governo bolsonaro
O que ensina a Venezuela
A presença de militares na política tem custos altos e reversão difícil
Maria Hermínia Tavares / Folha de S. Paulo
Mais de uma vez, ao desfechar ataques desvairados às instituições que garantem a democracia no país, Bolsonaro invocou o "meu Exército", sugerindo que conta com o apoio das Forças Armadas para levar a cabo seus intentos liberticidas.
Até aqui, parece haver antes farolagem do que fundamento nessas falas. Ainda assim, é nítido que desde a ditadura de 1964-1985 os militares brasileiros nunca estiveram tão perto de cruzar a linha que separa seu papel constitucional do engajamento aberto na disputa política.
A história nunca se repete ao pé da letra; e experiências de outros países costumam viajar mal. Ressalvas feitas, há muito que aprender com o artigo do cientista político americano Harold Trinkunas "As Forças Armadas Bolivarianas da Venezuela: medo e interesse face à mudança política", recém-publicado pelo Woodrow Wilson Center de Washington.
O estudo trata da politização das instituições militares sob Hugo Chávez e Nicolás Maduro e de sua subordinação aos governos populistas da dupla.
De um lado, isso implicou na doutrinação ideológica nas academias militares, em sistemas de promoção e atribuição de missões que favoreceram o oficialato leal ao chavismo; na reestruturação das Forças com a inclusão formal da Milícia Bolivariana diretamente afeta ao presidente; e no fortalecimento de um vasto sistema de contrainteligência militar que vigia os suspeitos de deslealdade ao regime. De outro lado, vieram as recompensas.
Em especial sob Maduro, militares ocuparam o centro do poder. Comandam ministérios, governam estados e controlam setores econômicos estratégicos, como parte da indústria petrolífera, a mineração de ouro e a distribuição de alimentos. Gerem também o multimilionário comércio de armas com a Rússia e a China. E não é propriamente um segredo em Caracas que oficiais de alta patente têm parte com o tráfico internacional de drogas e o contrabando de mercadorias.
Maduro, ele sim, diz a verdade ao proclamar que o politizado Exército do país é seu. E este, cúmplice do desastre nacional que o populismo chavista promoveu, compartilha com o autocrata a responsabilidade pela destruição de uma democracia que já foi forte o suficiente para vencer a guerrilha revolucionária e ficar ao largo da onda de autoritarismo que sufocou a região nos anos 1960-70.
Acima de tudo, os fuzis são hoje o principal obstáculo para a Venezuela voltar por meios pacíficos à normalidade democrática. Por atraente que possa parecer aos brasileiros desiludidos com o sistema, a presença dos militares na política tem custos altos e reversão difícil.
*Professora titular aposentada de ciência política da USP e pesquisadora do Cebrap.
Fonte: Folha de S. Paulo
https://www1.folha.uol.com.br/colunas/maria-herminia-tavares/2021/08/o-que-ensina-a-venezuela.shtml
Nunca antes um presidente foi investigado por tantos crimes
Aos poucos, começa a se fechar o cerco judicial a Bolsonaro
Ricardo Noblat / Blog do Noblat / Metrópoles
Se a Câmara dos Deputados, sob o comando de Arthur Lira (PP-AL), nega-se a examinar sequer uma das centenas de denúncias sobre supostos crimes de responsabilidade cometidos pelo presidente Bolsonaro, o Supremo Tribunal Federal decidiu fazê-lo.
Nunca antes na história um presidente foi considerado suspeito de tantos crimes. Nas contas do ministro Alexandre de Moraes, Bolsonaro pode ter incorrido em 11 crimes de uma vez só quando, na semana passada, atacou a Justiça em uma live. A saber:
Calúnia;
Difamação;
Injúria;
Incitação ao crime;
Apologia ao crime ou criminoso;
Associação criminosa;
Denunciação caluniosa;
Tentar mudar, com emprego de violência ou grave ameaça, a ordem, o regime vigente ou o Estado de Direito;
Fazer, em público, propaganda de processos violentos ou ilegais para alteração da ordem política ou social;
Incitar à subversão da ordem política ou social; e
Dar causa à instauração de investigação, atribuindo a alguém a prática de crime ou ato infracional de que o sabe inocente, com finalidade eleitoral.
Esse é o terceiro inquérito no Supremo que inclui o presidente. Ele já é investigado por suposta interferência política na Polícia Federal e prevaricação no caso da compra superfaturada da vacina indiana Covaxin. Alexandre escreveu em seu despacho:
“O pronunciamento do presidente da República […] revelou-se como mais uma das ocasiões em que o mandatário se posicionou de forma, em tese, criminosa e atentatória às instituições, em especial o Supremo Tribunal Federal, imputando aos seus ministros a intenção de fraudar as eleições para favorecer eventual candidato, e o Tribunal Superior Eleitoral, no contexto da realização das eleições previstas para o ano de 2022, sustentando, sem quaisquer indícios, que o voto eletrônico é fraudado e não auditável.”
Fecha-se, aos poucos, o cerco judicial a Bolsonaro. Na última segunda-feira, o Tribunal Superior Eleitoral abriu um inquérito administrativo para investigar os ataques do presidente ao sistema eleitoral brasileiro.
A ministra Cármen Lúcia analisa o pedido de partidos políticos para que Bolsonaro seja investigado por ter usado a EBC, televisão estatal, para transmitir a live, algo que, segundo ela, pode “configurar crime de utilização ilegal de bens públicos”.
O ministro Luís Felipe Salomão pediu a Alexandre que compartilhe com a Justiça Eleitoral provas que tenham alguma ligação com investigações de irregularidades cometidas pela chapa Bolsonaro-Hamilton Mourão nas eleições de 2018.
Bolsonaro quer briga com a Justiça? Ela está pronta para brigar.
Guedes sob pressão para dar maior aumento ao Bolsa Família
Nada como está em queda nas pesquisas para ser mais caridoso com os pobres
No final do ano passado, o presidente Jair Bolsonaro se irritava com quem falasse ao seu redor de aumento para o programa Bolsa Família. Em abril último, em queda nas pesquisas de intenção de voto, admitiu reajustar para R$ 250 o benefício médio de R$ 192. Um mês e pouco depois, falou em R$ 270.
Como nem assim recupera popularidade, alinhou-se com o Centrão, que defende mais gastos públicos, e que arrancar de Paulo Guedes, ministro da Economia, um reajuste ainda mais generoso. Que tal R$ 400 reais a serem pagos a 17 milhões de pessoas pobres, eleitores em potencial do PT que criou o Bolsa Família?
“Eu falo em 50% de aumento e deixo os outros 50% para que o Guedes anuncie”, provocou, ontem, Bolsonaro olhando para seu ministro na cerimônia de posse do senador Ciro Nogueira (PP-PI) na chefia da Casa Civil da presidência da República. Calado estava, calado Guedes permaneceu com ar de emburrado.
Fonte: Blog do Noblat / Metrópoles
https://www.metropoles.com/blog-do-noblat/ricardo-noblat/nunca-antes-um-presidente-foi-investigado-por-tantos-crimes
Centrão toma de assalto o Planalto
Merval Pereira / O Globo
Com a possibilidade real de se tornar inelegível em consequência do inquérito aberto contra ele no Tribunal Superior Eleitoral (TSE), pelos ataques antidemocráticos ao sistema eleitoral e pela ameaça de não realizar as eleições do ano que vem, Bolsonaro precisa reavaliar bem sua estratégia política, que claramente tem o objetivo de causar confusão e enfrentamento de autoridades, para retornar ao Bolsonaro da campanha de 2018 — que na verdade só existiu para reafirmar seu instinto vulgar, mas não corresponde ao inimigo do establishment depois que se entregou de corpo e alma ao Centrão.
Ontem, a posse do senador Ciro Nogueira como ministro da Casa Civil foi uma demonstração de força, submetendo até mesmo o general Augusto Heleno ao beija-mão dos políticos que, na campanha, chamou de ladrões. A foto da imensa fila de deputados à porta do Palácio do Planalto, com os generais Luiz Eduardo Ramos, da Secretaria de Governo, e Augusto Heleno, do GSI, olhando de cima aquela multidão de políticos que invadiram o salão nobre para festejar a tomada de assalto do grupo ao centro do poder, é reveladora.
O corregedor do TSE, ministro Luis Felipe Salomão, ao pedir ao Supremo Tribunal Federal (STF) o compartilhamento de provas e investigações em curso por lá para anexá-las ao inquérito que investiga irregularidades na campanha eleitoral que elegeu Bolsonaro e seu vice, Hamilton Mourão, acrescentou mais lenha na fogueira da disputa política entre o presidente e o STF. O ministro Alexandre de Moraes, relator do inquérito das fake news no Supremo, acolheu ontem a notícia-crime encaminhada pelo presidente do TSE, Luís Roberto Barroso, e determinou a instauração imediata da investigação das condutas do presidente Bolsonaro.
A estratégia de Bolsonaro parece ser, na impossibilidade de vencer constatada no momento pelos institutos de pesquisa de opinião, tumultuar a campanha eleitoral, buscando motivo para cancelar as eleições presidenciais. Caso ele se torne inelegível, só uma revolução popular poderia efetivar essa pretensão de cancelar as eleições e mantê-lo no poder.
Não acredito que tenha apoio para isso, nem da maioria da população, nem das Forças Armadas. Só arruaceiros como ele estarão nessa aventura. Ele pode até gostar da ideia de ser declarado inelegível, para se fazer de vítima de um complô dos mesmos que tornaram Lula elegível — uma saída boa para o populismo. Os políticos que o apoiam devem estar pensando que uma ditadura não interessa, porque fecharia o Congresso, e é melhor ter eleição com um candidato forte. Se não for Bolsonaro, será Lula a ser apoiado pelo Centrão. Ou até mesmo um candidato da terceira via que porventura se viabilize. Nunca um general.
É inegável que, apesar de decadente na popularidade, o presidente Bolsonaro ainda tem capacidade de mobilizar cidadãos para campanhas tão bizarras quanto o voto impresso, para contestar as urnas eletrônicas. Logo o voto no papel, que foi, durante anos, o responsável por tantos golpes. Mas isso não significa que tenha força para golpear a democracia.
O jurista e ex-deputado federal Marcelo Cerqueira enviou ao presidente do TSE, ministro Barroso, seu testemunho. Diz ele: “Só quem não viu o pandemônio da apuração de papel: compra antecipada de votos com o comprado apresentando cópia para ser confrontada com o resultado, e aí então receber o produto do crime; ou então a Babel de centenas de ‘apuradores’ reunidos em um ‘teatro’ sem a oportunidade de os fiscais do partido verificarem a exatidão da apuração (...) Só quem viu pode testemunhar a pouca relação entre o que você vota e o que é apurado. O ‘roubo’ está na compra antecipada de votos ou na empulhação da contagem manual. O papel tem enorme serventia, mas não serve ao processo eleitoral”.
Golpe numa democracia é inaceitável. Sobretudo por motivo fútil.
Fonte: O Globo
https://blogs.oglobo.globo.com/merval-pereira/post/centrao-toma-de-assalto-o-planalto.html
Um amortecedor avariado para as ambições do poder
Inclusão do presidente nem inquérito no Supremo demonstra que Ciro tomou posse como um amortecedor com avarias
Maria Cristina Fernandes / Valor Econômico
O novo ministro da Casa Civil, Ciro Nogueira, já começou por reduzir as expectativas que cercam sua missão. Definiu-se como o “amortecedor” da República em seu discurso de posse. É assim que quer ser lembrado neste momento de “grandes trepidações”, um ministro capaz de “reduzir as tensões para uma viagem mais serena”.
Com o epíteto, o ministro já baixou as expectativas de quem projetou, com sua posse, uma pauta governista destravada no Congresso para criar as condições à reeleição do presidente Jair Bolsonaro. Ciro Nogueira poderia ter escolhido o acelerador ou o catalisador, mas preferiu o mecanismo que não avança, nem processa. Só amortece. No melhor das hipóteses, também a queda.
Apesar de comprometê-lo menos, o epíteto já se mostrou falso desde a posse. Do Poder com o qual as relações com o Executivo estão mais crispadas, o Judiciário, não havia um único representante na posse da Casa Civil. Pelo menos não que merecesse ter sido citado nas nominatas dos três discursos da cerimônia - de Nogueira, do agora ministro da Secretaria-Geral, Luis Eduardo Ramos, e de Bolsonaro.
Mais do que o embate da semana em torno da urna eletrônica, a ausência estaria explicada, minutos depois da cerimônia, com a aceitação, pelo ministro do Supremo, Alexandre de Moraes, da notícia-crime do Tribunal Superior Eleitoral contra Bolsonaro. Pelos ataques ao sistema de votação do país, o presidente será incluído no inquérito das “Fake news” por calúnia, difamação, incitação ao crime, apologia ao crime, associação criminosa e denunciação caluniosa.
Não é o primeiro inquérito a investigar Bolsonaro. O presidente já é alvo de investigação por interferência na Polícia Federal. A aceitação da notícia-crime só comprometerá Bolsonaro se for aceita como denúncia pelo Procurador-Geral da República ou pela Câmara dos Deputados. A inclusão do presidente, porém, faculta ao inquérito a produção de provas que podem vir a constranger até mesmo leões de chácara do porte de Augusto Aras e Arthur Lira. Isso porque este inquérito está nas mãos do irrefreável Moraes.
Tampouco havia quaisquer representantes do Tribunal de Contas da União, Corte que, naquele mesmo momento decidiu, por cinco votos a três, pela abertura de inquérito contra o ex-ministro da Saúde, hoje secretário de Assuntos Estratégicos, Eduardo Pazuello. Bolsonaro fez questão de citá-lo em seu discurso para que não pairem dúvidas de que continua sob sua proteção.
Ciro parece ter incorporado o amortecedor porque não há extintor de incêndio que chegue para o governo do capitão. Basta ver o que Bolsonaro fez com a nominata dos parlamentares. O presidente citou os cinco governadores presentes (RJ, GO, AC, AM e DF), os ministros, os presidentes da Câmara e do Senado, lideranças governistas no Congresso e, na hora de mencionar o senador Davi Alcolumbre (DEM-AP), acrescentou: “Cada vez menos forte, ainda bem”. Abriu os braços para mostrar que se referia à redução das medidas abdominais do senador, mas voltou a reforçar o duplo sentido da fala ao dizer que Alcolumbre, que permanece aliado de seu sucessor, “o deixou”.
Ex-negociador das emendas da base governista, Alcolumbre é um dos símbolos das fogueiras que ardem no Congresso contra o presidente. Bolsonaro quer o Centrão para aprovar suas pautas eleitoreiras, enquanto o bloco quer tirar dele a execução das emendas parlamentares e o fundão eleitoral. Como diz o senador Alessandro Vieira (Cidadania-SE), um dos mais combativos integrantes da CPI da Pandemia, a posse de Nogueira não resolve os problemas de Bolsonaro no Congresso mas os do Centrão no governo.
Como não há posse grátis, a pressão contra o bloco foi exemplificada no vazamento do depoimento em que o deputado Luis Miranda (DEM-DF) disse à Polícia Federal que ouvira de Pazuello a menção a Lira, aliado de Ciro Nogueira, como um dos que o pressionava, com ameaças, por repasses.
A panela de pressão em que se transformou a base governista foi exemplificada pelo próprio Lira, ao se posicionar sobre a contenda da semana em torno do voto impresso. Ele repassou, de cima do muro, a pressão do presidente por sua aprovação, alegando que a Câmara já o havia aprovado em 2015 e que o Senado o represa desde então.
Quando este texto já tiver sido fechado, terá tido início a votação da tríade de mudanças com as quais Lira pretende tornar a adesão do Centrão ao presidente mais imune ao julgamento do eleitor, com a reforma do código eleitoral, a mudança no sistema eleitoral e, finalmente, a menos provável delas, o voto impresso.
Um velho observador da cena política de Brasília compara as atribuições do Centrão na Casa Civil àquelas assumidas por Eliseu Padilha quando o então vice-presidente Michel Temer tomou posse na Secretaria de Relações Institucionais com a missão de coordenar as demandas de parlamentares. Foi ali que começou o mapeamento de cargos e emendas que resultaria no placar de 367 votos favoráveis ao impeachment.
A reprodução deste modelo, porém, enfrentaria, a sobrevivência do aparato de informantes montado pelos generais do Palácio. Na Casa Civil, por exemplo, coabitam com Ciro um time de militares egressos das áreas de informações do Exército que chegaram com Ramos no Palácio e de lá não saem. É sobre eles que recaem, por exemplo, as suspeitas da CPI sobre o monitoramento de seus integrantes.
As pressões mais mal administradas são aquelas que desaguam no Orçamento, onde o ministro Paulo Guedes tenta puxadinhos extra-teto para infinitas ambições, como é o caso da proposta de emenda constitucional dos precatórios. O epíteto de caloteiro, porém, ao contrário de todos aqueles investigados por Moraes, tem um efeito imediato na deterioração do ambiente econômico.
Nem tudo se resolve com dinheiro. A posse de Ciro Nogueira na Casa Civil só aumenta o número de adesistas a disputar o metro quadrado das inaugurações. Não basta aprovar e executar as emendas, tem que contemplar os parlamentares que as originaram nos eventos destinados ao confete político. São tantos os que querem subir, em especial em enclaves de fartura como a Codevasf, que os palanques acabarão por ruir. E não haverá amortecedor que dê conta.
Fonte: Valor Econômico
https://valor.globo.com/politica/coluna/um-amortecedor-avariado-para-as-ambicoes-do-poder.ghtml
Parcelamento de precatórios pode ampliar a folga do teto de gastos em 2022
Proposta, que gerou reações no mercado e entre governadores, favoreceria Bolsonaro com verba extra em ano eleitoral; medida tem potencial de baixar a dívida dos precatórios em R$ 7,8 bi e deve chegar hoje ao Congresso
Adriana Fernandes e Idiana Tomazelli / O Estado de S.Paulo
BRASÍLIA - A proposta do governo para parcelar o pagamento de precatórios (valores devidos pelo poder público após sentença definitiva na Justiça) pode ampliar a folga para novos gastos em 2022. A medida deixaria a despesa com as dívidas judiciais R$ 7,8 bilhões menor do que o previsto para este ano – um espaço novo e que poderá ser direcionado a outras áreas.
Os valores constam em esclarecimentos prestados pelo próprio governo sobre o texto que foi enviado pelo Ministério da Economia ao Palácio do Planalto, onde a proposta passa por ajustes e revisões finais.
Na prática, a conta mostra que a proposta vai além de disparar um “míssil” contra o “meteoro” dos precatórios, como disse o ministro da Economia, Paulo Guedes, ao tratar do problema. Ao reduzir a despesa total com os precatórios de um ano para o outro, a medida cria espaço fiscal adicional para o governo acomodar outros gastos em ano eleitoral. O presidente Jair Bolsonaro tem planos para reforçar a política social e incentivar a geração de empregos para tentar estancar sua perda de popularidade e impulsionar sua campanha à reeleição.
A PEC que está sendo elaborada pelo governo deve chegar hoje ao Congresso e já sofre resistências porque deixará credores da União, incluindo empresas e governos estaduais, na fila de espera por anos a fio. Neste ano, o governo estima que o gasto com precatórios ficará em R$ 55,4 bilhões. Em 2022, sem a PEC, a despesa subiria a R$ 89,1 bilhões.
A proposta do governo é fixar duas regras de parcelamento das dívidas judiciais. Para débitos acima de R$ 66 milhões, a possibilidade de pagar em dez prestações anuais seria permanente. Para débitos de R$ 66 mil a R$ 66 milhões, valeria uma regra temporária (até 2029) que permitiria o parcelamento nas mesmas condições sempre que o gasto total com precatórios fique superior a 2,6% da receita corrente líquida.
No esclarecimento do governo, é informado que as duas regras juntas devem reduzir o comprometimento com despesas em R$ 41,5 bilhões, na comparação com o valor inicialmente previsto. Com isso, a despesa com precatórios em 2022 ficaria em R$ 47,6 bilhões – R$ 7,8 bilhões a menos que o programado para 2021.
Segundo uma fonte da área econômica, a diferença “abre espaço para qualquer coisa” e poderia até se aproximar a R$ 10 bilhões, mas os números ainda podem ser recalculados. Antes mesmo do estouro do problema dos precatórios, já havia pressão pela concessão de reajustes a servidores públicos e ampliação de investimentos.
‘Fatura’
Nos bastidores, há também a avaliação de que a negociação pela aprovação da PEC pode acabar gerando uma “fatura” de promessas de emendas aos parlamentares que votarem de forma favorável à iniciativa. O espaço seria crucial para acomodar esses interesses.
As emendas também poderiam, nesse caso, servir como forma alternativa de os parlamentares irrigarem seus redutos com recursos em ano eleitoral, considerando que muitos Estados serão atingidos pelo parcelamento dos precatórios.
Dos R$ 89 bilhões em dívidas judiciais, pelo menos R$ 16,6 bilhões têm governos estaduais como credores. A Bahia, governada por Rui Costa (PT), tem sozinha R$ 8,7 bilhões a receber de precatórios da União em 2022. Com a aprovação da PEC, o valor pago à vista cairia a R$ 1,3 bilhão. Pernambuco, Ceará, Maranhão e Paraná também estão entre os potenciais afetados. A maior parte é governada por opositores de Bolsonaro.https://arte.estadao.com.br/uva/?id=zWVDg2
Como mostrou o Estadão/Broadcast, os Estados se mobilizam numa ofensiva no Congresso para evitar o parcelamento dos precatórios devidos pela União. Por trás desse imbróglio, há um cálculo político do governo federal de não querer encher o caixa de governadores adversários em ano de eleição, sobretudo no Nordeste.
Com o espaço adicional no Orçamento, algumas fontes do governo têm considerado que a criação do chamado Fundo Brasil, a ser abastecido com recursos de privatizações e venda de ativos e que poderia bancar despesas fora do teto de gastos (que limita o avanço das despesas à inflação), seria algo secundário e pode até acabar caindo durante a tramitação no Congresso. O foco principal seria o parcelamento dos precatórios.
NOTÍCIAS RELACIONADAS
- Governo vai propor Fundo Brasil, fora do teto, para bancar precatórios e benefícios sociais
- Estados articulam ofensiva para barrar proposta de parcelamento de precatórios
- Guedes sobre precatórios: 'Devo, não nego; pagarei assim que puder'
- Mercado vê risco fiscal após proposta de Guedes para parcelar precatórios
- Não há chance de calote em precatórios, mas é impossível pagar R$ 90 bi sem atingir o teto, diz Lira
- Parcelamento de precatórios pode afetar até R$ 40 bilhões em dívidas do governo
- Entenda o que são os precatórios e como eles afetam as contas do governo
Fonte: O Estado de S. Paulo
https://economia.estadao.com.br/noticias/geral,parcelamento-de-precatorios-pode-ampliar-a-folga-do-teto-de-gastos-em2022,70003800696
TSE desmente Bolsonaro e diz que PF 'nunca' comunicou fraude nas eleições
Presidente disse em programa de rádio que relatório da instituição levantava suspeita de invasão das urnas eletrônicas
Monica Bergamo / Folha de S. Paulo
O Tribunal Superior Eleitoral voltou a contestar, na madrugada desta quinta (5), declarações feitas por Jair Bolsonaro sobre a vulnerabilidade do sistema eleitoral.
O presidente afirmou, em um programa da rádio Jovem Pan, que o próprio TSE teria reconhecido que um hacker invadiu seu sistema interno. A admissão teria sido feita em um inquérito da Polícia Federal
De acordo com Bolsonaro e o deputado, isso mostraria a fragilidade das urnas eletrônicas.
O inquérito, no entanto, não conclui que houve fraude no sistema eleitoral em 2018 ou que poderia ter havido adulteração dos resultados, ao contrário do que disse o mandatário.
De acordo com a Corte, "o próprio TSE encaminhou à Polícia Federal as informações necessárias à apuração dos fatos e prestou as informações disponíveis. A investigação corre de forma sigilosa e nunca se comunicou ao TSE qualquer elemento indicativo de fraude".
Em uma nota, o tribunal afirma que o episódio, que ocorreu em 2018, "foi divulgado à época em veículos de comunicação diversos. Embora objeto de inquérito sigiloso, não se trata de informação nova".
Segundo o tribunal, "o acesso indevido, objeto de investigação, não representou qualquer risco à integridade das eleições de 2018. Isso porque o código-fonte dos programas utilizados passa por sucessivas verificações e testes, aptos a identificar qualquer alteração ou manipulação. Nada de anormal ocorreu".
Cabe ainda acrescentar, diz a nota divulgada pelo TSE, "que o código-fonte é acessível, a todo o tempo, aos partidos políticos, à OAB, à Polícia Federal e a outras entidades que participam do processo. Uma vez assinado digitalmente e lacrado, não existe a possibilidade de adulteração. O programa simplesmente não roda se vier a ser modificado".
O tribunal volta a reiterar "que as urnas eletrônicas jamais entram em rede. Por não serem conectadas à internet, não são passíveis de acesso remoto, o que impede qualquer tipo de interferência externa no processo de votação e de apuração".
E é taxativo: "Por essa razão, é possível afirmar, com margem de certeza, que a invasão investigada não teve qualquer impacto sobre o resultado das eleições".
Em sua participação no programa da rádio, Bolsonaro reagiu ao fato de ser agora investigado no Supremo Tribunal Federal (STF) e no TSE por 11 crimes e chegou a afirmar: "Olha, eu jogo dentro das quatro linhas da Constituição. E jogo, se preciso for, com as armas do outro lado".
Leia a íntegra da nota divulgada pelo TSE:
"Em referência ao inquérito da Polícia Federal que apura ataque ao seu sistema interno, ocorrido em 2018, o Tribunal Superior Eleitoral esclarece que:
1. O episódio de 2018 foi divulgado à época em veículos de comunicação diversos. Embora objeto de inquérito sigiloso, não se trata de informação nova.
2. O acesso indevido, objeto de investigação, não representou qualquer risco à integridade das eleições de 2018. Isso porque o código-fonte dos programas utilizados passa por sucessivas verificações e testes, aptos a identificar qualquer alteração ou manipulação. Nada de anormal ocorreu.
3. Cabe acrescentar que o código-fonte é acessível, a todo o tempo, aos partidos políticos, à OAB, à Polícia Federal e a outras entidades que participam do processo. Uma vez assinado digitalmente e lacrado, não existe a possibilidade de adulteração. O programa simplesmente não roda se vier a ser modificado.
4. Cabe reiterar que as urnas eletrônicas jamais entram em rede. Por não serem conectadas à internet, não são passíveis de acesso remoto, o que impede qualquer tipo de interferência externa no processo de votação e de apuração. Por essa razão, é possível afirmar, com margem de certeza, que a invasão investigada não teve qualquer impacto sobre o resultado das eleições.
5. O próprio TSE encaminhou à Polícia Federal as informações necessárias à apuração dos fatos e prestou as informações disponíveis. A investigação corre de forma sigilosa e nunca se comunicou ao TSE qualquer elemento indicativo de fraude.
6. De 2018 para cá, o cenário mundial de cybersegurança se alterou, sendo que novos cuidados e camadas de proteção foram introduzidos para aumentar a segurança de todos os sistemas informatizados."
Fonte: Folha de S. Paulo
https://www1.folha.uol.com.br/colunas/monicabergamo/2021/08/tse-desmente-bolsonaro-e-diz-que-pf-nunca-comunicou-fraude-nas-eleicoes.shtml
Reforma do IR é a mais impressionante proposta de desorganização empresarial do Brasil
Novas versões promoveram descontentamento generalizado dos Estados e dos municípios, dos optantes do Simples, das mineradores e da indústria farmacêutica
Everardo Maciel / O Estado de S. Paulo
Em artigo veiculado em 1.º de julho, apontei inconsistências no Projeto de Lei n.º 2.337/2021, especialmente o pífio reajuste da tabela do Imposto de Renda (IR) das pessoas físicas, que assegura, quando muito, dinheiro para comprar 1 kg de pão francês por mês e garfa acintosamente os contribuintes da classe C; e a tributação de dividendos, que traduz um retrocesso evidenciado por uma (espantosamente assumida) elevação de carga tributária das médias, pequenas e microempresas, aumento da complexidade, estímulo à litigiosidade e um convite à sonegação, com a volta da insidiosa distribuição disfarçada de lucros, e ao planejamento tributário abusivo.
A indisposição com a tributação de dividendos tem a mesma origem da estapafúrdia defesa do voto impresso: insciência. Nessa esteira, não tarda alguém propor a volta das declarações de renda em papel. Como dizia Nelson Rodrigues, “subdesenvolvimento não se improvisa, é obra de séculos”.
A proposta original congregou uma rara oposição de praticamente todos os contribuintes. As diferentes versões do substitutivo dissiparam algumas reações, especialmente de grandes contribuintes, mas promoveram descontentamento generalizado dos Estados e dos municípios, dos optantes (também eleitores) do lucro presumido e do Simples (5 milhões de contribuintes), das mineradoras e da indústria farmacêutica.
O descontentamento dos Estados e dos municípios decorre da previsão de graves perdas na arrecadação do IR, repercutindo nos respectivos Fundos de Participação, importante fonte de financiamento daqueles entes federativos.
Para tentar aplacar a reação daqueles entes, o substitutivo previu que a redução da alíquota do Imposto de Renda das pessoas jurídicas (IRPJ) ficaria condicionada ao crescimento real da arrecadação do Imposto de Renda total, deduzidas as restituições, no período de 12 meses, contado de outubro do exercício anterior.
Pondera, entretanto, que “o parâmetro estabelecido considere a arrecadação em período anterior à emergência de saúde pública de importância internacional relacionada ao coronavírus (covid-19) e seja neutro em relação aos seus efeitos extraordinários na arrecadação”. Creio que essa norma é forte concorrente ao Prêmio Nobel de (má) redação, além de afrontar a inteligência dos secretários de Fazenda e inviabilizar o planejamento empresarial de curto prazo, porque somente em dezembro, em hipótese otimista, seria possível conhecer a alíquota aplicável no exercício subsequente.
O substitutivo manteve a pretensão de extinguir os juros remuneratórios do capital próprio, instituído pioneiramente no Brasil, após a eliminação da dedutibilidade da correção monetária do patrimônio líquido, com a vantagem de mitigar as desvantagens tributárias do capital de risco vis-à-vis os empréstimos. Essa insensatez foi brilhantemente desconstruída em artigos subscritos pelos professores Eliseu Martins (O Brasil perdendo saudável liderança na tributação empresarial) e Luís Eduardo Schoueri (Sobre a extinção dos juros sobre o capital próprio: jabuticabas crescem na Europa?). Nada tenho a acrescentar.
O substitutivo é, também, uma usina de potenciais litígios, entre os quais: tributação de dividendos não distribuídos e do estoque de fundos de investimentos, em que se pode alegar a vedação constitucional à retroatividade onerosa da norma tributária; tributação dos resultados distribuídos pelos optantes do Simples, procedendo-se à alteração por lei ordinária de dispositivo contido na Lei Complementar n.º 123 e sem considerar a restrição estabelecida na Emenda Constitucional n.º 109 (art. 4.º, parágrafo 2.º, inciso I); apuração do excêntrico “parâmetro” que iria balizar a redução das alíquotas do IRPJ.
Trata-se da mais impressionante proposta de desorganização empresarial do País, ao mesmo tempo que desvia atenção do enfrentamento da inflação e, agravado pela explosão das despesas com precatórios, do risco fiscal. Em outras palavras, irresponsabilidade.
*CONSULTOR TRIBUTÁRIO, FOI SECRETÁRIO DA RECEITA FEDERAL (1995-2002)
Fonte: O Estado de S. Paulo
https://economia.estadao.com.br/noticias/geral,reforma-do-ir-e-a-mais-impressionante-proposta-de-desorganizacao-empresarial-do-brasil,70003800738
Luiz Carlos Azedo: A marcha inglória
Bolsonaro está pedindo para ser impedido de disputar as eleições ou mesmo ser afastado do cargo, por atitudes que atentam contra o Estado de direito democrático
Talvez o título mais adequado da coluna fosse A marcha da insensatez, inspirado no livro quase homônimo da escritora Barbara W. Tuchman sobre decisões erradas dos governantes, contra seus próprios interesses, pelos mais diversos motivos, como na Guerra de Troia, na reforma protestante, na independência dos Estados Unidos e na Guerra do Vietnã. Sempre houve momentos em que a razão foi impotente diante da ideologia e dos interesses mais mesquinhos. Parece ser o que está acontecendo no país, sob o protagonismo do presidente Jair Bolsonaro, que tenta impor sua vontade ao Congresso e ao Judiciário, ou apenas criar um pretexto para lançar o país num abismo político-institucional.
Em razão de seus sucessivos ataques ao Supremo Tribunal Federal (STF), com acusações sem provas contra o sistema de votação em urna eletrônica, o que já havia provocado uma dura reação do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), o ministro Alexandre de Moraes acolheu notícia-crime encaminhada por unanimidade por aquela Corte ao Supremo Tribunal Federal (STF), e decidiu incluir o presidente Jair Bolsonaro no chamado inquérito das fake news. A apuração levará em conta os ataques feitos pelo presidente às urnas eletrônicas e ao sistema eleitoral do país. O inquérito foi aberto em março de 2019, pelo então presidente do Supremo, ministro Dias Toffoli, para investigar notícias fraudulentas, ofensas e ameaças aos integrantes da mais alta magistratura do país.
Nas suas lives, entrevistas e postagens nas redes sociais, segundo a decisão de Moraes, Bolsonaro pode ter cometido um rosário de crimes: calúnia (art. 138 do Código Penal); difamação (art. 139); injúria (art. 140); incitação ao crime (art. 286); apologia ao crime ou criminoso (art. 287); associação criminosa (art. 288); denunciação caluniosa (art. 339); tentar mudar, com emprego de violência ou grave ameaça, a ordem, o regime vigente ou o Estado de Direito (art. 17 da Lei de Segurança Nacional); fazer, em público, propaganda de processos violentos ou ilegais para alteração da ordem política ou social (art.22,I, da Lei de Segurança Nacional);incitar à subversão da ordem política ou social (art. 23, I, da Lei de Segurança Nacional); dar causa à instauração de investigação policial, de processo judicial, de investigação administrativa, de inquérito civil ou ação de improbidade administrativa, atribuindo a alguém a prática de crime ou ato infracional de que o sabe inocente, com finalidade eleitoral (art. 326-A do Código Eleitoral).
O ministro Moraes presidirá o TSE nas eleições. O presidente da República está pedindo para ser impedido de disputar as eleições de 2022 ou mesmo ser afastado do cargo, por atitudes que atentam contra o Estado de direito democrático, ao desafiar à legislação vigente e aos ministros do Supremo. Não se sabe se o presidente da República vive uma crise de ansiedade, por causa do peso das suas responsabilidades, do mau desempenho do governo e da perda de popularidade, o que pode levar a um surto psicótico, ou se faz um audacioso cálculo político, para precipitar uma grave crise institucional antes das eleições, diante da ameaça de derrota eleitoral cada vez mais iminente, isto é, uma virada de mesa.
Conjuntura
Diante de tanta subjetividade envolvida nas atitudes do presidente da República, o melhor a fazer é examinar os cenários e a correlação de forças que podem nos conduzir ao desfecho dessa crise entre Bolsonaro e a maioria dos integrantes do Supremo. Como na Teoria da Relatividade, porém, o tempo da Justiça não é o mesmo da política e da economia. O ambiente internacional não é favorável a um golpe de Estado no Brasil, principalmente durante o governo do presidente Joe Biden, nos Estados Unidos, país com o qual temos relações amplas, históricas e multifacetadas. Há sim, no mundo, uma onda autoritária, mas somos um país do Ocidente. Bolsonaro vive às turras com os chineses; a Rússia não é uma parceira privilegiada do governo brasileiro, embora o presidente da República tenha certa simetria política com o líder russo Vladimir Putin.
No plano interno, Bolsonaro perde o apoio do stablishment econômico e institucional, que também não está interessado no “quanto pior, melhor”. Sua política econômica garroteia as possibilidades de recuperação eleitoral, porque o cobertor está curto: a atividade econômica se recupera, mas a inflação provoca elevação de juros e freia a geração de empregos; o governo tenta implementar uma política de compensação social, mas sacrifica os contratos, pedalando os precatórios, o que cria insegurança jurídica e reduz investimentos privados. No plano político, tornou-se prisioneiro do Centrão, que vai apoiar o governo até as eleições; o projeto de reeleição, não necessariamente, depende da situação eleitoral de cada estado.
William Waack: Bolsonaro e as nossas agonias
Não há consenso em como lidar com a atração do presidente pelo abismo
Os personagens políticos que conquistaram o poder, não importa o método, e por mais tempo lá ficaram, também não importa como, são os que menos sofreram da doença que acomete Jair Bolsonaro. É o conhecido fenômeno da autossugestão, pela qual a concepção de mundo do doente vira uma crença mística tão enraizada a ponto de que nada o convence de que possa estar errado.
Esse diagnóstico é amplamente compartilhado hoje em Brasília nas mais variadas esferas dos poderes, incluindo a volátil instância dos caciques políticos do Centrão e passando por quase todos os ministros do STF e tribunais superiores, além de parte relevante do Alto Comando do Exército. As divergências surgem quando se trata de definir como lidar com o bravateiro.
Bolsonaro não parece levar em conta fatores reais de poder, pois acha que foi imbuído de missão divina e apenas o Todo-Poderoso decide. Talvez essa concepção de mundo ajude a entender o fato de ele não ter conseguido chegar a dois instrumentos clássicos para qualquer golpe: organização política de massa e/ou capacidade de exercer violência armada. E ter perdido (até mesmo entregado) considerável parte do poder de seu cargo para o Legislativo e o Judiciário.
Assim, para os atores políticos “racionais” nas instâncias acima mencionadas surge como completamente irracional o contínuo esforço de Bolsonaro rumo à ruptura institucional, pois o mundo real da relação das forças de poder indica que disso sairia ele como o principal perdedor. Na verdade, com sua estatura derretendo em todos os sentidos, já é o grande derrotado, mas não é assim que ele se vê.
Como lidar, então, com esse personagem que parece movido por uma inexorável atração pelo abismo? Entre altos oficiais das Forças Armadas detecta-se o sentimento de que não vão segui-lo na loucura, mas não estão agindo para impedi-lo. Depois de contínuas afrontas, o Judiciário deu passos concretos para contê-lo, mas o tempo consumido por inquéritos no TSE e no STF é muito mais longo do que o tempo da política. E o PGR não acha que cabe a ele virar a República de pernas para o ar.
Na política, que é a esfera decisiva, dividem-se os caciques do Centrão entre os que ainda acham possível tutelar Bolsonaro, sobretudo depois da mudança na Casa Civil, e os que desistiram dessa ambição que ninguém de fora da família conseguiu realizar. É uma rachadura que por enquanto não se amplia, pois, no cálculo cínico desses agentes, os poderes conquistados pelo Centrão não mudam caso “caia a ficha” e Bolsonaro modere o comportamento. E ficam do mesmo jeito caso o presidente continue desprezando os conselhos que está recebendo e prossiga piorando a briga com o Judiciário.
No fundo, o que todos estão fazendo é esperar que as coisas se resolvam por si mesmas. Não existe nos círculos de poder econômico e político uma disposição clara – nem coordenação nem liderança nem a “massa crítica” política necessárias – para precipitar qualquer ação de afastamento de Bolsonaro, por mais que aumente a percepção de que ele está causando severos danos ao regime democrático, à população e ao País.
É o que torna possível a esse personagem político seguir padecendo nessa evidente agonia interior, trazida por conspirações e fantasmas que alimentam impulsos incontroláveis – e que passou a ser a agonia de todos nós, a agonia das lives patéticas, das frases desconexas no cercadinho de bajuladores, dos raciocínios tortuosos em entrevistas, das mentiras descaradas, da omissão diante dos fatos, da ausência de compaixão, solidariedade, interesse público, projeto de futuro.
A principal agonia talvez seja a de constatar que Bolsonaro não reúne mais condições de realizar qualquer grande transformação, a não ser provocar uma tragédia. A boa notícia é que em história nada é inevitável.
*JORNALISTA E APRESENTADOR DO JORNAL DA CNN
Fonte: O Estado de S. Paulo
https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,bolsonaro-e-as-nossas-agonias,70003800678
Coronel Blanco diz à CPI da Covid que visava negociar vacinas para mercado privado
Ex-assessor da Saúde é apontado como intermediador da reunião em que suposto pedido de propina
Andre de Souza e Melissa Duarte / O Globo
BRASÍLIA — Em depoimento à CPI da Covid no Senado, nesta quarta-feira, o coronel Marcelo Blanco, ex-assessor do Ministério da Saúde, afirmou que visava negociar vacinas para o mercado privado e não para o Ministério da Saúde. Ele é suspeito de ter intermediado um encontro onde houve o susposto pedido de propina para a compra de vacina.
Segundo o policial militar Luiz Paulo Dominguetti, que dizia representar a empresa Davati Medical Supply, Blanco estava no jantar em que o PM alega ter recebido a proposta de propina de Roberto Dias, ex-diretor de Logística da pasta, por uma suposta venda de imunizantes da AstraZeneca ao governo federal. O coronel é apontado como intermediador da reunião, que ocorreu em um shopping de Brasília. O ex-assessos da Saúde abriu uma empresa poucos dias antes da conversa, o que levantou suspeitas no colegiado.
ASSISTA AO VIVO
Blanco disse à CPI que foi procurado em fevereiro, quando já não tinha mais cargo comissionado no Ministério da Saúde por uma pessoa chamada Odilon relatando haver uma empresa, a Latin Air, com doses de vacina do laboratório AstraZeneca para entrega imediata. O representante seria Luiz Paulo Dominguetti. Trata-se do PM que, em junho, deu uma entrevista relatando haver cobrança de propina no Ministério da Saúde para negociar vacinas.
Assista ao vídeo: Luis Miranda diz à PF que Pazuello relatou pressão de Arthur Lira
Blanco mostrou mensagens de Whatsapp trocadas com Dominguetti. Segundo o coronel, eles estavam negociando vacinas para iniciativa privada, e não para o Ministério da Saúde, órgão do qual já estava desligado.
A compra de vacinas pela iniciativa privada chegou a ser defendida pelo governo e parte do Congresso, e foi aprovada, mas com uma série de condicionantes. Na prática, não chegou a haver compra de vacinas por empresas.
O vice-presidente da CPI, senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP), destacou ainda que a ideia começou a ser debatida em 18 de fevereiro, depois do primeiro contato entre Blanco e Dominguetti. O presidente da comissão, Omar Aziz (PSD-AM), afirmou que o coronel Blanco poderia ter informação privilegiada na época, o que ele negou.
O coronel também prestou solidariedade às vítimas da Covid-19 e disse que ele próprio ficou internado por 12 dias em razão da doença.
O coronel confirmou a versão do ex-diretor de Logística do Ministério da saúde Roberto Ferreira Dias de que foi ele, Blanco, quem levou Dominguetti para um jantar num restaurante de Brasília. Roberto disse que estava tomando um chope com um amigo quando eles chegaram lá sem o seu conhecimento.
Ele disse ainda que, enquanto esteve no jantar com Dominguetti e Roberto Dias, não houve pedido de propina. Dominguetti afirmou que houve cobrança, enquanto Roberto nega. Blanco afirmou que tinha conversado antes com Roberto Dias e este lhe contou que estaria no restaurante. O militar negou que tenha informado Roberto previamente que levaria Dominguetti.
Ao Ministério da Saúde, foram oferecidas doses da AstraZeneca que seriam disponibilizadas por outra empresa, a Davati.
Contradição entre depoimentos
O coronel disse que a intenção era, com isso, conseguir que Dominguetti marcasse um encontro com Roberto Dias no Ministério da Saúde. Segundo Dominguetti, o ex-diretor de Logística cobrou propina nesse encontro. Roberto Dias nega.
Em depoimento prestado em 15 de julho na CPI, Cristiano Carvalho, representante da Davati no Brasil, disse que tratou de "comissionamento" com o coronel Blanco e outras pessoas. Nesta quarta-feira, o militar negou.
— Eu jamais fiz qualquer pedido de comissionamento ou de vantagem — disse o coronel.
Omar Aziz perguntou então que benefício ele teve com isso.
— Nenhum — respondeu o coronel Blanco.— Zero? — insistiu Omar.— Nenhum — repetiu o depoente.
— Meu Deus! O senhor é muito bondoso. O senhor está fazendo isso sem (receber) nada. O senhor deveria ter feito isso com a Pfizer, a CoronaVac... — ironizou o presidente da CPI.
— A CoronaVac, a Pfizer e a Janssen queriam ter tido toda essa facilidade — afirmou Randolfe Rodrigues em seguida.
Na terça-feira, ao ser perguntado por Randolfe sobre o preço das vacinas oferecidas ao Ministério da Saúde, o reverendo Amilton Gomes de Paula respondeu:
— A Latin Air era US$3,97; depois, veio a Davati, US$3,50, que, depois, passou para US$17,50, e, depois, abaixou para US$11.
Coronéis, atravessadores, reverendo, fiscal: Saiba quem é quem nas denúncias na Saúde que a CPI apura
Há contradição entre os dois depoimentos. Enquanto o reverendo citou a negociação com o Ministério da Saúde, o coronel da reserva disse que trabalhava em prol do mercado privado.
Coronel nega intermediação
Marcelo Blanco disse que, depois de ter saído do Ministério da Saúde, ele manteve contato com algumas pessoas que ficaram na pasta. Mas negou que tenha mantido influência no ministério.
— Dos militares, são aqueles amigos pessoais meus, de anos. E com algumas pessoas, a gente mantém interlocução, porque tem uma relação amistosa. Graças a Deus, tive o privilégio de conhecer muita gente no Ministério da Saúde. E sempre fui muito recebido. Desde que cheguei lá foram elegantes comigo — afirmou o depoente.
O coronel Blanco também negou que o tempo que passou no Ministério da Saúde tenha conferido alguma vantagem para a atuação profissional dele depois de ter saído da pasta.
Coronel Blanco negou que tenha facilitado a intermediação da compra de vacinas da AstraZeneca.
— A pessoa me pediu uma agenda. Eu falei: “Peça direto ao diretor”.
Em seu depoimento, Cristiano Carvalho disse Dominguetti lhe contou que haveria um comissionamento para o "grupo do tenente-coronel Blanco". Nesta quarta-feira, o militar negou a existência do grupo.
O coronel Blanco afirmou que o cargo que ocupava no Ministério da Saúde não impunha nenhum tipo de quarentena ao deixar a pasta.
Líder da Bancada Feminina, Simone Tebet (MDB-MS) pediu acareação para ver “quem mente menos ou quem mente mais”. Também sugeriu o pedido de embargo de declaração ao ministro Luiz Fux, presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), para verificar se o depoente pode ser preso em caso de falso testemunho, já que ele possui um habeas corpus concedido pela Corte.
Em junho de 2021, o Ministério da Saúde publicou portaria em que determinou que o general da reserva Ridauto Fernandes deveria ser substituto do então diretor Roberto Dias em caso de afastamento. Até aquele momento, quem ocuparia o cargo seria o coronel Blanco, exonerado cinco meses antes, em 18 de janeiro.
Negociação de vacinas: Precisa Medicamentos afirma que intermediária de venda da Covaxin foi escolha do laboratório indiano
— Isso é materialmente impossível, é claramente um erro — afirmou coronel Blanco.
Ele nega que tenha substituído Dias no período. Coronel Blanco foi nomeado em 4 de maio de 2020 e designado como substituto em outubro do mesmo ano.
Deputados tumultuam depoimento
Logo em seguida, as perguntas de Renan foram interrompidas por Randolfe, que questionou um deputado governista presente na sessão por fazer insultos à CPI. Além disso, pediu que Reinhold Stephanes Junior (PSD-PR) fosse retirado da sessão, por tumultuar o depoimento.
— Deputado, algum problema? Vossa Excelência aqui gravou um vídeo, se referindo a essa CPI.
— Qual é o problema? — rebateu, no fundo da sala.
— O problema é que Vossa Execlência praticou ainda há pouco um ato de desacato a essa comissão — respondeu o vice-presidente da comissão.PUBLICIDADEhttps://cee70a9ef8e0ae98884aeb2a29c0d6b6.safeframe.googlesyndication.com/safeframe/1-0-38/html/container.html
Randolfe pediu que o parlamentar se identificasse e indagou sua autoridade para estar presente ali.
— O senhor não pode desrespeitar essa Comissão Parlamentar de Inquérito, não pode atuar dessa forma e eu pedirei para os seguranças daqui do Senado tomarem as devidas providências sobre Vossa Excelência. (..) Eu quero pedir para a Polícia Legislativa autuar esse parlamentar.
— Continua o modus operandi do governo — comentou Renan.
A comissão vai notificar o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), e cogita acionar o Conselho de Ética.
O ex-assessor da Saúde chegou ao Senado por volta das 9h, mas a sessão começou com 1h20 de atraso. Após o início da sessão, o presidente da CPI, Omar Aziz (PSD-AM) mencionou o poder de a comissão analisar o abuso do direito de não autoincriminação, como ocorreu no caso da diretora da Precisa, Emanuela Medrades.
Logo no início do depoimento, o ex-assessor disse ter uma "trajetória ilibada" e currículo para assumir o cargo na Saúde. O coronel diz ter sido procurado por Dominguetti, e mostrou uma troca de mensagens feita em fevereiro. Segundo o GLOBO apurou, o principal argumento de Blanco à CPI será de que ele foi enganado pelo PM. O policial se anunciava como um representante comercial que poderia vender ao Brasil 400 milhões de doses da vacina Astrazeneca, mas não tinha nem sequer autorização do laboratório.
CPI da Covid: Comissão ouve ex-assessor da Saúde que intermediou encontro em que houve suposto pedido de propina por vacina
O militar admite que, após ser procurado por Dominguetti, em fevereiro, viu a oportunidade de negociar os imunizantes para a iniciativa privada. Na época, ele já tinha deixado o cargo de assessor na Saúde. Blanco abriu uma consultoria três dias antes do jantar com o policial e, cerca de um mês depois, incluiu atividades ligadas à área da saúde no escopo das atividades da empresa.
Blanco tem um Habeas Corpus concedido pelo Supremo Tribunal Federal (STF) que lhe permite ficar em silêncio durante seu depoimento à comissão. A decisão foi dada em meados de julho pelo presidente da Corte, o ministro Luiz Fux, para que o depoente fique isento de responder perguntas que possam lhe incriminar. No entanto, ao GLOBO, o tenente-coronel disse que responderá aos senadores.
Fonte: O Globo
https://oglobo.globo.com/brasil/ao-vivo-coronel-blanco-diz-cpi-da-covid-que-visava-negociar-vacinas-para-mercado-privado-nao-com-ministerio-da-saude-25139940
A reforma vale-tudo de Lira
Vera Magalhães / O Globo
Política quase nunca é feita de boas intenções. Ela é praticada em bases bem mais pragmáticas que isso. A falta de apoio do Congresso à obsessão de Jair Bolsonaro pelo voto impresso, portanto, não se deve a nenhuma consciência por parte dos parlamentares de que é preciso zelar pela democracia, mas ao fato de eles considerarem essa cruzada uma bobagem e saberem que a urna eletrônica é segura — afinal, foram eleitos por ela.
Assim sendo, melhor gastar tempo, energia e conchavos com as próprias prioridades, em vez de se engajar na de Bolsonaro.
Eis que no minuto 1 da volta do recesso se materializa na Câmara, pronto para ser enfiado goela abaixo da sociedade, um calhamaço de mais de 900 artigos revogando toda a legislação eleitoral e, sob o pretexto de unificar tudo num Código Eleitoral, aproveitando para passar um tratoraço na fiscalização do uso de dinheiro público para campanhas e para o custeio dos partidos e para censurar as pesquisas, entre outras atrocidades.
O projeto patrocinado pelo presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), e assinado por uma correligionária, a deputada Margarete Coelho (PP-PI), é mais um exemplo de um expediente que vai se tornando corriqueiro na Câmara sob o comando do deputado alagoano: os projetos surgem do nada e são rapidamente votados, para que não dê tempo de a imprensa denunciar todos os seus aspectos e de a sociedade se articular.
É, também, uma mostra de por que Lira se mantém impávido segurando qualquer pedido de impeachment de Bolsonaro, não importa o que ele faça: ele já comanda uma fatia expressiva do Orçamento, colocou dois aliados no Planalto e vai aprovando medidas (fundão eleitoral, mudança na lei de improbidade administrativa e, agora, o Código Eleitoral do vale-tudo) de sua agenda pessoal sem ser importunado pelo Executivo. Manda na pauta da Câmara, a despeito do gasto sem precedentes feito pelo governo Bolsonaro (e o fim da mamata?) com agrados ao Centrão.
A reforma na legislação eleitoral proposta pela porta-voz de Lira usa do mesmo negacionismo propalado por Bolsonaro em relação às urnas eletrônicas para censurar a divulgação de pesquisas às vésperas do pleito. Quer que institutos divulguem uma tabela de acertos (!) em levantamentos anteriores, ignorando a obviedade estatística de que pesquisas são fluidas, mostram tendências e que, principalmente no Brasil, algumas eleições apresentam curvas que se modificam às vésperas das eleições.
Em relação aos gastos dos cada vez mais fornidos fundos públicos, o partidário e o eleitoral, a regra na reforma de Lira é o libera geral: até transporte de eleitor passará a ser passível apenas de multa.
Mecanismos para garantir equidade na distribuição desses mesmos recursos, como a determinação de que mulheres e negros sejam contemplados de forma proporcional, vão para as cucuias.
A Justiça Eleitoral perderá mecanismos para aprovar resoluções que disciplinem as eleições e terá menos tempo para analisar prestações de contas de campanha. E ainda cabe muita bizarrice em 372 páginas feitas sob medida para perpetuar os mesmos, graças a muito dinheiro público, e para impedir renovação de fato na política.
A presença de Arthur Lira no comando da Câmara é um desses legados deletérios do bolsonarismo para as instituições. Sob seu comando, ainda que haja soluços pragmáticos, como a reação às ameaças de Braga Netto ou o enterro da PEC do voto impresso, eles sempre se darão sob a lógica de que há outra agenda, igualmente contrária ao interesse público e ao aprimoramento do processo democrático, à espreita.
Pobre do país que tem de se fiar num Congresso comandado por interesses desse tipo para (quem sabe) frear os pendores golpistas de um presidente da República disposto a tudo para se manter no poder.
Fonte: O Globo
https://blogs.oglobo.globo.com/vera-magalhaes/post/reforma-vale-tudo-de-lira.html
'Bolsonaro está armando pessoas contra nós', diz Megaron Txucarramãe
Em entrevista exclusiva, liderança Kayapó denuncia como os políticos estão se organizando para remover direitos indígenas e que a violência no campo vai aumentar
Por Cristina Ávila / Amazônia Real
Contaram os irmãos Villas-Bôas que Kayapó era uma designação cabocla, dada principalmente pelos seringueiros aos indígenas que usam botoque de madeira no lábio inferior. “São os Jê-Botocudo. Os Juruna, vizinhos mais próximos dos Botocudo do Xingu, chamavam-nos Txucarramãe, poderosa nação que resistiu energicamente ao contato” com a sociedade envolvente e mantinha constante vigilância sobre seu território, não permitindo ingresso de quaisquer estranhos.
“Não há quem não tenha ouvido falar dos Kayapó, nação temida por sua altivez e rebeldia e, atualmente, uma das mais numerosas do nosso vasto sertão”, relataram, no livro A marcha para o oeste: a epopeia da expedição Roncador-Xingu, os irmãos Orlando (1914-2002) e Cláudio Villas-Bôas (1916-1998). Foram os Villas-Bôas que os contataram nos anos 1950, deixando registros em diários escritos durante a sua permanência entre povos amazônicos.
Megaron Txucarramãe, um dos principais líderes indígenas do Brasil, mantém a altivez. E a mesma determinação na vigilância de territórios e de direitos, hoje não somente de seu povo, mas de todos os indígenas brasileiros, que desde os anos 1980 se articulam em lutas coletivas nacionais. Sobrinho do cacique Raoni Metuktire e pai de Mayalú Kokometi Waurá Txucarramãe, que desponta como guerreira de sua nova geração, ele mora na Terra Indígena Capoto/Jarina, no norte do Mato Grosso. É presença marcante nos embates com o governo Jair Bolsonaro e com o Congresso promovidos pelas organizações indígenas.
Há mais de 30 anos, os Kayapó acampam, de tempos em tempos, em Brasília para travar lutas. Nesse período, o cacique Megaron acompanhou seu tio Raoni na liderança dos guerreiros que sempre impressionaram por sua beleza e disciplina espartana no cumprimento de rituais sagrados. Impressionam pelos espetaculares movimentos de dança ordenados por gritos de guerra, sacudindo a Esplanada dos Ministérios com pés pesados e corpos pintados com o negro jenipapo e o rubro urucum.
Um dos cocares multicoloridos dos Kayapó foi parar na cabeça do então presidente da Assembleia Nacional Constituinte, Ulysses Guimarães (1916-1992) em 1987, que assim espantado na porta de seu gabinete na Câmara dos Deputados recebeu o documento com as reivindicações que seriam negociadas no Capítulo dedicado aos povos indígenas da Constituição Federal, homologada em 1988. Foram momentos de tensão vividos pelas organizações indígenas que no primeiro momento não puderam sequer entrar no Congresso. As organizações sofreram derrotas em comissões, mas acabaram com a vitória de 497 votos favoráveis, 5 contra e 10 abstenções em plenário.
Na história de luta de Megaron Txucarramãe, consta a inédita indenização por dano espiritual pago pela empresa aérea Gol aos Kayapó da TI Capoto-Jarina. Em 29 de setembro de 2006, um Boeing da Gol se chocou com um jato Legacy e caiu de bico na floresta. Por 20 dias, Megaron participou do grupo de indígenas que auxiliou militares no resgate dos corpos, como narrou a agência Pública. Em 2010, Raoni e Megaron procuraram a companhia aérea para retirar os destroços da aeronave. Diante da recusa, sob alegação de danos ambientais, os indígenas afirmaram que a área em torno dos destroços ficariam interditados para sempre. A indenização foi de 4 milhões de reais.
Sobrinho de Raoni, Megaron informou à reportagem da Amazônia Real que seu tio já está totalmente recuperado da Covid-19, depois de duas internações em 2020, uma por hemorragia digestiva (em julho) e outra por pneumonia (em agosto). Mas Raoni também está preocupado com as atuais ameaças que sofrem os povos indígenas.
“Não esteve em Brasília porque ainda está de luto pela esposa (Bekwyjka Metuktire) que morreu no ano passado. Mas ele está pensando, preocupado, acompanhando o movimento em Brasília. Pergunta como estamos, como está o andamento do projeto, tudo ele está sempre perguntando. Está forte, está bem” disse.
Em maio de 2018, meses antes da eleição de Bolsonaro, Megaron já demonstrava sua inquietude com a campanha eleitoral e os riscos para as populações indígenas. Desta vez, em nova entrevista exclusiva à Amazônia Real, o líder Kayapó alerta que as ameaças agora ganharam abrigo no poder central. Leia a seguir:
Amazônia Real – Sua luta tem mais de três décadas. Como vê o atual momento para os povos indígenas?
Megaron Txucarramãe – Estou de novo em movimento com outros parentes indígenas de todos os Estados do Brasil contra o projeto de lei votado no Congresso (PL 490/2007) que tenta alterar direitos garantidos nos artigos 231 e 232 da Constituição Federal, escritos em 1988 pelos deputados nos dando direito de ocupar terras tradicionais. Eles querem agora modificar terras indígenas demarcadas, homologadas de acordo com a Constituição. Tudo isso está sendo mudado. E estou, depois de tantos anos de isso tudo aprovado, com jovens indígenas fazendo um movimento contra esse projeto.
Amazônia Real – Durante a Constituinte, havia diálogo com as lideranças indígenas. Hoje há receptividade do Congresso para as demandas dos povos?
Megaron – Naquele tempo a Funai (Fundação Nacional do Índio) dava apoio aos indígenas nos movimentos em Brasília. Era diferente dos dias de hoje. A Funai era outra, o governo era outro, as pessoas eram outras. Hoje, não. O presidente da República é contra nós, o presidente da Funai é contra indígenas, o presidente do Senado, da Câmara devem estar tudo contra nós indígenas porque eles querem aprovar esse projeto. Estamos vendo quem são nossos inimigos, que querem acabar com nós através de papel, não à bala. Eles querem tomar nossas terras. Querem ocupar a terra indígena, querem mandar mineradora, garimpeiro, madeireiro, querem que nós arrendemos as terras indígenas. Essa lei aí nos obriga a arrendar a terra. Antigamente a gente não podia arrendar a terra. Eles querem tomar tudo de nós, indígenas.
Amazônia Real – Então está mais difícil a luta no Congresso Nacional?
Megaron – Está difícil eles aceitarem acordos, conversarem, negociarem com os índios. Está difícil. Jogaram bomba de gás, jogaram spray de pimenta, machucaram dois índios e dois policiais. A gente vai ver a violência agora no campo. Isso vai se refletir lá no campo. Bolsonaro está armando pessoas no campo contra nós, pessoas compram armas, munição; enquanto nós não temos armas. Nós não compramos armas. Se é assim, vamos ter que comprar armas também?
Amazônia Real – Os invasores estão arrogantes, violentos, entram nas terras como se fossem donos, não é?
Megaron – Bolsonaro quer é isso. E tem parente indígena ainda que vai lá tirar foto com ele, vai lá, apoia ele. Nós não apoiamos Bolsonaro, não. Se viu em Brasília [em 23/6, dia de votação do PL na Comissão de Constituição e Justiça], mais de 1.200 indígenas do Brasil fazendo movimento contra. Todos nós indígenas viemos sofrendo desde que chegou o homem branco. Não é só agora que temos esse problema de massacre, envenenamento, de tudo, tomada de terras, extinção de etnias. Não é de hoje que sofremos esses ataques, essas guerras que querem fazer contra nós.
Cristina Ávila fez comunicação na PUCRS e iniciou o jornalismo em pequenos diários de Porto Velho, em Rondônia, onde foi atraída por coberturas sobre meio ambiente, questões indígenas e movimentos sociais. Por mais de duas décadas trabalhou em redações de jornais, especialmente no Correio Braziliense. Em Brasília, entre 2009 e 2015 trabalhou no Ministério do Meio Ambiente, responsável por assuntos como mudanças climáticas e políticas públicas relacionadas a desmatamento. Nesse período teve oportunidade de prestar algumas consultorias ao PNUD. Atualmente atua na imprensa alternativa.
Fonte: Amazônia Real
https://amazoniareal.com.br/bolsonaro-esta-armando-pessoas-no-campo-contra-nos-diz-megaron-txucarramae/