governo bolsonaro
Ascânio Seleme: Igreja x Estado
O que se viu esta semana em Brasília foi um gesto de submissão de um presidente eleito
Um dos melhores nomes que circularam na mesa de ministeriáveis do presidente eleito, Jair Bolsonaro, o de Mozart Neves Ramos, para a Educação, foi bombardeado e expelido pela bancada evangélica. Com todo respeito aos evangélicos e aos fiéis de qualquer outra denominação, a questão não é religiosa, e não pode ser. O Estado brasileiro é laico por determinação constitucional. Significa que seus governantes não se subordinam a nenhuma instância religiosa. Não foi o que aconteceu na indicação do futuro ministro da Educação.
Mozart Ramos foi vetado, esta é a palavra correta, pela bancada evangélica, e antes de nomear seu substituto, o presidente eleito pediu o aval de Silas Malafaia, pastor pentecostal de uma igreja ligada à Assembleia de Deus. Malafaia apoiou e festejou a indicação do filósofo colombiano Ricardo Vélez Rodriguez. Os evangélicos do Congresso também gostaram do novo nome, um conservador de direita que comandará o Ministério da Educação levando em conta o conceito da Escola sem Partido.
Três homens influenciam Jair Bolsonaro. Onyx Lorenzoni, Paulo Guedes e Olavo de Carvalho. Todos indicaram ministros. Onyx chegou a chamar um pelo nome antes mesmo de ele ser anunciado pelo presidente eleito. Guedes nomeia quem quer e gasta no máximo uma hora explicando ao seu chefe por que este vai para o BC e aquele para o BB. Olavo nunca se encontrou com Bolsonaro e falou com ele pelo telefone apenas três vezes, segundo entrevista que deu para a repórter Natália Portinari. Mesmo assim, já nomeou dois ministros.
Depois do chanceler antiglobalista, ele recomendou Vélez Rodriguez, especialmente pelo seu perfil conservador. Olavo não é burro, sabe que Escola sem Partido é uma miragem. Ele disse na entrevista ao GLOBO que primeiro é preciso se conceituar o que é isso e como se manifesta o esquerdismo nas escolas e universidades, para depois tentar produzir um projeto de lei que delimite sua abrangência. Segundo ele, o ideal seria conceituar o movimento como Escola sem Censura. Num post em rede social, Olavo disse que na sala de aula o professor deveria expor sua opinião e opinião oposta.
O fato é que, no Brasil, 87% da população é cristã, e pelo menos um quarto deste contingente frequenta serviços religiosos. Talvez por isso, pelo espetacular tamanho do rebanho que dominam, líderes religiosos muitas vezes se julgam justos o suficiente e capazes o bastante para dizer que rumo todos devem tomar, inclusive os que não professam a mesma fé ou que não professam fé alguma. E assim vetaram Mozart Ramos, que era a primeira escolha de Bolsonaro, mas se lixava para a Escola sem Partido.
A bancada evangélica sempre exerceu influência sobre governos, mas nunca a ponto de apor vetos a ministros. Houve ministros indicados pelo grupo mesmo nos governos petistas, mas jamais se soube de um nome escolhido pelo presidente que acabasse sendo retirado por determinação religiosa. O que se viu esta semana em Brasília foi um gesto de submissão de um presidente eleito. Fazer consultas a partidos e bancadas da sua base ou que representam sua orientação ideológica faz sentido e é do jogo democrático. Ouvir e aceitar um não publicamente é que são elas.
Mais de 20% dos brasileiros frequentam cultos religiosos pelo menos uma vez por mês. Na Itália, 11% da população vão a algum tipo de missa, contra 3,5% na Grã-Bretanha e apenas 1% na Suécia. Agora, imaginem um pastor, um bispo ou um grupo político ligado a igrejas evangélicas vetando um ministro em Estocolmo. Pois é. E o Brasil assim vai se modernizando.
Míriam Leitão: Momento de abrir o comércio externo
Nova equipe econômica irá enfrentar fortes obstáculos na abertura comercial, mas o país precisa avançar nessa área
A ideia de abertura comercial no país enfrenta os mesmos desafios que a reforma tributária. Todos são a favor, até que se comece a discutir os detalhes. São vários os indicadores que sugerem que a economia brasileira é fechada, mas não existe consenso sobre a melhor forma de aumentar a nossa integração com o mundo. Quem já esteve no governo e sentou na cadeira responsável pelo assunto avisa: o tema não é apenas econômico. Envolve o direito internacional e exige muita negociação política.
A proposta do futuro ministro da área econômica Paulo Guedes é fazer uma nova abertura da economia. Isso é desejável por várias razões. Mas os especialistas alertam para alguns pontos. O governo eleito Jair Bolsonaro já ameaçou retirar o Brasil do Mercosul para ampliar os acordos bilaterais do país. O risco dessa estratégia, diz o especialista Welber Barral, que foi secretário de Comércio Exterior entre 2007 e 2011, é fazer a indústria nacional perder o seu principal cliente, que é a Argentina, maior compradora de produtos manufaturados brasileiros.
— O Mercosul é extremamente vantajoso para o Brasil, principalmente para o produto industrializado. Se a gente sair do bloco, vai ficar vendendo soja para a China. Não acho que vai acontecer. Existem formas de pressionar e flexibilizar as tarifas comuns do bloco. Os mecanismos já existem, não precisa sair — afirmou.
Barral diz que comércio externo envolve 30% economia, 30% direito internacional e 40% negociação política. Por isso, acha que a futura equipe econômica ainda vai enfrentar os desafios práticos de abrir a economia, depois que de fato assumir o governo:
— Se fizer abertura radical, tem custo social alto e custo político que te obriga a retroagir muito rápido. Não é factível, não consegue fazer. O que acontece é que a pressão política aumenta e depois volta tudo como era antes.
Ele cita como exemplo acordos que foram firmados pelo Brasil na área têxtil, dentro da OMC, e que depois foram derrubados pelo Congresso. Os setores industriais se organizam, pressionam as bancadas e conseguem impedir e atrasar a tramitação dos projetos. O grande problema da nossa abertura comercial, explica, é que o Brasil é extremamente competitivo na área agrícola, justamente o setor mais protegido em todo o mundo.
— Por que o Brasil tem dificuldade de fechar acordo com a União Europeia? Porque eles não querem abrir a parte agrícola. Então a gente sofre pela nossa competitividade na área que é a mais sensível no mundo. A mesma coisa acontece com o México, que o Brasil poderia fazer acordo bilateral por fora do Mercosul. A bancada agrícola mexicana trava a negociação no Senado — explicou.
A indústria brasileira diz que é a favor da redução das barreiras, mas alega que antes é preciso reduzir impostos, melhorar a infraestrutura e baratear o crédito, do contrário, não conseguirá competir. A pesquisadora Lia Valls, do Ibre/FGV, diz que, de fato, é preciso em paralelo atacar o Custo Brasil, mas acredita que o governo pode avançar na abertura com um cronograma claro de redução de tarifas, para que os setores tenham tempo para se adaptar:
— O Brasil, quando comparado a outros emergentes, é o único que praticamente manteve as mesmas tarifas médias de importação de 20 anos atrás. Nos últimos anos, houve aumento de regras de conteúdo local, que é uma forma de barreira comercial. O país apostou muito na Rodada Doha, que não avançou, e a valorização do real, nos anos 2000, de certa forma facilitou as importações e esfriou o assunto.
Lia cita três indicadores que sugerem que a economia brasileira é pouco integrada com o resto do mundo, na comparação com outros países similares. Nossa corrente de comércio em relação ao PIB é baixa, em torno de 25%, o percentual de importados dentro da cadeia da indústria de transformação também é pequena, em torno de 20%, e também é reduzida a participação de componentes importados nos produtos industrializados que o Brasil exporta.
Por inúmeros motivos, o país precisa avançar no projeto de abrir a sua economia e nada como um liberal, como o futuro ministro Paulo Guedes, para iniciar a tarefa. Ele precisará estar atento a todos os obstáculos e ao contexto internacional, que é de uma guerra comercial entre Estados Unidos e China, e que pode deflagrar uma onda protecionista no mundo. O momento é difícil, mas o Brasil já se atrasou demais.
Vinicius Torres Freire: Bolsonaro no apocalipse estatal
Presidente delegou a gente que mal conhece a liberdade de fazer uma revolução
A esquerda dizia que o governo de Fernando Henrique Cardoso (1995-2002) era "neoliberal". A esquerda, petistas inclusive, dizia até que o primeiro governo de Lula da Silva (2003-2006) se rendera ao "neoliberalismo". Que nome vai dar ao projeto de governo da economia de Jair Bolsonaro?
Sim, projeto, pois sabe-se lá o que vai Paulo Guedes "entregar", como diz o anglicismo horrível dos mercadistas.
Guedes levou para o governo seus companheiros de escola, mercado, conselhos empresariais e dos institutos Liberal e Millenium, as bestas do apocalipse, aliadas do Satanás da conspiração liberal globalizada, segundo a demonologia de esquerda.
Desde que há um Estado com derramamentos importantes pela economia (isto é, depois de Getúlio Vargas), não houve no governo do Brasil equipe liberal como esta de Guedes. Relaxando as dificuldades de comparação, mesmo quando o Estado era uma merreca, sob o governo dos fazendeiros de Império e República Velha, jamais houve essa unanimidade liberal radical.
Sim, ainda é projeto, é ambição, restritos desde o início porque a Casa Militar e o velho espírito de Bolsonaro acham que o "Petróleo é Nosso" e que bancos públicos têm funções sociais e estratégicas. Sabe-se lá o que Jair Bolsonaro vai pensar desse projeto, se e quanto dele for implementado, se e quando compreendê-lo, se ou quando houver revolta antiliberal (de servidores a industriais, passando por políticos e o povo das aposentadorias).
Assim como a esquerda não tem nome para a coisa, Bolsonaro não sabe e, aparentemente, não quer saber do sentido e do tamanho da coisa. Gosta mesmo é de cruzadas, para as quais nomeou essas pessoas que vão comandar Itamaraty e Educação, as quais também mal conhece, no entanto.
O presidente eleito converteu-se a alguma ideia vaga liberal em algum momento do governo Dilma Rousseff, uma história que ainda se está a apurar. Conheceu Guedes de fato apenas no ano passado.
Jamais teve ligação com grupos organizados da elite econômica, menos ainda de grupos de estudo ou de pensamento da elite econômica, liberais ou outros. A julgar pela sua incompreensão quase total do que seja um Banco Central, do que se passa com a dívida pública ou o que são estatísticas econômicas, deve ter remota ideia das consequências do que propõe Guedes, se alguma.
No entanto, não parece dar a mínima para isso, como ficou evidente desde que encaminhou todas as questões de programa a Paulo Guedes durante a campanha. Apenas calou seu economista-chefe quando a conversa econômica baixava às redes sociais como polêmica (o caso da CPMF, por exemplo). Como vai ser se houver mais furor nas redes insociáveis?
Também relevante, Bolsonaro não se importa ou faz questão de ser um estranho no ninho da imensa equipe econômica. O presidente eleito arrendou a economia a Guedes e o insulou do restante do governo ou, melhor dizendo, do seu núcleo palaciano, sob controle maior dos generais, seus amigos de escola, irmãos mais velhos, conselheiros maiores.
É neles, nos oficiais-generais, que Bolsonaro confia a fundo, com eles compartilha mentalidade e camaradagem, faz mais de 40 anos. São eles que vão coordenar seu governo, formal ou informalmente. No limite, Guedes e seus colegas de mercado são fusíveis que podem queimar. Os militares são a estação de força.
Elio Gaspari: O ministério se revela nas manobras
Em setembro acreditava-se que o médico Henrique Prata, diretor do Hospital do Câncer de Barretos (SP), podia ser o ministro da Saúde num eventual governo de Jair Bolsonaro. Outra hipótese seria a ida do deputado Luiz Henrique Mandetta (DEMMS). Nos dois meses seguintes, pelo menos dois renomados médicos passaram pelo balcão de apostas, e o jogo fechou com a nomeação de Mandetta. Há dois anos, o cirurgião Raul Cutait esteve com um pé na pasta, mas Michel Temer nomeou o deputado Ricardo Barros (PP-PR).
O jogo do ministério, com seus balões de ensaio e boatos, é um divertimento que acaba no dia em que o Diário Oficial publica a lista dos nomeados. Contudo, os movimentos que ocorrem nos bastidores acabam revelando a alma do governo que se forma. Descontada a maneira silenciosa e cirúrgica com que Paulo Guedes forma sua equipe na área econômica, até agora a principal decisão de Bolsonaro foi a transferência do general da reserva Augusto Heleno para o Gabinete de Segurança Institucional. Ele estava designado para a Defesa e foi deslocado pouco depois da escolha de Sergio Moro para a Justiça. Trocou um ministério com gabinete fora do Planalto por outro a poucos metros da sala do presidente.
O Ministério da Educação de Bolsonaro tornou-se uma grelha. Mozart Ramos, diretor do Instituto Ayrton Senna, foi vetado pela bancada evangélica sem ter sido convidado. O procurador Guilherme Schelb, da simpatia dos pastores, viu-se frito. Ao fim do dia, foi escolhido o professor Ricardo Vélez Rodriguez, da Federal de Juiz de Fora (MG), que lecionou na Escola de Comando e Estado-Maior do Exército. Do episódio, resulta que Bolsonaro colocou no Ministério da Educação uma pessoa com quem nunca trocou duas palavras ou leu duas páginas.
A formação de um governo obedece a uma lógica própria. Um terço dos ministros é formado por pessoas que o presidente queria colocar exatamente onde ficaram, como Paulo Guedes. No segundo terço, o escolhido vai para a equipe, mas cai em outro lugar, como Augusto Heleno. No terceiro, entram pessoas que o presidente mal conhecia.
A mecânica da formação da equipe acaba sendo tão significativa quanto as escolhas. Temer disse que nomearia notáveis. Armou sua equipe pelo velho método e estabeleceu uma marca na História universal: dois de seus ministros acabaram na cadeia (Geddel Vieira Lima e Henrique Alves). Outros dois tiveram os pais e padrinhos políticos encarcerados (Helder Barbalho e Leonardo Picciani). No governo Dilma, Joaquim Levy pensou que havia sido escolhido para o Ministério da Fazenda, mas caiu num comissariado, do qual fugiu.
Na competição que produz ministros, às vezes ganham relevo aqueles que decidem não sê-lo. Ilan Goldfajn deixou o Banco Central. Já o nome do general da reserva Oswaldo Ferreira para a área de infraestrutura era pedra cantada. Ele participou do planejamento da campanha de Bolsonaro e chegou a dar entrevistas sobre projetos. Decidiu ficar fora do governo.
O ‘imprevisto’ de Moro
O futuro ministro Sergio Moro defendeu a delegada Érika Marena, coordenadora da Operação Ouvidos Moucos, que em 2017 resultou na prisão do reitor Luiz Carlos Cancellier, da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Levado para uma penitenciária, ele vestiu uniforme laranja, foi algemado e lá dormiu uma noite. Sua prisão foi pedida pela delegada e a Justiça, que a autorizou, suspendeu-a no dia seguinte, pois não viu no pedido da delegada “fatos específicos dos quais se possa defluir a existência de ameaça à investigação.”
Livre, o professor matou-se, atirando-se do alto de um shopping de Florianópolis. Quando a Ouvidos Moucos foi espetacularizada, Cancellier e outros professores eram acusados de terem desviado R$ 80 milhões de um programa da UFSC. Essa informação revelou-se falsa e foi divulgada antes mesmo que Cancellier fosse ouvido. A cifra referia-se à verba total do programa.
A delegada Érika Marena é considerada uma policial competente e teve um relevante desempenho na fase inicial e decisiva da Operação Lava-Jato. Ao informar que ela assumiria o Departamento de Recuperação de Ativos e Cooperação Jurídica Internacional do Ministério da Justiça, Moro tratou do caso de Cancellier e disse o seguinte: “Foi uma tragédia, algo trágico e toda a solidariedade aos familiares do reitor, mas foi um infortúnio imprevisto na investigação. A delegada não tem responsabilidade quanto a isso”.
Falta definir “infortúnio imprevisto na investigação”. Ou pelo menos, quais são os infortúnios que as investigações podem prever. Prisões desnecessárias, humilhações e espetacularizações talvez estejam entre eles.
OUTRO ESPETÁCULO
Há um ano, noutro caso espetacular, o empresário Ricardo Saud, da J&F dos irmãos Batista, contou que sua organização corrompia políticos e esfriava as propinas usando mais de cem escritórios de advocacia que simulavam serviços. Entre os políticos, estava o deputado Fábio Faria e, entre os escritórios, o do advogado Erick Pereira. (Na sua delação, Saud chamou-o de Erick Faria.) Passou-se um ano, a procuradora-geral da República, Raquel Dodge, chamou Saud de “pretenso colaborador” e pediu o arquivamento do processo porque “não foi possível colher nenhum elemento probatório que demonstrasse que o investigado (deputado Fábio Faria) cometeu os referidos delitos”. E que “a documentação juntada aos autos pelo colaborador em nada demonstra que os eventos que narra ocorreram”. O pedido da procuradora foi atendido pela ministra Rosa Weber, do STF. Quanto ao advogado Erick Pereira, ele juntou aos autos as provas dos serviços prestados pelo escritório.
O distinto público foi enganado duas vezes, primeiro pela JBS fazendo-se passar por uma “campeã nacional”. Depois pelos seus donos e diretores enfiando cascalhos nas suas pretensas delações.
BEIJO DA MORTE
Na terça-feira, um veterano parlamentar ouviu um colega do PSOL saudando a possível escolha de Mozart Ramos, diretor do Instituto Ayrton Senna, para o Ministério da Educação.
Foi rápido:
“Já era.”
FOGO AMIGO
Durante a campanha, o general Hamilton Mourão contou que estava lendo uma biografia de seu colega “Stonewall” Jackson. Ele foi um dos maiores generais do Sul rebelde na Guerra da Secessão (1861/1865). Ganhou o apelido de “Muralha” ao conter o inimigo, decidindo a primeira grande batalha do conflito. Era um tipo estranho. Cristão fervoroso, lutava pelo Sul, mas condenava a escravidão.
A vida de “Stonewall” pode inspirar Mourão. Primeiro, porque ele falava pouco e escondia tudo. Sempre ia para a linha de frente, mas numa noite tomou três tiros de sua própria tropa durante uma patrulha noturna. “Stonewall” tornou-se a mais famosa vítima de fogo amigo das forças militares americanas.
Roberto Romano: Professor Guinsburg
Ele se foi no momento em que a nossa gente entra num labirinto ameaçador
A modernidade ampliou a potência das civilizações que têm sua alma no livro. Mas, além do conhecimento, divino ou humano, a leitura trouxe como efeito colateral o apego à letra, em detrimento do sentido. Milhares foram assassinados devido à leitura inculta, praticada por fiéis delirantes. Hoje o meio impresso é obnubilado pela internet. Mas a eficácia dos instrumentos que divulgam mensagens, tolas ou sábias, leva ao pedantismo ou zelo fanático. No Renascimento, editores e acadêmicos lançam a corrida ao livro, à fama, aos lucros. A passagem de manuscritos gregos e romanos ao prelo exige imenso labor coletivo. Para a venda dos volumes concorrem potentados, financistas, religiosos. O livro atinge setores amplos, anuncia a nova era científica, humanística, estatal.
Entre os ávidos consumidores das letras surgem indivíduos que delas se empanturram. Da indigestão literária brota a cultura pela metade, uma nova forma de ignorância douta. O apedeuta é prisioneiro de falas absurdas, as quais considera verdadeiras. Na Encyclopédie, Diderot afiança que o pedante é alguém “de uma presunção gárrula que fadiga os outros com o exibicionismo de seu saber em todo gênero, afetação de estilo e maneiras”.
O número dos que usam muitos textos e pouca ciência se mantém constante. Hoje a voga de edições caras para enfeitar prateleiras cede o passo aos escritos baratos de autoajuda, romances levemente pornográficos, biografias, etc. Em 2013, na Europa, os números eram os seguintes em termos editoriais: Inglaterra, 184 mil; Alemanha, 93.600; França, 66.530; Espanha, 76.430; Itália, 61.100. Os elementos são fornecidos por Jakub Marian. Em 2013, na França, os campeões de vendagem foram Asterix e três livros contendo os 50 matizes de cinza; 25% dos livros vendidos eram romances; 21%, de juventude; 13%, de turismo; 8%, escolares; 6%, quadrinhos; 6%, de aperfeiçoamento docente. Das edições eletrônicas de 2014 na França, cerca de 8,3 milhões de livros foram “baixados”. Para 1 milhão de compradores de livros foram oferecidos 26 milhões de livros impressos. Cerca de três quartos dos compradores de textos digitais também compraram livros impressos.
Há uma reflexão a ser feita. Sim, ondas de tolices eletrônicas “deram o direito de falar a uma legião de idiotas que antes apenas falava numa tasca de aldeia e depois de uns copos de vinho, sem prejudicar a comunidade. A televisão já tinha colocado o idiota de aldeia num patamar onde ele se sentia superior. O drama da internet é que promoveu esse idiota a portador da verdade” (Umberto Eco).
Mas nas redes existem páginas com saber rigoroso e útil. No Perseus Project é possível ler parte da literatura grega clássica, textos cujas palavras remetem a dicionários, gramáticas, estudos científicos. A Gallica, Biblioteca Nacional da França, apresenta gratuitamente milhões de livros digitalizados, antigos e modernos. Livrarias eletrônicas como a Questia oferecem a preço irrisório milhares de textos com os respectivos estudos. Mesmo quando o impresso dominou, o vezo pedante ou fanático recebeu o desafio de autores, editores e técnicos que publicavam livros essenciais para a vida espiritual. No Brasil tivemos vários que buscaram romper o círculo da mediocridade satisfeita. Um deles foi Jacob Guinsburg, o idealizador da Editora Perspectiva.
Examinando o catálogo da editora surgem textos que sintetizam a cultura moderna e a antiga. E não apenas nos múltiplos setores do pensamento – ética, estética, história, poesia, teatro, dança, teoria literária, religião, filosofia, arquitetura –, mas nos estudos eruditos de vanguarda que procuram entender aqueles campos de maneira inovadora e plural, ecumênica. O número de autores reunidos no rol dos publicados pela Perspectiva é espantoso. Citei acima uma sequência frásica de Umberto Eco contra a barbárie movida pela comunicação de massas ignaras. O desencanto do pensador deve ser percebido na sua trajetória acadêmica e pública. Guinsburg publicou-o em seus trabalhos iniciais, especialmente Obra Aberta e Apocalípticos e Integrados. Em ambas vemos uma pesquisa sem nostalgia das elites ou rendição ao populismo cultural. Tratava-se, para ele, seguindo o conselho de Spinoza, de não rir da cultura moderna nem chorar, mas de compreender. A mesma atitude assumida, ao longo de 97 anos, por J. Guinsburg.
Cada leitor das preciosidades unidas por J. Guinsburg recorda com carinho um ou outro título. Admiro o monumento erguido por Erich Auerbach: o livro Mimesis. Deixo as querelas suscitadas pelo autor na teoria e na história literárias. Trata-se de uma síntese encantadora da cultura ocidental, dos gregos aos nossos dias. Uma obra assim justificaria qualquer editora. Sem exagero, digo: volumes às centenas e centenas, no catálogo da Perspectiva, trazem a marca daquela genialidade. A produção promovida pela Perspectiva foi analisada em extensão e profundeza por estudiosos de todos os setores. Não me alongarei mais.
Devemos homenagear o ser humano Guinsburg. Em décadas de amizade, sempre fomos acolhidos por ele com simpatia, generosidade, entusiasmo e saber. Prudência política era o seu nome, ele que atravessou os regimes de força no Brasil, as lutas entre esquerda e direita, as intolerâncias. Defensor dos direitos humanos, assistiu ao antissemitismo triunfante que levou ao Holocausto sem jamais duvidar da força presente em seu povo. Sorvemos cada átimo de sua companhia. Com jeito de quem nada sabia, ele aprofundava informações históricas, antropológicas, políticas as mais diversas. Indicava de modo discreto caminhos de pesquisa. Ele se foi no momento em que nossa gente entra num labirinto ameaçador, quando a ausência do espírito cultural manifesta um vazio ameaçador. Fará enorme falta.
Mas os livros que publicou guardam o antídoto contra a ignorância, a truculência das seitas, o gigantesco pedantismo que circula na internet. Obrigado, professor Guinsburg!
*Professor da Unicamp, é autor de 'Razões de Estado e outros estados da razão' (Perspectiva)
Pública: “As pessoas não acreditam mais em partido político, mas acreditam na igreja”, diz Monica de Bolle
Diretora de estudos latino-americanos da Johns Hopkins comenta futuro Governo Bolsonaro
Por Ciro Barros, da Agência Pública
Quando o bispo Marcelo Crivella (PRB) foi eleito para a prefeitura do Rio de Janeiro, a economista Monica de Bolle, PhD pela London School of Economics e diretora de estudos latino-americanos e mercados emergentes da Johns Hopkins University, passou a sentir uma “coceira”, como ela diz. A eleição de um quadro importante da Igreja Universal do Reino de Deus (Iurd) para a prefeitura da segunda cidade mais rica do Brasil lhe pareceu simbólica. “Como a crença nos partidos caiu enormemente, mas a crença nas igrejas não, parece que isso está levando a uma coesão maior da frente parlamentar evangélica, que está se unindo a outros grupos para definir a agenda do futuro Governo Bolsonaro”, argumenta. “Isso talvez seja a história da implosão dos partidos políticos relacionados à corrupção. No Brasil, isso deu espaço para ser ocupado por um grupo que almejava um espaço político maior tendo em vista a eleição do Crivella no Rio de Janeiro, em 2016. Agora esses grupos veem esse espaço aberto porque as pessoas não acreditam mais em partido político mesmo. Elas vão acreditar no quê? Elas vão acreditar na igreja.”
P. O que é a religious right e quais as comparações possíveis com a Frente Parlamentar Evangélica?
R. Os paralelos são muito claros. A religious right, aqui nos Estados Unidos, é uma certa fauna diversa, como são os movimentos evangélicos no Brasil, mas tem um elemento de fundamentalismo cristão que une esses políticos que estão todos dentro do Partido Republicano. Essa religious right aqui consiste basicamente nesses “born again christians” [cristãos renascidos], que são os neopentecostais. Não são os protestantes tradicionais, como os luteranos ou batistas, mas os cristãos fundamentalistas. Eles estão no Partido Republicano há muito tempo, é o pessoal que tem a pauta dos costumes, adeptos do chamado movimento pró-vida e de movimentos contrários às pautas identitárias — movimentos anti-LGBT, antiminorias. O que é curioso é que o que está despontando na bancada evangélica e no futuro Governo Bolsonaro é muito semelhante com esse grupo de pessoas dos Estados Unidos. É o mesmo tipo de gente com o mesmo tipo de visão, muito calcada nos costumes, nos valores, a partir de um fundamentalismo religioso, mas com um componente ideológico adicional que aqui não existe, que é a história do marxismo cultural. Tudo é marxismo cultural agora no Brasil — as pessoas não sabem o que é marxismo, mas tudo é marxismo cultural. O próprio novo chanceler brasileiro [Ernesto Araújo, nomeado por Bolsonaro para encabeçar o Ministério das Relações Exteriores] é alguém que cita a globalização como anti-humana e anticristã [Araújo opõe-se ao que chama de “globalismo”, que, em suas palavras, é “a globalização econômica que passou a ser pilotada pelo marxismo cultural”].
O que me chamou muita atenção foi o manifesto que a bancada evangélica produziu no dia 24 de outubro, que é um plano de governo e, se o Bolsonaro tivesse tido a preocupação em preparar um plano de governo, é mais ou menos o que ele teria preparado — o documento vai muito na linha do que ele tem anunciado e feito já —, mas com esse componente de fundamentalismo cristão e ideologia religiosa claros porque no fim do documento tem toda aquela parte de Escola sem Partido e marxismo cultural. O que também chama atenção é que, pela primeira vez, eu vi a bancada evangélica apresentar uma proposta mais ampla: falam de reforma do Estado, falam de reformas econômicas. Isso me levou a comparar os dados do resultado do segundo turno em 2018 com os do segundo turno em 2014 e olhar, por exemplo, em nível municipal, como foram as votações do Bolsonaro e do Aécio Neves nos municípios em relação à proporção de autodeclarados evangélicos nesses municípios. Claramente os municípios com maior número de evangélicos são exatamente os municípios onde o voto no Bolsonaro foi acima de 60%, e isso não foi verdade em 2014 — nem para Dilma nem para Aécio. Com as indicações de ministros, com a história de Ministério da Família, que agora vai se chamar outra coisa, esse sujeito que vai ocupar o MRE com as coisas que disse, dá uma sensação de que tem um movimento orquestrado por trás de uma religious right meio parecido com o que tem aqui nos Estados Unidos, que almeja poderes maiores do que almejavam anteriormente e até maiores do que os daqui almejam, porque os daqui [dos EUA] estão basicamente no Congresso e têm outro tipo de pretensão. No Brasil, parece ser uma disposição para ocupar os espaços executivos. Isso já vem me chamando atenção desde a eleição do Marcelo Crivella [PRB] no Rio.
"O que está despontando na bancada evangélica e no futuro Governo Bolsonaro é muito semelhante com esse grupo de pessoas dos Estados Unidos"
P. Você diz que nos Estados Unidos a articulação da direita religiosa se deu dentro da estrutura partidária, no caso o Partido Republicano, ao contrário do caso brasileiro, onde essa articulação se dá por fora dos partidos. Por onde passa a articulação dessa direita religiosa brasileira?
R. Você tem 23 partidos, mais ou menos, que compõem a bancada evangélica, sendo que alguns têm mais presença do que outros. O PRB, por exemplo, tem um monte de deputados na bancada, o que não surpreende sendo o partido da Igreja Universal. Fora o PRB, tem o PR, o PP e o próprio MDB. Talvez seja um pouco cedo para afirmar isso, mas pela cara desse manifesto, pelo encaminhamento dessa transição de governo, [pelas] pessoas que o Bolsonaro já falou, que está indicando para cargos-chave, parece haver uma união dessa bancada evangélica, que talvez hoje esteja bem mais coesa do que já foi. Como houve uma diluição dos partidos no Brasil e como a crença nos partidos caiu enormemente, mas a crença nas igrejas não, por serem instituições em que ao menos boa parte da população vê que não há corrupção e que determinados valores estão mantidos, parece que isso está levando a uma coesão maior da Frente Parlamentar Evangélica, que está se unindo a outros grupos para definir a agenda do futuro governo Bolsonaro. E ele, por sua vez, acho que está muito confortável com isso porque muda o chamado jogo político no Brasil. O que a gente entendia como o chamado presidencialismo de coalizão é que o presidente, minoritário, tinha sempre o desafio de construir uma coalizão estável e, em um sistema muito fragmentado como é o sistema partidário brasileiro, isso era sempre muito complicado. Mas, se você de repente transforma isso num grupo de bancadas onde as legendas são só legendas e as pessoas que pertencem a determinadas legendas não estão necessariamente interessadas nas agendas dos seus partidos — até porque seus partidos não têm propriamente uma agenda —, mas na agenda da bancada, você passa de um regime onde a coalizão era construída nos partidos para um regime em que a coalizão é construída com o apoio da bancada. E a bancada evangélica é enorme: são 199 deputados na Câmara mais quatro parlamentares no Senado e com uma intercessão esquisita aí com a bancada ruralista. Essa costura com os evangélicos pode garantir de fato uma governabilidade que a gente não estava enxergando.
R. Eu acho que esse não é o ponto principal para eles. A agenda liberal na economia é meio que irrelevante para eles. Eles não estão preocupados com isso, se é liberal ou se não é liberal. A preocupação maior é: número um, ocupar espaços políticos — e eu acho que agora eles estão vendo um espaço enorme para isso, dada a diluição dos partidos —, essa é a primeira preocupação, então temos que entendê-los como a gente entende qualquer político; e, número dois, empurrar essa agenda de costumes à frente, fazer com que essa agenda seja implantada, coisa que eles nunca iam conseguir nos governos petistas, mas estar junto dos governos petistas atendia ao primeiro anseio, que era estar perto do poder para ganhar plataforma política. Isso eles conseguiram. Agora eles têm a chance de colocar em prática a agenda que de fato interessa para eles e que não tem nada a ver com a economia.
P. As lideranças evangélicas podem assumir o papel que antes pertencia tradicionalmente ao MDB, de ser uma espécie de “fiador” da governabilidade, a partir da capilaridade das igrejas?
R. Acho que sim. E acho que esse papel passa por duas coisas. A primeira é que muitas pessoas depositam confiança nas igrejas, dado que o número de evangélicos no Brasil cresceu muito nos últimos anos, e a segunda coisa é justamente pela capilaridade. As igrejas substituíram o MDB em termos de capilaridade. O que era o MDB antes, que ocupava os espaços regionais, essas igrejas têm um espaço muito, mas muito maior. A capilaridade fica em nível granular, desce para o bairro. Ela não fica só na prefeitura. Existe um potencial de substituição dessa capilaridade. Partindo do pressuposto de que eles estejam organizados dessa forma, porque como é uma fauna essa coisa dos evangélicos — você tem todo tipo de igreja, instituição e movimento religioso que a gente coloca nessa classificação de “evangélicos” —, mas supondo que eles estejam de fato atuando dessa forma coesa e estejam decidindo atuar apoiando uns aos outros, o projeto de hegemonia em termos de poder para eles tem um potencial de ser muito mais hegemônico do que qualquer projeto do MDB ou do PT. Porque é religião mesmo, não é outra coisa.
P. Esse projeto de hegemonia vai dar aonde? Vai parar nessas pautas morais como o Escola sem Partido?
R. Acho que não, acho que vai mais longe. Isso é que talvez seja a história da implosão dos partidos políticos relacionados à corrupção. Essa implosão, quando aconteceu na Itália, por exemplo, deu espaço para várias outras esquisitices na política, mas nenhuma delas foram esquisitices religiosas: apareceram outros partidos, apareceu o Berlusconi. Hoje em dia a Itália continua marcada pelos populismos diversos, é uma bagunça só. No Brasil, o que isso deu foi um espaço maior para ser ocupado por um grupo que já almejava ocupar um espaço político maior tendo em vista, por exemplo, a eleição do Crivella no Rio de Janeiro em 2016, que é bem sintomático desse processo. E agora esses grupos veem esse espaço aberto porque as pessoas não acreditam mais em partido político mesmo. Elas vão acreditar no quê? Elas vão acreditar na igreja.
P. Outro componente desse governo Bolsonaro, que você deve estar vendo há mais tempo aí nos Estados Unidos com o Trump, que é esse “governo online”. Há um governo que se comunica diretamente com o seu eleitorado mais fiel — e inflamado — por meio das redes sociais. Isso não dificulta a moderação do discurso de Bolsonaro, sobretudo nessas pautas morais?
R. Demais. Acredito nisso piamente. Esse meio de comunicação direta por meio de Twitter, WhatsApp, Facebook, seja lá o que for, dificulta, sim, a moderação. Quando o Trump se elegeu aqui, havia essa ideia de que “ah, mas a presidência é algo que tende a moderar o discurso, porque os presidentes enfrentam todo o peso da instituição da presidência, os contrapesos do Congresso, isso tende a modular o discurso e tudo mais”. Não foi absolutamente isso que a gente viu com o Trump, muito pelo contrário. Não mudou nada. Ele está pior do que estava quando entrou. Parte da razão para isso é exatamente esse canal direto de comunicação com a base nas redes sociais, que é onde o povo está preparado para reagir da forma mais instintiva possível. As pessoas não pensam, não tem um espaço reflexivo nas redes sociais, é totalmente reativo. Chega lá o presidente eleito e coloca um tweet meio inflamatório sobre uma determinada coisa, digamos, chamando o globalismo de marxismo cultural. Aí vem a turba inteira achando aquilo absolutamente correto, e "é isso mesmo, tem que acabar com o marxismo cultural". Começa aquela bagunça e aquele discurso que acaba validando o discurso político do presidente eleito. E ele se sente, portanto, com capital político para continuar fazendo aquilo. É uma maneira um tanto diferente de as coisas operarem no sistema político do que no passado. Sob esse ponto de vista, não vejo qualquer espaço para que discursos sejam moderados. Acho que eles tendem ou a ficar iguais, ou até a ficar um pouco mais radicais por conta dos temas que são levantados, sobretudo nessa pauta de costumes, que é algo que gera naturalmente esse tipo de reação. São coisas muito controvertidas.
P. Talvez a pauta dos costumes seja o que tenha feito com que tanta gente se arregimentasse em torno do discurso do Bolsonaro. Se Bolsonaro, durante a campanha, anunciasse pautas mais técnicas — como a reforma da Previdência ou o ajuste fiscal, por exemplo —, talvez não tocasse tanta gente. Até onde vai essa crença de que o problema do Brasil são essas questões morais, naturalmente subjetivas, quando estamos diante de problemas objetivos mais graves, como as contas públicas, por exemplo?
R. Se ficar só nisso, se o governo Bolsonaro não fizer as reformas que precisa fazer para que a economia volte a reagir, o desemprego continuar alto e as pessoas começarem a ver que os problemas permanecem os mesmos, a chance de que as pessoas se desiludam com esse discurso todo é enorme. O Brasil, diferentemente dos Estados Unidos, não tem solidez econômica nenhuma no momento. É bem possível, dado que existe hoje no Brasil uma vontade de vários segmentos e de vários lados de que o Bolsonaro dê certo simplesmente para acabar com o PT de vez — é um pouco essa a cabeça das pessoas atualmente no Brasil —, acho que vai haver um pouco de boa vontade em relação à paciência que segmentos de diferentes sociedades vão ter diante das reformas, e acho que a paciência vai se estender também para a qualidade das reformas. Então, por exemplo, se o Bolsonaro acabar fazendo uma reforma da Previdência que não resolva o problema da Previdência, mas que ele possa dizer que ele fez, mais ou menos como o Trump fez aqui em relação a algumas pautas, acho que vai ser o suficiente para os investidores e empresários que estão nesse mesmo barco de apoiar qualquer coisa para não ter o PT de volta. Vão apoiar, vão dar suporte, o que pode fazer com que a economia até melhore um pouco. Acho que não tem muito potencial de melhora muito grande, não, mas pode melhorar o suficiente para gerar o sentimento de que “ah, até que as coisas não estão mal assim”. O perigo maior que eu vejo é: a agenda que está colocada realmente é uma agenda super-retrógrada de costumes. Foi nisso que as pessoas acabaram votando. Concordo com essa visão. Ela resolve a situação do país? Não. Porém, como tem muita gente querendo que esse governo dê certo simplesmente para não ter a volta do PT ou algo parecido, é possível que o Bolsonaro tenha espaço para fazer algumas reformas, ainda que meio ruinzinhas, o que vai fazer com que todo mundo ache que era isso mesmo, estava tudo certo. E isso gera uma certa perpetuação de poder, né? E tem um clã para se perpetuar ali no poder, tem a família toda.
P. Algumas pessoas, como o professor Pablo Ortellado (EACH-USP), por exemplo, fazem outro paralelo com os Estados Unidos. Ele cita o livro Culture wars: the struggle to define America (Guerras culturais: a batalha para definir a América, numa tradução livre), do sociólogo americano James Hunter. Nele, Hunter afirma que houve uma articulação dos setores religiosos dos Estados Unidos quando alguns movimentos sociais passaram a pautar as relações interpessoais. Por exemplo, quando o movimento feminista, após conquistar direitos civis para a classe das mulheres, como o voto, passou a enfatizar também o machismo do dia a dia, nas famílias, nas empresas, nas ruas etc. Segundo Hunter, houve reação conservadora a esse fenômeno articulada pelos segmentos religiosos católicos, protestantes e judaicos. Você acha que tem paralelos desse fenômeno no Brasil?
R. Tem paralelos, sim. Para nós, brasileiros, esse fenômeno é muito mais recente, então ficou no ponto cego de muita gente, os nossos analistas e cientistas políticos não pegaram isso. E está ainda no ponto cego. Aqui nos Estados Unidos, as guerras culturais estão conosco há pelo menos uns 30 anos, senão mais. Já é algo que faz parte da política. Com a eleição do Trump, a gente viu uma certa ascensão desse conservadorismo que está muito associado a ele, toda essa pauta anti-imigração, antiminorias, anti-LGBT. As pautas são mais ou menos as mesmas, mas em resposta a isso a gente teve agora, nas eleições de meio de mandato, uma enorme tentativa [de reação] dessa população que se sentiu marginalizada por essa ascensão do conservadorismo. Teve o fato da Câmara ter voltado para as mãos dos democratas, mas não só isso: de os democratas voltarem a ter tanto espaço nos estados, não só nos governos estaduais, mas nas legislaturas. Você vê que o perfil das pessoas que ganharam esses mandatos são pessoas radicalmente opostas a essa pauta ultraconservadora. Então aqui, como as guerras culturais estão aí há muito tempo e a sociedade americana é muito fluida, muda muito, porque tem uma composição muito fluida, você acaba tendo um equilíbrio natural de forças. Um movimento se ergue e naturalmente você tem uma reação. Tem um efeito moderador nesse vai e vem que eu acho que não existe no Brasil. O contrapeso a essa onda conservadora está totalmente desarticulado. Onde esse movimento está? Nos progressistas. Quem são os progressistas? São as pessoas que se autoidentificam como centro-esquerda ou esquerda. Esse lado, no Brasil, está completamente desarticulado hoje.
P. É possível que essa aproximação dos religiosos ou mesmo do ideário conservador com o poder vá além da estrutura governamental, do Executivo, e passe também para as instituições, como o Judiciário, o Ministério Público? Tivemos recentemente uma nota assinada por mais de 200 procuradores se colocando em favor do Escola sem Partido…
R. Eu acho que já está muito presente, na verdade. Esse próprio manifesto em prol desse projeto é um exemplo disso.
Adriana Fernandes: Maia no caminho de Guedes
Maia acumulou nas mãos um conjunto de projetos econômicos de peso
Sem conseguir o apoio que esperava do presidente eleito, Jair Bolsonaro, para a sua reeleição ao cargo em 2019, o presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia (DEM-RJ), deu nos últimos dias sinais de que pode colocar muitas “pedras” no caminho das votações dos projetos mais importantes para o futuro ministro da Economia, Paulo Guedes, diminuir alguns dos problemas que o aguardam assim que assumir o cargo no dia 1.º de janeiro.
Já não há mais nenhum comprometimento com a agenda de votações.
Maia segue o caminho do presidente do Senado, Eunício Oliveira (MDB-CE), que manobrou para uma votação relâmpago do reajuste dos salários dos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), com custo fiscal elevado para todo o setor público, e atrapalhou a apreciação do projeto de lei que permitirá a assinatura do contrato aditivo da cessão onerosa entre a Petrobrás e a União. Em público, cumprimentos e gentilezas. As articulações de bastidores, porém, mostram o oposto. De ambas as partes.
Com a bandeira de “menos Brasília e mais Brasil”, com descentralização de recursos da União para Estados e municípios, Paulo Guedes acabou caindo na armadilha montada por Eunício de vincular a votação do projeto de lei da cessão onerosa à partilha da arrecadação do dinheiro do leilão com Estados e municípios. E mais: atrelou o acordo a outro projeto que está na pauta de votação da Câmara, sob o domínio de Maia, que altera a divisão de recursos do Fundo Social do Pré-sal.
O baile duplo complicou a votação do projeto, que é “porta da esperança” para o futuro ministro conseguir cumprir a promessa de campanha de zerar do déficit primário das contas do governo federal até dezembro de 2019.
Maia deu seu recado. Tratou de dizer que “não estava sabendo” de acordo nenhum para que o texto da cessão onerosa não seja alterado e tramite mais rapidamente, em troca da votação na próxima terça-feira de projeto que reformula o Fundo Social do Pré-sal com mais recursos para Estados e municípios.
Tenta-se agora construir uma saída com a edição de uma medida provisória, como antecipou o Estado na quarta-feira, para fazer a divisão dos recursos com os governos regionais.
As articulações conduzidas nos últimos dias atropelaram a votação do projeto da cessão onerosa, que estava praticamente pronto para votação. É a velha tática de complicar para conseguir mais.
Maia acumulou nas mãos um conjunto de projetos econômicos de peso que potencializam o seu poder de atrapalhar. É o que acontece com as propostas de autonomia do Banco Central, securitização da dívida dos Estados e tantos outros.
Uma briga, por enquanto, silenciosa também avança em torno das emendas do Orçamento. A disputa é entre aqueles que querem garantir as emendas no ano que vem, mesmo dos parlamentares que não se reelegeram, e os que brigam por espaço para os novos deputados e senadores. Em 2014, o senador Romero Jucá (MDB-RR) conseguiu incluir no Orçamento uma brecha para emenda dos novos parlamentares eleitos. Há preocupação que apoiadores de Bolsonaro consigam o mesmo, com prejuízo para as emendas já acertadas.
Ainda aprendiz do jogo político que será obrigado a lidar com o Congresso, Guedes avisou que Estados e municípios poderão receber uma fatia maior de recursos repassados pela União “quanto mais rápida for a aprovação das reformas”. Recado dado, mas ainda não compreendido.
O alerta do futuro ministro mostra que ele pode ouvir os conselhos da equipe atual e condicionar a ajuda aos Estados e municípios a medidas de ajuste e reformas. Nesse cenário tão conturbado, talvez o melhor a fazer seja deixar a votação do projeto da cessão onerosa e a decisão da partilha para o próximo Congresso.
O acerto poderia ser mais bem costurado com os novos governadores e parlamentares em 2019. Até porque, ao contrário do que muitos do mercado tentam passar adiante como certo para consolidar suas apostas milionárias, ainda há muitos acertos a serem feitos para que o leilão ocorra e o dinheiro entre nos cofres de todos.
A discussão em torno da mudança do regime de partilha para a concessão nas regras do pré-sal, proposta pela nova equipe econômica, pode atrasar ainda mais o leilão.
Num retrospecto do que aconteceu no último ano, vale lembrar que, ao pé da letra, era para o leilão ter acontecido em 30 de abril. Esse era o cronograma anunciado pelo governo.
El País: Do ensino básico ao ENEM, o que o futuro ministro de Bolsonaro pode mudar na Educação
Afinado com Secretaria de Privatizações, Vélez Rodríguez é visto como nome ideal para tirar do papel as propostas de governo bolsonaristas que vão além da questão ideológica
Indicado por Olavo de Carvalho, ícone da extrema direita e um dos gurus intelectuais de Jair Bolsonaro, o filósofo Ricardo Vélez Rodríguez não esconde seu apreço pelo golpe militar de 1964, a inclinação “antimarxista” e o ímpeto em desconstruir uma suposta “ideologização” nas escolas. Entretanto, para além dos discursos ideológicos, o futuro chefe da Educação terá missões complexas à frente de uma das pastas mais visadas durante o período de transição. Tanto pelo círculo próximo do presidente eleito quanto por setores ultraliberais e da bancada evangélica, o 10º ministro do Governo do PSL é encarado como a pessoa certa para colocar em prática as propostas de campanha no setor educacional.
Apesar de acadêmico e sem histórico em gestão de políticas públicas, Vélez Rodríguez venceu a disputa pela indicação ao cargo com nomes mais tarimbados, como o ex-secretário de Educação de Pernambuco, Mozart Neves, descartado por ter um perfil considerado “técnico demais”. Coordenador do Centro de Pesquisas Estratégicas da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), o professor vai administrar logo em sua primeira experiência executiva um orçamento de aproximadamente 120 bilhões de reais. “Como se trata de um outsider, é difícil prever quais medidas ele [Vélez Rodríguez] vai priorizar. Mas, por suas posições, será no mínimo um guardião da ideologia de Bolsonaro”, afirma Luiz Carlos de Freitas, pesquisador aposentado da Unicamp.
Em nota emitida nesta sexta-feira, o novo ministro sinaliza caminhos que deve seguir no comando do MEC. No campo filosófico, ele voltou marcar posição criticando o que chamou de “instrumentalização ideológica da educação em aras de um socialismo vácuo” ao longo dos governos petistas. “Pretendo colocar a elaboração de normas no contexto da preservação de valores caros à sociedade brasileira, que, na sua essência, é conservadora e avessa a experiências que pretendem passar por cima de valores tradicionais ligados à preservação da família e da moral humanista”, pontuou, em aceno a movimentos conservadores como o Escola Sem Partido.
Já no aspecto prático, indicou que sua política educacional dará mais autonomia a Estados e municípios, em consonância com o mantra “menos Brasília e mais Brasil” difundido pela cúpula bolsonarista. “O Estado brasileiro, desde Getúlio Vargas, formatou um modelo educacional rígido que enquadrava todos os cidadãos, olhando-os de cima para baixo, deixando em segundo plano a perspectiva individual e as diferenças regionais.” Diante da perspectiva de o Governo deixar de lado o Plano Nacional de Educação (PNE), um conjunto de metas e estratégias elaborado em 2014 que determina as diretrizes da política educacional em todo o país, no período de 10 anos, em prol de uma estratégia de fragmentação, especialistas da área temem uma ruptura brusca com o projeto unificado para o sistema de ensino no Brasil.
“O Governo Federal tem de coordenar a educação por meio de uma estratégia nacional e políticas públicas que visem avanços em larga escala”, diz Olavo Nogueira Filho, diretor do movimento Todos Pela Educação. Às vésperas do segundo turno da eleição presidencial, a entidade divulgou um posicionamento em que destacava a necessidade de priorizar ações de abrangência a todo território brasileiro, como a valorização dos professores e o aprimoramento da alfabetização de crianças até 8 anos de idade. O temor de instituições suprapartidárias que ajudaram a construir o PNE é de que, a partir da sinalização de Vélez Rodríguez, não só as diretrizes nacionais sejam abortadas pelo novo Governo, mas também as premissas da Base Nacional Comum Curricular (BNCC), que orienta disciplinas e material didático para a educação básica. “A base é fruto de uma ampla discussão com a sociedade”, afirma Anna Helena Altenfelder, presidente do Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária (Cenpec). “A educação brasileira já tem uma direção que precisa ser mantida, respeitando as metas estipuladas.”
Por outro lado, a corrente do ultraliberal vê com bom olhos a regionalização proposta por Bolsonaro, em defesa de mais autonomia a Estados e municípios na definição de metas e prioridades na educação. O Instituto Liberal do Rio de Janeiro celebrou a escolha do novo ministro, a quem se refere como “um gigante em nossa história” – Vélez Rodríguez é colaborador da organização –, assim como enalteceu a indicação do empresário Salim Mattar para a Secretaria de Privatizações. Dono da Localiza, maior empresa do setor de aluguel de carros no país, ele está encarregado de definir quais estatais serão privatizadas a partir de 2019, mas também deve ter papel determinante no enxugamento do Estado preconizado pelo ministro da Economia, Paulo Guedes, com possíveis desdobramentos no MEC. “A lógica liberal para a educação passa pela economia e se encaixa no conjunto das privatizações. Possíveis mudanças no modelo de financiamento educacional não serão conduzidas no Ministério da Educação”, afirma Luiz Carlos de Freitas.
Uma das possíveis mudanças citadas pelo especialista é o “voucher educação”, que estipula a distribuição de vales para as famílias escolherem um colégio privado e matricularem seus filhos e tem como grandes entusiastas Paulo Guedes e Salim Mattar. A proposta é inspirada em fórmulas já testadas em países como Estados Unidos e Chile, que adotou os vouchers durante a ditadura de Augusto Pinochet, na década de 80, e constava no plano de governo de João Amoêdo, do NOVO, partido que recebeu apoio financeiro do dono da Localiza. Ultraliberal convicto, Mattar defende ainda aprofundar a formação técnica e profissional, já prevista na reforma do ensino médio homologada pelo MEC no início da semana. Para o futuro ministro de Privatizações, as escolas devem preparar os alunos para o mercado de trabalho. Ele financia em Minas Gerais um projeto que oferece aulas de empreendedorismo a estudantes de colégios públicos. Em suas palestras, Mattar costuma citar o exemplo pessoal, contando que tinha o sonho de viajar o mundo e virar pianista na adolescência, mas acabou desincentivado pelo pai que o convenceu a abrir seu próprio negócio, ao defender a expansão do ensino profissionalizante.
Tanto Mattar quanto Vélez Rodríguez comungam da intenção de “criar um ambiente favorável ao empreendedorismo no Brasil”, destacada pelo plano de Governo de Bolsonaro –o que é uma vertente valorizada, mas a maioria dos especialistas discorda da dicotomia entre "formar para a vida" ou para ser um professional e para o "mercado de trabalho". Nesse sentido, ainda não há definição sobre uma possível transferência do ensino superior para a pasta de Ciência e Tecnologia, sob o comando do astronauta Marcos Pontes. Antes disso, deverá ser discutida a proposta de cobrar mensalidade em universidades públicas, que conta com a simpatia de Paulo Guedes. Outro foco do MEC é a ampliação do ensino à distância (EaD), que Bolsonaro entende como forma eficaz para se combater a suposta doutrinação, ao estendê-la também ao ensino fundamental da rede pública, sobretudo em áreas rurais – a reforma do ensino médio já prevê até 30% de EaD para alunos da modalidade.
Por fim, o novo ministro da Educação tem pela frente a incumbência de comprar briga com o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP), órgão vinculado ao MEC que elabora as provas do ENEM. Bolsonaro entrou em rota de colisão com a presidente do instituto, Maria Inês Fini, depois de protestar contra uma questão do último exame que citava como exemplo o Pajubá, dialeto falado pela comunidade LGBT. O presidente prometeu fazer mudanças nas provas, deixando claro o intuito de avaliá-las pessoalmente antes da aplicação o que, pelas regras atuais, é ilegal. Em seu blog, Vélez Rodríguez já revelou o alinhamento às críticas ao ENEM, que ele qualifica como um “instrumento de ideologização para auferir a capacidade dos jovens no sistema de ensino”.
Embora sirva mais para inflamar os ânimos entre militantes favoráveis e de oposição ao governo Bolsonaro do que para produzir efeitos práticos na política de educação, a batalha cultural deve ocupar boa parte dos discursos da gestão Vélez Rodríguez. Colombiano naturalizado brasileiro, ele surge como potencial articulador da integração de grupos similares ao Escola Sem Partido pela América Latina. Sua ascensão ao ministério recebeu ao menos o visto positivo da bancada evangélica, que já iniciou contatos com movimentos de outros países onde Bolsonaro ostenta a imagem de liderança regional que irá consolidar os valores e costumes das famílias conservadoras, a começar pelas escolas.
VEJA OS CAMINHOS E ENTRAVES PARA MUDANÇAS NA POLÍTICA EDUCACIONAL
Veto a livros e novas disciplinas
Para rever materiais didáticos sobre ditadura e criacionismo e instituir o ensino de moral e cívica nas escolas, o novo Governo depende do Conselho Nacional de Educação, órgão independente que auxilia as tomadas de decisão do MEC e é responsável pela definição da Base Curricular. Como os mandatos de conselheiros do órgão foram renovados por Michel Temer, Bolsonaro teria de esperar pelo menos dois anos para mudar parte da mesa diretora, que hoje prioriza o enxugamento de disciplinas e tem praticamente fechada a lista de livros didáticos recomendados nas escolas. Se quiser impor as ideias de seus correligionários já no início de mandato, o novo Governo precisaria transferir para o Congresso o poder de determinar as disciplinas no currículo, rompendo com as instituições que hoje ditam os rumos da educação brasileira.
Educação sexual
O projeto Escola sem Homofobia, que ganhou a pecha de “kit gay” imposta por movimentos conservadores, pretendia levar educação sexual sob a perspectiva de gênero ao ensino básico, mas não chegou a sair do papel. Em resposta, parlamentares da bancada evangélica elaboraram o Escola sem Partido, que veta várias práticas, entre elas o uso da palavra “gênero” e da expressão “orientação sexual”. O projeto está na pauta de uma comissão especial na Câmara e pode ser aprovado ainda este ano. A educação sexual, que tanto mobiliza Bolsonaro, hoje é tratada apenas de maneira transversal com foco em sexualidade no último ano do ensino fundamental.
Ensino à distância, vouchers e regionalização
O EaD já está previsto (até 30% da carga horária) na reforma do ensino médio homologada pelo MEC esta semana. Para expandi-lo ao ensino fundamental, assim como aumentar a autonomia de estados e municípios na condução de metas e estratégias educacionais em detrimento do Plano Nacional de Educação, também seria preciso romper com as diretrizes do Conselho. Os vouchers, por sua vez, dependem da seleção e credenciamentos de colégios particulares que receberiam subsídios do Estado. Porém, o baixo desempenho das instituições privadas surge como entrave para a proposta. Apesar de terem melhor média no Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb), somente 23% das escolas particulares conseguiram alcançar as metas estabelecidas pelo MEC, contra 42% das escolas públicas.
Colégios militares
O plano de Governo de Bolsonaro promete a construção de um colégio militar em cada capital brasileira. O custo por aluno nesse modelo é três vezes maior que o da escola pública. Segundo especialistas, a proposta, que depende de alto investimento, tem baixo alcance no universo de 40 milhões de estudantes do país.
ENEM
O Inep só prevê mudanças no exame a partir de 2021, depois da aplicação das novas diretrizes do ensino médio. As provas são elaboradas por uma comissão independente de professores e passam por um rígido e sigiloso processo de revisão, seguindo as matrizes da BNCC. Antecipar alterações na dinâmica do ENEM, incluindo revisão de conteúdo e aprovação do presidente, dependeria de manobra semelhante ao rompimento institucional com o Conselho Nacional de Educação para redefinição de material didático nas escolas. No caso, há de se desautorizar o Inep, que tem posição contrária à ingerência governamental na prova.
Mensalidade e fim das cotas raciais
Para mexer nas universidades, o futuro Governo depende do Congresso. Mais precisamente da aprovação, pelos parlamentares, de alterações na Constituição – a gratuidade está prevista em todos os níveis do ensino público e as cotas são garantidas por lei federal de 2012. As emendas precisam de aprovação em dois turnos na Câmara e no Senado, com maioria qualificada (três quintos).
Míriam Leitão: Governo se forma no meio de dúvidas
Governo Bolsonaro começa a tomar forma mas ainda não se sabe como será a articulação política nesta tentativa de reinvenção do modelo de coalizão
Começa a tomar forma o governo Jair Bolsonaro, com erros, acertos e dúvidas. As indicações se dividem entre militares, políticos e técnicos. A ideia de que ele não aceitaria indicação política já caiu por terra. Houve apenas a troca dos partidos por bancadas, o que levou a uma sobrerrepresentação do Democratas. Ainda não se sabe como será a articulação política nessa tentativa de reinvenção do modelo de coalizão.
Bancadas se unem por temas e se dividem a respeito de muitas outras questões. Como pensa a bancada ruralista sobre a reforma da Previdência? Depende do projeto. Se houver a cobrança da contribuição previdenciária do agronegócio, certamente a bancada inteira será contra. Se houver novas proibições de Refis, também. A ministra Tereza Cristina não garante os votos dos ruralistas para questões que individualmente os deputados divirjam. A liberação de armas agrada aos ruralistas e à bancada da bala, mas será que terá aprovação de todos os evangélicos? Esta semana o governo cedeu à pressão dos evangélicos na escolha do ministro da Educação, ao desistir de Mozart Neves Ramos. Ontem, acabou anunciando o colombiano Ricardo Velez Rodriguez. O fato de os indicados serem das bancadas não impediu que estivessem já sendo centro de desgaste como acontece com os futuros ministros da Agricultura e da Saúde.
O pacote anticorrupção que será apresentado pelo ministro Sérgio Moro deve encontrar resistência em vários partidos, se o parlamentar entender que isso o ameaça de alguma forma. Nenhum dos problemas normais na gestão da coalizão desaparece com essa forma de esquivar-se das direções partidárias e alguns outros podem surgir como a dúvida sobre como será a negociação dos projetos.
A prova de que a negociação com as bancadas cria desequilíbrios na relação entre o executivo e o legislativo foi a reclamação do próprio PSL, feita na quarta-feira, por não ter até aquele momento nenhum dos seus integrantes no governo. Gustavo Bebbiano é uma indicação do próprio presidente. Se há três ministros do DEM, que tem 29 deputados, qual será o espaço do próprio PSL? É essa a pergunta que chegou ao governo do seu próprio partido. O DEM, antes PFL, já esteve no grupo dos cinco maiores partidos da Câmara, mas perdeu essa condição na eleição de 2014. E como a indicação é dos grupos temáticos, a direção partidária pode não se envolver no esforço de aprovação.
De uma forma ou de outra, o governo estará negociando com os políticos. Isso não é necessariamente ruim. O que o país rejeita na política é o uso de recursos públicos como moeda de troca na construção da coalizão, e não a negociação em si. O partido do presidente elegeu 52 deputados, 10% da Câmara. Ele vai crescer com novas adesões, mas jamais conseguirá ter maioria sozinho, o que só aconteceu uma única vez de 1945 para cá, no governo do general Eurico Gaspar Dutra.
No início, qualquer administração tem mais força e os projetos são mais facilmente aprovados. No governo Bolsonaro, haverá um problema sobre o qual já escrevi aqui: o conflito de agenda. Qual será prioritária? O pacote anticorrupção, que está sendo preparado pelo futuro ministro da Justiça, as reformas a serem apresentadas pelo futuro ministro da economia ou as bandeiras que o presidente eleito defendeu com mais ênfase durante a campanha, como a liberação de armas, a Escola sem Partido, o excludente de ilicitude? Se for tudo ao mesmo tempo, a tendência dos parlamentares será fugir de assuntos mais impopulares, como a reforma da Previdência.
O resto do governo é formado por militares do Exército e por ministros que simbolizam as agendas liberal e de combate à corrupção. Paulo Guedes está se cercando de pessoas nas quais confia há muito tempo, formando uma equipe homogênea. Estendeu suas indicações até para além da área que ficará sob o seu comando, como a Petrobras. A força de superministros fará com que qualquer desentendimento com eles reverbere muito mais. Na economia, as informações divulgadas até agora são esparsas e ainda não permitem saber de que forma o governo pretende enfrentar a grave crise econômica e fiscal do país. As nomeações que o futuro ministro Sérgio Moro têm feito confirmam que a Lava-Jato, que começou com uma operação que fiscalizava o governo, agora tem um braço dentro do executivo.
El País: Bolsonaro obedece hierarquia do Exército e anuncia novo comandante
Futuro ministro da Defesa também divulga nomes da Marinha e da Aeronáutica
Por Afonso Benites, do El País
O presidente eleito Jair Bolsonaro obedeceu a hierarquia militar e escolheu um colega de turma para comandar o Exército brasileiro a partir do ano que vem. O general Edson Leal Pujol será o chefe da força terrestre. Apesar de ser o mais velho entre os potenciais candidatos, ele não era o favorito do presidente. O preferido era o general Paulo Humberto César de Oliveira, atual número dois da instituição.
Além dele, outro concorrente era Mauro César Lourena Cid, chefe do departamento de Educação e Cultura do Exército. Os três se formaram na Academia Militar dia Agulhas Negras com Bolsonaro no ano de 1977. Eles chegaram ao topo da carreira, enquanto o presidente eleito abandonou a carreira para se dedicar à política.
Pesou a favor de Pujol o respeito à tradição do Exército de que o mais antigo quadro da ativa fosse o elevado ao comando. Atualmente ele ocupava o cargo de chefe do Departamento de Ciência e Tecnologia do Exército.
O anúncio foi feito na tarde desta quarta-feira pelo futuro ministro da Defesa, general Fernando Azevedo e Silva. Também foram divulgados os nomes dos comandantes da Marinha, almirante de esquadra Ilques Barbosa Junior, e da Aeronáutica, tenente-brigadeiro do ar Antônio Carlos Moretti Bermudez.
Em princípio, Bolsonaro cogitou a possibilidade de manter os atuais chefes das duas forças, respectivamente, Leal Ferreira e Nivaldo Rossato. Mas ele mudou de ideia e decidiu seguir também o critério de antiguidade entre os militares com as maiores patentes na ativa. O futuro ministro, general Fernando, disse que a Defesa é o ministério que menos terá mudanças. "Ele é baseado nas Forças Armadas, que são instituições sólidas e organizadas".
Alexandre Schwartsman: Irresponsabilidade revelada
O governo não pode salvar os estados sem exigir contrapartidas duras e claras
O Tesouro Nacional, antes sob o comando de Ana Paula Vescovi, hoje liderado por Mansueto Almeida, tem feito um esforço louvável para detalhar o estado das contas públicas, não só no que se refere ao governo federal, mas expondo também as mazelas dos governos locais.
O exemplo mais recente deste trabalho é o Boletim de Finanças dos Entes Subnacionais, publicação que traz dados sobre estados e municípios até 2017.
Os números são preocupantes. A começar pelo aumento do déficit primário dos estados, que pulou de R$ 1,8 bilhão em 2015 e R$ 2,9 bilhões em 2016 (valores irrisórios na comparação com o PIB) para R$ 13,9 bilhões em 2017 (0,2% do PIB).
Note-se que esta medida leva em consideração a despesa empenhada naqueles anos, não a efetivamente paga. A diferença reflete principalmente o atraso no pagamento de fornecedores e servidores, mecanismo adotado por vários estados, na prática “empurrando com a barriga” o problema, ao invés de atacá-lo frontalmente.
A piora do desempenho não decorre da receita. Pelo contrário, durante o período destacado esta cresceu relativamente ao PIB, embora não muito.
Por outro lado, a despesa do conjunto dos estados cresceu bem à frente do PIB, em parte pela recessão observada até 2016, mas além da modesta expansão da atividade no ano passado.
A verdade é que os gastos estaduais vêm aumentando mais do que a inflação, reproduzindo o padrão do gasto federal até 2016.
Dentre esses, a despesa com pessoal, R$ 403 bilhões, merece atenção, representando pouco mais da metade do dispêndio primário registrado no ano passado, R$ 766 bilhões. Segundo o Tesouro, os gastos dos estados com pessoal aumentaram 32% acima da inflação entre 2011 e 2017.
Nada menos do que 14 dos 27 estados (incluindo o Distrito Federal) superaram no ano passado o limite (fixado na LRF) de 60% entre despesas de pessoal e receita corrente líquida.
Há muito mais a ser explorado na publicação, mas acredito que os números acima já deixam claro que boa parte dos estados está na lona por conta da péssima administração fiscal a que foram submetidos.
Não é por outro motivo que, mais uma vez, se fala em novo resgate por parte do governo federal, apenas dois anos depois da última tentativa.
A questão parecia superada com a reestruturação firmada no final dos anos 90, quando o governo federal assumiu a dívida de alguns estados e capitais, os mais ricos, em troca de programas de ajuste fiscal que foram bastante bem-sucedidos por praticamente uma década.
Em particular, esta dívida —apesar da choradeira de governadores e prefeitos —caiu de 13% do PIB para pouco mais de 7% do PIB de 2002 a 2014.
Todavia, sob a gestão de Dilma Rousseff, Guido Mantega e Arno Augustin os estados foram liberados das amarras fiscais, o que acabou nos levando à crise atual.
Muito embora a experiência daquela reestruturação não tenha sido perfeita, seu longo período de sucesso nos deixa lições importantes.
Em hipótese alguma o governo federal pode salvar os estados sem exigir contrapartidas muito duras e claras em termos de redução de gastos, privatização e modernização das práticas públicas, sem as quais nenhum recurso pode ser adiantado.
Por óbvio, nenhum estado é obrigado a aceitar quaisquer condições, mas é ainda mais certo que o governo federal não pode empurrar novamente para a população as contas de governos fiscalmente irresponsáveis.
El País: Petrobras se prepara para aprofundar guinada pró-mercado com Bolsonaro
Escolhido por Paulo Guedes receberá empresa menos endividada e promete distanciá-la ainda mais da política dos anos do PT
A esperada chegada de Roberto Castello Branco ao comando da Petrobras do Governo Bolsonaro reforça a guinada iniciada na petroleira por Pedro Parente há pouco mais de dois anos: uma empresa cada vez mais focada nas áreas de produção e exploração de petróleo e que busca reduzir a sua dívida bilionária com a venda de ativos considerados pouco rentáveis, principalmente os ligados à cadeia de distribuição e refino. O escolhido já frisou que a privatização do coração da empresa está fora dos planos, o que faz da subsidiária BR Distribuidora, a maior companhia do gênero da América Latina, avaliada em 27 bilhões de reais, a joia da coroa na mira dos compradores a partir de agora.
O perfil de Castello Branco e suas primeiras declarações após ter sido confirmado no cargo pelo futuro superministro da Economia do presidente eleito Jair Bolsonaro, Paulo Guedes, indicam que os anos de mão forte do Governo na empresa que marcaram os últimos anos do PT no poder ficaram definitivamente para trás. Por isso, a indicação do economista —um ex-diretor do Banco Central e da mineradora Vale com um pós-doutorado na Universidade de Chicago— foi extremamente bem-recebida pelo mercado financeiro e por especialistas liberais do setor.
O futuro presidente da Petrobras também é a favor do ponto mais sensível do receituário pró-mercado, do ponto de vista da opinião pública: a manutenção da política de preços dos combustíveis que, alinhada ao mercado internacional, dita o valor final do diesel, da gasolina e do gás de cozinha para os brasileiros. Foi a oscilação brusca dos preços em um cenário de alta volatilidade externa que precipitou a histórica greve dos caminhoneiros em maio, apoiados pelo então pré-candidato Jair Bolsonaro. A categoria arrancou do Governo Temer um programa de subsídios que expira em dezembro e o novo comando da estatal vai ter que decidir que rumos tomar a partir de então.
"[Castello Branco] vai encontrar uma Petrobras em plena recuperação. Ele vai encontrar a Petrobras com uma qualidade de governança incomparavelmente melhor. O grau de interferência do governo na Petrobras hoje é muito menor, ainda que ele seja o controlador", avalia Claudio Frischtak, fundador da consultoria de negócios Inter.B. "A Petrobras está hoje numa posição de voltar a ser uma grande empresa de petróleo. Não tem comparação com a Petrobras que o Pedro Parente recebeu", acrescenta Adriano Pires, diretor do Centro Brasileiro de Infraestrutura (CBIE) e próximo da equipe de Bolsonaro.
A gigante de petróleo brasileira (criada na década de 50 pelo presidente Getúlio Vargas) se tornou um símbolo do ocaso vivido pela ex-presidente Dilma Rousseff, cercada por uma crise política e econômica sem precedentes que culminou na cassação do seu mandato. Enquanto a estatal se via envolvida em sucessivos escândalos de corrupção desvelados pela Operação Lava Jato, a política de retenção de preços da gasolina para segurar artificialmente a inflação resultou em perdas bilionárias para o seu caixa. Em 2014, a dívida da empresa era da ordem de 106 bilhões de dólares.
Após o impeachment de Dilma e a indicação de Parente para o posto, foi iniciado um agressivo plano de venda de ativos e de desinvestimentos para reduzir esse montante. A estimativa, por exemplo, é que a Petrobras encerre este ano com uma dívida de 69 bilhões de dólares. Além do mais, a política de preços dos combustíveis foi modificada e passou a acompanhar as oscilações internacionais —a greve de caminhoneiros em protesto às regras levaria à demissão de Parentee a sua substituição pelo atual presidente Ivan Monteiro.
A desvalorização do real frente ao dólar e a recuperação do valor do barril de petróleo também têm ajudado os resultados da Petrobras nos últimos meses: o lucro líquido da empresa atingiu no terceiro trimestre 6,6 bilhões de reais, ante 266 milhões no mesmo período do ano passado.
Planos modestos e debate com ala militar
A julgar pela sua primeira declaração desde que foi confirmado no cargo, Roberto Castello Branco promete aprofundar o receituário adotado por Parente. O novo presidente deu uma rápida entrevista ao jornal O Estado de S.Paulo e disse que a Petrobras deve focar apenas nas atividades que têm competência para fazer. Na prática, isso significa que ele pretende dar prioridade à exploração e produção de petróleo, com especial ênfase no pré-sal, ao mesmo tempo em que trabalhará para reduzir a sua participação nas áreas de distribuição e de refino. "A Petrobras pode rever o monopólio nessa área [refino]. A competição é favorável a todos: à Petrobras e ao Brasil", declarou Castello Branco ao Estadão.
Os dois especialistas no mercado de petróleo e gás ouvidos pelo EL PAÍS avaliam que, embora o novo governo seguramente dará sequência à redução da presença da Petrobras nas cadeias alheias à produção e exploração, dificilmente isso se reverterá numa privatização completa da petroleira. Para Adriano Pires, do Centro Brasileiro de Infraestrutura, essa discussão precisa ser feito em um outro momento. "A gente tem que ter muito cuidado com essa questão. Privatizar a Petrobras não é o debate do momento. Tem outras coisas para fazer antes, como tornar a empresa lucrativa", diz. "Eu não vejo o governo [Bolsonaro] vendendo a Petrobras como um todo. Eu não vejo o Governo Bolsonaro gastando o capital político que ele tem que gastar em coisas extremamente críticas para o país vendendo a Petrobras", acrescenta Claudio Frischtak, da Inter.B.
Para além disso, há a própria resistência da ala militar dos aliados de Bolsonaro, como o seu vice, o general Hamilton Mourão. Para esse grupo, a Petrobras não só é uma empresa simbólica, mas "estratégica". Por isso, eles rechaçam a ideia de que toda a Petrobras venha a ser vendida.