governo bolsonaro

BBC Brasil: Como análises matemáticas afastam hipótese de fraude nas urnas

A pretensa análise matemática dos resultados das eleições brasileiras se tornou a principal arma de apoiadores do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) para sustentar que já houve fraude nas urnas eletrônicas — alegação contestada pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE)

Mariana Schreiber, Da BBC News Brasil

Em sua live semanal desta quinta-feira (29/7), o presidente fez uma série de acusações contra a confiabilidade do sistema eleitoral brasileiro e anunciou que a Polícia Federal analisará um vídeo em que são apresentadas supostas provas de que a apuração dos votos de 2014 foi manipulada para garantir a vitória da então presidente Dilma Rousseff (PT) sobre Aécio Neves (PSDB) no segundo turno, quando o tucano perdeu por uma margem apertada de votos. O próprio PSDB, porém, reconhece que o resultado foi legítimo.

Eleição em 2022 'é inegociável': as reações de autoridades à suposta ameaça do ministro da Defesa

Nesse vídeo de 2018, um anônimo analisa a evolução da contagem dos votos minuto a minuto, identificando o que seria um supostamente um padrão estatisticamente impossível de ocorrer naturalmente.

O vídeo foi produzido e divulgado por Naomi Yamaguchi, que tentou ser eleita deputada federal em 2018 pelo PSL e é irmã da médica Nise Yamaguchi, apoiadora de Bolsonaro conhecida por defender o uso da cloroquina no tratamento de covid-19, apesar de o remédio não ter eficácia comprovada contra a doença.

A argumentação exposta nesse vídeo, porém, é contestada pelo TSE e por especialistas em segurança de dados e estatística ouvidos pela BBC News Brasil. Análises matemáticas produzidas por acadêmicos têm identificado, inclusive, o oposto: que não há evidências de fraudes nas urnas eletrônicas.

Nessa reportagem, a BBC News Brasil destrincha os argumentos matemáticos que tentam comprovar as supostas fraudes e explica por que os cálculos são inconsistentes na avaliação de especialistas. Você vai entender, por exemplo, como o uso da Lei de Benford nessas análises tem sido aplicada de forma controversa para tentar detectar padrões fraudulentos na distribuição de votos nas urnas.

Os questionamentos e as suspeitas sobre a proxalutamida, nova droga defendida por Bolsonaro contra a covid-19
Ao final, a reportagem mostra também como o cientista político Guilherme Russo, da Fundação Getúlio Vargas (FGV), aplicou uma metodologia desenvolvida por acadêmicos estrangeiros para analisar a distribuição dos votos nas eleições presidenciais de 2014 e 2018 e não encontrou evidências de fraudes.

Os especialistas ouvidos enfatizam que análises estatísticas não são capazes de provar que houve ou não manipulação nas eleições. Elas servem apenas como ponto de partida para detectar se há algum indício de anormalidade que precise ser melhor investigado.

Bolsonaro tenta provar que houve fraude nas eleições para sustentar a necessidade de alterar a urna eletrônica para incluir um comprovante impresso do voto. Segundo ele, apenas isso permitiria a auditoria do resultado eletrônico.

Já o TSE afirma que a urna eletrônica permite a auditoria dos resultados por meio do Boletim de Urna que é impresso ao final da votação na seção eleitoral (o documento possibilita comparar os votos computados em cada urna no sistema eletrônico do TSE com os do respectivo boletim).

Críticos de Bolsonaro dizem que ele não está de fato preocupado com a segurança da votação e deseja lançar desconfianças sobre o sistema eletrônico para contestar o resultado do pleito de 2022 caso não consiga se reeleger.

Entenda a seguir as falhas nas análises matemáticas que vem sendo apresentadas como "provas" de fraudes por Bolsonaro e seus apoiadores e como outras aplicações da ciência estatística têm afastado essa hipótese.

Os problemas nos cálculos que tentam provar fraude em 2014
"Em 2014, a pessoa que eu vou entrevistar, usando apenas as parciais (da apuração de votos) fornecidas pelo TSE e cálculos matemáticos, descobriu as fraudes nas urnas", afirmou Naomi Yamaguchi ao iniciar o vídeo de cerca de 15 minutos em que fala com um homem anônimo que diz ter provas de uma suposta ilegalidade na apuração da eleição presidencial.

Temperatura para impeachment de Bolsonaro 'vai esquentando', diz vice-presidente da Câmara

A imagem do entrevistado não é revelada, sendo possível apenas ouvir sua voz enquanto conversa com Yamaguchi.

A análise parte de uma premissa falsa: no vídeo, o homem diz ter certeza que a eleição foi fraudada porque o candidato Aécio Neves, no início da apuração, quando um volume ainda pequeno de urnas tinha sido contabilizado, atingiu um percentual de quase 70% dos votos válidos contra cerca de 30% de Dilma.

Conforme mais votos foram sendo contabilizados, Dilma inverteu a vantagem, conquistando uma vitória por pequena margem: o placar final da eleição ficou em 51,64% para a petista contra 48,36% do tucano.

Apuração minuto a minuto. Segundo turno de 2014 - % de votos por candidato.  .

Essa inversão, porém, é explicada pela dinâmica da contagem de votos em 2014, segundo o TSE. Por causa do horário de verão que era adotado em parte do país naquele ano, zonas eleitorais de estados do Norte e Nordeste fecharam depois de zonas do restante do país.

Dessa forma, a contagem começou com urnas de regiões onde Aécio era mais forte (Sul e parte do Sudeste), dando vantagem inicial ao tucano. Quando mais urnas do Norte e Nordeste foram contabilizadas, Dilma virou.

"Isso frustrou o país todo, inclusive a mim. E naquela hora eu tive certeza de que as urnas foram fraudadas", disse o anônimo no vídeo, ao comentar a inversão da vantagem de Aécio ao longo da apuração.

O homem conta então que buscou uma forma de provar a fraude a partir de uma análise da evolução da contagem de votos minuto a minuto, divulgada pelo TSE. "Se eu analisar esses números e descobrir um padrão, eu comprovo que esses números foram frutos de uma fórmula matemática, de um algoritmo", disse.

A partir daí, ele afirmou ter analisado a variação do incremento de votos de Dilma e Aécio em cada minuto e encontrou um padrão que seria praticamente impossível estatisticamente: por 241 minutos seguidos, os dois candidatos teriam se alternando na liderança da variação do ganho de votos.

"Aqui nós temos (a alternância) Dilma, Aécio, Dilma, Aécio, Dilma, Aécio, Dilma, Aécio, Dilma, Aécio. Quantas vezes, Naomi? 241 vezes Dilma, Aécio (se alternando)", sustentou o entrevistado de Yamaguchi.

"Aqui eu encontrei o padrão que eu procurava. E isso aqui não é o resultado de uma eleição natural, aonde se abrem urnas de vários pontos do país e você tem minuto a minuto uma variação imprevisível. Aqui, é totalmente previsível. E eu concluo com isso que somente uma fórmula poderia produzir este minuto a minuto que a gente enxergou em 2014", disse ainda o homem.

Ao analisar os dados brutos da apuração minuto a minuto, a BBC News Brasil não encontrou um padrão de alternância entre os incrementos de votos de Dilma e Aécio em 2014 durante os 333 minutos que duraram a contagem.

Os números oficiais do TSE indicam, na verdade, que Aécio liderou sozinho o ganho de votos nos minutos iniciais. Depois, Dilma apresentou maior incremento de votos na maior parte do tempo, com o tucano recebendo mais votos em alguns momentos pontuais.

O especialista em segurança de dados Conrado Gouvêa, doutor em Ciência da Computação pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), também analisou a apuração minuto a minuto e não encontrou um padrão de alternância entre os ganhos de votos de Dilma e Aécio. Sua análise está detalhada em seu site pessoal.

Gouvêa reproduziu as tabelas divulgadas no vídeo de Yamaguchi para tentar entender a análise sugerida pelo entrevistado e identificou que foi feito um cálculo errado que tem o resultado prático de necessariamente levar a alternância de Dilma e Aécio como o vencedor da apuração minuto.

Isso porque, em vez de analisar quem ganhou o maior incremento de votos a cada minuto, o homem anônimo elaborou uma metodologia em que analisou alternadamente o desempenho de cada candidato nos minutos ímpares e pares da apuração.

Ele passou a somar a cada minuto par os votos obtidos em todos os minutos pares anteriores de cada candidato. E fez o mesmo para os minutos ímpares. Depois calculou a evolução da proporção de votos ímpares e pares de cada candidato minuto a minuto.

O problema, afirma Gouvêa, é que com o avançar da apuração a proporção de "votos pares" e "votos ímpares" de cada candidato tende a se estabilizar de uma forma que necessariamente um dos candidatos sempre aparece como "vencedor" nas linhas pares e o outro sempre como "vencedor" das ímpares.

Isso explica porque nos 241 minutos finais de apuração, Dilma e Aécio aparecem alternados na análise feita pelo homem anônimo.

"Eu fiz um teste usando o mesmo cálculo aplicado no vídeo, em que gerei votos aleatórios para Dilma e Aécio, e o resultado alcançado foi o mesmo: dava uma alternância entre os dois. Se a mesma metodologia for usada nos resultados do resultado da eleição de 2018, fatalmente haverá uma alternância por muitos minutos entre Bolsonaro e Haddad (candidato do PT derrotado). Isso não é indício de qualquer fraude", disse Gouvêa à BBC News Brasil.

Naomi Yagamuchi
Naomi Yagamuchi conversa com homem anônimo em vídeo de 2018 que hoje é citado por Bolsonaro. Foto: Reprodução/Facebook

Ele afirma que é difícil saber se o erro de cálculo no vídeo apresentado por Yamaguchi foi por desconhecimento do entrevistado ou algo intencional para gerar uma falsa prova de fraude.

"Tem duas hipóteses: ou a pessoa realmente achou que estava fazendo uma análise certa e não estava, ou realmente foi má fé. É difícil diferenciar uma coisa da outra, mas a consequência é a mesma: levanta essa acusação (de fraude nas urnas) que não faz sentido, coloca em dúvida todo o processo eleitoral e muitas pessoas caem", lamentou.

Uma conversa de Bolsonaro no início de julho com apoiadores na porta do Palácio do Alvorada evidencia que o presidente é um dos que deu crédito a essa análise. "A fraude está no TSE, para não ter dúvida. Isso foi feito em 2014", disse na ocasião.

"O minuto a minuto, por 271 vezes consecutivas, dá para imaginar? Dá quatro horas e pouco. Momentos antes de as curvas se tocarem, dava: Dilma ganhou, Aécio ganhou, Dilma ganhou, Aécio ganhou, por 271 vezes. É vocês jogarem uma moeda 271 vezes para cima e dar cara, coroa, cara, coroa. Isso deve ser a quantidade de átomos aqui na terra", acrescentou, reproduzindo a tese divulgada no vídeo de Yamaguchi.

A BBC News Brasil procurou Naomi Yamaguchi por meio de sua irmã Nise Yamaguchi. Foram enviadas perguntas por email na segunda-feira (26/7) questionado se ela gostaria de responder às críticas ao seu vídeo, mas não houve retorno até a publicação desta reportagem.

O uso controverso da Lei de Benford
Outra análise matemática que tem sido usada para questionar a integridade da urna eletrônica é a aplicação da Lei de Benford, que é citada na segunda parte do vídeo de Naomi Yamaguchi como mais uma evidência de que a eleição de 2014 foi fraudada.

Além disso, é usada por Hugo Cesar Hoeschl, ex-procurador da Fazenda Nacional, para sustentar em um vídeo de 2018 que "a probabilidade de fraude na última eleição presidencial brasileira (2014) foi de 73,14%".

Sua tese é exposta em um texto de 11 páginas, com explicação superficial da metodologia empregada, e ganhou projeção por meio do veículo conservador Brasil Paralelo, que mantém em sua página do YouTube vídeos em que Hoeschl expõe suas conclusões.

Hugo Hoeschl
Em vídeo, Hugo Hoeschl alega ter evidências de alta probabilidade de fraude nas urnas. Foto: Reprodução/Youtube

A Lei de Benford, que leva o nome do físico Frank Benford, estabelece que em alguns conjuntos de números, como tamanhos de rio ou da população de cidades, o dígito inicial mais comum é o 1 (com 30,1% de frequência), seguido do 2 (17,6%). A frequência dos demais algoritmos como dígito inicial vai caindo sucessivamente também do 3 até o 9, quando é de apenas 4,6%.

Ou seja, ao analisar a população de todas as cidades do Brasil, por exemplo, há bem mais chances de o número começar com o dígito 1 (por exemplo, 100.148 habitantes, ou 13.400 habitantes, etc), do que começar com 8 ou 9.

Essa regra se mostra consistente na análise de vários conjuntos numéricos e é aplicada inclusive para detectar possíveis fraudes financeiras. Porém, segundo estatísticos consultados pela BBC News Brasil, não serve para prever a distribuição do dígito inicial de todo e qualquer conjunto de números.

Por exemplo, se formos analisar a distribuição da altura de todos os brasileiros adultos, encontraremos uma frequência inicial do dígito 1 muito maior que 30,1% como sugere a Lei de Benford, porque o mais comum é que adultos meçam mais de um metro e menos de dois.

A Lei de Benford, portanto, tende a funcionar quando se está analisando um conjunto abrangente de números que não tenham uniformidade.

No caso do vídeo da Naomi Yamaguchi, o entrevistado diz que aplicou a Lei de Benford para analisar a distribuição do primeiro dígito "nas parciais minuto a minuto fornecidas pelo TSE" da soma de votos de Dilma e Aécio.

O resultado que ele encontra porém destoa totalmente do previsto na lei porque dá uma baixa frequência para os dígitos iniciais 1, 2, 3 e 4 e mostra como algoritmo mais frequente no primeiro dígito o 5, tanto para os votos de Dilma como os de Aécio. E do 6 em diante a frequência é próxima de zero.

A questão é que ele usou na análise a evolução do acumulado dos votos de cada candidato minuto a minuto e, para ambos, a soma dos votos foi subindo gradualmente até atingir o patamar de mais de 50 milhões de votos, se estabilizando pouco acima disso.

O resultado final ficou em 54,5 milhões de votos para Dilma e 51 milhões para o Aécio, sendo impossível, portanto, que os dígitos de 6 a 9 aparecerem com frequência relevante.

"O dígito 5 é o mais frequente por um simples motivo: foram 105 milhões de votos válidos, resultando cerca de 50 milhões de votos para candidato. E a apuração foi ficando mais lenta conforme foi avançando (o que é normal), fazendo com que exista um grande número de parciais na casa dos 50 milhões (primeiro dígito 5), e um número razoável na casa dos 40, 30, 20 e 10 milhões (primeiros dígitos 4, 3, 2, 1). Isso é exatamente o que está ilustrado no gráfico do vídeo (Naomi Yamaguchi)", explica em seu site o especialista em segurança de dados Conrado Gouvêa.

Apuração minuto a minuto . Segundo turno de 2014 - votos totais obtidos.  .

Essa análise, porém, é tratada no vídeo como grande evidência de fraude.

"Nós não temos a Lei de Benford nas parciais minuto a minuto fornecidas pelo TSE. Isso aqui também tem um embasamento muito forte na Matemática de que praticamente é impossível você ter um universo natural de números aonde a maior parte dos números começam com 5. Isso vai totalmente contra a lógica matemática", diz o entrevistado anônimo.

"O Brasil Paralelo fez um estudo esse ano que falou que em 2014 houve 74% de chances das urnas serem fraudadas. Você está nos dando a prova de que foi 100% de chances de elas terem sido fraudadas", responde Naomi Yamaguchi, em referência às teses de Hugo Hoeschl.

A pedido da BBC News brasil, o professor do departamento de Estatística da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) Rafael Stern analisou o texto de 11 páginas que Hoeschl assina com mais três pessoas (Tania Cristina D'Agostini Bueno, Gilson da Silva Paula e Claudio Tonelli).

Esse artigo diz em sua conclusão que "a eleição brasileira de 2014, sob a ótica da Lei de Newcomb Benford, encontra-se reprovada na análise de conformidade, com grau de certeza de 73,149%".

Para Stern, "faltou rigor científico" ao texto, já que ele não explica detalhadamente a metodologia utilizada e os cálculos feitos. Isso impede que cientistas reproduzam a análise para testar sua validade.

"Parece que é um texto científico, mas não mostra muito bem algumas premissas por trás da análise dele. Eu não saberia replicar exatamente o que ele fez ali. Ele não explica como esse valor de 73% foi calculado. Para um texto rigoroso científico, está faltando muito", disse o professor.

"A Lei de Benford é complicada de um ponto de vista estatístico. Tem muitos artigos escritos sobre as condições em que essa lei é satisfeita, mas se o cenário eleitoral com o processamento que ele fez estaria dentro ou não da lei eu não sei te dizer porque ele não explica bem como foi aplicada", disse ainda.

O estatístico Carlos Cinelli, doutorando na Universidade da Califórnia, nos Estados Unidos, usou a Lei de Benford para analisar os resultados da eleição de 2014 e identificou limitações da sua aplicação.

Em seu blog pessoal, ele mostrou que a distribuição da frequência do primeiro dígito na quantidade de votos obtidos por Dilma em cada município apresentou boa correlação com a lei quando aplicada para analisar essa distribuição nacionalmente (ou seja, em todos os municípios do país).

Já quando a análise dos municípios era feita por Estado, foram encontradas discrepâncias grandes com os resultados previstos na lei em locais como Bahia, Minas Gerais, Pernambuco, Piauí e Rio Grande do Sul.

Segundo ele, isso não serve como indicativo de fraude, porque a variação do primeiro dígito no número de habitantes das cidades desses Estados também não segue a Lei de Benford.

Como o número de eleitores (votos) está relacionado ao número de habitantes, logo a lei não seria aplicável nesses casos, ele ressalta em seu site: "Deste modo, para o caso em questão, as grandes discrepâncias entre a Lei de Benford e o número de votos em alguns Estados parecem decorrer, em grande medida, do próprio desvio já presente nas distribuições da população e do eleitorado".

À BBC News Brasil, Cinelli explicou que isso provavelmente ocorreu porque o tamanho da população nas cidades desses Estados deve ser mais homogêneo. E a Lei de Benford funciona melhor quando há uma abrangência grande de números variados.

"Isso (a falta de correlação em alguns Estados) diminui a utilidade da Lei de Benford para identificar indícios de possíveis manipulações", afirma.

Ele ressalta que, mesmo nos casos em que a Lei de Benford se aplica, ela não serve como prova de que houve ou não alguma fraude, mas sim como um indicativo de possíveis focos que devem ser melhor investigados.

Aécio Neves
PSDB chegou a pedir recontagem dos votos em 2014, mas hoje reconhece legitimidade do resultado da eleição. Foto: Agência Câmara

Ao analisar o texto de Hoeschl a pedido da BBC News Brasil, Cinelli também identificou problemas, já que ele diz ter aplicado a Lei de Benford nos resultados das zonas eleitorais (em vez de municípios) de cada Estado.

"Não teria porque esperar que a distribuição de votos dentro de cada Estado seguisse a Lei de Benford (para os primeiros dígitos), dado que a própria população não segue. A situação piora ainda mais se olharmos por zona eleitoral. Quanto menor o âmbito da análise, menos a gente espera que a Lei de Benford se aplique para os primeiros dígitos", disse Cinelli.

Procurado pela BBC News Brasil, Hoeschl respondeu aos questionamentos após a publicação da reportagem. Ele discordou da crítica de Cinelli e insistiu que sua análise por zona eleitoral e Estado é adequada.

"Via de regra, os estados possuem mais zonas eleitorais do que municípios, o que significa um universo maior de dados para serem comparados com as proporções de Benford, o que torna a análise mais rica e mais distribuída", disse.

No entanto, o portal do TSE mostra que praticamente todos os Estados têm mais municípios que zonas eleitorais (apenas no Rio de Janeiro ocorre o inverso). O país tem no total 5,5 mil municípios e 2,6 mil zonas eleitorais.

Hoeschl também refutou que falte rigor científico à sua publicação. Questionado se poderia detalhar como chegou ao resultado de 73% de probabilidade de fraude na eleição de 2014, disse que isso já estava claro em seu texto.

"A forma como o método está descrito no texto está bastante simples, clara e objetiva, e se deve discordar da negativa de reprodutibilidade do procedimento ali descrito - ou do seu teor conclusivo - sem que tal negativa esteja escorada em dados concretos, registros de tentativas, logs reconstrutivos, ou resultados diversos dos encontrados até então", afirmou.

A reportagem também questionou o Brasil Paralelo sobre as críticas ao conteúdo de Hoeschl divulgado em seu canal do YouTube. Identificando-se como chefe de relações institucionais do veículo, Renato Dias respondeu por email que Hoeschl foi um dos entrevistados para o mini-documentário Dossiê Urnas Eletrônicas, motivado pelo "grande movimento de pessoas que estavam desconfiadas sobre a auditabilidade das urnas eletrônicas" em 2018.

"Reforçamos que em nenhum momento a Brasil Paralelo afirmou que alguma eleição já foi fraudada. O objeto de pesquisa sempre foi a confiança do eleitor na urna eletrônica", afirmou ainda.

Outras análises matemáticas contradizem hipótese de fraudes
O cientista político Guilherme Russo, pesquisador da FGV, aplicou outra análise matemática da distribuição dos votos entre os candidatos nas eleições presidenciais de 2014 e 2018 e obteve resultados que afastam a suspeita de fraudes nas duas disputas.

A metodologia empregada por ele é detalhada em um artigo de 2012 dos cientistas políticos Bernd Beber e Alexandra Scacco, então professores da New York University, nos Estados Unidos. Hoje ambos são pesquisadores do WZB Berlin Social Science Center, na Alemanha.

A metodologia consiste em analisar como se distribuem os últimos algarismos do número de votos dos candidatos em cada urna.

O último algarismo pode variar de 0 a 9 e, numa eleição não manipulada, a incidência de cada um desses dez algarismos tende a estar próxima de 10%.

Por exemplo, o site do TSE permite ver que, no primeiro turno de 2018, na 6ª seção da 4ª zona eleitoral São Paulo, localizada na zona leste da cidade, Bolsonaro recebeu 85 votos contra 34 de Fernando Haddad (PT) e 31 de Ciro Gomes (PDT).

O que é levado em conta nessa análise é o último dígito do número de votos. Ou seja, 5 no caso de Bolsonaro, 4 no caso de Haddad e 1 no de Ciro Gomes, considerando essa sessão específica de São Paulo.

Segundo a metodologia aplicada, ao se analisar todas as urnas do país, a quantidade de vezes que o número de votos de Bolsonaro, Haddad ou Ciro acaba em 5, por exemplo, deve ser cerca de 10% para cada um deles. E a mesma coisa para o número de vezes que acaba em qualquer um dos outros dígitos entre 0 e 9.

Já quando há manipulação nas eleições, essa distribuição de frequência dos dígitos finais não tende a ser uniforme, argumentam Beber e Scacco.

No artigo de 2012, publicado pela revista científica Political Analysis, da Universidade de Cambridge, no Reino Unido, eles usam pesquisas da área de psicologia para mostrar como eventuais fraudes nas urnas tendem a deixar rastros detectáveis por análises matemáticas.

Isso porque os seres humanos são pouco habilidosos para gerar números aleatórios. Dessa forma, ao fraudar os números de votos, tendem a alterar o resultado das urnas sem respeitar a aleatoriedade que uma votação sem manipulação produz.

Frequência da distribuição. Em % - por algarismo.  .

Ao testar sua metodologia em eleições da Suécia, Nigéria e Senegal, os dois encontraram evidências de manipulação no pleito nigeriano de 2003 e no senegalense de 2007.

Ao aplicar essa metodologia para os resultados do primeiro turno de 2018 no Brasil, Russo identificou que a distribuição do último dígito da quantidade de votos em cada urna do país entre os três candidatos presidenciais mais votados naquele pleito — Jair Bolsonaro (então no PSL), Fernando Haddad (PT), Ciro Gomes (PDT) — se deu de maneira bastante uniforme entre os três, sempre em torno de 10%.

Outra maneira de tentar identificar a interferência humana no resultado das eleições proposta por Beber e Scacco é olhar para os dois dígitos finais do número de votos.

"Humanos tendem a subestimar a repetição de um mesmo algarismo (por exemplo, 1-1 e 4-4). Também utilizamos pares de algarismos sequenciais mais do que o acaso criaria (por exemplo, 2-3 e 7-8)", explica Russo.

A aplicação dessa análise à última eleição presidencial também não apontou sinais de manipulação. "Em 2018, a frequência de algarismos repetidos nos dois últimos dígitos é 10,025% nos votos de Bolsonaro no 1º turno, 9,674% para Haddad e 10,139% para Ciro Gomes. Ou seja, são muito próximos da expectativa de 10%", nota ele.

"Já a existência de algarismos consecutivos deve acontecer 20% das vezes em um sorteio, pois há duas entre dez possibilidades de que o segundo algarismo seja vizinho do primeiro (considerando 9 e 0 como vizinhos). Os números obtidos são: 19,159% (Bolsonaro), 19,922% (Haddad) e 20,129% (Ciro)", acrescenta.

As mesmas análises foram aplicadas por Russo para votos do primeiro turno presidencial de 2014 recebidos por Dilma, Aécio e Marina Silva (Rede), com resultados semelhantes. Na sua visão, esses dados "contradizem a irresponsável alegação de fraude".

Análises matemáticas não servem para cravar se houve ou não fraude
A pedido da BBC News Brasil, o professor de Estatística da UFSCar Rafael Stern também avaliou a metodologia usada por Russo e a considerou "bem consistente" para a análise dos resultados das eleições. Ele ressaltou, porém, que essa análise estatística também não permite cravar se houve ou não fraude.

"Não dá pra concluir categoricamente que não houve fraude. O que essa análise mostra é que não houve um tipo de fraude que resultaria nessa quebra de padrão (de frequência dos últimos dígitos da quantidade de votos por urna). Você pode imaginar que um fraudador suficientemente sagaz tentaria manter esses padrões", nota o professor.

Imagem da urna eletrônica
Legenda da foto,Urna eletrônica é usada há 25 anos no Brasil e nunca foram encontradas evidências sérias de fraudes, diz TSE. Foto: TSE

Isso poderia ser alcançado, exemplifica Stern, se o fraudador subtraísse um número de votos de um determinado candidato e transferisse para outro de forma idêntica em uma quantidade suficientemente grande de urnas que não alterasse essa distribuição aleatória do dígito final.

Uma série de mecanismos de segurança adotados pelo TSE, porém, dificultam as invasões das urnas eletrônicas.

"Não é um processo trivial, é necessário encontrar alguma vulnerabilidade que permita fazer isso sem ser detectado", nota Paulo Matias, professor do Departamento de Computação da UFSCar que participou de testes de vulnerabilidade nas urnas eletrônicas em 2017.

"Não existem evidências de fraudes desse tipo em eleições passadas, nem de risco iminente de fraude nas eleições do ano que vem", disse ainda.

Apesar disso, Matias é um dos estudiosos da segurança das urnas eletrônicas que defendem a adoção do voto impresso associado à urna eletrônica, como forma de aperfeiçoar os mecanismos de segurança no futuro, com mais um instrumento de auditagem. O modelo é usado em alguns locais, como Índia e distritos dos Estados Unidos.

"É extremamente irresponsável tentar implementar o voto impresso em apenas um ano (para a eleição de 2022), pois uma implementação descuidada trará mais riscos ao processo eleitoral que benefícios", diz.

"Por outro lado, justamente por ser um mecanismo que demanda implementação cuidadosa, devemos começar a pensar em implementá-lo desde já, em vez de deixar para começar só quando ele se mostrar necessário. Não sabemos se o panorama vai continuar o mesmo daqui a dez anos", argumentou ainda.


Fonte:
BBC Brasil

https://www.bbc.com/portuguese/brasil-58007138


Bolsonaro ignora apelo do centrão, volta a ameaçar eleições e diz que 'não aceitará farsa'

Presidente novamente desrespeitou protocolos sanitários em motociata no interior de SP e fez live com problemas técnicos

Ana Luiza Albuquerque e Emerson Voltare, da Folha de S. Paulo

O presidente Jair Bolsonaro (sem partido) ignorou apelos de líderes e dirigentes de partidos do centrão que dão sustentação ao seu governo e voltou a atacar o sistema eleitoral durante manifestação a seu favor em Presidente Prudente (SP) neste sábado (31).

Em transmissão ao vivo na quinta-feira (29), Bolsonaro havia feito o mais duro ataque contra as urnas eletrônicas, sem, entretanto, apresentar qualquer prova das supostas fraudes nas eleições que denuncia há três anos. Ministros do TSE (Tribunal Superior Eleitoral) e do STF (Supremo Tribunal Federal) reagiram nos bastidores, e aliados do centrão apelaram ao presidente para que moderasse o tom.

Dois dias após os ataques e a disseminação de informações falsas, porém, Bolsonaro afirmou em palanque que a democracia só existe com eleições limpas e que não aceitará uma "farsa".

"Queremos eleições, votar, mas não aceitaremos uma farsa como querem nos impor. O soldado que vai à guerra e tem medo de morrer é um covarde. Jamais temerei alguns homens aqui no Brasil que querem impor sua vontade", disse.

O discurso de Bolsonaro foi transmitido ao vivo em suas redes sociais, mas a transmissão enfrentou problemas técnicos e caiu diversas vezes.

A motociata em Presidente Prudente foi a sexta promovida pelo presidente, que voltou a ignorar protocolos sanitários, gerar aglomerações e cumprimentar apoiadores sem máscara. Acompanharam o chefe do Executivo os ministros Marcelo Queiroga (Saúde) e Tarcísio de Freitas (Infraestrutura).

A manifestação ocorreu em meio ao avanço da variante delta da Covid-19, mais transmissível que as demais. O Brasil registrou 886 mortes pela doença nesta sexta-feira (30), e chegou a 555.512 óbitos desde o início da pandemia. A média móvel de mortes é de 1.013 —o país está há 191 dias seguidos contabilizando mais de 1.000 mortes por dia.

As cinco motociatas anteriores foram realizadas entre maio e julho, em BrasíliaRio de JaneiroSão PauloChapecó (SC) e Porto Alegre. O presidente anunciou que a próxima será em Florianópolis, no dia 7 de agosto.

Segundo resposta obtida pela Folha via Lei de Acesso à Informação, somente a motociata realizada no Rio em maio custou ao menos R$ 231 mil aos cofres públicos, somando os gastos com o cartão corporativo, transporte terrestre, passagens, telefonia e diárias.

Na soma não estão inclusos os custos do governo estadual com reforço no policiamento. Na motociata da capital paulista, esses gastos chegaram a R$ 1,2 milhão com a participação de 1.433 policiais, cinco aeronaves, dez drones e aproximadamente 600 viaturas, informou a Secretaria de Segurança Pública do estado.

Em Presidente Prudente, ainda segundo a secretaria, esses custos foram superiores a R$ 300 mil. O efetivo foi reforçado com 450 policiais militares, drones e um helicóptero.

Para a passagem de Bolsonaro em Presidente Prudente, foi bloqueado o acesso das principais rodovias que vão para o norte do Paraná, para a divisa de Mato Grosso do Sul, para a capital paulista e para o norte do estado de São Paulo. Foram escalados para o evento 500 policiais militares, 150 rodoviários, batalhões especiais e um helicóptero.

Além de apoiar o presidente, segundo os organizadores, a motociata teve como objetivo fortalecer o movimento “Brasil livre e a favor do voto auditável” —fazendo coro às mentiras espalhadas por Bolsonaro sobre supostas fraudes nas eleições, nunca provadas por ele.

Bolsonaro chegou no aeroporto por volta das 9h, percorreu um percurso nas estradas que circundam o local, e seguiu para o parque do Povo, principal parque urbano da cidade.

Segundo a agenda oficial, o presidente foi a Presidente Prudente para formalizar o credenciamento do Hospital de Esperança, antigo HRCPP (Hospital Regional do Câncer de Presidente Prudente), junto ao SUS.

Além da motociata, a agenda extraoficial de Bolsonaro previa um megachurrasco com 2.000 pessoas no centro de exposições da cidade.

A pedido do Ministério Público, o evento foi cancelado pela Justiça, que alegou que uma cerimônia deste tamanho só poderia estar inserida na categoria dos eventos-teste anunciados pelo governo paulista em meio à pandemia da Covid-19.

A prefeitura afirmou que o evento era encabeçado pela UDR (União Democrática Ruralista), uma associação civil que despontou em defesa dos ruralistas em meados dos anos 1980, quando o oeste paulista se tornava epicentro de conflitos fundiários, com a presença do MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra) na região.

A organização já foi presidida por Luiz Antonio Nabhan Garcia, líder ruralista local e hoje secretário de Assuntos Fundiários do Ministério da Agricultura do governo federal e aliado próximo do presidente. Desde a corrida presidencial de 2018, Nabhan Garcia é ainda um dos principais fiadores de Bolsonaro entre parte do setor do agronegócio no país.

Na CPMI da Terra, concluída em 2005, Nabhan Garcia foi acusado de estar associado a milícias armadas no campo em defesa de fazendeiros na região de Presidente Prudente. À época, o agora secretário de Bolsonaro responsável pela reforma agrária e demarcação de terras indígenas negou as acusações e não foi indiciado.

Irmão dele, Maurício Nabhan Garcia chefia hoje a Secretaria de Agricultura e Abastecimento em Presidente Prudente, pasta criada pelo atual prefeito prudentino, que, apesar de estar filiado a um partido que faz oposição a Bolsonaro a nível nacional, se mostra alinhado ao presidente.

Desde a eleições municipais de 2020, quando garantiu seu primeiro mandato à frente da prefeitura, Ed Thomas (PSB) mantém elogios públicos e fotos com Bolsonaro nas redes sociais. A cidade elegeu o presidente com 78% dos votos válidos no segundo turno das eleições de 2018

Nesse sábado, o prefeito publicou uma nova imagem com o presidente, afirmando que sua visita é uma "oportunidade para manifestar gratidão pelo credenciamento do Hospital de Esperança junto ao SUS".


Fonte:

Folha de S. Paulo

https://www1.folha.uol.com.br/poder/2021/07/bolsonaro-ignora-apelo-do-centrao-volta-a-ameacar-eleicoes-e-diz-que-nao-aceitara-farsa.shtml


Com desemprego de 14,6%, Guedes faz crítica ao IBGE. Analistas destacam o peso da informalidade

Dados do instituto mostram que trabalhadores sem carteira e conta própria representam 40% do mercado de trabalho

Carolina Nalin e Raphaela Ribas / O Globo

RIO - Pouco mais de um ano após o início da pandemia, a crise no mercado de trabalho ainda ensaia recuperação, de acordo com dados divulgados pelo IBGE.  Em maio, a taxa de desemprego ficou estável, em um patamar elevado, de 14,6%, com 14,8 milhões de pessoas em busca de uma oportunidade, segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (Pnad) Contínua.

Perguntado sobre o resultado, o ministro da Economia, em evento no Rio, criticou a metodologia do IBGE dizendo que ele está “na idade da pedra lascada”.

Na avaliação de especialistas, a pesquisa do IBGE mostra um retrato de recuperação gradual, com aumento da procura por vagas, puxada pelo avanço da vacinação e da retomada da atividade econômica.

Como o aumento da oferta de postos de trabalho não é suficiente para atender a demanda, o brasileiro busca uma saída no emprego sem carteira assinada ou no trabalho por conta própria.

A taxa de informalidade vem subindo desde maio do ano passado e atingiu 40%, o equivalente a 34,7 milhões de pessoas.

Retratos do mercado
Ao comentar os resultados, Guedes citou dados do Caged, o Cadastro Geral de Empregados e Desempregados, que acompanha o desempenho do mercado de trabalho formal a partir de informações prestadas pelas próprias empresas.

Na véspera, o Caged havia informado que o país criou 1,5 milhão de vagas com carteira assinada de janeiro a junho, dos quais 300 mil somente no mês passado.

O levantamento do IBGE traça um panorama do mercado como um todo, incluindo trabalhadores com e sem carteira, domésticos, empregadores, conta própria e do setor público, a partir da coleta de dados em entrevistas.

— Desde que a Covid nos atingiu, já criamos 2,5 milhões de novos empregos. A Pnad do IBGE está muito atrasada metodologicamente, pesquisa feita por telefone... É muito superior a metodologia do Caged, ela vem direto das empresas. Nós vamos ter inclusive que rever, acelerar os procedimentos do IBGE, porque ele ainda está na idade da pedra lascada, baseado ainda em métodos que não são os mais eficientes. (Com o Caged), nós temos informações direto das empresas — disse o ministro, que participou de evento na manhã de ontem no Rio.

Na avaliação do ministro, o país se recupera em ritmo acelerado. E o mercado de trabalho tenderia a ganhar tração com o lançamento de novos programas de emprego em elaboração pelo governo, incluindo o Bônus de Inclusão Produtiva (BIP), que busca criar oportunidades para jovens e pessoas com mais de 55 anos no mercado, e um programa de qualificação para o primeiro emprego.

— Vamos criar mais 2 milhões de empregos. Estamos criando praticamente 1 milhão de empregos a cada 3 meses e meio — frisou Guedes. — Então, o IBGE está um pouquinho atrasado. Esta conta vai ter que convergir com o que está acontecendo.

O IBGE está divulgando o resultado de maio no fim de julho em razão do impacto da pandemia na coleta de dados.  Procurado, o instituto afirmou que não comentaria as declarações de Guedes.

Mais cedo, antes do comentário do ministro, Adriana Beringuy, analista da pesquisa, lembrou que desde o último dia 12 o instituto retomou parcialmente as atividades presenciais, incluindo a coleta de indicadores econômicos.

Ao longo da pandemia, o IBGE manteve as pesquisas com base em entrevistas por telefone. Segundo ela, com o avanço da coleta presencial, a defasagem temporal deve ser reduzida.

Já o sindicato dos funcionários do IBGE afirmou, em nota, que o instituto é reconhecido pela excelência de seu quadro e goza da confiança da população.

Marcos Hecksher, doutor em População, Território e Estatísticas Públicas pela Escola Nacional de Ciências Estatísticas (Ence) do IBGE, lembra que vários países trocaram temporariamente as entrevistas face a face por telefonemas para evitar a disseminação da Covid-19:

— As condições da pandemia podem ter afetado as séries da Pnad Contínua e as do Caged. Todo mundo sabe disso, inclusive os bons técnicos que trabalham no Caged.

Daniel Duque, pesquisador da área de Economia Aplicada do Ibre/FGV, avalia que os dados de emprego de um país podem ser captados de forma administrativa, como ocorre com o Caged.

No entanto, usar somente essa medida seria insuficiente porque ela não mensura quantas pessoas estão em busca de emprego.

— Todos os países que têm dados de desemprego o fazem por pesquisas domiciliares semelhantes à Pnad Contínua. Além disso, tem a questão dos ocupados informais, que são muitos no Brasi —  destaca Duque.

Rendimento em queda
Para Pedro Luis do Nascimento Silva, o primeiro brasileiro a presidir o Instituto Internacional de Estatística, a avaliação é equivocada:

— A mensuração do trabalho precisa, particularmente no Brasil, cobrir o mercado dito informal, onde as pessoas não têm um empregador. A mensuração feita pelo Caged é uma parte importante, mas é uma parte, não o todo.

Segundo especialistas, a metodologia de pesquisa do IBGE segue as recomendações da Organização Internacional do Trabalho (OIT). A pesquisa também foi a base para mensurar o total de trabalhadores informais que precisariam receber o auxílio emergencial.

Os resultados de ontem mostram um cenário em que mais pessoas se dispõem a procurar uma vaga, mas a oferta de trabalho não é suficiente.

O contingente de pessoas ocupadas chegou a 86,7 milhões, puxado pela informalidade. Um dos sinais disso é o aumento de 3% em relação ao trimestre anterior dos trabalhadores por conta própria. Foi a única categoria que avançou na comparação entre fevereiro e maio.

— O controle da pandemia e a volta do funcionamento da atividade motivam as pessoas a procurarem trabalho. A questão é elas serem absorvidas pelas empresas — diz Adriana, do IBGE, que vê a recuperação no setor formal ainda está concentrada em atividades de tecnologia da informação e serviços administrativos.

Para Lisandra Barbero, do Banco Original, o resultado mostra sinais de avanço:

— A ocupação no setor privado, com carteira assinada, segue em recuperação, assim como a sem carteira, que ilustra justamente a volta gradual dos informais para as estatísticas de emprego, conforme avança a vacinação no país.

O rendimento, porém, segue em queda desde agosto. A renda real, já descontada a inflação, chegou a R$ 2.713 no trimestre encerrado em agosto de 2020, mas caiu R$ 2.547 em maio. O resultado está ligado ao aumento da inflação.


Os democratas devem pautar o debate público

Dedicado à memória do jornalista Marco Antônio Tavares Coelho.

Cláudio de Oliveira

As forças democráticas precisam pautar o debate público do país. Esse debate não pode girar em torno da agenda de Jair Bolsonaro, pois ela não representa, em grande parte, os interesses e as necessidades da maioria da sociedade brasileira.

Naturalmente, quem está na chefia do Executivo tem grande força política para definir os termos do debate. O presidencialismo brasileiro concentra grande poder na mão do presidente, que detém a iniciativa política.

Também contribuem para tal fato, a fragmentação partidária e a fraqueza dos partidos políticos no Brasil. As oposições estão divididas e algumas delas voltadas para os seus problemas.

Mas, recentemente, no início da pandemia do coronavírus, a Câmara dos Deputados, então presidida pelo deputado Rodrigo Maia, mostrou capacidade política de propor os termos do debate e liderar, de algum modo, o enfrentamento da pandemia. Foram muitas as iniciativas dos deputados para a condução da crise sanitária, em contraste com o negacionismo, o boicote e a inação do governo federal.

Depois de esperar por duas semanas por uma proposta oficial de auxílio-emergencial, anunciada verbalmente pelo ministro Paulo Guedes no valor de R$ 200, Rodrigo Maia colocou em votação a proposta de auxílio da própria Câmara, inicialmente no valor de R$ 500 e aprovada depois para R$ 600. Como sabemos, o auxílio foi fundamental para socorrer parcela expressiva da população que se viu sem fonte de renda por conta da pandemia.

Também partiram da Câmara dos Deputados diversas iniciativas necessárias ao enfrentamento da Covid-19, como a aprovação de um orçamento extraordinário da pandemia, que autorizava o chefe do Executivo a desconsiderar o teto de gastos.

Mesmo a reforma da Previdência de 2019 deveu-se sobretudo à ação parlamentar, da aprovação de um tema que estava na pauta do país desde pelos menos 1998, quando o então presidente Fernando Henrique Cardoso apresentou sua proposta visando garantir a higidez da Previdência pública, derrotada por um voto.

Como analisou a economista Laura Carvalho, assessora econômica do candidato a presidente pelo PSOL, Guilherme Boulos, o texto da reforma da Previdência aprovado “ficou a anos-luz do original no que tange ao impacto sobre os mais pobres”(1). Uma diferença fundamental: foi mantido o atual sistema previdenciário de repartição, como propuseram os constituintes de 1987/1988, diferentemente do modelo de capitalização do Chile, desejado pelo ministro Paulo Guedes.

A decisão do Senado de instalar a CPI da Pandemia deu às forças democráticas a iniciativa de pautar os termos do debate em torno da crise sanitária, deixando o governo Jair Bolsonaro na defensiva e provocando alterações significativas no executivo federal.

As forças democráticas devem agora tentar pautar o debate de forma positiva, apresentando suas propostas para o Brasil pós-pandemia. Como já ficou demonstrado desde 2019, o governo Bolsonaro não tem um projeto de desenvolvimento para o país.

Ajustar as contas públicas e fazer reformas do Estado são medidas necessárias porém insuficientes para relançar o Brasil em um novo ciclo de desenvolvimento que o qualifique para a grande competição global. Lembrando ainda que os ajustes realizados e as reformas propostas pela atual equipe econômica, com poucas exceções, foram de qualidade e efeitos duvidosos.

Some-se à falta de projeto do governo, o isolamento internacional que o Brasil foi jogado por Jair Bolsonaro, por sua política externa ideológica de extrema-direita, a ação em prol do “lupem-empresariado” como madeireiros, garimpeiros e grileiros, e o desmonte de importantes instituições do país, inclusive em setores estratégicos como ciência, pesquisa, tecnologia, educação e cultura.

O afastamento do presidente Jair Bolsonaro é um imperativo que se impõe, não só por essas questões como principalmente pela tentativa de erosão das instituições democráticas e do Estado de Direito. As forças democráticas devem, portanto, pautar o impedimento do presidente da República como primeiro item do debate público.

Além disso, devem apresentar a agenda que realmente interessa ao país: como aperfeiçoar as instituições e os órgãos de controle da corrupção no país, como democratizar e melhorar a representação político-partidária, como retomar o crescimento econômico, como retomar e ampliar a inclusão social, como acelerar a transição para uma economia verde de carbono zero, como melhorar os programas de proteção social, como avançar na questão crucial da educação, como aperfeiçoar o SUS – que deu provas de vitalidade no enfrentamento da pandemia, apesar da pouca coordenação em nível federal.

É em torno de uma pauta progressista que as forças democráticas devem fazer com que o debate público gire, apresentando à sociedade brasileira propostas concretas para os grandes desafios nacionais e as soluções positivas para os problemas que afligem a nossa gente.

* Cláudio de Oliveira é jornalista e cartunista e autor dos livros ERA UMA VEZ EM PRAGA – Um brasileiro na Revolução de Veludo e LÊNIN, MARTOV A REVOLUÇÃO RUSSA E O BRASIL, entre outros.

PS: Para ilustrar este artigo usei imagem que recebi pelas redes sociais de um chamado Bloco Democrático, do qual, defendo, nenhum partido ou movimento do campo democrático deve ser excluído.

NOTA
(1) Laura Carvalho - A previdência pública sobrevive
https://www1.folha.uol.com.br/colunas/laura-carvalho/2019/07/a-previdencia-publica-sobrevive.shtml?origin=folha


Em busca de novos caminhos

O Brasil precisa tomar o rumo da racionalidade para ter sucesso

Murillo de Aragão / Revista Veja

Na tese do copo d’água meio cheio, o Brasil só não fracassou em termos. Estamos entre as maiores economias do mundo e somos o segundo maior produtor de alimentos, entre outras façanhas. Mas existe o meio copo d’água vazio, que, em algum momento, terá de ser preenchido. Ou nos afogaremos em um país de fato fracassado.

Aos que têm recursos é fácil imaginar uma vida amena fora do Brasil. E, de lá, meter o pau no país, entre uma taça e outra de vinho. Mas a questão importa para os mais de 200 milhões de brasileiros, pelo menos, que não vão sair daqui, e nem sequer sabem o que é um passaporte. Devemos pensar neles. 

Qual seria o caminho para incorporar milhões de brasileiros em uma nação potencialmente virtuosa? Devemos começar pensando que as soluções do passado não funcionaram. O tenentismo nos trouxe a estatização e terminou reforçando a supremacia do Estado sobre a sociedade.

O esquerdismo também não deu certo quando se revelou reforçando a presença do Estado na economia. O centro, com uma social-democracia mais equilibrada, foi capturado pela lógica financeira e tributária, perdendo a chance de fazer revoluções sem grandes dores.

Em um afã “liberaleiro”, há quem queira abrir as fronteiras para que produtos chineses destruam nosso parque industrial no melhor estilo de Martínez de Hoz, que acabou com a indústria argentina. O caminho do sucesso não deve ser nem “nacionaleiro” nem “liberaleiro”. Deve ser racional. E a racionalidade nos aponta, com obviedade, o caminho do sucesso.

“O tenentismo nos trouxe a estatização e o esquerdismo também não deu certo”

Para trilhar o caminho do sucesso devemos respeitar fundamentos importantes. Quais? Vamos por partes. Garantir a liberdade de empreender, já que a iniciativa privada, com todos os seus defeitos, é o que gera dinamismo econômico. A liberdade de expressão deve ser assegurada, pois a força da palavra traz questionamentos, aperfeiçoamentos e o livre pensar.

A liberdade de cátedra deve ser garantida, para bem ensinar de forma plural. Devemos renegar tanto o ensino enviesado e “canhoteiro”, que predomina em nossas academias públicas, como a tentativa de domesticar a aprendizagem por outros cânones ideológicos.

A partir desse entendimento, devemos superar os obstáculos que nos amarram ao passado. O primeiro a ser removido é o custo do dinheiro, que nada mais é do que papel pintado. Temos de ter abundância de crédito. Em crise, os Estados Unidos nos dão o exemplo: injetam dinheiro na economia, assim como a China.

O segundo obstáculo a ser encarado refere-se à necessidade de simplificar o sistema tributário. O Brasil devia se transformar em um paraíso fiscal onde pagar impostos seja tão fácil e barato a ponto de a sonegação se tornar irrelevante.

O terceiro obstáculo a ser demolido reside no custo do Estado: pensões e penduricalhos, entre outros gastos, devem ser removidos por decisão judicial. São claramente inconstitucionais e uma penada da Justiça pode eliminá-los.

O quarto obstáculo encontra-se no sistema partidário e eleitoral, que termina por perpetuar o atraso. O caminho para removê-lo é também pela via judicial, com o fim da fragmentação partidária e de fundos eleitorais e partidários abundantes.

Enfim, o caminho do sucesso estará em outra via, seja quem for nosso futuro presidente. E a construção de uma nova via impõe uma reflexão sobre qual futuro desejamos para o Brasil.


Fonte:
Publicado em VEJA de 4 de agosto de 2021, edição nº 2749
https://veja.abril.com.br/blog/murillo-de-aragao/em-busca-de-novos-caminhos/


Perigo está na derrota do centrão para o Partido Militar, não no contrário

Risco de rompimento do equilíbrio instável não está no acordo com Nogueira e Lira

Reinaldo Azevedo / Folha de S. Paulo

A "prova matemática" que Jair Bolsonaro apresenta de que houve fraude em 2018 é, ela mesma, uma fraude já desmoralizada pelos... matemáticos. O truque, a exemplo do que se dá com o cloroquinismo, consiste em chamar de mera opinião a ciência, e de ciência a mera opinião ou o proselitismo ideológico. Uma postura corrói a democracia; a outra mata pessoas. O momento é delicado. Bolsonaro já sabota seu recém-indicado ministro da Casa Civil.

A trapaça se opera com a mesma sem-cerimônia com que o crime é chamado de liberdade de expressão, e a liberdade de expressão, de crime. E tudo se dá sob o silêncio cúmplice do procurador-geral da República, Augusto Aras, ele próprio empenhado em criminalizar os que têm uma opinião desabonadora não a respeito de sua pessoa privada —talvez seja um cara bacana—, mas de seu desempenho à frente da PGR, a exemplo do que faz com Conrado Hübner Mendes, colunista deste jornal.

Antes de sua patuscada matemática —criminosa por si mesma porque ataca a institucionalidade por meio de uma falácia—, foi o presidente a acusar o Supremo de ter cometido crime ao supostamente tê-lo impedido de atuar contra a pandemia. É evidente que não agiria com tamanha desenvoltura não fossem a certeza da impunidade e a esperança da virada de mesa "manu militari". E aqui está o xis da questão.

O centrão terá de decidir se vai ser esbirro do golpismo, que conta com apoio de alguns fardados de pijama, ou se vale o combinado entre o próprio Bolsonaro, Arthur Lira (PP-AL), presidente da Câmara, e Ciro Nogueira, novo ministro da Casa Civil: apoio até o fim, mas dentro das regras do jogo. Nogueira, note-se, foi o intermediário do recado golpista de Braga Netto, o gendarme da Defesa, a Lira: ou voto impresso ou suspensão das eleições de 2022.

Como desdobramento imediato da ameaça, deu-se o revés da fortuna para o Partido Militar (PM). O presidente do PP foi guindado à Casa Civil, definida por Bolsonaro como "a alma" do governo. Convém lembrar que Luiz Eduardo Ramos, o defenestrado, saltara do Comando do Sudeste para a Secretaria de Governo, encarregando-se, então, da articulação política. Uma aberração.

A 18 de fevereiro de 2020, assumiu a Casa Civil outro general: justamente Braga Netto, oriundo da chefia do Estado Maior do Exército. Mais uma aberração. Quando o presidente houve por bem "mostrar quem manda" nas Forças Armadas, tirou Fernando Azevedo e Silva da Defesa, substituindo-o por aquele que ameaçou pôr fim às eleições, e entregou a Casa Civil a Ramos.

Ora, é preferível que o centrão seja "a alma" do governo a que o governo tenha uma alma fardada e golpista. Os parlamentares podem ser aposentados pelo voto. O moralismo estridente que tomou conta do meio ambiente político com o lavajatismo policialesco destruiu a nossa hierarquia de valores. E não é raro que se leiam na imprensa textos de pessoas até bem-intencionadas a relegar a própria democracia a aspecto lateral em nome do que entendem ser a moralidade.

Pululam em todo canto, por exemplo, os vídeos da campanha de Bolsonaro em que ele assegura que vai governar sem o centrão, sem os políticos, sem os partidos, sem as ONGs, sem os entes da sociedade civil. Era candidato a César, não a presidente. E aí se contrasta aquele postulante, como se virtuoso fosse, com o presidente de hoje, que faz acordo com o centrão.

Esperem aí! Aquele era o Bolsonaro fascistoide, que voltou a dar as caras nesta quinta. Já o acordo com o centrão pertence ao universo da política se cumprido. Ocorre que, tudo indica, o novo ministro da Casa Civil nem deu os primeiros passos e já está sendo sabotado pelo presidente.

A nomeação de Nogueira representou uma derrota para o Partido Militar. Pela primeira vez em dois anos e sete meses, o governo pode ter um eixo que não seja a força, ainda que seja o centrão. A nova agressão de Bolsonaro ao STF e a mentira sobre a fraude eleitoral indicam que o risco de rompimento do equilíbrio instável não está no acordo com Nogueira e Lira, mas no seu descumprimento. O perigo está na derrota do centrão para o Partido Militar, não no contrário.


Fonte:
Folha de S. Paulo
https://www1.folha.uol.com.br/colunas/reinaldoazevedo/2021/07/o-perigo-esta-na-derrota-do-centrao-para-o-partido-militar-nao-no-contrario.shtml


Centrão ajuda Bolsonaro a fazer o governo do extremistão

Não há ilusão de normalidade na contratação de um operador político para o Planalto

Bruno Boghossian / Folha de S. Paulo

novo chefe da Casa Civil chegou ao Planalto com a missão de azeitar relações com o Congresso, reduzir tensões com o STF e preparar terreno para a reeleição de Jair Bolsonaro. A contratação de um profissional para cumprir essas funções deixa o presidente livre para continuar exercendo sua especialidade: trabalhar na direção contrária.

Ao mesmo tempo em que abria as portas do governo para o centrão, Bolsonaro espalhou novas mentiras sobre a atuação do Congresso na aprovação do fundo eleitoral, acusou integrantes do Supremo de conspiração e voltou a divulgar informações falsas para tumultuar a realização das próximas eleições.

Não há nenhuma ilusão de normalidade na contratação de um nome como Ciro Nogueira para administrar as articulações e gerenciar o trabalho do Planalto. O centrão pode até tentar reduzir danos políticos provocados pelos ataques de Bolsonaro às instituições, mas a linha mestra do governo continua sendo executada no gabinete presidencial, controlado pelo líder do extremistão.

O presidente já mostrou que não tem interesse numa relação saudável com outros Poderes. Nas últimas semanas, ele insinuou que o STF trabalha para fraudar a disputa de 2022 e acusou o vice-presidente do Congresso de fazer uma manobra que não existiu na votação que reservou R$ 5,7 bilhões para o fundo de financiamento de campanhas.

O centrão também acompanha placidamente o trabalho de Bolsonaro na destruição da credibilidade das eleições. Nesta quinta (29), o presidente divulgou informações falsas coletadas na internet e reproduziu relatos já desmentidos de anormalidade na urna eletrônica. O crime de responsabilidade foi transmitido ao vivo pela TV oficial do governo.​

Os caciques do centrão já deixaram de ser parceiros de ocasião, que extraem benefícios políticos do governo enquanto Bolsonaro conduz um projeto de degradação contínua da democracia. Agora, esse grupo parece mais do que satisfeito em ajudar o presidente a completar sua missão.


Fonte:
Folha de S. Paulo
https://www1.folha.uol.com.br/colunas/bruno-boghossian/2021/07/centrao-ajuda-bolsonaro-a-fazer-o-governo-do-extremistao.shtml


Sem provas, Bolsonaro faz mais uma live eleitoral; não foi bomba, foi traque

Carlos Melo / O Estado de S. Paulo

Como tantas lives, foi instrumento eleitoral onde o presidente esconde a realidade do País. Investiu na fantasia do complô e não entregou nada além do que está no zap das suas redes.

Verdade que nada disso importa ao negacionismo nacional, mas os dados do TSE são transparentes, estudiosos os acompanham em detalhe, há fiscalização de candidatos e partidos, observadores internacionais; tudo pode ser auditado, sim. A acirrada concorrência na imprensa não facilitaria silêncios e conluios. Eventos isolados não constroem um fato; nunca se constatou algo relevante. Ainda assim, depois de muito cobrado, Jair Bolsonaro se dispôs a apresentar sua “bomba” contra a Justiça Eleitoral.

A expectativa era mais de forma que de conteúdo: a versão acima dos fatos. E não foi bomba, foi traque. Como tantas lives, foi instrumento eleitoral onde o presidente esconde a realidade do País. Exibiu falsos brilhantes, silogismos, falou em nome de um povo que supostamente o apoia, mas que as pesquisas não comprovam. Investiu na fantasia do complô e não entregou nada além do que está no zap da sua rede.

Tática de escolher um inimigo, atacou o ministro Luís Roberto Barroso. Fez ilações, mas não apresentou provas. Impedida de contestá-lo, a imprensa séria rejeitou a isca e não lhe deu palco. Aos seus fanáticos, sobraram farrapos e desculpas para que contestem, preventivamente, as urnas em 2022.

Até porque não lhes importa a irrefutabilidade das afirmações, reúnem cacos inverossímeis para construir realidade paralela. A partir disso, aprofunda-se o conflito político. Com o ouro de tolo apresentado, semeia-se confusão que, talvez, favoreça o presidente. Contudo, nada é original. Essa pedra bruta já esteve nas mãos de Donald Trump.

Fraude eleitoral é crime, atentado à democracia e ao pacto político. Há mais de ano, Bolsonaro afirma saber de crimes vinculados às eleições de 2018 – recentemente, também ao pleito de 2014. Crimes que, em tese, seriam continuados pois, após isso, houve eleição em 2020. Fica a questão: se houve fraude, o presidente se omitiu; se não houve, o presidente não atentaria agora contra a eleição?

*Cientista político. Professor do Insper


Fonte:
O Estado de S. Paulo
https://politica.estadao.com.br/blogs/carlos-melo/sem-provas-bolsonaro-faz-mais-uma-live-eleitoral/


Bolsonaro mexe as peças com um só objetivo: salvar o pescoço e garantir reeleição em 2022

O governo virou comitê de campanha de presidente, onde as peças se movem para salvar seu mandato e pavimentar o caminho para 2022

Eliane Cantanhêde / O Estado de S. Paulo

Goste-se ou não de Roberto Jefferson, o polêmico político do PTB e do Centrão que detonou a crise do mensalão no governo Lula, ele tem razão: a reforma ministerial do presidente Jair Bolsonaro lembra a manobra de Fernando Collor para salvar o pescoço em 1992, quando mudou o seu governo para ampliar a base de apoio no Congresso. No caso de Collor, foi tarde demais. E no de Bolsonaro?

O fato é que foi uma decisão drástica entregar a “alma do governo” para o senador Ciro Nogueira, do PP, líder do Centrão e aliado do PT em 2018, quando chamava Bolsonaro de “fascista”. O Centrão está com tudo, os militares vão escorregando para o segundo pelotão e Paulo Guedes perde de nacos de poder para Onyx Lorenzoni construir sua campanha durante curtos – ou longos? – oito meses, até se desincompatibilizar para disputar o Governo do Rio Grande do Sul.

Onyx foi da Casa Civil, do Ministério da Cidadania e da Secretaria Geral da Presidência, até Bolsonaro criar o Ministério de Emprego para gerar um único emprego, o dele. E Guedes tinha um latifúndio ministerial, mas nunca teve poder. Agora, não tem um nem outro. Seu ministério vai continuar sendo fatiado para o Centrão e ele desliza para o ostracismo, não pelo que não fez, mas pelo que insiste em fazer: engolir sapos em nome da reeleição.

O argumento de Guedes é o mesmo dos generais que insistem em se submeter ao capitão insubordinado: “espírito de missão”. Heroico, mas não verdadeiro. Ele só fica pela sensação de poder e por resistir a admitir a derrota, ao contrário do também “superministro” Sérgio Moro, que demorou mais do que o razoável, mas mostrou que tinha limite. Guedes não tem limite.

O governo virou comitê de campanha de Bolsonaro, onde as peças se movem para salvar seu mandato e pavimentar o caminho da reeleição. Ao atravessar a rua e ir para o Planalto,

Ciro Nogueira anula as chances do seu amigo Arthur Lira abrir um dos 125 pedidos de impeachment, reforça a articulação com o Senado e abre espaço para o filho “01”, Flávio Bolsonaro, virar suplente da CPI da Covid com direito a palavra, impropérios contra a cúpula da comissão e acesso direto a todos os documentos da CPI. Presentão para o papai.

Além de reformar a casa, melhorar os alicerces governistas da CPI e penetrar mais firmemente no Nordeste (Ciro é do Piauí e Lira, de Alagoas), Bolsonaro também cria vales e aumenta as bolsas para o eleitorado mais pobre, e mais numeroso. De quebra, fideliza o núcleo duro do seu eleitorado ao se assumir cada dia mais radical.

Vem daí a foto, às gargalhadas, com a líder de um partido alemão xenófobo e de inspiração nazista, investigado no próprio país por mensagens e práticas ilegais. Não é trivial presidentes receberem deputados estrangeiros. Menos ainda, presidentes de países democráticos receberem parlamentares antidemocráticos.

Além disso, o presidente deu a Michelle Bolsonaro a medalha Oswaldo Cruz, para quem se destaca em ciência, educação e saúde, e o governo comemorou o Dia do Agricultor com uma foto, não de um trabalhador com sua enxada, mas de um jagunço com um rifle. Nem Michelle se destaca em nenhuma dessas áreas, nem o sofrido agricultor é jagunço, grileiro, desmatador, miliciano do campo. O governo estimula a guerra no campo?

O presidente também assinou um decreto para regulamentar a Lei Rouanet e, como tem sido um desastre para a Cultura, boa coisa não sai daí. E ele ainda não vetou o fundão eleitoral de R$ 5,7 bilhões, mas atendeu aos planos de saúde e vetou a lei que os obrigava a custear a quimioterapia oral para pacientes com câncer. É esse Jair Bolsonaro, o verdadeiro, que disputará voto na urna eletrônica em 2022.


Fonte:
O Estado de S. Paulo
https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,bolsonaro-mexe-as-pecas-com-um-so-objetivo-salvar-o-pescoco-e-garantir-sua-reeleicao-em-2022,70003794364


Grupos de zap fervem após live de Bolsonaro, mostrando real objetivo do presidente

A longa live de Jair Bolsonaro na noite desta quinta-feira (29), em que desfiou um compêndio de acusações contra o voto eletrônico, cumpriu seu principal objetivo: manter a base de apoiadores do presidente hiperenergizada

Fábio Zanini / Folha de S. Paulo

Bolsonaro e aliados sabem que não há hipótese de o voto impresso (ou “auditável”, como preferem os bolsonaristas) ser aprovado no Congresso Nacional. Os impropérios de Bolsonaro contra o atual modelo, que sempre se provou confiável desde a adoção, há 25 anos, provavelmente terão o efeito contrário: fortalecer no Legislativo a disposição em rejeitar qualquer mudança.

Por que ele insiste, então? A resposta está no efeito quase imediato que a estratégia de Bolsonaro de espalhar suspeitas infundadas contra a urna eletrônica teve em grupos de WhatsApp que este blog acompanha.

O presidente nem havia acabado de falar quando já circulava em grupos bolsonaristas um clipe de sua fala com o título: “Live bomba de Bolsonaro: a urna em xeque”.

“Que live, meus amigos, que live!! Histórica!”, bradou Kim Paim, um ativista defensor do presidente que se declara especializado na montagem de “dossiês” para militantes usarem nas redes sociais.

Na mesma linha, de que foi um pronunciamento definitivo do presidente sobre o tema, manifestaram-se lideranças bolsonaristas como os influenciadores Allan dos Santos e Leandro Ruschel, o comentarista político Rodrigo Constantino e o deputado federal Luiz Philippe de Orléans e Bragança (PSL-SP).

Como sempre acontece, suas falas reverberaram fortemente nos grupos bolsonaristas, acompanhados de convocações para diversos atos previstos para este domingo (1º) a favor do voto impresso.

A expectativa dos organizadores é que haja manifestações nas principais capitais e em um punhado de cidades médias. Em São Paulo, novamente, o palco será a avenida Paulista, e no Rio, a orla de Copacabana.

Outro hit do zapzap dos apoiadores do presidente foi o esculacho ao presidente do TSE, Luís Roberto Barroso, novo inimigo número 1 dos defensores do voto impresso.

Aqui, um exemplo de imagem que circulou em grupos após a fala de Bolsonaro:

Com o arrefecimento da pandemia e o pit stop da CPI da Covid no Senado, a fervura do tema da saúde baixou um pouco entre bolsonaristas. Em seu lugar, a defesa do voto impresso e o ataque ao sistema eleitoral entraram com força, como se fossem os únicos assuntos relevantes do momento no país.

A mudança reflete muito da estratégia eleitoral do presidente para 2022, que pode ser explicada em dois passos: o primeiro, manter a base de apoiadores unida, e com isso garantir a passagem para o segundo turno.

Neste momento, não interessa a Bolsonaro fazer acenos de moderação ou tentativa de ampliação de seu eleitorado cativo, que soma algo entre 20% e 30%.

É preciso radicalizar em bandeiras palpáveis, e a defesa do voto impresso vem bem a calhar, por três razões: tem um componente de paranoia, que está na base do DNA do bolsonarismo; revitaliza o espírito do presidente de insurgir-se contra “o mecanismo” (novo nome para “o sistema”), que ele tão bem soube usar na campanha de 2018; e, obviamente, fornece um elemento aglutinador para o futuro, em caso de derrota eleitoral.

Basta notar que a grande estratégia do presidente americano, Donald Trump, para se manter relevante no debate político e tentar um retorno em 2024 é a alimentar a ladainha de que foi roubado na eleição do ano passado, em que perdeu limpamente para Joe Biden.

Garantida a passagem para o segundo turno, como espera Bolsonaro, a segunda parte da estratégia é fazer um duelo de rejeições contra seu provável adversário, Luiz Inácio Lula da Silva (PT). A demonização do petista e de seus aliados “comunistas” foi um dos principais componentes da live do presidente.

Bolsonaro, assim, mais uma vez rasga a cartilha da maioria dos candidatos ao Palácio do Planalto, que em algum momento fazem acenos ao centro do tabuleiro político.

Político nada convencional, o presidente aposta em radicalizar de agora até o fim do segundo turno do ano que vem. Para isso, o voto impresso é um instrumento perfeito.

É o que explica sua insistência no tema, mesmo sabendo que a chance de aprovação é menor que a do Brasil ganhar ouro no badminton.


Fonte:
Folha de S. Paulo
https://saidapeladireita.blogfolha.uol.com.br/2021/07/30/grupos-de-zap-fervem-apos-live-de-bolsonaro-mostrando-real-objetivo-do-presidente/


Mercado de trabalho brasileiro ficará com ‘cicatrizes’ no pós-pandemia

Os efeitos da pandemia no mercado de trabalho brasileiro devem durar, para aqueles menos qualificados, 9 anos na forma de desemprego, aumento da informalidade e redução da média salarial

Bárbara Cruz / El País

Silvan Nunes trabalhava há quase cinco anos na Agência Nacional de Transporte Terrestre, em Brasília, quando foi desligado. O bacharel em Direito foi um dos 7,8 milhões de brasileiros e brasileiras que viram seu posto de trabalho ser extinto durante a pandemia. “Eu estava em home office e não podia voltar pois moro com pessoas de grupo de risco. Então, perdi o emprego”, conta Silvan, que desde então trabalha como artista autônomo, vendendo pinturas autorais.

Casos como o de Silvan ilustram bem as conclusões do relatório “Emprego em Crise: Trajetória para Melhores Empregos na América Latina Pós-Covid-19”, lançado pelo Banco Mundial em junho. Puxando décadas de experiências e dados sobre crises, o estudo teve como objetivo propor caminhos para o poder público desenvolver melhores políticas de resposta àqueles progressos que foram desfeitos por conta da pandemia na área de oportunidades de empregos formais. A conclusão é que os efeitos da pandemia, as ‘cicatrizes’ no mercado de trabalho brasileiro devem durar, para aqueles menos qualificados, ao menos nove anos na forma de desemprego, aumento da informalidade e redução da média salarial. Para os mais qualificados, os efeitos da crise são menos duradouros.

MAIS INFORMAÇÕES

Contratação de temporários cresce e vira alternativa em tempos de incertezas com a pandemia
Pandemia faz condições trabalhistas das mulheres recuarem uma década na América Latina
Covid-19, um pesado retrocesso nos avanços da mulher latino-americana

Com a pandemia de covid-19, vagas de emprego formal na América Latina e Caribe se tornaram mais raras e menos estáveis. A Organização Internacional do Trabalho (OIT) contabilizou: na região, 26 milhões de pessoas ficaram desempregadas em 2020.

Thuany Belizário, 25 anos, mora com o marido e o filho de 3 anos em uma casa alugada na cidade de São Paulo. Durante anos, a família juntou dinheiro e conseguiu enfim dar entrada em um apartamento na planta. Mas no dia 2 de março de 2021, Thuany foi demitida quando a empresa em que trabalhava há cerca de dois anos cortou gastos por conta da pandemia. Logo em seguida, Thuany conseguiu uma recolocação no mercado de trabalho em um posto de gasolina, mas depois de 2 meses, foi dispensada novamente por conta da pandemia.

Thuany requereu e conseguiu acesso ao seguro-desemprego. Porém, o processo não foi fácil. “Eu tive muita dificuldade para conseguir. E quando consegui, o pagamento foi feito com muito atraso, o que atrapalhou a nossa vida financeira. Estou como todo brasileiro no meio da pandemia: paga uma conta, deixa outra e assim vai”, conta Thuany.

Desemprego no Brasil
Agora Thuany faz parte dos dois terços da força de trabalho no Brasil que não está empregado formalmente. Para complementar a renda, a jovem se tornou manicure, designer de sobrancelhas e vendedora de lingerie. “Tem sido difícil montar a cartela de clientes. É mais no boca a boca mesmo porque, como a escola do meu filho também fechou por conta da pandemia, bater de porta em porta com uma mala de lingerie, os materiais de manicure e uma criança de 3 anos é praticamente impossível”, relata.

A economista sênior e co-autora do estudo Joana Silva pontuou, durante o webinário que apresentou o relatório a autoridades do governo federal no dia 20 de julho, que mulheres têm dificuldades muito particulares em serem inseridas ou reinseridas no mercado de trabalho formal. Porém, como destaca Joana, “quer seja entre mulheres ou homens, os efeitos das crises são mais graves para os mais vulneráveis e os menos qualificados”.

É o caso de Regileide Carvalho. A Régia, como é conhecida pelos amigos e clientes, trabalhou por mais de 10 anos como massoterapeuta na sede de um banco público em Brasília. Quando a pandemia foi decretada na capital federal, o prédio fechou e Régia se viu sem ter para onde ir durante a semana — e, principalmente — sem renda fixa no final do mês. Ela tentou empreender: abriu uma sala, mas o negócio não vingou por falta de clientes. “Também atendo à domicílio, mas a situação está muito difícil. Muito difícil mesmo”, explica.

O Brasil é um dos países com o maior índice de desigualdade na América Latina, segundo o Banco Mundial. Porém, nem tudo está perdido. Segundo o relatório, onde há ofertas de empregos, mesmo que empregos informais, a economia e o bem estar social se recuperam melhor. A lição que fica é: as medidas adotadas agora pelo governo vão afetar como será o mercado de trabalho na próxima década para as gerações de agora e as futuras. “É uma grande responsabilidade”, adiciona Joana.

O economista sênior do Banco Mundial Matteo Morgandi, ao comentar as implicações do relatório no Brasil, reconhece que os desempregados poderiam ser melhor apoiados, sem que o custo fiscal seja elevado, se o Seguro-Desemprego e o FGTS fossem redesenhados a partir de boas práticas internacionais, “para garantir não apenas o apoio à renda, mas também o acesso à assistência na busca de emprego e ao desenvolvimento de habilidades para proteger os trabalhadores vulneráveis contra futuras crises já que melhoraria as chances de desempregados conseguirem seus próximos trabalhos”, diz Matteo.


Fonte:
El País
https://brasil.elpais.com/brasil/2021-07-28/mercado-de-trabalho-brasileiro-ficara-com-cicatrizes-no-pos-pandemia.html


Incêndio na Cinemateca Brasileira põe mais um acervo cultural no Brasil em risco

Objeto de denúncia do MPF contra a União por abandono e afetado por enchentes, acervo histórico tem sido vítima de falta de apoio, descaso — e agora, fogo

Lucas Berti e Joana Oliveira, do El País

Ainda sem se recuperar do incêndio que em 2018 destruiu o Museu Nacional, no Rio de Janeiro, o Brasil assistiu nesta quinta-feira as chamas —que chegaram até seis metros de altura— ameaçarem, mais uma vez, o acervo de um dos galpões da Cinemateca Brasileira, no bairro da Vila Leopoldina, Zona Oeste de São Paulo. De acordo com representantes do Corpo de Bombeiros que atuavam no local, o fogo começou por volta das seis da tarde e afetou três salas no primeiro andar do imóvel alugado na Rua Othão, número 290: duas delas abrigam o acervo histórico de filmes da entidade, e a terceira armazena documentos impressos. Às 20h, as chamas estavam controladas, mas ainda havia pequenos focos de incêndio no interior do edifício, rodeado por chamas. Cinco caminhões e 70 bombeiros atuaram para controlar a situação, que não deixou vítimas.


Uma das hipóteses é de que o fogo tenha começado durante a manutenção do sistema de ar condicionado, realizado por uma empresa terceirizada no galpão, segundo Robson Bertolotto, diretor da Defesa Civil da Lapa, que atuou no local, que teve 25% de sua estrutura comprometida e cujo teto desabou. “Vimos danos causados tanto pelo fogo, quanto pela água. Visualmente, constatei muitos rolos de filmes preservados, mas também vimos prateleiras retorcidas”, contou Bertolotto após uma vistoria no galpão.

MAIS INFORMAÇÕES

Cinemateca Brasileira agoniza e se torna símbolo da falta de política cultural do Governo Bolsonaro
Adriana Calcanhotto: “A política cultural é inexistente no Brasil”
Pandemia gera “cataclisma” na cultura, e artistas passam fome em meio à falta de políticas do Governo

Criada na década de 1940 e conhecida como a quinta maior cinemateca em restauro do mundo, a instituição abriga 250.000 rolos de filme, sendo 44.000 títulos de curta, média e longa-metragens, além de programas de TV e registros de jogos de futebol. Entre seus maiores tesouros, estão o arquivo completo de Glauber Rocha, maior expoente do Cinema Novo e as gravações de Marechal Rondon sobre as Forças Expedicionárias Brasileiras. A maior parte desse acervo fica na sede da Cinemateca Brasileira, na Vila Mariana, mas estima-se que quatro toneladas de documentos sobre políticas públicas de cinema do Brasil tenham sido queimadas no galpão que armazena parte das películas e arquivos, o que coloca em risco a memória das instituições e programas audiovisuais brasileiros.

“Dependendo da extensão do dano, uma parte da história de preservação do cinema e do Estado brasileiro vai se perder para sempre”, lamentou o ex-conselheiro da Cinemateca Brasileira e professor de História do Audiovisual da Escola de Comunicações e Artes da USP (ECA-USP), Eduardo Morettin. Além de conhecer a estrutura, Morettin costuma levar alunos universitários à instituição.

Um funcionário que trabalha da sede principal da Cinemateca e que não quis se identificar, contou à reportagem que os riscos de incêndio não são exclusivos aos galpões distantes do prédio principal: “Ainda bem que [o incêndio] não foi aqui. Mesmo assim, a gente vive com o coração na mão. Toda hora fazemos ronda, sabendo que um incêndio também pode acontecer aqui, e a qualquer momento”.

A extensão real do dano ao acervo só será conhecida após a perícia da Polícia Federal, solicitada pelo secretário especial da Cultura, Mario Frias, que também revelará se o incêndio pode ter sido criminoso. “Tenho compromisso com o acervo ali guardado, por isso mesmo quero entender o que aconteceu”, escreveu Frias nas redes sociais.


Em nota oficial, a Secretaria Especial da Cultura afirma que “lamenta profundamente” o incêndio e que acompanha de perto a situação. Segundo a pasta, a manutenção do sistema de climatização do local foi realizada há cerca de um mês, “como parte do esforço do Governo Federal para manter o acervo da instituição”.

No último ano, a Cinemateca Brasileira tornou-se um símbolo da escassez de políticas públicas culturais do Governo Bolsonaro. Uma forte enchente no ano passado alagou as dependências hoje consumidas pelo fogo, o que motivou o Ministério Público Federal de São Paulo (MPF-SP) a mover um processo contra a União diante da situação de abandono do local. A ação, no entanto, foi suspensa após o Governo prometer comprovar ações de reparo e preservação em um prazo de 45 dias.

Em 2016, parte do acervo foi atingida por um incêndio de condições similares ao dessa quinta-feira. Além disso, o ponto enfrenta um histórico de atrasos salariais, que motivaram funcionários a criar uma campanha pública para pedir apoio.

Repercussão
O incêndio de mais uma instituição histórica e cultural gerou indignação nas redes sociais, sobretudo pela situação de abandono em que se encontrava o local em que estão valiosos documentos, filmes e curtas nacionais —fato que vem na esteira de anos em que as posições do Governo Bolsonaro em relação à valorização cultural brasileira seguem em cheque.

O ex-governador e candidato à presidência em 2022, Ciro Gomes (PDT), disse que a “tragédia” vem de um “rastro de destruição de um governo que apaga nossa história”. Até o momento, porém, autoridades não haviam confirmado motivação criminosa por trás do incêndio. A vereadora de São Paulo, Erika Hilton (PSOL), relembrou a destruição do Museu Nacional há três anos e disse tratar-se de um “descaso organizado”.


Já o governador de São Paulo, João Doria, afirmouque a “morte gradual da cultura nacional” é resultado do “desprezo pela arte e pela memória do Brasil”.



Fonte:

El País
https://brasil.elpais.com/brasil/2021-07-29/incendio-na-cinemateca-brasileira-em-sao-paulo-poe-mais-um-acervo-cultural-no-brasil-em-risco.html