz%C3%B4nia/a-59478786
Desastre da economia abala todos os segmentos do eleitorado de 2022
Nem o Plano Real resistiu a Jair Bolsonaro. A inflação bate na vida de todo mundo
Eliane Cantanhêde / O Estado de S.Paulo
Nem o Plano Real resistiu a Jair Bolsonaro. Após 28 anos do sucesso da maior obra de engenharia econômica do Brasil, a inflação volta ao cotidiano de pobres e ricos, assalariados e empresários e, principalmente, dos miseráveis que já não tinham o que comer e dar de comer aos filhos. Mais do que índices abstratos, o aumento da inflação, de 1,16% em setembro, 6,90% no ano e 10,25% em doze meses, bate na vida de todo mundo, ou seja, de todo eleitor.
A economia, a queda de emprego e renda, a disparada de preços e seus efeitos no dia a dia abalam todas as faixas do eleitorado. O salário continua o mesmo, caiu ou pode ter evaporado. Alguém teve aumento de 20%, 30%, 40% ou 50% nos últimos doze meses? Mas conta de luz, ovos, café, carne, frango e açúcar subiram de 20% a 47%. Pessoas disputando ossos, pelancas e restos de comida são de deixar o País, e cada um de nós, sem dormir.
A cesta básica encosta ou passa de 60% do salário mínimo, quando 70% da população acima de 16 anos vive em residências com renda de até três mínimos (50%, com renda de até dois). Esse universo estupendo de eleitores é o que mais diretamente sofre com o aumento do preço da comida, do botijão de gás e da conta de luz. E as famílias voltam a cozinhar em latões de lenha e a comer no escuro – quando há o que comer.
Isso atinge, por exemplo, os evangélicos, que se concentram fortemente na baixa renda e na baixa escolaridade. Mas nem é preciso decantar esse eleitorado por sexo, cor, escolaridade e religião para saber que ninguém, ninguém mesmo, pode estar feliz, satisfeito e querendo que as coisas fiquem como estão. Isso vale para centros urbanos e rurais, pequenas e grandes cidades.
Ampliando um pouco o leque para os que têm renda familiar acima de 10 salários mínimos, e mais capacidade de influenciar votos, aumentam os motivos de desencanto, para uns, ou de acirramento da rejeição, para outros. Além da conta de luz e dos preços nos supermercados, onde qualquer comprinha passa dos R$100,00, há o preço da gasolina, das passagens aéreas e até do dólar.
Como prefere o ministro Paulo Guedes, da Economia, já não dá para a empregada doméstica ir a Disney, o filho do porteiro estudar na universidade e, de quebra, para o papai e a mamãe sustentarem o seu carrinho. E eles nem têm muito para onde ir. Shopping? Restaurante? Tudo pela hora da morte.
A economia voltou com força para o centro das conversas até mesmo dos ricos, que reclamam da inflação (a deles, dos empregados e dos pobres em geral), dos quase R$ 7 da gasolina comum, da volta dos juros altos e... da rentabilidade dos seus investimentos, que perdem para a inflação e sacodem com bolsas e dólar.
Segundo Mauro Paulino, do Datafolha, a popularidade de Bolsonaro caiu e a rejeição subiu em todos os segmentos na última pesquisa, de 14 e 15 de setembro, com exceção de um: o de maior renda, incluindo empresários. Em menos de um mês, porém, a situação deteriorou, com aumento de gás, luz, gasolina, juros e dólar (que só convém aos exportadores). E se os mais ricos passarem a olhar para Paulo Guedes sem enxergar luz no fim do túnel?
O candidato Bolsonaro tem caneta BIC, avião presidencial, escalões precursores, comitivas, gabinetes paralelos e tratoraços para fazer campanha, mas já convive com 59% dos pesquisados dizendo que, nele, não votam de jeito nenhum. Até mais: votam em qualquer um que não seja ele, como agora se ouve com certa frequência.
O problema de Bolsonaro nem é mais, ou só, os 600 mil mortos de covid, o cheiro de queimado da Amazônia e os sucessivos vexames do Brasil no mundo. O maior de todos é outro: a economia, com inflação e deterioração das condições de vida.
Fonte: O Estado de S. Paulo
https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,o-desastre-da-economia-abala-todos-os-segmentos-do-eleitorado-de-2022-do-miseravel-ao-rico,70003866082
Bolsonaro tem a maior carga eleitoral negativa desde a redemocratização
Eleições 2022: Índice dos que dizem não votar nele de jeito nenhum é de 59%, 15 pontos percentuais a mais do que em sua eleição, em 2018
Ranier Bragon / Folha de S. Paulo
A análise das pesquisas de intenção de voto realizadas pelo Datafolha nas oito eleições presidenciais ocorridas desde a redemocratização mostra que Jair Bolsonaro (sem partido) entra na disputa de 2022 com a maior carga eleitoral negativa da história.
O total do eleitorado que declara hoje que não votaria de jeito nenhum a favor da sua reeleição é de 59%, 21 pontos percentuais a mais do que seu principal adversário até agora na disputa, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) —com 38%.
A atual rejeição a Bolsonaro é, disparada, a maior medida pelo Datafolha na comparação com a dos presidentes que foram eleitos nas oito disputas anteriores, incluindo ele próprio em 2018.
Nunca o eleito, de 1989 a 2014, teve mais do que cerca de um terço do eleitorado declarando não votar nele de jeito nenhum.
Bolsonaro já havia batido esse recorde em 2018. Ele chegou à reta final da campanha com 44% de rejeição, mas conseguiu a vitória no segundo turno. Seu principal oponente, o ex-prefeito de São Paulo Fernando Haddad (PT), também amargava um índice negativo similar, 41%.
No segundo turno, Bolsonaro obteve 55,13% dos votos válidos, contra 44,87% de Haddad.
Se matematicamente a reeleição de Bolsonaro não ocorreria se a eleição fosse hoje, como mostra o Datafolha, resta a tentativa de mudança desse cenário nos 12 meses que ainda faltam para a disputa.
Também aí o histórico é majoritariamente desanimador para as pretensões do mandatário, embora em 2018 Bolsonaro tenha sido eleito sem contar com vários dos mecanismos até então imprescindíveis para uma eleição —partido, palanques regionais, tempo de propaganda na TV e rádio, marqueteiro e cofre de campanha robustos.
De 1989 —quando Fernando Collor foi o primeiro presidente eleito pelo voto direto após o fim da ditadura militar (1964-1985)— a 2018, só dois candidatos conseguiram reduzir de forma significativa, em torno de 10 pontos percentuais, a rejeição alta que tinham no início.
Foram eles Ulysses Guimarães (MDB) e Paulo Maluf (PDS), em 1989, mas isso de nada adiantou. O chamado "Senhor Diretas", apelido alusivo à sua fundamental participação na campanha Diretas Já, e o principal político vinculado à época à ditadura ficaram em sétimo e quinto lugares, respectivamente.
Apesar desse retrospecto, o diretor-geral do Datafolha, Mauro Paulino, afirma que essa alta e inédita rejeição tem como ser revertida, especialmente se houver uma percepção de melhora de vida entre os mais pobres.
"É um segmento numeroso, responsável numérico pela vitória de Bolsonaro em 2018, mas que foi abandonando essa opção e voltando para Lula ao longo da pandemia e das posturas do presidente. Esses eleitores são os mais pragmáticos. Se chegar algum dinheiro no bolso e comida na mesa, podem voltar a simpatizar com Bolsonaro", afirma Paulino.
O diretor do Datafolha lembra que por ora Lula está "muito tranquilo e confortável" por não sofrer grandes contraposições, mas mantém uma rejeição alta e consolidada (38%), devendo perder pontos quando a campanha se aproximar e os ataques dos adversários tomarem força,
A campanha eleitoral oficial só começa em meados de agosto do ano que vem, mas, na prática, já está a todo vapor no meio político. O primeiro turno das eleições ocorrerá em 2 de outubro de 2022.
De acordo com a última pesquisa do Datafolha, realizada nos dias 13, 14 e 15 de setembro, Lula estava na liderança da disputa, com 42% a 46% das intenções de voto, dependendo do cenário pesquisado, com Bolsonaro marcando 25%/26%, em segundo lugar. A margem de erro é de dois pontos para mais ou menos.
"Bolsonaro tem um caminho difícil pela frente e conta apenas com o exército das fake news e com o poder do Estado. Terá que mudar muito o comportamento e adotar medidas econômicas populares para reverter o quadro negativo atual", acrescenta Mauro Paulino.
De acordo com ele, uma possível terceira via precisaria de um posicionamento claro contra Lula e Bolsonaro que chegue à população mais pobre de forma convincente.
"Para isso precisa de um líder que concorra com o poder de comunicação e carisma que Lula e Bolsonaro demonstram diante de seus seguidores. O brasileiro vota pela emoção, preponderantemente. É preciso aplicar a linguagem popular sem parecer falso. Não vejo ninguém com esse convencimento natural entre os nomes colocados."
Márcia Cavallari, CEO do Ipec (Inteligência em Pesquisa e Consultoria Estratégica), diz que o fato de Lula e Bolsonaro serem muito conhecidos torna muito mais difícil mudar a rejeição, porque ela é mais consolidada.
Ela ressalta que nas disputas estaduais e municipais essas oscilações são muito mais frequentes.
"Não é raro vermos governantes diminuindo a sua rejeição ao longo da campanha para governador e prefeito. Durante a campanha eleitoral, com a comunicação, eles conseguem mostrar as suas obras, as medidas adotadas, e com isso a rejeição diminui", afirma. "Nas eleições para prefeito de 2020 tivemos vários que diminuíram rejeição e melhoraram a avaliação ao longo da campanha e acabaram reeleitos."
Em junho, o Ipec pesquisou o potencial de voto e rejeição para cada possível candidato à Presidência em 2022, individualmente. Bolsonaro tinha 33% de potencial de voto (22% disseram que votariam nele com certeza e 11%, que poderiam votar) e 62% de rejeição.
Lula tinha um cenário inverso —61% de potencial de voto (48% com certeza e 13% dizendo que poderiam votar) e 36% de rejeição.
Em 1989, Collor, o então desconhecido governador de Alagoas, começou com uma rejeição baixíssima, de 11%, mas chegou às urnas com 30%. Mesmo assim conseguiu derrotar Lula no segundo turno.
Nas demais eleições, a maior rejeição numérica de um presidente eleito antes de Bolsonaro foi de Dilma em 2014, que chegou à reta final com 33% dos eleitores declarando que não votariam para sua reeleição de jeito nenhum.
VEJA A REJEIÇÃO DURANTE A CAMPANHA DOS PRESIDENTES ELEITOS
- 1989 - Fernando Collor (PRN) - 11% a 30% (de junho a novembro de 1989)
- 1994 - FHC (PSDB) - 12% a 17% (maio a setembro de 1994)
- 1998 - FHC (PSDB) - 25% a 21% (março a setembro de 1998)
- 2002 - Lula (PT) - 30% a 29% (nov.2001 a set.2002)
- 2006 - Lula (PT) - 30% (out.2005 a set.2006)
- 2010 - Dilma (PT) - 21% a 27% (dez.2009 a set.2010)
- 2014 - Dilma (PT) - 27% a 33% (out.2013 a set.2014)
- 2018 - Bolsonaro (PSL) - 33% a 44% (set.2017 a out.2018)
Fonte: Folha de S. Paulo
https://www1.folha.uol.com.br/poder/2021/10/bolsonaro-chega-a-disputa-de-2022-com-a-maior-carga-eleitoral-negativa-desde-a-redemocratizacao.shtml
RPD || Editorial: A trilha estreita do segundo turno
Os trabalhos da Comissão Parlamentar de Inquérito, instalada no Senado Federal para apurar responsabilidades por eventuais omissões e irregularidades havidas no enfrentamento da pandemia, aproximam-se do fim. Restou claro, do esforço de investigação, a opção consciente do governo pela estratégia da negação, em prol da manutenção, ilusória, da atividade econômica. O acesso à vacina foi postergado, enquanto tratamentos desmentidos pela pesquisa foram promovidos. O resultado foi desastroso, mas além das vidas perdidas e da pauperização dos brasileiros, houve lucros para alguns nesse desastre.
Do ponto de vista político, a Comissão Parlamentar veio a ser o evento mais relevante de 2019 para cá. Pode ser comparada a um enorme lança-foguetes, que bombardeou o governo ininterruptamente desde sua instalação. Muitas das bombas, de explosão imediata, contribuíram para a inflexão negativa da curva de popularidade governamental. Outras, de efeito retardado, ainda estão por explodir, talvez com danos até maiores que aqueles verificados até agora na imagem do Presidente e de seus auxiliares mais próximos.
No entanto, as forças oposicionistas não parecem ter atinado ainda com os movimentos necessários para fazer valer a iniciativa política que chega a suas mãos. A estratégia do governo, por sua vez, está em plena execução. Trata-se do discurso bifronte: de um lado, moderação, para ganhar tempo nas relações com os demais Poderes da República; de outro, radicalização, para manter o núcleo duro de apoio na opinião pública, os vinte por cento de avaliação favorável, indispensáveis para ultrapassar a barreira do primeiro turno e enfrentar a oposição na nova eleição, “zerada”, que o segundo turno representa.
O caminho do Presidente para o segundo turno é estreito e vulnerável. A derrocada econômica, os estertores da pandemia, assim como o rescaldo da CPI, conspiram contra ele. Nesse cenário desfavorável, contudo, duas janelas de oportunidade se mantêm abertas para o sucesso de seu projeto. Primeiro, a coesão dos apoiadores convictos, aqueles imunes a qualquer evidência empírica, motivados pelo medo de conspirações diversas e inimigos tão perigosos quanto imaginários. Segundo, a divisão das oposições, a rejeição recíproca que anima parte de seus integrantes e mantém viva a bandeira da antipolítica, de papel importante para o sucesso eleitoral de 2018.
Do ponto de vista da defesa da democracia, urge estreitar os caminhos eleitorais do governo. Trabalhar para trazer à luz as consequências nefastas das decisões governamentais implementadas nos três últimos anos. Saber travar, de forma simultânea e separada, a luta unitária em defesa das instituições e a disputa eleitoral legítima e respeitosa em torno de divergências programáticas.
RPD || Zulu Araújo: Faremos Palmares de novo
Ações do governo Bolsonaro visam destruir a fundação que é símbolo histórico da luta e resistência pela igualdade racial no país, avalia Zulu Araújo
A criação da Fundação Palmares é parte indissociável da luta democrática ocorrida no Brasil pela derrubada da ditadura militar e retomada da Democracia. A Constituição Cidadã de 1988 é a consolidação dessas conquistas. Ou seja, a Fundação Palmares simboliza a um só tempo a luta pela igualdade racial, social e a defesa da diversidade cultural. Em seu primeiro artigo, está inscrito seu objetivo maior: “Promover a preservação dos valores culturais, sociais e econômicos decorrentes da influência negra na formação da sociedade brasileira.”, para “promover e apoiar a integração cultural, social, econômica e política dos afrodescendentes no contexto social do país.”.
A Fundação Palmares não é, pois, uma instituição qualquer, criada a partir do bolso do colete de um político sagaz, um burocrata esperto ou um ministro sensível. É fruto de um movimento amplo, diverso, um momento histórico. A Palmares é filha dileta da grande mobilização nacional que empolgou o país em 1988, no qual as mulheres, os movimentos dos direitos humanos, da defesa das crianças e combate à intolerância religiosa se uniram aos partidos políticos, para defender o retorno da Democracia ao nosso país.
Por isso mesmo, a Palmares é a vitória mais importante do movimento negro brasileiro, no século XX. Teve origem na sociedade, foi aprovada pelo Congresso Nacional, e é a primeira instituição do Estado brasileiro incumbida de elaborar políticas públicas de combate ao racismo e promoção da igualdade, a partir da valorização, preservação e difusão das manifestações culturais de origem negra no país. Isto não é pouca coisa. Essa vitória sem precedentes contou com a participação de muita gente, artistas, políticos, religiosos/as, militantes do movimento negro. Lá estavam pretos, brancos, mestiços, indígenas. Gente de esquerda, direita, tais como Ana Célia do (MNU), Embaixador Alberto Costa Silva, Carlos Moura (Comissão de Justiça e Paz), João Jorge (Olodum), Deputados/a Abdias Nascimento, Benedita da Silva e Paulo Paim, Clóvis Moura (sociólogo), Gilberto Gil (artista), Martinho da Vila (artista), Marcos Terena (indígena), Mãe Stela de Oxóssi (Yalorixá) e Zezé Mota (atriz), dentre tantos outros.
Ao longo de 32 anos de existência, a Fundação Palmares passou por muita dificuldade, superou inúmeros desafios e se firmou como a grande representação política/cultural da comunidade negra brasileira. Conquistas importantes foram alcançadas: o Parque Memorial Quilombo dos Palmares em Alagoas, (10 mil metros quadrados de área construída) o Decreto 4887/03 (certificação e regularização dos territórios quilombolas, com mais de 4.000 reconhecidos), a Lei de Cotas raciais para o Ensino Superior, ( mais de 1 milhão de estudantes negros, beneficiados), além de apoio a milhares de projetos, grupos culturais, intercâmbios e trocas de experiências com comunidades negras de todo o mundo, em particular do continente africano.
A Palmares realizou ações memoráveis como a participação na III Conferência Mundial contra o Racismo, Discriminação Racial, (Durban/África do Sul/2001), a II Conferência dos Intelectuais ada África e da Diáspora, realizada em Salvador em 2006 e que contou com a presença de mais de 3.000 intelectuais afrodescendentes do mundo inteiro, assim como a participação no III FESMAN (Festival Mundial de Artes Negras /Senegal/2010), no qual contou com a maior delegação de artistas negros (465). Em que pese as dificuldades orçamentárias, financeiras e de recursos humanos, a Palmares tem cumprido com sua missão.
Portanto, o que está ocorrendo hoje na Fundação Palmares é algo muito mais profundo do que a maldade de um dirigente mal-intencionado. É a destruição de um símbolo de luta e resistência, dos nossos sonhos de igualdade, diversidade, fraternidade e de respeito ao outro, à religião do outro. Essa destruição está ocorrendo em todos os setores da cultura: patrimônio, memória, linguagens, produção de conhecimento, literatura, enfim, tudo aquilo que signifique inteligência, civilidade, cidadania. Por isso mesmo, nossa luta precisa ter foco e precisão. Não devemos cair na armadilha da fulanização. O combate é contra um sistema, o governo. E, para tanto, temos de estar juntos para fortalecer a luta democrática e defender a diversidade. E, por fim, incluir na agenda política nacional a luta pela promoção da igualdade racial como algo de todos que são democratas e progressistas, visto que a promoção da igualdade, além de um avanço civilizatório é uma necessidade humana.
Toca a zabumba que a terra é nossa!
Zulu Araújo é diretor geral na Fundação Pedro Calmon. É arquiteto, produtor cultural e militante do movimento negro brasileiro, ex-diretor da Casa da Cultura da América Latina/UnB e ex-presidente da Fundação Cultural Palmares.
RPD || Alberto Aggio: O que setembro nos revelou?
Bolsonaro não conseguiu ampliar sua base de sustentação e aumentou ainda mais seu isolamento político
Dos meses do ano, agosto sempre foi, em termos políticos, o mais lembrado em razão de inúmeros acontecimentos, invariavelmente disruptivos, como o suicídio de Getúlio Vargas, em 1954. Setembro jamais havia ganho, na memória coletiva, tamanho protagonismo com o mesmo teor. Mas este último mês de setembro foi bem diferente e mexeu com nossos nervos, fez palpitar corações e desafiou os mais competentes cérebros da análise política. O que setembro nos revelou?
Reconhecidamente, estivemos no limiar de uma grave ruptura institucional que poderia pôr a pique nossa jovem democracia. E o grande responsável por isso foi o presidente da República, Jair Bolsonaro, pela confrontação destrutiva que estimulou e conduziu contra as instituições da República, notadamente o Supremo Tribunal Federal (STF). Bolsonaro projetou e participou, no Dia da Independência, de atos antidemocráticos de massa em Brasília e São Paulo com o claro objetivo de confrontar o Poder Judiciário, rompendo o equilibro da República. Se essa ação produzisse os efeitos esperados a favor do presidente, estaria dado o sinal para o golpe de Estado.
Mas não foi o que aconteceu. A tentativa de golpe não prosperou. Os militares recolheram-se, depois da cerimônia oficial em Brasília, e as Polícias Militares dos Estados, controladas pelos governadores, mantiveram-se em suas funções ordinárias, garantindo a ordem.
Detalhadamente preparadas nas duas cidades mencionadas e também no Rio de Janeiro, Bolsonaro conseguiu mobilizar efetivamente milhares de pessoas. Obteve, nesse curso, o apoio de parte do empresariado e da militância de suas redes sociais. No entanto, as principais forças políticas do país não deram respaldo à escalada golpista comandada pelo presidente. Muito ao contrário, partidos políticos que relutavam em fazer oposição direta ao governo passaram a falar abertamente em impeachment. O principal setor social que havia declarado apoio, os caminhoneiros, dividiu-se. Vocalizando uma retórica exaltada, parte dele ainda tentou uma “greve” nos dias sucessivos, desestimulada pelo próprio presidente da República.
O golpe fracassou, dentre outras razões, porque Bolsonaro não conseguiu adesão suficiente para levá-lo a efeito. Quer porque o suposto braço armado do dispositivo golpista recuou ou efetivamente não se compôs, quer porque a mobilização de massas não correspondeu às expectativas. Ficou a impressão de uma radicalização despropositada e irresponsável; e, por fim, de um recuo amedrontado diante da ameaça real de abertura do processo de impeachment.
De toda forma, o episódio revela que Bolsonaro não conseguiu ir além dos apoiadores de sempre, e o recuo do presidente, com a Carta à Nação, deixou parte de seus apoiadores bastante insatisfeitos. O resultado é cristalino: Bolsonaro não conseguiu ampliar sua base de sustentação e aumentou ainda mais seu isolamento político. Poucos dias depois, pesquisas de opinião sancionaram essa avaliação. A imensa maioria da população brasileira repudiou a iniciativa do presidente em se antagonizar abertamente com as instituições da República, quase levando a uma ruptura institucional.
Ainda que com equalização diversa em cada um dos atores, foi a sociedade política, em representação delegada da sociedade civil, que agiu de maneira célere e responsável para estancar o dispositivo golpista, antes, durante e especialmente depois do 7 de setembro. Noticia a imprensa que, nos dias seguintes, produziu-se uma espécie de “concertação” entre atores representativos e diferenciados (STF e governadores, inclusos), mais militares de alta patente, todos preocupados em montar um dispositivo antigolpe capaz de atuar constitucionalmente contra Bolsonaro caso ele queira impedir a realização das eleições de 2022, não reconhecer os resultados ou tentar se antepor à posse do eleito em janeiro do ano seguinte[1]. Como se pode ver, a democracia brasileira aderiu oportunamente à campanha do “setembro amarelo”, mês dedicado ao combate ao suicídio.
“Mau soldado”, na definição do General Ernesto Geisel, setembro reiterou que Bolsonaro é péssimo articulador político e um presidente ainda pior. Se havia alguma inclinação analítica em compreender seu governo como “bonapartista”, o comportamento dos militares foi esclarecedor. Bolsonaro é um líder de espírito fascista incapaz de dar solidez e consequência a seu próprio movimento. É um iliberal que tem adotado ações corrosivas contra a democracia, desde o início do mandato, por meio de estratégias erráticas de “guerra de movimento” e “guerra de posição” sucessivas e superpostas.
Setembro termina com a desastrosa viagem a Nova York na qual Bolsonaro e a delegação brasileira apenas exercitaram o antidecoro, mentiram e despreocupadamente espalharam o vírus da Covid-19 pelos salões das Nações Unidas. Por aqui, felizmente, as instituições da democracia parecem ter resistido à fronda reacionária comandada pelo presidente. Qualquer projeção positiva do nosso futuro vai depender de uma compreensão consequente do que se passou neste setembro.
[1] NOBLAT, Ricardo. “Operação antigolpe já foi deflagrada para conter Bolsonaro”. Metropole, 20.09.2021; https://www.metropoles.com/blog-do-noblat/ricardo-noblat/operacao-antigolpe-ja-foi-deflagrada-para-conter-bolsonaro.
*Alberto Aggio é historiador, professor titular da Unesp (Universidade Estadual Paulista) e responsável pelo Blog Horizontes Democráticos.
RPD || Alessandro Vieira: A CPI que fez a diferença
Comissão expôs erros e omissões graves da desastrosa atuação do governo Bolsonaro no combate à pandemia
À medida que a CPI da Pandemia se aproxima de seu término, aumenta, na mesma proporção, a cobrança por resultados práticos dos seis meses de depoimentos, quebras de sigilo e milhares de documentos colhidos, em um país que, a essa altura da tragédia, beira os 600 mil brasileiros mortos pelo coronavírus. Você já viu muitas CPIs atravessarem momentos históricos difíceis, mas certamente nunca testemunhou uma comissão parlamentar que fez tanto de fato pelo país - os porões que abriu, as portas que lacrou e, sem falsa modéstia, as vidas que salvou. A CPI tirou o foco do cercadinho e escancarou erros e omissões graves do Governo Federal. Ademais, descobriu indícios da existência de um mecanismo de favorecimento de empresas para desvio de recurso público operando dentro do Ministério da Saúde.
Já tivemos muitas comissões de inquérito, retratos de seus momentos políticos, da realidade do país. Algumas mornas, outras efervescentes. Algumas mero conchavo entre amigos - terminando em 'pizza' -, outras esmagadas pelos tentáculos do Estado. Mas nenhuma - e não tenho dúvida em cravar isso - como a CPI da Pandemia. Uma CPI realizada na era das tecnologias da informação e comunicação e da efervescência das redes sociais, que de forma inédita tem de lidar com o gabinete das fake news, mas também com a checagem de fatos em tempo real. Estamos chegando aos derradeiros dias de trabalho, da CPI das CPIs, como já foi consagrada. E o que lhe garante esse título é o volume de erros, omissões, irregularidades e evidências de crimes de corrupção que estão sendo desvendados à medida que ainda se vive a Pandemia, e que a cada dia novos fatos se revelam.
Mais de 600 mil brasileiros perderam suas vidas – pais, mães, irmãos, amigos, que não retornarão. Algumas ceifadas por falta de vacinas, outras por falta de orientação e comunicação acerca de medidas não farmacológicas e tantas outras pela falta de políticas concretas de gestão e contensão e propagação do vírus. Não há precedente para tal massacre - ainda mais turbinado por um esquema corrupto e desumano, em diversos escalões e com diferentes fardamentos. Mas a CPI da Covid também reflete uma ruptura no que considero ser um momento particularmente baixo da degradação da atividade parlamentar, com o esforço do Executivo para reduzir as Casas Legislativas a um entreposto de emendas e cargos. A CPI da Covid é, mesmo em meio a esse cenário hostil, uma luz no fim do túnel para o povo, mostrando que, mesmo em tempos sombrios, ainda que em menor número, existem pessoas sérias que pensam no Brasil e que lutam pela justiça, pela ciência e pela verdade.
Foram desafios marcantes. Graças ao equilíbrio de seus líderes, e membros mais combativos, a CPI terminará seus trabalhos sem se desviar do caminho. Muito claramente, narramos, ao longo desses meses, um enredo terrível - longe de poder ter um final feliz. Além da omissão fatal do Governo Federal, comprovada nos depoimentos que convocou e documentos que analisou, a CPI expôs a vergonhosa atuação do presidente e de seus subordinados, ele que favoreceu a disseminação da epidemia causada pelo novo coronavírus, sendo incapaz de proteger seu povo - que continua enterrando centenas de brasileiros por dia. Pior: isso não foi casual, foi deliberado, baseado numa crença negacionista, anticiência e antivacina.
A CPI expôs um governo sem um pingo de empatia com seu povo, com os hospitais lotados e os cemitérios cheios passando longe das agendas das autoridades. A CPI seguiu o dinheiro, e o mau-cheiro, chegando aos mais altos escalões da República. Internações, intubações, dores lancinantes, cadáveres em carros frigorífico, covas coletivas, sequelas de todo tipo, tomaram o noticiário, mas não entraram nos amplos salões do Planalto - e de muitos de seus equivalentes locais. Tivemos, tragicamente, o pior governo do mundo contemporâneo no pior momento de nossa história administrativa recente. Com base em provas documentais e depoimentos, a CPI mostra que o governo não foi só inepto, é ganancioso, favorecendo a disseminação da epidemia e o enriquecimento de empresários e políticos aliados. Despejando toda sua ignorância, despreparo, ideologia, ambição, e misturando jalecos com fardas, transformou a política de saúde pública em um genocídio.
Quanto mais avançamos, mais desafios tem a comissão para que a sociedade, num novo momento, por meio de seus mecanismos legais, dê prosseguimento ao que não será possível concluir agora. Por seu tempo de vida, e por nossas próprias limitações, a CPI não conseguirá investigar todos os âmbitos de corrupção. Não acabaremos com a escuridão. Mas certamente teremos jogado muita luz sobre muitas realidades ocultas. E aberto espaços novos para o exercício da cidadania. Nossos frutos estarão espalhados por quem sabe, outras CPIs - spin-offs depois da nossa última temporada - investigações do Supremo Tribunal Federal, do Tribunal Superior Eleitoral, do Tribunal de Contas, do Ministério Público, da Polícia Federal. E, especialmente, em nossas consciências, valores e práticas.
__Esse texto é uma homenagem póstuma a um amigo que, no meio da pandemia, perdemos para a Covid. E que, presente em nossas vidas, nos animou a enfrentar o que enfrentamos. Dor e saudade, Senador Major Olímpio. Um Brasil melhor vai nascer, muito graças a seu espírito.
*Alessandro Vieira é senador da República (Cidadania-SE). Integra o Movimento Acredito e o RenovaBR. Pautou sua campanha política no combate à corrupção e é um dos senadores que mais se destacaram nas sessões da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Covid.
RPD || Octavio Amorim Neto: Bolsonaro, militares e democracia
Governo Bolsonaro tem nos militares um de seus pilares, constituindo base de apoio e instrumento de intimidação
Para compreender as relações entre Bolsonaro, os militares e a democracia, é necessário identificar a fórmula governativa do atual presidente.
Trata-se de uma presidência em minoria no Congresso e na população e que governa para essa minoria, excluindo de forma enfática e hostil amplos setores da sociedade. Além disso, a ênfase das políticas públicas implementadas pela gestão Bolsonaro está na distribuição de bens privados para a referida minoria, em detrimento da distribuição de bens públicos. O melhor exemplo da falta de interesse por bens públicos encontra-se no descaso com a saúde e a educação.
Todavia, a formação de um governo minoritário hostil às maiorias e pouco afeito à provisão de bens públicos não é suficiente para resolver a equação de governabilidade de um presidente numa democracia, pois tal governo seria frágil e vulnerável demais, podendo rapidamente ser removido. A equação se resolve com a mobilização de seus apoiadores radicais contra as instituições e a ameaça frequente de uso das Forças Armadas – “o meu Exército” – contra opositores.
Portanto, sob Bolsonaro, os militares se tornaram um dos pilares do governo, uma vez que constitutem base de apoio, fonte de quadros administrativos e instrumento de intimidação da oposição e das instituições de controle.
Ao longo de toda a presidência de Bolsonaro, a probabilidade de ameaça de uso dos militares para intimidar opositores tem sido uma função da fraqueza do chefe de Estado. Quanto mais fraco no Congresso ou na opinião pública, mais a ameaça é feita.
O auge das tentativas de vergar as instituições com a ameaça do uso da força se deu no dia 10/08/2021, quando houve, por ordem do presidente, desfile de veículos de combate em Brasília – justamente no dia em que o Congresso votaria – e derrotaria – o principal item do programa da extrema-direita bolsonarista, a proposta de emenda constitucional que restabelecia o voto impresso.
Um dos aspectos mais impressionantes do referido desfile foi o fato de os veículos de combate pertencerem à Marinha. Esta era considerada, até então, a Força mais distante politicamente de Bolsonaro. Assim, com o desfile de 10 de agosto, o presidente completou o trabalho de entrelaçamento da imagem das três Forças a seu governo, uma vez que a Aeronáutica – sobretudo a partir da posse, em março de 2021, do Brigadeiro Carlos de Almeida Baptista Júnior como comandante da FAB – também passara a ser vista como outra Força intimamente ligada ao bolsonarismo.
O Exército é e sempre foi o principal esteio político de Bolsonaro dentro das Forças Armadas. Sua imagem está indelevelmente ligada à do presidente – trata-se, afinal, do “meu exército”, nas palavras do chefe de Estado –, não obstante os esforços envidados pelo ex-comandante, General Edson Pujol, e pelo atual, General Paulo Sérgio de Oliveira, de separar a caserna da política.
Apesar do entrelaçamento, o Alto Comando das três Forças deve estar insatisfeito com a confusa e ambígua situação em que se encontram, apesar de todos os benefícios materiais que lhes trouxe o atual governo. Afinal de contas, os comandantes da Marinha, Exército e Força Aérea têm rechaçado a ideia de golpe de Estado.
Ou seja, as Forças Armadas brasileiras estão caminhando sobre uma corda bamba esticada entre a rejeição a aventuras golpistas e a lealdade que devem a Bolsonaro como comandante-em-chefe. E a corda está trepidando cada vez mais, ao sabor das ameaças feitas pelo presidente. A situação vai continuar assim até o final do atual governo.
As Forças Armadas precisam de ajuda civil para descerem da corda – e do lado da democracia. Por isso, a aprovação da emenda à Constituição proibindo militares do serviço ativo de exercerem cargos civis, proposta pela Deputada Perpétua Almeida (PCdoB-AC), é passo fundamental, uma vez que eliminará um dos principais meios pelos quais Bolsonaro logrou confundir ativa com reserva e associar os quartéis à sua presidência.
Octavio Amorim Neto é professor Titular da EBAPE/FGV
RPD || Reportagem Especial | Covid-19 pode se tornar endemia e continuar entre pessoas em menor escala
Especialistas fazem alerta sobre possibilidade de nova situação da doença no Brasil e no mundo
Cleomar Almeida, da equipe da FAP
Classificada ainda como pandemia principalmente por causa da baixa cobertura vacinal da população do Brasil e do mundo, com menos da metade das pessoas imunizadas, a infecção pela covid-19 pode evoluir para um quadro de endemia, com a circulação do vírus em escala menor e de forma sazonal. A situação gera alerta de pesquisadores e profissionais da saúde sobre a necessidade de atenção contínua em torno da doença.
O alerta já havia sido feito lá atrás, em maio de 2020, pela própria Organização Mundial da Saúde (OMS), que sinalizou que o fim da pandemia não significaria necessariamente a erradicação da covid-19, já que poderia passar a se comportar como mais uma entre as várias enfermidades endêmicas com as quais os seres humanos tiveram que aprender a conviver em seu cotidiano.
Membro titular da Academia Nacional de Medicina e professor da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj), o médico José Augusto da Silva Messias ressalta que a covid-19 tem grandes chances de evoluir para situação de endemia, assim como a dengue, principalmente no nordeste, e a febre amarela, na Amazônia Legal.
“Não podemos dizer ainda que o Sars-CoV-2 já é uma endemia, mas tem grande chance de se tornar, apesar de ainda ser problema mundial”, afirma Messias, que também é diretor do Núcleo de Estudos da Saúde do Adolescente (Nesa) da Uerj. “Como é vírus de transmissão respiratória, tem grande chance de poder ficar endêmico”, assevera.
Professora do Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal da Bahia (ISC-UFBA) e pesquisadora do Centro de Integração de Dados e Conhecimentos para Saúde (Cidacs) do Instituto Gonçalo Moniz (Fiocruz Bahia), Maria Glória Teixeira diz ser possível que a covid-19 ainda permaneça entre as pessoas.
“No caso do novo coronavírus, quando se fala que ela [covid] vai ficar endêmica, quer dizer que, possivelmente, ela vai continuar circulando entre as pessoas, mas em níveis bem mais baixos do que no início ou quando todo mundo estava suscetível à doença”, destaca a pesquisadora do Cidacs em alerta publicado pela Fiocruz.
A diretora da Associação Brasileira de Saúde Coletiva e professora de medicina da Universidade Federal de Pelotas (UFPel), Ana Cláudia Fassa, alerta que a vacinação, apesar de eficiente para prevenir casos graves, não tem o mesmo desempenho para evitar casos leves, o que mantém o vírus circulando.
Em situação endêmica do coronavírus, de acordo com Ana Cláudia, será necessário manter algumas medidas preventivas e aprimorar os serviços de vigilância sanitária e epidemiológica para barrar eventuais novos surtos.
Vacinação
A presidente da Sociedade Brasileira de Imunizações do Distrito Federal, Cláudia Valente, também acredita que o mais provável é que a pandemia evolua para uma endemia. Ela acredita que a vacinação em massa possibilitará a volta de certa normalidade, mas, conforme acrescenta, é necessário que ao menos 90% da população esteja plenamente vacinada.
Os principais fatores apontados por especialistas que tornam ainda incerto o futuro da pandemia são as dúvidas sobre o tempo em que permanece alta a imunidade das pessoas já vacinadas ou que tiveram a doença; a necessidade ou não de uma dose de reforço para o conjunto da população; e o risco de novas variantes resistentes às atuais vacinas.
Todos os reflexos do coronavírus podem impactar ainda mais no sistema de saúde, para além da falta de leitos que marcou a falta de assistência a pacientes desde o início da pandemia, tanto em hospitais públicos quanto em privados, no país. Isso pode fazer com que as unidades se sobrecarreguem por novas demandas pós-covid.
“Tem potencialmente um número [de doentes] que pode impactar no sistema de saúde nos próximos meses ou anos. Essa é a preocupação de resiliência do sistema de saúde, no público ou no privado”, afirma o médico Mário Dal Poz, professor titular do Instituto de Medicina Social (IMS) da Uerj, um dos autores da revista Política Democrática impressa que tem como título Impactos da pandemia no SUS e será lançada neste mês pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP).
Médica infectologista e consultora da Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI), Sylvia Lemos destaca a necessidade de incorporar ao cotidiano algumas práticas adotadas em meio à pandemia do novo coronavírus que podem contribuir em um possível cenário em que a doença se torne endêmica.
“Eu acho que teremos que nos habituar com o uso de máscaras em algumas situações pelos próximos anos, mas ela, sozinha, não adianta. Ela não pode ser tocada com as mãos sujas, então precisa haver um estímulo para que as pessoas passem a higienizar as mãos com água e sabão com mais frequência, assim como a utilizar o álcool gel”, diz a médica em texto da Fiocruz.
Por outro lado, segundo a médica, as pessoas precisam ter mais cuidado onde tocam. “A gente sabe que o vírus pode ficar no plástico, na madeira, no papelão. E outra coisa é o distanciamento físico, que é muito importante, mas é difícil, principalmente em comunidades periféricas”, acentua.
Cleomar Almeida é graduado em jornalismo, produziu conteúdo para Folha de S. Paulo, El País, Estadão e Revista Ensino Superior, como colaborador, além de ter sido repórter e colunista do O Popular (Goiânia). Recebeu menção honrosa do 34° Prêmio Vladimir Herzog de Anistia e Direitos Humanos e venceu prêmios de jornalismo de instituições como TRT, OAB, Detran e UFG. Atualmente, é coordenador de publicações da FAP.
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Pedro S. Malan: Fazendo o diabo II?
O enorme desafio do Banco Central será ainda maior se não houver apoio do lado fiscal
Pedro S. Malan / O Estado de S. Paulo
Esse foi praticamente o título do artigo que publiquei neste espaço em 12 de outubro de 2014, entre o primeiro e o segundo turno das eleições daquele ano. A expressão havia sido usada em 2013 pela então presidente Dilma Rousseff: “Nós podemos fazer o diabo quando é hora de eleição”. No caso, busca por reeleição, no exercício do cargo. Como é sabido, seu marqueteiro a reelegeu fazendo o diabo a quatro.
O artigo concluía com observação sobre a herança que “(...) a presidente Dilma vem construindo em seus discursos e debates de campanha, em especial nos últimos dois meses, criando para si própria armadilhas adicionais às que construiu com as políticas que implementou ao longo de seus quatro anos. São estas que estão sob o escrutínio agora, quando a presidente pede ao eleitorado mais quatro anos do mesmo, já que não reconhece problemas e, portanto, não vê necessidade de mudanças para enfrentá-los”.
Deu no que deu, uma vitória de Pirro. A conta não tardou a chegar, mas quando isso ocorreu a recessão já havia começado (para só terminar em dezembro de 2016), a renda per capita caíra quase 9% e a taxa de investimento, cerca de 30%, e o número de desempregados já superava 13 milhões. Em parte, legado do “fazendo o diabo, custe o que custar”.
O comunicado divulgado ao final da reunião de cúpula dos chefes de Estado da Europa de junho de 2012 dizia: “Nós reafirmamos nosso compromisso de fazer o que for necessário para assegurar a estabilidade financeira na Eurozona”. Menos de um mês depois, o presidente do Banco Central Europeu (Mario Draghi), referindo-se aos custos políticos que alguns países pagavam para refinanciar suas dívidas, afirmou: “O BCE está pronto a fazer o que for necessário (wathever it takes) para preservar o euro”. E emendou: “Acreditem em mim, isso será suficiente”. Esse recurso retórico, que permitia antever a superação das conhecidas resistências alemãs, foi o que moveu corações, mentes e nervos nos mercados. Mais recentemente, já sob a covid-19, os países europeus acordaram a criação de um fundo de ¤ 750 bilhões para programas de investimentos nas economias da região. Algo que dificilmente ocorreria, não fosse a pandemia, a exigir o espírito do “whatever it takes” – expressão da qual o fazendo o diabo, custe o que custar vem a ser versão mais rústica.
Nos EUA, o mesmo espírito presidiu o enfrentamento da grande depressão, nos anos 30 do século passado. Bem como da crise financeira global sistêmica ao final de 2008, após a falência de Lehman Brothers, quando foi adotado pacote de
US$ 700 bilhões. É também esse espírito que pode ser encontrado por trás dos ambiciosos programas de gastos públicos do governo Biden, ainda em difícil negociação no Congresso daquele país: mais de US$ 1 trilhão em infraestrutura, mais US$ 3 trilhões na área social.
Permito-me apontar característica central do sistema orçamentário dos EUA que mereceria ser mais conhecida no Brasil. Lá, os dois grandes grupos de despesas do governo são aquelas discricionárias e as mandatórias. Estas últimas são determinadas por lei e seguem, ano após ano, em piloto automático, a menos que o Congresso altere as leis em questão. Em 2019, representavam 61,6% do total de gastos (os juros, 8,4%). As despesas discricionárias (30% do total) exigem, a cada ano, aprovação pelo Congresso, sem a qual devem ser encerradas. No Brasil, as despesas obrigatórias representam atualmente cerca de 93% do total dos gastos primários. Em razão de sua extraordinária rigidez e tamanho, não temos por aqui espaço fiscal sequer comparável àquele existente nos EUA.
Em junho deste ano, três respeitados economistas – Olivier Blanchard, Josh Felman e Arvind Subramanian – publicaram artigo sob o título-pergunta O novo consenso fiscal nas economias avançadas viaja para os mercados emergentes? Propunham-se a responder a três perguntas: a situação macroeconômica é a mesma? Existe mais incerteza sobre os resultados fiscais? Existe mais incerteza sobre o diferencial entre taxa de juros e a taxa de crescimento da economia? não, sim
As respostas foram e sim, após análise de dados relevantes de Índia, Brasil, Indonésia, África do Sul e Turquia. Vale dizer, as situações não são as mesmas, e as duas incertezas são muito maiores em mercados emergentes que em países mais avançados. Estes podem se permitir um “whatever it takes” que mercados emergentes dificilmente poderiam manter, exceto em situações de extraordinária e temporária emergência.
O presidente do Banco Central (BC), Roberto Campos Neto, afirmou no mês passado que o BC faria “o que for necessário” em termos de elevação da taxa básica de juros, para trazer a inflação (que chegara a cerca de 10% no acumulado de 12 meses) para uma trajetória de convergência para a meta. Esse enorme desafio será ainda maior se não houver apoio do lado fiscal; se tiver de lidar com outros “whatever it takes” da parte do resto do governo, do chefe do Executivo e do Congresso – operando na outra direção, “fazendo o diabo”, excessivamente preocupados desde agora com o resultado das urnas em outubro de 2022.
*Economista, foi ministro da Fazenda no governo FHC
Fonte: O Estado de S. Paulo
https://opiniao.estadao.com.br/noticias/espaco-aberto,fazendo-o-diabo-ii,70003864055
Vinicius Torres Freire: A inflação de Bolsonaro é das mais perversas do século
Surto de preços é piorado por desgoverno e queda violenta de renda
Vinicius Torres Freire / Folha de S. Paulo
A inflação alta de Jair Bolsonaro pode até durar menos que a de outros dois surtos de carestia deste século. Mas é das mais perversas e politicamente daninhas, acontece em um momento em que os pobres perderam muita renda e sob um desgoverno histórico. Para ser honesto, qualquer governo teria dificuldade mesmo de atenuar este choque. Claro que o cruel, desumano e degradante Bolsonaro piora a situação.
Não apenas a inflação média está alta. A onda de carestia de comida é a pior desde 2003. O choque da conta de eletricidade é o segundo pior do século, assim como a alta do preço do botijão de gás e a dos combustíveis para veículos. São surtos que causam fome, asfixiam orçamentos já esquálidos, irritam os remediados que têm carro e afetam preços que são muito evidentes no dia-a-dia.
Essa conjunção aconteceu no início do governo Lula da Silva e ajudou a derrubar Dilma Rousseff. Acontece de novo sob Bolsonaro.
O Brasil passou por outras duas ondas compridas de inflação ruim depois de 1999, desde quando o Banco Central tenta conter os preços no sistema de metas. A primeira foi de novembro de 2002 a novembro de 2003, passando pelo pico de 17,2% em maio de 2003. A segunda foi de novembro de 2015 a fevereiro de 2016, com pico de 10,71%. Em setembro deste 2022, a inflação anual foi a 10,25%.
No início dos anos Lula, o povo miúdo tinha grande esperança de que as coisas mudassem. Ainda assim, o aumento de preços e pobreza de 2003 provocou protestos populares, xingados então de “caos social”. O MST ou o MTST fizeram passeatas na então nacionalmente desconhecida avenida Faria Lima, assustando clientes do Iguatemi, passeio e coreto de consumo dos ricos, o pioneiro dos shoppings do país. Depois de baixar da casa dos 34% para a dos 27%, com o Real, o nível de pobreza ficara quase estagnado. Mas nos anos petistas cairia de 2004 até os 8% de 2014, fim de Dilma 1. Os dados são do FGV Social.
Parte da inflação de Dilma 2 resultou do fim dos tabelamentos de preços de energia, choque tão grande quanto o da reviravolta na economia, estelionato anunciado logo depois da eleição e que pulverizou a popularidade da presidente. Era ainda o auge da renda média no país. Mas a recessão súbita e forte que se seguiu, mais a campanha para derrubar Dilma, fez o resto do estrago político.
Sem auxílio emergencial, a pobreza foi a 16% do total da população no início deste 2021. No primeiro semestre, a renda per capita do trabalho da metade mais pobre do país foi um terço menor que a de fins de 2014. O número de pessoas com algum trabalho é o menor desde 2012 e o desalento (gente que nem procura emprego) é de longe o maior desde então.
O motivo inicial do choque inflacionário é o sabido: escassez de insumos industriais, crise de energia, preços de commodities em alta geral. No Brasil, a coisa foi piorada pela desvalorização exagerada do real. A destruição institucional, o golpismo e a falta de programa de governo criam e prorrogam a incerteza que também incendeia o dólar e apaga o PIB. Não houve plano para lidar com saúde e pobreza ou estabilizar a economia, ao contrário.
O povo do mercado prevê inflação caindo a 8,6% em dezembro, embora tenham errado muito neste ano. Seria um surto ruim mais curto, pois. A falta de trabalho será grande por muito tempo, mas deve despiorar, afora novos desastres. Mas com tamanho desemprego e inflação e variação miúda do PIB em 2022, os salários dos mais pobres não vão recuperar as perdas da epidemia. Não há esperança política de melhora, como em 2003. Mas elites não querem derrubar Bolsonaro.
Fonte: Folha de S. Paulo
https://www1.folha.uol.com.br/colunas/viniciustorres/2021/10/a-inflacao-de-bolsonaro-e-das-mais-perversas-do-seculo.shtml