governo bolsonaro
Bruno Boghossian: Guerra vazia
Batalha ideológica de Bolsonaro cria vácuo de políticas públicas
A pergunta que marcou Ricardo Vélez Rodríguez ao receber o convite para assumir o Ministério da Educação não foi sobre evasão escolar ou sobre a qualidade do ensino técnico. “Você tem faca nos dentes para enfrentar essa guerra?”, quis saber Jair Bolsonaro.
O presidente eleito escalou sua equipe como se montasse uma tropa para um conflito. Ao escolher o nome que vai chefiar um setor com deficiências crônicas, sua principal preocupação foi atacar os fantasmas do marxismo e do comunismo.
“Senhor presidente, estou nessa guerra há 30 anos. Porque há 30 anos o marxismo está aí presente, marginalizando gente, fazendo fake news”, disse Vélez ao novo chefe. O emprego estava garantido.
No Brasil, 55% das crianças de oito e nove anos não sabem ler, e 93% dos alunos não sabem matemática ao concluir o ensino médio, mas o futuro ministro da Educação acha que seu grande problema será a doutrinação de crianças e jovens.
Bolsonaro já escolheu quase todos os seus ministros, mas ainda sobram dúvidas sobre o que seu governo fará de fato. A própria tentativa de redesenho do governo atende mais a um conjunto de expectativas simbólicas do que à lógica do mundo real.
O presidente eleito já prometeu acabar com o Ministério do Trabalho, depois disse que seria fundido com outra pasta. Agora, a ideia é distribuir suas funções pela Esplanada, mas ainda não se sabe exatamente o que será feito para combater o trabalho escravo, por exemplo.
Nesta segunda (3), o futuro ministro Onyx Lorenzoni (Casa Civil) também anunciou que a Funai deverá ser deslocada para a Agricultura. Na prática, os ruralistas que comandam a pasta serão responsáveis pela proteção de terras indígenas.
A guerra ideológica de Bolsonaro pode até fazer sucesso enquanto o governo não começa, mas o jogo muda a partir de janeiro. Se o governo não preencher o vazio de políticas públicas que marcou a campanha e a transição, pode frustrar até mesmo seus apoiadores fiéis.
El País: “Bolsonaro promete um muro de vergonha para o meio ambiente”, diz Astrini, do Greenpeace
Para coordenador do Greenpeace, saída do país do Acordo de Paris também poderia agravar a imagem lá fora. “É como o país dizer que não quer ajudar na solução, mas no problema”
“Uma derrota”. É assim que Marcio Astrini, coordenador de políticas públicas do Greenpeace e membro da coordenação do Observatório do Clima, classifica a retirada da candidatura do Brasil para sediar a próxima Conferência sobre as Mudanças Climáticas da ONU no ano que vem, a COP25. Durante a Conferência do ano passado, o Brasil anunciou a candidatura para sediar o evento em 2019. Para isso, teve que negociar ao longo de quase um ano com a Venezuela para que apoiasse a oferta, já que, para receber a COP, é preciso que haja consenso entre o grupo dos países latinos. Com o consenso, o Grupo de Países Latino-americanos (Grulac) confirmou à ONU a candidatura brasileira.
Mas nesta semana, às vésperas do início da COP24, que neste ano ocorre na cidade de Katowice, na Polônia, o Itamaraty anunciou o revés: por meio de nota, afirmou que “restrições fiscais e orçamentárias” e o “processo de transição” de Governo obrigaram o país a retirar a oferta de sediar o evento. De acordo com Astrini, porém, países que não têm condição financeira de sediar a conferência recebem ajuda da ONU. “O dinheiro não seria o [problema] principal”, afirmou em entrevista ao EL PAÍS por telefone, pouco antes de embarcar para Katowice. A decisão do Itamaraty foi ratificada, em seguida, pelo presidente eleito Jair Bolsonaro, que afirmou ter recomendado que se evitasse o evento no país. "Houve participação minha nessa decisão. Até porque está em jogo o Triplo A nesse acordo". Ele se refere a proposta de criação de um corredor ecológico que ligaria os Andes, passando pela Amazônia e terminando no Atlântico, que abrangeria mais de 300 áreas protegidas e cerca de 1.000 territórios indígenas.
Embora essa proposta não tenha nenhuma relação com a conferência do clima, ou mesmo com a ONU, Bolsonaro acredita que a criação do Triplo A tem relação com o Acordo de Paris e poderia colocar em risco a soberania brasileira. O Acordo, que tem como objetivo reduzir a emissão de gases do efeito estufa, foi negociado durante a Conferência do Clima de 2015, na cidade francesa, e tem o Brasil como um dos signatários. Para Astrini, a decisão da retirada da candidatura vem exatamente na esteira da possível saída do Brasil do Acordo. “[A retirada da candidatura da COP] é a primeira pedra que ele colocou no muro da vergonha que ele promete para o meio ambiente”, afirmou.
Leia abaixo os principais trechos da entrevista:
Pergunta. O que significa, em termos ambientais e em termos diplomáticos, a retirada da candidatura do Brasil para sediar a Conferência do Clima do ano que vem?
Resposta. É uma derrota. Se você olhar para as promessas de Bolsonaro durante a campanha, já era esperado. Mas é uma derrota do ponto de vista do país. O Brasil é maior do que Bolsonaro e o Governo dele. A gente sempre teve um papel de destaque nessas negociações internacionais e são poucos os pontos diplomáticos onde o Brasil tem destaque. Isso porque, claro, temos a Amazônia, mas temos também uma matriz energética mais limpa que outros países. Além disso, já sediamos outras duas conferências, a Eco 92 e a Rio +20. Fazer a Conferência no Brasil seria uma demonstração do compromisso do país com o meio ambiente e ajudaria na hora das negociações internacionais. Além disso, uma parte grande da nossa economia é baseada na agricultura, que depende basicamente de equilíbrio climático. Países com essas características têm apelo maior nas negociações nessas conferências. Em Copenhague [cidade que sediou a conferência em 2009], o Brasil foi o primeiro país a apresentar metas concretas de redução de gases [de efeito estufa]. Enfim, temos um corpo diplomático excelente nessas negociações climáticas.
P. Após esse anúncio da retirada, qual clima é esperado nesta Conferência?
R. O Brasil irá com uma imagem muito delicada para a Conferência. Primeiro, porque o aumento do desmatamento sempre fragilizou o Brasil. É uma coisa meio vergonhosa nessa questão de negociações com a ONU. Aumentar [o desmatamento], em pleno século 21, passa esse ar de incapacidade. Aí você junta no mesmo ano a negativa em sediar [a próxima conferência] por questões políticas. E junto com isso, vem as declarações do novo ministro das relações exteriores [Ernesto Araújo], de que a esquerda criou a ideologia da mudança climática. É meio vergonhoso. Então nesta COP, eu acho que perderemos um pouco o espírito dos negociadores brasileiros. Se você é de um país que faz muito pelo clima, cumpre suas metas e é um exemplo, quando você se senta numa mesa de negociação, você se senta com um certo peso. Mas não adianta ser bom em retórica se você tem dívidas. O que levaríamos para uma mesa de negociação como ativo, agora virou passivo. Todo mundo sabe da importância do Brasil e das promessas do Bolsonaro, mas quando elas começam a ser colocadas em prática, você vê que o que já era ruim, está virando realidade. Bolsonaro antes mesmo de assumir, começa a dar concretude à agenda que prometeu. Isso atrapalha a imagem do país. [A retirada da candidatura da COP] é a primeira pedra que ele colocou no muro da vergonha que ele promete para o meio ambiente.
P. O Itamaraty utilizou-se de um argumento financeiro para justificar sua decisão. Quanto custa sediar um evento como esse?
"Ninguém quer comprar um quilo de carne que venha do desmatamento da Amazônia"
R. Não sei exatamente o valor. Mas alguns senadores conseguiram colocar a previsão dos gastos para o ano que vem, e havia também uma movimentação do Governo Temer para conseguir investimento externo. O dinheiro não seria o [problema] principal, porque caso o país queira sediar uma conferência e tenha alguma dificuldade, a ONU ajuda.
P. Quais são as consequências dessa retirada?
R. A retirada da candidatura afeta o nosso poder de negociação internacional. Em termos econômicos, boa parte dos clientes de produtos agropecuários do Brasil exige que a gente dê garantias de sustentabilidade do nosso produto. Ninguém quer comprar um quilo de carne que venha do desmatamento da Amazônia. Então nesse sentido, o Governo está dando um duplo mortal carpado: está voltando atrás sobre a candidatura para sediar a COP, ao mesmo tempo em que os índices de desmatamento estão aumentando. São dois dados que apontam retrocesso no âmbito das mudanças climáticas.
P. Mas apesar da retirada da candidatura para sediar a Conferência, o Brasil ainda segue como participante dela, correto?
R. Correto. O Brasil continua participando da COP, porque ainda é parte. Uma coisa é ser signatário do Acordo de Paris, outra coisa é ser membro das discussões de clima da ONU. Por exemplo, Donald Trump disse que sairia do Acordo de Paris, mas continua participando das conferências. O Brasil é signatário e também parte do grupo. Mas Bolsonaro já fez acenos para sair do Acordo, depois voltou atrás...
P. Acha que ainda está em jogo a saída do Acordo de Paris?
R. Está sob risco. Bolsonaro declarou que sairia, durante a campanha. E acho que isso teve uma relação direta na retirada da candidatura. Mas os trâmites não são tão simples. Para sair do Acordo, é preciso a aprovação do Congresso. Além disso, pelas regras da ONU, um país só pode romper com o Acordo depois de passados quatro anos da entrada em vigor, ou seja, em novembro do ano que vem. A saída definitiva ocorre depois de um ano da notificação, que seria novembro de 2020.
P. Se o Brasil sair do Acordo de Paris, o que pode ocorrer, na prática?
R. Os problemas de imagem e comerciais vão se agravar para o Brasil. Seria como se o Governo dissesse: eu estou dando as costas para qualquer ação em defesa do clima. Para a imagem do país é dizer que está contra o mundo. São 190 países, centenas de cientistas, milhares de estudos nos quais os acordos se baseiam. Sair dele é como o país dizer que não quer ajudar na solução e sim, fazer parte do problema. Isso pode ter um peso muito grande para a economia do Brasil. Inclusive quando Bolsonaro disse que sairia do Acordo de Paris, grandes exportadores do agronegócio se manifestaram contra, porque sabem o peso econômico que essa decisão pode ter.
P. Quais as expectativas, então, com o novo Governo em relação ao meio ambiente?
"As promessas principais de Bolsonaro para o meio ambiente são desfazer as unidades de conservação e acabar com o poder de atuação do Ibama, ou seja, desmontar o que deu certo no combate ao desmatamento"
R. As piores possíveis. Nós vamos atuar diariamente para ele não cumprir as promessas que fez na eleição. Entre 2004 e 2014, houve cerca de 80% de redução do desmatamento da Amazônia. Essa redução se deu, basicamente, devido à criação de áreas protegidas, que são terras indígenas e unidades de conservação, e às ações de fiscalização e repressão ao crime. Só que as promessas principais de Bolsonaro para o meio ambiente são desfazer as unidades de conservação e acabar com o poder de atuação do Ibama, ou seja, desmontar o que deu certo no combate ao desmatamento. Fora isso, ainda há a mensagem dele de dizer que o Ibama, que é quem faz a repressão ao crime ambiental, está errado. Esse combo pode fazer explodir o desmatamento na Amazônia. E a última coisa que quem exporta os produtos produzidos na Amazônia quer é que o desmatamento aumente. Se o Estado incentivar o desmatamento, algo que nunca ocorreu de forma deliberada como agora, as empresas não vão conseguir provar que o que elas fazem é o suficiente [pelo meio ambiente].
P. Durante a eleição, Bolsonaro fez reiteradas críticas ao Ibama e ao Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio). Acredita que o futuro dessas entidades está em jogo?
R. Algumas coisas prometidas por Bolsonaro durante a campanha não sei como poderão se concretizar. Por exemplo, ele vai ter que mudar a lei para poder vender terras indígenas. Nem sei se a Constituição permite isso. Mas, por outro lado, para acabar com o poder de ação do Ibama, por exemplo, é da noite para o dia. É só ele cortar orçamento. Então acho que isso está em jogo sim.
P. Acha que é possível que o Brasil volte atrás quanto à decisão da retirada da candidatura da COP?
R. Acho difícil. Até porque, se o Governo não é sério para essas coisas, a ONU é.
Luiz Carlos Azedo: O fim anunciado
“O fim do Ministério do Trabalho não enfrentará grande oposição. Os sindicatos se opõem à mudança, mas estão derrotados por antecipação”
O futuro ministro da Casa Civil, Onyx Lorenzoni, anunciou ontem que o Ministério do Trabalho será realmente extinto e suas atribuições distribuídas entre três pastas: Justiça, Cidadania e Economia. Com a vitória de Jair Bolsonaro, o fim do ministério era favas contadas. Apesar de o novo governo que está sendo montado ter algumas características que lembram a chegada do positivismo castilhista ao poder central, entre as quais a forte presença de militares na equipe de governo e a relação corporativista com a política, o fim do ministério é um sinal de que a Era Vargas está se esgotando. O governo deverá ter 22 pastas no primeiro escalão, das quais o futuro presidente já anunciou 20 ministros. Faltam ainda os titulares do Meio Ambiente e dos Direitos Humanos.
Lorenzoni detalhou o esquartejamento de forma superficial: “O atual Ministério do Trabalho, como é conhecido, ficará uma parte no ministério do doutor Moro, outra parte com Osmar Terra e outra parte com Paulo Guedes”, disse, ao anunciar o “humanograma”. O Ministério da Justiça, que será comandado por Sérgio Moro, cuidará da concessão de cartas sindicais. A fiscalização do trabalho escravo também deve ficar com o ex-juiz federal. As políticas ligadas ao emprego ficarão uma parte no Ministério da Economia, cujo titular será Paulo Guedes, e outra parte na pasta da Cidadania, com o ministro Osmar Terra.
O Ministério do Trabalho surgiu ligado à Indústria e ao Comércio, em 26 de novembro de 1930, como uma das primeiras iniciativas do governo revolucionário implantado no Brasil sob a chefia de Getúlio Vargas. Chamado de “Ministério da Revolução” pelo ministro Lindolfo Collor, o primeiro titular da pasta, surgiu para regular o conflito entre capital e trabalho. Até então, no Brasil, as questões relativas ao mundo do trabalho eram tratadas como “caso de polícia” ou no âmbito do Ministério da Agricultura.
Joaquim Pimenta e Evaristo de Morais Filho, que advogavam para os sindicatos, e o empresário paulista Jorge Street, em cujas fábricas os trabalhadores eram respeitados, elaboraram os fundamentos da legislação trabalhista. Lindolfo Collor, porém, concebeu os sindicatos como um instrumento para mediar o conflito entre empregados e patrões e, por essa razão, ficaram subordinados ao novo Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio, ou seja, controlados pelo Estado. Também tratou de organizar os sindicatos patronais, o que deu à estrutura sindical uma base corporativista claramente inspirada na Carta del Lavoro da Itália, de natureza fascista.
Também houve atrelamento das Caixas de Aposentadoria e Pensões de marítimos, portuários, ferroviários e outras categorias profissionais. A criação de Comissões de Conciliação entre empregadores e empregados daria origem à atual Justiça do Trabalho. Foram regulamentados a jornada de trabalho na indústria e no comércio e o trabalho das mulheres e dos menores de idade. Em 1933, foi criada a carteira profissional; em 1938, já no Estado Novo, foi estabelecido o salário mínimo. Nessa época, o então ministro Alexandre Marcondes Filho iniciou a cobrança do imposto sindical e sistematizou toda a legislação social até então produzida, na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), com ajuda de Arnaldo Sussekind e João Segadas Viana. Com a redemocratização do país, em 1945, Marcondes Filho foi um dos organizadores do PTB, partido cuja existência sempre esteve fortemente vinculada ao Ministério do Trabalho.
Desestruturação
O fim da Era Vargas chegou a ser anunciado algumas vezes, mas nunca aconteceu. O regime militar implantado após o golpe de 1964 simplesmente reproduziu o modelo do Estado Novo, com intervenções nos sindicatos, reforçado atrelamento da estrutura sindical e unificação da Previdência. O presidente Fernando Henrique Cardoso até tentou modernizar as relações entre trabalho e capital, mas não teve força para enfrentar a oposição dos sindicatos, que acabaram controlados pelo PT. Durante os governos Lula e Dilma Rousseff, os sindicatos brasileiros chegaram ao auge do seu prestígio e poder, mas nenhum dos dois quis desatrelar a estrutura sindical do Estado, nem acabar com o imposto sindical, antigas bandeiras da fundação do PT.
Foi a reforma trabalhista do presidente Michel Temer, aprovada pelo Congresso, que pôs fim ao imposto sindical. Essa mudança enfraqueceu tremendamente os sindicatos, que estão passando por uma crise financeira sem precedentes, com a demissão em massa de funcionários e a venda de imóveis para pagar dívidas trabalhistas. O enfraquecimento decorre também da reestruturação acelerada do mundo do trabalho, com impacto em categorias poderosas, como metalúrgicos e bancários, por exemplo. Por essa razão, o fim do Ministério do Trabalho não enfrentará grande oposição. Os sindicatos se opõem à mudança, mas estão derrotados por antecipação.
http://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/nas-entrelinhas-o-fim-anunciado/
The Intercept Brasil: Negócios multimilionários na “Escola sem Partido”
Não há apenas ideologia de ultra-direita por trás da proposta. Se aprovada, ela será um maná de dinheiro para certas escolas e editoras de livros didáticos. “Investidor”, Paulo Guedes será um dos beneficiados
Por Amanda Audi, do The Intercept Brasil
Jair Bolsonaro não poderia ter escolhido um comandante para o Ministério da Educação mais alinhado ao que defende para o setor. O colombiano naturalizado brasileiro Ricardo Vélez Rodríguez acredita que o sistema de ensino estaria contaminado por uma “doutrinação de índole cientificista e enquistada na ideologia marxista” e “destinado a desmontar os valores tradicionais da nossa sociedade”.
Caberá a ele definir prioridades para um orçamento de mais de R$ 120 bilhões, o terceiro maior da União (atrás de Desenvolvimento Social e Saúde), e discutir temas que são caros ao presidente eleito e seus apoiadores, mas que estão longe de consenso na sociedade e no meio político – como a Escola sem Partido.
Indicado pelo filósofo de extrema direita Olavo de Carvalho, Rodríguez é professor da Escola de Comando e Estado-Maior do Exército e professor associado da Universidade Federal de Juiz de Fora. Em seu blog pessoal, ele publicou, antes de ser confirmado no cargo, um “roteiro para o MEC”, no qual defende que a educação seja recolocada “a serviço das pessoas” e não para “perpetuar uma casta que se enquistou no poder”. Ele também chama o golpe militar de 1964 de “intervenção” e acha que o Enem é “instrumento de ideologização”. Em outra postagem, de setembro de 2017, opinou sobre o projeto Escola sem Partido: “uma providência fundamental”.
Mas não é só uma questão ideológica. O projeto Escola sem Partido, uma lei que propõe abordagens “neutras”, como tratar a ditadura militar brasileira como “contra-revolução democrática de 31 de Março de 1964″, e sem educação sexual para livrar salas de aula de “doutrinação de esquerda”, também envolve dinheiro. E alguns dos mais interessados estão justamente na base do presidente eleito.
As propostas de Bolsonaro para a Educação valorizam o ensino privado, em que temas como a Escola Sem Partido acabam tendo mais entrada, já que as instituições ficam mais livres para desenharem seus currículos educacionais ao sabor do mercado. Já foi anunciado que haverá corte de recursos para universidades públicas, e a equipe analisa a cobrança de mensalidade em instituições federais e a distribuição de “vouchers” para alunos de baixa renda estudarem nessas instituições. O próximo governo também quer priorizar o ensino à distância, considerado mais barato que o convencional. Bolsonaro já defendeu o ensino privado e à distância como forma de combater o “marxismo”.
Se for aprovado, além de satisfazer a onda conservadora que varre o país, o Escola Sem Partido também será uma ótima oportunidade de negócio para empresas de educação, sejam elas escolas ou editoras que imprimem livros didáticos. Publicações e currículos terão de ser reescritos, e quem se adiantar ao projeto larga em vantagem.
Um dos principais beneficiados com o projeto é o seu guru da Economia, Paulo Guedes. Nos últimos anos, o Posto Ipiranga do novo presidente teve como foco de investimento justamente o setor de educação particular, que agora deve florescer.
Os negócios em educação de Guedes podem lucrar em duas frentes: com o reforço da educação privada e com as mudanças que podem ocorrer nos próximos anos com o Escola Sem Partido.
Na Bozano Investimentos, ele investiu em grupos de escolas, universidades e editoras de livros escolares, prevendo que o ensino particular iria trazer maior retorno. As empresas que fazem parte da cartela da Bozano reúnem, hoje, centenas de milhares de estudantes. O bom desempenho garantiu retorno financeiro à Bozano (e, por consequência, a Guedes).
Um deles é o autointitulado maior grupo educacional do mundo – o Kroton. Ele alcançou a posição após comprar a Somos Educação. Esta, por sua vez, cresceu vertiginosamente nos últimos anos. Para isso, recebeu ajuda: investimentos da empresa de Guedes.
Não fica claro quanto, exatamente, foi parar no bolso do economista. Os balanços operacionais da Bozano foram retirados do site recentemente. Mas, se as empresas investidas têm lucro, os fundos de Guedes recebem mais dinheiro, e uma parte é dividida entre os sócios.
Para se ter uma ideia, em 2012, quando entrou no fundo BR Educacional, uma gestora de ativos pertencente a Guedes, o grupo Anima projetou que passaria de 42 mil para 100 mil alunos. Foi o que aconteceu. No balanço de resultados deste ano, o grupo apontou ter chegado aos 97,9 mil estudantes. O lucro bruto, no primeiro semestre deste ano, foi de R$ 246 milhões contra R$ 70 milhões no começo de 2012. O MPF está investigando o fundo por suspeita de irregularidades na gestão de dinheiro de fundo de estatais.
Curiosamente, no mesmo texto em que traça um “roteiro para o MEC”, o novo ministro da Educação critica empresas financeiras que, “através de fundos de pensão internacionais, enxergam a educação brasileira como terreno onde se possam cultivar propostas altamente lucrativas para esses fundos”. Resta saber se ele será tão duro assim com os negócios de Guedes, seu colega de primeiro escalão.
Lobby no Congresso
Não é só Paulo Guedes que tem interesse no Escola sem Partido. Um dos autores do projeto de lei sobre o assunto na Câmara, o deputado Izalci Lucas, é um velho defensor do ensino particular. Ele diz, no projeto, que a “ideologia de gênero” estaria sendo usada em sala de aula para destruir famílias. Izalci foi eleito para o Senado e já declarou apoio a Bolsonaro. Ele é presidente do PSDB do Distrito Federal e integrante da bancada da Bíblia.
Izalci ainda consta como sócio de instituições de ensino em Brasília, apesar de alegar que se afastou dos negócios quando entrou na política. Ele também já foi presidente do sindicato do setor duas vezes. Enquanto líder sindical, criou o Cheque Educação, que oferecia descontos de até 50% na mensalidade de universidades particulares para estudantes de baixa renda – proposta muito parecida com o voucher de Guedes. Uma de suas propostas de lei pede isenção de impostos para instituições de ensino privadas.
Em 2014, a sua campanha à Câmara foi financiada por grandes grupos educacionais. As doações somaram R$ 218 mil, cerca de um quarto do total arrecadado por ele na época. A prestação de contas da campanha de 2018 ainda não foi divulgada.
O projeto Escola sem Partido ainda deverá ser aprovado no plenário da Câmara e do Senado. Nos próximos dias, o Supremo Tribunal Federal pode decidir sobre uma lei do Alagoas semelhante à Escola sem Partido. Mesmo valendo apenas para o estado, a decisão irá firmar a posição da Corte sobre o assunto.
Se não for à votação este ano, a partir de 2019 o trâmite será facilitado, pois o PSL, partido de Bolsonaro, terá a segunda maior composição da Casa. Foram eleitos notórios apoiadores da medida, como Joice Hasselmann, Alexandre Frota e Kim Kataguiri, que trabalharão para ela ser aprovada.
No ano passado, a ONU manifestou preocupação com a proposta. Relatório enviado ao governo brasileiro diz que a proposição permite “alegar que um professor está violando as regras pelo fato de autoridades ou pais subjetivamente considerarem a prática como propaganda político-partidária”, e poderá retirar das salas de aula “discussões de tópicos considerados controversos ou sensíveis, como discussões de diversidade e direitos da minorias”.
Dos 45 deputados que integram a comissão especial na Câmara, a maioria (23) pertence à bancada evangélica. O presidente, Marcos Rogério, do PDT de Rondônia, se diz defensor dos “valores da família e princípios cristãos”. Os primeiro e segundo vice-presidentes são pastores evangélicos.
O relator do projeto na comissão, deputado Flavinho, do PSC de São Paulo, diz em seu parecer que é possível que uma criança mude de sexo por influência dos professores. O texto foi chamado de “brilhante” por Miguel Nagib, procurador de São Paulo que criou uma empresa e uma associação com o nome Escola sem Partido. Ele dá palestras sobre o assunto pelo país, e lucra com isso.
A bandeira também é defendida publicamente por grupos neoliberais como o Movimento Brasil Livre e o Revoltados Online – este último tem como uma de suas coordenadoras uma cunhada de Nagib.
Sem partido mas com a conta cheia
No mercado editorial, há expectativa entre as editoras de material didático de que sejam aplicadas regras da Escola sem Partido no próximo edital para compra de livros didáticos (o governo é o maior comprador), de acordo com Carlo Carrenha, editor e fundador do Publishnews. Algumas se adiantaram e já estão adaptando os materiais, numa espécie de autocensura. “Tenho ouvido de escritores e ilustradores que não pode mais aparecer criança nua tomando banho, por exemplo. Isso seria pornografia’”, afirma Volnei Canônica, especialista em literatura infantil e diretor do clube de livros Quindim.
A professora Fernanda Moura, que estudou o Escola sem Partido para a dissertação de mestrado, defende que o movimento é moralista na aparência, mas esconde interesses econômicos. A ideia é criar pânico, como se os estudantes realmente estivessem aprendendo sobre socialismo e educação sexual de forma inadequada. “Assim, aumenta-se o mercado para materiais didáticos e aulas prontas, e também a demanda por matrículas em sistemas particulares de ensino nos quais os professores têm autonomia extremamente restrita”, afirma.
Demétrio Magnoli: Medo da Ursal
O Brasil já temeu a mula sem cabeça, o boitatá, a cuca, o corpo-seco, a iara e o curupira. Hoje, teme a Ursal. Os medos antigos assombravam o universo rural de caipiras e caboclos. O medo atual assombra o novo governo que, para dormir em paz, entregou dois ministérios estratégicos a apóstolos do Bruxo da Virgínia, um astrólogo repaginado como filósofo místico. Daqui em diante, a superstição norteará nossas políticas externa e educacional. Não adianta dizer que a Ursal não existe, pois ela existe na mente dos que nos governarão.
A Ursal, União das Repúblicas Socialistas da América Latina, ganhou popularidade pela voz do Cabo Daciolo. A evocação da sigla exprime a crença de que uma conspiração comunista internacional ameaça a pátria brasileira. O Bruxo da Virgínia e seus evangelistas compartilham o credo de Daciolo, mas o vestem em peças de estilistas. Na linguagem arcana que preferem, a conspiração é conduzida por uma liga constituída por “liberais globalistas” e “marxistas”. Armados com as teses de Antonio Gramsci, os maléficos conspiradores apropriam-se silenciosamente tanto das chaves do poder quanto das mentes dos indivíduos por meio de uma prolongada guerra cultural. É Ursal, em versão de butique.
De acordo com as superstições do Bruxo da Virgínia, a China lidera o tentáculo marxista da conspiração mundial. Ernesto Araújo, futuro ministro das Relações Exteriores, dá indícios de que submeterá as relações com a China ao “Deus de Trump”, engajando o Brasil na guerra comercial deflagrada pelos EUA. O medo da Ursal ameaça degradar uma de nossas principais parcerias econômicas, fonte de quase um terço do superávit brasileiro no comércio exterior e de vultosos investimentos externos diretos.
Segundo as crendices do Bruxo da Virgínia, a escola funciona como palco de uma doutrinação dos jovens destinada a destruir a família e a religião. Ricardo Vélez, futuro ministro da Educação, declara que enfrentará o perigo por meio do projeto de lei Escola Sem Partido — ou seja, pelo uso do poder público como polícia pedagógica destinada a perseguir professores “desviantes”. O medo da Ursal ameaça bloquear os caminhos para a reforma e qualificação da educação no Brasil. No lugar dessa tarefa inadiável, o Estado anuncia uma estratégia de “contrainsurgência cultural” nas escolas.
As teocracias medievais e os regimes totalitários do século passado imaginavam-se como representações de uma verdade suprema, oriunda de Deus, do Destino Nacional ou da História. A separação entre Estado e Igreja (isto é, a laicidade estatal) e a separação entre Estado e partido (isto é, o princípio do pluralismo político) formam dois pilares estruturais dos sistemas democráticos. Nas democracias, o Estado administra as coisas, não as mentes. Os dois ministérios ocupados por acólitos do Bruxo da Virgínia ambicionam administrar as mentes, libertando-as das forças alienígenas da Ursal. Há fortes doses de ridículo nisso, mas o assunto é sério: o misticismo está no poder.
Um paralelo apropriado é com a Arábia Saudita. O reino nasceu de uma longa jihad (“guerra santa”) empreendida pela aliança do clã guerreiro dos Saud com a seita islâmica puritana Wahab. Na base da monarquia saudita, encontra-se o pacto original entre esses componentes, que se exprime pela entrega dos ministérios da Educação e das Comunicações à facção religiosa. A seita liderada pelo Bruxo da Virgínia ocupa, no governo Bolsonaro, um lugar semelhante ao dos wahabitas no reino dos Saud. A diferença é que sua doutrina não repousa sobre a leitura literal de um livro sagrado, mas sobre crendices cozidas no forno de uma espécie de ocultismo pós-moderno.
A “confluência entre História e Mito” alardeada por Ernesto Araújo, o combate sem trincheiras à “revolução cultural gramsciana” pregado por Ricardo Vélez são piadas que saltaram de túneis escuros das redes sociais para o aparelho de Estado. Uma festa estranha, com gente esquisita — nisso transformaram-se o Itamaraty e o Ministério da Educação. A Ursal passeia entre nós. Deus não é brasileiro.
El País: Olavo de Carvalho, o Brasil só fala dele
Ignorado nas universidades do país e tido como figura folclórica da direita nas redes sociais, filósofo sai da obscuridade ao indicar dois ministros do novo Governo
O homem por trás da indicação de dois dos mais importantes ministros do governo Jair Bolsonaro não é militar nem político. Não lidera qualquer bancada de deputados na Câmara nem é porta-voz de uma frente parlamentar temática que apoie o capitão reformado do Exército, como a Evangélica ou a Agropecuária. Aos 71 anos, Olavo de Carvalho vive desde 2005 nos Estados Unidos, de onde ministra cursos de Filosofia que são transmitidas por vídeos na Internet. Até pouco tempo atrás era tratado como uma espécie de caricatura da extrema direita e do neoconservadorismo no Brasil, mas algo definitivamente mudou com a eleição de Bolsonaro para a presidência da República. Não só descobriu-se que Carvalho é o guru intelectual de alguns dos mais próximos assessores do presidente eleito, como ele mesmo foi o padrinho direto das nomeações de Ernesto Araújo para comandar o Ministério de Relações Exteriores e de Ricardo Vélez Rodríguez para o Ministério da Educação (MEC).
A chamada nova direita que chegou ao poder pelas mãos de Bolsonaro, que mistura a defesa do liberalismo econômico com o conservadorismo moral, tem no filósofo brasileiro Olavo de Carvalho uma clara referência intelectual. Tanto Flávio Bolsonaro, senador eleito pelo Rio de Janeiro e filho do futuro presidente do Brasil, quanto seu irmão Eduardo já foram a Richmond, na Virgínia, e participaram de transmissões no YouTube ao lado dele. A lista de seguidores não para por aí: também estão entre os discípulos de Carvalho personagens como o blogueiro de direita Felipe Moura Brasil e a deputada federal eleita por São Paulo Joyce Hasselmann, do mesmo partido do presidente eleito.
"Muito embora não seja um acadêmico, o Olavo de Carvalho é um intelectual de influência considerável na opinião pública brasileira. E já exerce uma atividade intelectual há várias décadas, primeiro como articulista em grandes jornais e depois nas redes sociais, onde ele difunde o seu pensamento e encontra os seus aderentes", explica Alvaro Bianchi, professor do Departamento de Ciência Política da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Apesar de ressalvar que "há pouca verdade" na narrativa filosófica apresentada por Carvalho, Bianchi explica que ela se mostra persuasiva e eficaz por abordar "os medos e as inseguranças do homem comum perante as transformações do mundo contemporâneo."
Além de filósofo, Olavo de Carvalho é escritor —são 18 livros, segundo seu perfil no Twitter—, conferencista e jornalista. Ele se apresenta como um intelectual (venerado por seu apoiadores como a mente que se rebelou contra um suposto monopólio do pensamento de esquerda na imprensa e na academia brasileira), mas construiu sua carreira sempre de costas para os círculos universitários (não tem, por exemplo, um título acadêmico formal e boa parte do seu trabalho concentra-se justamente em desqualificar a academia).
O desprezo parece ser recíproco nas faculdades brasileiras, onde a obra de Carvalho é praticamente ignorada ou tratada como algo sem valor científico. "Na minha geração e entre os meus colegas ninguém leu Olavo de Carvalho. [Ele] é absolutamente irrelevante do ponto de vista filosófico", afirma José Arthur Giannoti, professor emérito da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo (USP) e membro fundador do Centro Brasileiro de Análise e Plenajemento (Cebrap). "Não tenho nenhum interesse em ler o Olavo de Carvalho, a não ser [para] explicar como é que a nova direita o tenha como um ídolo e que tanta gente no Brasil seja influenciado por ele", acrescenta.
A imagem de outsider entre a intelectualidade brasileira só é reforçada pelo seu passado pouco ortodoxo. Na década de 80 deu cursos de astrologia e, por aqueles tempos, chegou a fazer parte de uma confraria mística muçulmana (tariqa). Hoje denuncia em vídeos o que considera o perigo da islamização do Ocidente e o abandono de valores judaico-cristãos.
O sucesso que Olavo de Carvalho atingiu na nova direita brasileira, ao ponto de converter-se num fenômeno editorial e alcançar o status de um verdadeiro guru, se deve principalmente à sua militância online ao longo dos últimos anos. Ele mantém um perfil no Facebook que conta com mais de 543.000 seguidores. Para além disso, disponibiliza em sua web oficial um seminário de filosofia —"o único que pode ajudar você a praticar a filosofia em vez de apenas repetir o que outras pessoas, ilustres o quanto se queira, disseram a respeito dela"— com videoaulas e cuja mensalidade custa 60 reais.
Os temas dos vídeos publicados por Carvalho na Internet são vários. Já definiu o ex-presidente Lula como "líder supremo do comunismo latino-americano"; considera o Foro de São Paulo, fórum criado nos anos 90 que reúne partidos de esquerda da América Latina, "a maior organização política que já existiu no continente"; classificou o fascismo de "variante do movimento socialistas" e afirmou que "ideologia de gênero, abortismo e gayzismo" são parte de uma "revolução cultural" coordenada por esquerdistas.
Nas publicações, não raro as suas análises se misturam com teorias conspiratórias de procedência duvidosa —ou em alguns casos comprovadamente falsas. Em um texto de novembro de 2008 intitulado Milagres da fé obâmica, por exemplo, Olavo de Carvalho descreve Barack Obama, então o presidenciável democrata prestes a arrematar a Casa Branca, como um político "apoiado entusiasticamente pela Al-Qaeda, pelo Hamas, pela Organização de Libertação Palestina, pelo presidente iraniano [Mahmoud] Ahmadinejad, por Muammar Khadafi, por Fidel Castro, por Hugo Chávez e por todas as forças anti-americanas, pró-comunistas e pró-terroristas do mundo, sem nenhuma exceção visível."
Num episódio mais recente, já na última campanha presidencial brasileira, Carvalho publicou em suas redes sociais uma mensagem na qual afirmava que Fernando Haddad, candidato do PT que acabou derrotado, fez em um livro apologia à prática do incesto. O conteúdo da postagem, posteriormente apagada por Carvalho, foi considerado mentiroso por sites de checagem de informações no Brasil.
Para Esther Solano, professora da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e organizadora do livro Ódio como política (editora Boitempo), assim como ocorreu no caso de Bolsonaro, a força de Olavo de Carvalho no movimento neoconservador brasileiro só pode ser entendido a partir do fenômeno das redes sociais. "[Ele] é a típica pessoa que soube se capitalizar com base nesse novo formato de se comunicar: fácil, rápido, polêmico e combativo", afirma. "Ele sabe se comunicar com base em frases polêmicas, conteúdos curtos, mensagens fáceis e ataques. É a forma comunicativa do best seller, daquele palestrante que tem um conteúdo muito simples e mastigado. Uma coisa fácil, polêmica e que faz sucesso."
Guerra cultural
Se em seus textos e vídeos Olavo de Carvalho mostra-se como alguém que transita com naturalidade entre diversos temas filosóficos e da atualidade, um assunto parece merecer sua atenção especial. Trata-se da ideia de "marxismo cultural", teoria conspiratória difundida em diversos círculos de extrema direita ao redor do mundo. Basicamente, ela se apropria de textos do filósofo marxista italiano Antonio Gramsci para atacar uma suposta infiltração do pensamento comunista em diversas instituições culturais —de escolas e universidades à própria imprensa— com o fim de destruir valores civilizatórios.
Carvalho trata de adaptar essa teoria ao contexto brasileiro. Há gravações na Internet nas quais ele diz que essa ação coordenada de avanço da esquerda sobre as instituições brasileiras ocorreu a partir do golpe militar de 1964. "Na estratégia do [Antonio] Gramsci [filósofo marxista italiano] a maior parte da militância envolvida não saía pregando ideias comunistas. Ao contrário, [ela] atacava pontos específicos que representavam pilares da civilização, como a própria ideia de família, moral sexual e as bases do direito penal e civil", diz Carvalho em um dos seus vídeos. "Gradativamente eles [comunistas] foram ocupando todos os espaços. Para se fazer uma ideia de como levaram isso a sério, no tempo do governo militar a esquerda já dominava a imprensa brasileira inteira. Você não tinha um jornal cujo diretor de redação não fosse comunista", conclui. A teoria propagada por Carvalho pode ter pouco ou nenhum amparo entre historiadores e especialistas, mas encontra solo fértil no neoconservadorismo brasileiro.
De acordo com Bianchi, da Unicamp, Carvalho "reciclou" para o contexto brasileiro "de modo bastante eficaz" um assunto que começou a ser discutido nos Estados Unidos na década de 70. "A ideia de um marxismo cultural que estaria ameaçando os valores e as tradições intelectuais das nossas sociedades é um tema recorrente no debate político norte-americano já há bastante tempo", diz o professor. Para Bianchi, que estuda justamente a obra de Gramsci, não há dúvidas de que as teses apresentadas por Carvalho nessa área são teorias conspiratórias. "Ele [Olavo de Carvalho] atribui um peso ao marxismo nas universidades brasileiras que simplesmente não existe", pontua.
A ascensão de Bolsonaro tirou Olavo de Carvalho das sombras e o colocou como uma das figuras centrais para compreender o que pensam tanto o capitão reformado do Exército quanto algumas pessoas do seu círculo de confiança. Carvalho tem sido alvo de elogios do secretário de relações internacionais do partido do presidente eleito (PSL), Filipe Martins. "O imaginário do jornalista brasileiro médio não é capaz de abarcar um homem de pensamento, dedicado à vida interior e à construção de uma vida bem examinada, como Olavo de Carvalho", publicou Martins recentemente no Twitter.
Para além disso, Carvalho já provou todo o alcance da sua influência sobre Bolsonaro. Na formação do novo governo, o filósofo conseguiu emplacar dois nomes na Esplanada dos Ministérios, justamente os de perfil mais ideológico. Ernesto Araújo, por exemplo, é um diplomata que, à frente das Relações Exteriores, promete combater o "alarmismo climático" e as "pautas abortistas e anticristãs em foros multilaterais", segundo um artigo que ele publicou na semana passada no jornal Gazeta do Povo. Os dias em que Carvalho era retratado apenas como um excêntrico agitador de direita nas redes sociais, sem maiores consequências, ficaram para atrás.
Hamilton Garcia: A democracia na furna da onça
O risco à democracia num país é comumente atribuído ao comportamento dos agentes políticos e seu grau de comprometimento com suas práticas e instituições, e à resistência delas às crises. Por este prisma, os riscos podem ser bem menores do que realmente são, sobretudo quando não se tem em conta a natureza das crises que ela enfrenta.
Em nosso caso, as crises vividas desde 1988 (impeachments, megaesquemas de corrupção, etc.), foram todas contornadas, mas seu legado foi, até aqui, irrelevante em termos de modificações institucionais/culturais efetivas, capazes de evitar a repetição dos problemas.
De outro lado, tanto o extremismo petista, quanto o bolsonarista, foram tolhidos, até aqui, pelo resultado das urnas: no primeiro caso, por uma derrota que isolou a esquerda nas regiões periféricas do país, enquanto, no segundo, a vitória obrigou à formação de uma coalizão de governo com forças não extremistas.
Não obstante estes sinais positivos, o problema das interpretações funcionalistas, seja de viés voluntarista ou institucionalista, é que elas não costumam dar conta dos problemas estruturais de nossa dinâmica política, em especial aqueles que historicamente vinculam a modernização a uma ação política por cima, por meio de um Estado de compromisso que articula e seleciona interesses presentes na sociedade, quer do capital ou do trabalho, em benefício de elites neopatrimonialmente orientadas – cuja degradação evolutiva desembocou na "furna da onça”, paradigma cabralino (1995-2018) do uso da corrupção como instrumento de emulação da harmonia de poderes.
À partir desta perspectiva histórico-estrutural, podemos entender melhor como nossa República foi a expressão de um pacto de poder onde o "estamento burocrático” (Faoro) – quer sob a hegemonia agrarista (República Velha, 1889-1930), quer industrialista (República Nova em diante, 1930-1989) e financista (Nova República, 1990-2018[i]) – comprimia e arbitrava a disputa política em prol de seus interesses vitais, como elite político-burocrática, e de suas conexões com as classes fundamentais (dominantes e dominadas), de modo tal que nem as semirrupturas do Estado Novo e da Contrarrevolução de 1964 foram capazes de superá-la, em meio à conformação de novos blocos históricos, depois de esgotados os instrumentos de subordinação explicitamente autoritária da sociedade civil ao Estado.
Desnecessário dizer que tal presidencialismo de cooptação, de inspiração liberal, foi, desde sempre, responsável tanto pela manutenção do déficit crônico de democracia e estabilidade ao longo da República (vide, A democratização do Estado), como de racionalidade burocrática – à exceção dos períodos de semirrupturas mencionados –, visto seu compromisso figadal com os privilégios corporativos encerrados em sua própria constituição de classe e o modo como tendia, e tende, a traduzir o interesse como privilégio – o posto do imperativo funcional de qualquer sociedade moderna.
Por isso, ela foi e segue sendo fator de instabilidade política, não só por tirar proveito das distorções institucionais que dificultam a representação política (vide, Accountability e Reforma Política), mas porque administra seu domínio do Estado e, através dele, sobre a sociedade, por meio do uso abusivo de recursos públicos (orçamentários e institucionais) – seja pela corrupção, pelo desvio de função ou perversão das políticas públicas – que produzem falsos consensos ao custo do desperdício do crescimento econômico, obstaculizando o verdadeiro desenvolvimento.
Não foi por outro motivo que o modelo neopatrimonial de dominação entrou em crise seguidamente quando diante de crises recessivo-inflacionárias, levando à radicalizações políticas, como em 1930 e 1964, quando a capacidade estatal de amortecimento dos conflitos sociais, via cooptação, diminuiu drasticamente.
É precisamente isto que vivenciamos agora, com o colapso da direção social-patrimonial sobre o bloco histórico (vide, Os perigos que se avizinham e o antídoto e O Brasil que emerge das urnas), quando a brutal recessão do período petista (Dilma) se encontra com o esgotamento ético e fiscal do modelo de inclusão social-financista, com níveis inéditos de consciência política advindos da escolarização associada aos novos meios de mobilização/informação – que a direita soube utilizar de maneira eficiente à partir de 2015 (movimento pró-impeachment).
A resistência da ordem patrimonialista à mudança apontada pelas urnas, que se ensaia pela aliança do lulopetismo com o emedebismo-centrismo, já começou bem antes da posse do novo governo, na forma de medidas legislativas (“pautas-bomba"), como os aumentos salariais das corporações estatais – com apoio maciço dos tucanos – ao arrepio da situação financeira do Estado, e a volta da ameaça de indulto natalino aos corruptos, acrescida da proposta legislativa de abrandamento das penalidades judiciais.
Tais medidas mostram o potencial explosivo da relação entre um Presidente eleito por uma pauta de ruptura com tal modelo e a capacidade deste de reagir, inclusive se travestindo de oposição legítima, ameaçando bloquear o exercício do governo eleito caso este impeça a apropriação espúria do Estado federal por seus interesses particularistas.
O imbroglio, que pode ser evitado pelo isolamento, no novo Congresso, destes segmentos presentes na situação e na oposição, tende a se defrontar com uma situação inédita, extremamente desvantajosa para a tradição derrotada: a de ter que enfrentar um Presidente que dispõe não apenas de apoio parlamentar, mas, sobretudo, de uma sociedade civil renovada à direita, com potencial para expressar a vontade geral recém-saída das urnas, além de uma ligação inédita e orgânica com as forças militares – fortemente representadas no novo governo.
A possibilidade de embates radicais, verticais e horizontais, não podendo ser descartada, deve culminar em algum pacto de governabilidade que incluiria a reforma política em troca de espaços de poder. Todavia, não se pode desprezar a ocorrência de um impasse que force a reforma política por meio de referendo ou plebiscito – cuja convocação é privativa do Congresso e depende de maioria simples, presente mais da metade dos parlamentares – e, no interregno, abra caminho à governabilidade por meio de outras medidas excepcionais com o apoio das bancadas parlamentares, contra as lideranças da Câmara e do Senado, a partir da pressão social.
A desarticulação de um eventual bloqueio espúrio da bancada neopatrimonial, no Congresso, contra o Executivo, é decisivo não só para a solução democrática do governo recém-eleito, mas para o enfrentamento dos gargalos que impedem o desenvolvimento econômico-social e o próprio aperfeiçoamento do sistema representativo, sem a qual a reiterada vontade de respeito à Constituição corre o risco de virar letra-morta
Nenhuma constituição, em abstrato, pode garantir o bom resultado de um sistema democrático. Como alertava Max Weber[ii], ainda antes do fim da I Guerra (1914-1918), somente a articulação efetiva entre Estado e sociedade, por meio de partidos socialmente sustentáveis que disputem sua direção de modo a produzir consenso verdadeiro, por meio de interesses bem constituídos – derivação autêntica de organizações livres – e seus respectivos programas, com as mais diversas inspirações ideológicas – mas jamais reduzidos a anteparo de práticas fraudulentas e exclusivistas –, pode garantir a sustentação de governos legítimos, capazes de absorver os inevitáveis choques provenientes das contradições existentes nas sociedades modernas.o recém-eleito, mas para o enfrentamento dos gargalos que impedem o desenvolvimento econômico-social e o próprio aperfeiçoamento do sistema representativo, sem a qual a reiterada vontade de respeito à Constituição corre o risco de virar letra-morta.
Nosso caminho até lá poderá ser tortuoso, como atesta a eleição do Capitão, mas é preciso que seja efetivo em seu objetivo primordial, independentemente das conotações ideológicas em disputa – cujos corolários indesejáveis poderão ser purgados por um sistema efetivamente representativo.
Notas
[i] Que se inaugura politicamente com a volta dos civis ao poder (Tancredo-Sarney) em 1985, mas cuja expressão acabada é o Bloco Histórico liberal-financista inaugurado por Collor (1990-1992), e depois estabilizado por FHC (1995-2002) e alargado por LILS (2003-2016).
[ii] Vide, Parlamentarismo e Governo numa Alemanha Reconstruída (uma contribuição à crítica política do funcionalismo e da política partidária), in. Os Pensadores, ed. Nova Abril/SP, 1985, passim.
[iii] Universidade Estadual do Norte-Fluminense (Darcy Ribeiro).
Bolívar Lamounier: Que devemos esperar do governo Bolsonaro?
A grande agenda, a dos problemas que vamos ter de enfrentar, não deu o ar da sua graça
A boa notícia é que a eleição acabou, desanuviando um pouco a poluição raivosa que pairava no ar e impedindo o prosseguimento das nefastas políticas e práticas protagonizadas pelo PT durante quatro mandatos consecutivos. A notícia ruim – ou mais ou menos ruim – é que as prioridades do governo Bolsonaro só agora começaram a ser de fato definidas.
Durante a campanha, como não podia deixar de ser, a única coisa séria levada aos ouvidos dos eleitores foi o imperativo do ajuste fiscal e, consequentemente, da reforma da Previdência. Falou-se também do indispensável combate ao crime, mas quanto a essa questão há um óbvio descasamento entre os quatro anos do mandato presidencial e os 20 anos ou mais de que necessitaremos para chegar a soluções sólidas e abrangentes. É, pois, perfeitamente razoável afirmar que a grande agenda do País – os grandes problemas que teremos de enfrentar no médio prazo – não deu o ar de sua graça.
O relativo otimismo que podemos sustentar está, pois, ancorado nos dramatis personae, quero dizer, na nomeação de Sergio Moro para um Ministério da Justiça expandido para incluir a magna questão da segurança pública e na equipe econômica, comandada por Paulo Guedes. Sobre Moro nada há a acrescentar; não fora sua firme atuação na Lava Jato, ainda teríamos apenas uma pálida ideia da dimensão da corrupção no Brasil. Paulo Guedes, diplomado por Chicago, pertence ao primeiro time dos economistas brasileiros e vem há muitos anos clamando por uma reforma liberal, o que no momento significa prioridade para o ajuste fiscal e alguma indicação clara no tocante à privatização.
No lado negativo da balança, penso que alguns membros do novo governo estão se precipitando sobre questões que no momento não requerem nenhum movimento de nossa parte, e que podem nos custar caro. O caso óbvio é a mudança de nossa embaixada em Israel para Jerusalém. Refletindo um pouco mais, o próprio presidente Jair Bolsonaro e o futuro ministro do Exterior concordarão que não devemos comprar brigas que não nos dizem respeito. O mesmo se deve dizer sobre um “alinhamento” mais estreito com os Estados Unidos na arena internacional. Salta aos olhos que a vocação brasileira é a de um global player, um protagonista global, papel para o qual contamos com todos os recursos necessários, desde logo uma base econômica diversificada e potencialmente robusta.
A área para a qual desejava chamar a atenção é, porém, a da educação, que avulta por larga margem sobre quase todas as outras. Ao ministro nomeado, Ricardo Vélez Rodríguez, por certo não faltam credenciais. É um sociólogo competente e um respeitado professor universitário. Não me consta que tenha em algum momento se concentrado sobre os problemas do sistema educacional brasileiro. Alguém poderá redarguir que nossas mazelas nessa área são óbvias, perceptíveis a olho nu. Eis aí uma noção equivocada. As mazelas – quero dizer os maus resultados do sistema – são de fato evidentes, mas a trama das causas e dos mecanismos que os engendram não o são. A vantagem, no caso, é que o dr. Vélez Rodríguez, com sua extensa experiência acadêmica, irá não só se debruçar sobre a matéria, mas ouvir muito e, por sorte, o Brasil dispõe de pelo menos uma dezena de especialistas de grande renome internacional. Se o ministro e meus eventuais leitores me permitem um palpite, direi que o fundamental é compreender a dimensão e a urgência da reforma necessária. Atrevo-me até a afirmar que “reforma” não é a palavra adequada. Na educação, precisamos é de uma verdadeira revolução, que abranja e chacoalhe de alto a baixo o atual o sistema em seus aspectos organizacionais e pedagógicos.
Em artigo publicado na semana passada neste jornal, intitulado O teatro principal, William Waack tocou num ponto sumamente importante: a necessidade de o novo governo não dispersar esforços. Concordo em número, gênero e grau. À parte a educação, à qual me referi no parágrafo anterior, o desafio a enfrentar é o ajuste fiscal, aí incluída a indispensável reforma da Previdência. Mas não vejo como concluir meu argumento sem me referir à questão política propriamente dita e, portanto, à reforma política que cedo ou tarde teremos de fazer. O quatriênio Bolsonaro terá de ser uma freada de arrumação, a reorganização da casa que o tsunami Dilma Rousseff tornou imperativa. Mas tenho a mais plena convicção de que o Brasil não atingirá a velocidade de que necessita no que tange ao crescimento econômico e à redistribuição da renda com o sistema político vigente.
Antigamente, quando a esquerda lia, pelo menos Marx ela lia, o que não deixava de ser uma base razoável. Dessa leitura ela extraía duas convicções passavelmente racionais. Primeiro, que a infraestrutura (ou seja, a base econômica) determinava a superestrutura (ou seja, as ideologias, as regras jurídicas, etc.). Segundo, a de que, de tempos em tempos, a infraestrutura (também chamada de “forças produtivas”) começava a ser tolhida, impedida de se expandir, pela superestrutura (também chamada de “relações de produção”). Enquanto tal restrição perdurasse, a sociedade acumularia tensões cada vez mais graves, que a certa altura resultariam num período de revolução social. Nessa visão, o sistema político da sociedade era de certa forma passivo, um espectador idiota que cedo ou tarde seria levado de roldão pela explosão das forças produtivas.
Qualquer que seja o mérito da tese de Marx em escala mundial, ao Brasil ela me parece decididamente inaplicável. Nossas forças produtivas estão há muito tolhidas por um sistema político sustentado por uma das piores combinações que a História inventou: o Estado patrimonialista, o famigerado “presidencialismo de coalizão” e o voraz corporativismo que permeia de alto a baixo a organização do poder nacional.
*Bolívar Lamounier é cientista político, sócio-diretor da Augurium Consultoria, membro das Academias Paulista de Letras e Brasileira de Ciências, é autor do livro ‘Liberais e antiliberais’ (Companhia das Letras, 2016)
Cristiane Barbieri: No país da força-tarefa
No fim da semana passada, Sérgio Moro, futuro ministro da Justiça, anunciou a intenção de montar uma espécie de Plano Real da Segurança Pública. Foi a primeira vez que se formalizou, em palavras, o espírito de uma época que elegeu Jair Bolsonaro (PSL). Do mesmo modo que o presidente Itamar Franco e Fernando Henrique Cardoso, no Ministério da Fazenda, conseguiram estabilizar a inflação, o discurso de Bolsonaro e de Moro é o de um time que quer ser visto como responsável por colocar a criminalidade no passado.
Desde as revelações da Operação Lava-Jato, segurança e corrupção se tornaram o inimigo a ser combatido, segundo pesquisas de opinião pública. Até pelo perfil de Bolsonaro, essa deve se tornar a principal política de Estado dos próximos anos, dizem especialistas.
No xadrez do poder, o vento foi sentido há tempos e já tem mexido peças. Tanto que a plenária de encerramento das atividades do grupo que deu origem às investigações da Lava-Jato, a Estratégia Nacional de Combate à Corrupção e ao Crime Organizado (Enccla), um número inédito de autoridades de primeiro escalão esteve presente.
"Queria estar aí", disse o próprio Moro, o filho mais ilustre da Enccla, num vídeo exibido na abertura do evento, que ocorreu em Foz do Iguaçu, entre os dias 19 e 22. O futuro ministro não compareceu, tanto pela agenda de transição quanto para não atropelar o atual ministro da Justiça, Torquato Jardim, que também esteve lá. Mas mandou seu recado: "Nós certamente vamos conversar no futuro. Tenho a pretensão de fortalecer a Enccla.
Vamos iniciar a gestão do ministério com uma forte agenda anticorrupção e anticrime organizado e quero contar com a contribuição contínua e perene da Enccla, que é uma iniciativa bem-sucedida e continuará a ser uma política não de governo, mas de Estado".
O discurso das outras autoridades usou o mesmo diapasão. "É bom estar de volta!", disse Dias Toffoli, presidente do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), em sua fala no encerramento da plenária, ao lembrar da primeira reunião da Enccla, que ocorreu numa pousada em Pirenópolis (GO), onde ele esteve presente. Fez questão de cumprimentar ao microfone rostos conhecidos entre os 156 participantes.
Estavam lá vários membros da futura equipe de Moro. Em 2009, quando era o advogado-geral da União, Toffoli criou o grupo permanente do órgão na Enccla.
Pouco antes, Raquel Dodge, procuradora-geral da República, enfatizou iniciativas que estava tomando pessoalmente para ajudar o tema a avançar. Outras autoridades se manifestaram no mesmo sentido. "Faltava o apoio político e o envolvimento de fato do Poder Executivo nas ações da Enccla", afirmou Fausto De Sanctis, juiz do Tribunal Regional Federal da 3ª Região (TRF-3), enquanto esperava o início do evento. "Tanto do Executivo quanto do Legislativo, no sentido de dar uma mensagem à população de que os poderes estão irmanados para o combate e a prevenção da corrupção, que atingiu níveis absurdos no Brasil. Era um ponto de indagação."
Agora, a resposta foi dada, com mais força e poder. A Enccla está para a segurança como a Universidade de Chicago, templo liberal, está para Paulo Guedes, futuro ministro da Economia. "Moro é um de nós", disse um servidor federal durante o encontro. Ao que outro completou: "Ele tem conhecimento de causa: não é só um palpiteiro". Tanto é assim que o futuro ministro confiou a Érika Marena o comando do Departamento de Recuperação de Ativos e Cooperação Jurídica Internacional (DRCI), do Ministério da Justiça, que coordena a Enccla. Érika não só coordenou o início da Lava-Jato, como batizou a operação.
Com o sucesso de muitas de suas ações, e a entrada da pauta no coração do próximo governo, a demanda pela participação na Enccla explodiu. "Chegou num ponto em que a gente percebeu que não tem como acomodar 27 entes federativos, mais a União", disse Sílvia Amélia Fonseca de Oliveira, coordenadora-geral de articulação institucional do DRCI. "Como, numa estratégia nacional, precisamos da participação dos órgãos estaduais, abrimos espaço para movimentos regionais que de certa maneira espelham a Enccla regionalmente."
Não se tem notícia de iniciativa que funcione em modelo semelhante à Enccla em outro país. Ao longo dos últimos 16 anos, servidores altamente qualificados e representantes da iniciativa privada de áreas correlatas têm se reunido ano após ano, a cada dois ou três meses. A partir da identificação de problemas específicos, vão atrás de soluções para fechar o cerco num perene enxugamento de gelo contra a lavagem de dinheiro e a corrupção.
Foram centenas de iniciativas. Antes da Enccla, por exemplo, caso fosse necessário rastrear uma movimentação financeira suspeita, a Justiça enviava ofícios a cada banco e esperava meses por dezenas de respostas, que apenas identificavam a existência ou não da conta. Numa das ações da Enccla, capitaneada pelo Banco Central (BC), foi criado o Cadastro de Correntistas Unificados (CCS), que mostra instantaneamente o relacionamento de cada cidadão com o sistema financeiro, nos últimos cinco anos, por meio do seu CPF.
Nas reuniões seguintes, foi dada atenção à falta de padronização dos relatórios recebidos dos bancos, bem como de sistemas de tecnologia que conversassem entre si. Criou-se então o Sistema de Investigação de Movimentações Bancárias (Simba), pelo qual passou a ocorrer o tráfego on-line de dados bancários entre instituições financeiras e órgãos públicos, após autorização judicial.
Proposta na primeira edição da Enccla, a própria Lei de Lavagem de Dinheiro, aprovada apenas em 2012, tornou mais rigorosa as punições contra esse tipo de crime. Até então, a lavagem só era tipificada se ocorresse a partir de determinados delitos, como tráfico de drogas, de armas ou sequestro. A partir de sua publicação, tornou-se possível classificar como lavagem o dinheiro proveniente de qualquer atividade ilícita. Penas maiores também foram impostas. Agora, a Enccla já trabalha em sua revisão.
Iniciativa do então ministro da Justiça Márcio Thomaz Bastos (1935-2014), a estratégia nasceu em 2003 com dois objetivos: integrar diferentes órgãos públicos federais no combate à lavagem de dinheiro e atender a acordos internacionais sobre o tema dos quais o Brasil é signatário e que ganharam importância e pressão depois do 11 de Setembro. Era preciso tentar eliminar o oxigênio do crime organizado, nas mais diferentes esferas.
"A primeira reunião foi muito tensa", disse Ricardo Liáo, secretário-executivo do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) e decano de todas as Encclas. "Havia um núcleo duro de entidades federais e era um apontando o dedo para o outro: 'Eu não faço porque você não entrega sua parte'."
Marcio Thomaz Bastos fazia palestras à época mostrando cartazes de eventos dos vários órgãos federais sobre os mesmos assuntos, com os mesmos palestrantes, acontecendo quase que simultaneamente: ninguém se falava, ninguém se conhecia, ninguém sabia os mandatos dos vários órgãos e instituições públicas ou seus limites de atuação. A animosidade era tamanha que o Ministério Público ameaçava com frequência processar os órgãos irmãos, e não os criminosos.
Vestidos com informalidade, não há distinção pelo peso dos cargos dos participantes de diversos órgãos. Nos crachás, o que aparece com facilidade são os órgãos para os quais trabalham. Na hora de falar, levantam um prisma com a sigla de sua entidade. Não há chefes, nem hierarquias na Enccla. Apenas a coordenação do DRCI, que agenda e acompanha as reuniões dos grupos de trabalho.
Segundo os participantes do evento, também não há ideologia ou influências político-partidárias nas decisões. Todas são tomadas por consenso: se algum órgão explicita com clareza os motivos pelos quais discorda, a ação não é levada adiante. Tanto que não é incomum, durante os intervalos das reuniões de trabalho, os participantes saírem da sala para aparar arestas, depois de algumas caneladas.
"Aqui é um lugar de convergência: colocam-se as pessoas certas na mesma sala para resolver um problema específico", afirmou Gerson Schaan, coordenador-geral de pesquisa e investigação da Receita. "Sem dúvida nenhuma, isso aproxima profissionais e órgãos, com um efeito multiplicador ao longo dos anos, conforme os participantes vão entrando e saindo."
No meio do ano, o Ministério Público convidou, por meio da Enccla, funcionários do Coaf para participar de uma capacitação, e é exatamente esse o termo legal, concedido por um delator da Lava-Jato. O criminoso ensinaria aos funcionários do governo como é possível aparecer tanto dinheiro vivo nas operações, mesmo com os controles sobre os bancos.
Os servidores descobriram um mundo paralelo. Entre outras coisas, um comércio de dinheiro vivo, mantido na base de ameaças e coação, feito sobretudo com lotéricas. Os bandidos compram o dinheiro vivo de lojas, em troca do transporte. Ficam com o papel e depositam o valor em cheques ou fazem transferências. Esfriam, assim, o dinheiro. Se recusarem, as lotéricas são ameaçadas de serem assaltadas, no transporte dos valores ao banco.
A intenção é tirar a rastreabilidade: seguir o dinheiro é o mantra principal nas investigações de combate ao crime organizado e à corrupção. "Era um dinheiro que não estava no sistema porque não saiu dos bancos", disse Antonio Ferreira, presidente do Coaf. "É como se existisse um sistema bancário paralelo, movido pela informalidade, que é altíssima no Brasil."
Essa oitiva serviu como parte do trabalho para uma das 11 ações da última Enccla: a proposta de restringir o uso de dinheiro em espécie. Neste primeiro ano, foi feita uma ampla pesquisa sobre o tema em outros países, os projetos de leis existentes no Brasil e eventuais limites constitucionais. Em boa parte da Europa, por exemplo, compras em dinheiro vivo são limitadas entre € 2,5 mil e € 3 mil.
A ação prossegue no ano que vem, quando mais de 20 entidades estudarão os impactos que restrição semelhante poderá causar na economia brasileira, bem como determinar o limite do valor imposto para a aquisição de bens com dinheiro vivo e punições a quem descumpra a determinação. Se avançar, a restrição acontecerá para aquisições de mercadoria em dinheiro e não para o porte, a guarda e o transporte das notas.
Neste ano, também foram desenvolvidas ações como a elaboração de um plano de diretrizes no combate à corrupção, medidas para combate de fraudes na saúde pública, contra a corrupção privada, de compartilhamento de notas fiscais emitidos por toda a administração pública. "Aqui é o lugar de jogar a semente e esperar brotar", afirmou Schaan, da Receita. "Somos técnicos e muitas vezes encontramos caminhos que devem passar pela política, como a aprovação de projetos de lei, e aí o tempo é outro."
Na última edição, foram convidados movimentos regionais à plenária, ao mesmo tempo em que alguns órgãos estaduais, como o MP/RN ou a Procuradoria-Geral da Bahia, continuam tendo assento nos debates. "Ainda é um embrião de como trabalharemos, já que estimulamos a participação regional há pelo menos cinco anos", afirmou Sílvia. "Mas a ideia é trazer as representações, não só dos órgãos estaduais, mas dos federais representados nos Estados."
Seriam espécies de mini-Encclas, levando as práticas, conhecimentos e trazendo demandas para a nave-mãe.
Como ocorre em outros Estados, Rodrigo Lubiano Zanotti, coordenador do Fórum de Combate à Corrupção do Espírito Santo (Focco-ES), sentia na prática a falta de uma estratégia regional semelhante à federal. "O que tenho para avaliar uma licitação estadual ou municipal são processos administrativos e notas fiscais que, via de regra, estão corretos no papel", afirmou Zanotti, que também é auditor do Tribunal de Contas daquele Estado. "Quando as diferentes instituições somam armas, é como se montássemos um quebra-cabeça: muitas vezes uma investigação feita pelo MP pode ser completada por dados desses papéis que aparentemente estão corretos e vice-versa, criando uma ação penal com provas robustas."
Criado há dois anos, o Focco-ES, como ocorreu em nível federal, está sendo permeado por tecnologia e inteligência artificial. Num dos exemplos, um banco de dados de notas fiscais eletrônicas evidenciará valores de mercadorias negociadas em determinadas áreas do Estado. "Se vai haver uma licitação de luvas cirúrgicas num município, por exemplo, é informado o preço médio praticado pelo mercado daquela região, antes do pregão acontecer", disse Zanotti. "O processo sequer é travado porque antes do lançamento já há uma referência de partida."
O sistema de inteligência artificial também deverá alertar sobre fugas de padrões de consumo médio de combustível, peças de manutenção ou qualquer outro item que se queira. Segundo ele, há cinco anos as informações só chegavam de três a cinco meses depois de feitas as licitações. "O Brasil é um país de poucos controles e uma corrupção fora de controle", disse. "A sociedade está reclamando, os Estados estão quebrados e chegou a hora de acelerar essa implantação."
Outra ação que mereceu destaque é o aperfeiçoamento das polícias civis na investigação de lavagem de dinheiro. Na linha do que Moro chama de "descapitalização" do crime organizado, a ideia é fazer com que a Polícia Civil trilhe o mesmo caminho percorrido pela Federal, há cerca de dez anos. "Quando se fala em lavagem de dinheiro, imediatamente se pensa em corrupção", disse George Couto, diretor do Departamento de Inteligência e Gestão da Informação (DGI) da Polícia Civil-DF e representante do Conselho Nacional dos Chefes de Polícia Civil (CONCPC) na Enccla. "Só que, quando se descapitaliza uma organização criminosa, impede-se muitos outros crimes, como latrocínios, tráfico de drogas, roubos a banco, e pode-se controlar, inclusive, o processo epidêmico de crimes contra a vida que o país tem vivido."
De acordo com ele, a intenção é buscar uma mudança de cultura de longo prazo, já que as polícias civis têm tradição de investigar crimes pontuais, sem atacar suas causas. No primeiro ano dessa ação, foi feito um levantamento do estágio em que se encontram todas as polícias civis do país. Há desníveis gritantes, evidentemente, entre os Estados mais e menos ricos do país. Para o ano que vem, a ação será aprofundada com uma busca por fortalecer as polícias civis, dotando-as de estruturas mínimas de trabalho, bem como treinamento para investigações com mais inteligência. "A ideia é sistematizar e a lavagem de dinheiro entrar no escopo das investigações de todos os crimes", afirmou Couto.
Mas, por mais que o Estado tenha tentáculos e órgãos de controle, a grande aposta da estratégia é no engajamento da sociedade civil, para potencializar a fiscalização. "Como fazemos parte de órgãos públicos, temos mandatos muito delimitados de atuação", diz um dos participantes. "Já a sociedade civil tem um espectro maior e pode fazer tudo que não é proibido."
Uma das entidades que se apresentaram na Enccla foi o Observatório Social São José, de Santa Catarina. Ele faz parte de uma rede homônima de ONGs, presentes em mais de cem cidades, onde cidadãos dedicam gratuitamente algumas horas de seu dia para fiscalizar a aplicação de recursos públicos do Executivo e do Legislativo em seus municípios.
No caso catarinense, a articulação é feita por meio de WhatsApp, com mais de cem participantes. "Nossa recomendação é que o cidadão não fiscalize sozinho em função dos riscos", disse Jaime Luiz Klein, vice-presidente executivo do Observatório São José, que tem se destacado por ter formalizado os processos e ajudado iniciativas semelhantes a se multiplicar. Entre as regras que encontraram, estão representatividade de toda a sociedade, recursos financeiros (no caso deles, de R$ 5 mil mensais) e conhecimento dos processos públicos de licitação e contabilidade.
Com a fiscalização, os resultados logo apareceram. No primeiro ano de atuação, em 2012, a sobra do orçamento da Câmara de Vereadores de São José era praticamente inexistente, de cerca de R$ 300 mil.
No ano seguinte, com a cobrança apenas de transparência por parte do Observatório, o valor foi de R$ 4,2 milhões. Quando a iniciativa passou a fiscalizar contratos, servidores comissionados e outras possíveis fontes de desvio, metade do orçamento ficou no caixa da Câmara. "Pode parecer pouco o valor de R$ 10 milhões, mas se a metodologia se espalhar pelos 5.570 municípios do país, quanto não será possível fazer?", perguntou Klein. "E se não existisse o Observatório e o movimento cidadão fiscal, será que esse dinheiro estaria sobrando e sendo devolvido ao Poder Executivo, que pode então investir mais em segurança, saúde e educação?"
Agora, eles começam a entrar na Justiça com ações para dar transparência total à administração pública do município. Só neste ano, o Observatório levou adiante três ações diretas de inconstitucionalidade, sendo que uma delas questiona 70% dos cargos comissionados. Receberam parecer favorável do Ministério Público de Santa Catarina e, caso seja considerada procedente, a expectativa é de uma economia de R$ 20 milhões por ano.
Além de iniciativas como essa, há outras que aproveitam a escala trazida pela tecnologia, como a Operação Serenata de Amor, em que experts em tecnologia voluntários criaram um robô que analisa os gastos reembolsados pela Cota para Exercício da Atividade Parlamentar, de deputados federais e senadores. Caso encontre alguma irregularidade, Rosie, a robô, pede explicação nominalmente no Twitter. Até hoje, foram mais de 8 mil reembolsos suspeitos, que envolveram R$ 3,6 milhões e resultaram em 630 denúncias. Há agora um crowdfunding para estender o serviço aos níveis estaduais e municipais.
Em agosto, estimulada por uma das ações da Enccla de fortalecimento da rede colaborativa, o HackFest juntou 250 maratonistas que desenvolveram ideias e aplicativos voltados à participação social na política, ao controle social e ao combate à corrupção. "O combate à corrupção precisa ser feito como uma ação coletiva", disse Luciana Asper y Valdés, representante da Comissão Nacional do Ministério Público na Enccla e coordenadora de uma ação para fortalecer essas iniciativas. "Colocamos na cabeça que é um dever do Estado, mas existem frentes que se não forem feitas pela sociedade, o problema nunca será resolvido."
O clamor público em tamanha escala, porém, tem efeitos colaterais que geram preocupação. Algumas delações premiadas que resultaram em grandes escândalos não se comprovaram. Mesmo absolvidos pela Justiça, diversos denunciados tiveram vidas abaladas. Delegada da PF, a própria Érika Marena esteve à frente das investigações da Operação Ouvidos Moucos - o ex-reitor da Universidade Federal de Santa Catarina Luiz Carlos Cancellier suicidou-se dias após ter sido preso e afastado do cargo pela operação.
"Existe há muitos anos, mas de modo mais exacerbado depois da Lava-Jato, um deslocamento rumoroso da neutralidade esperada de um juiz", afirma Davi Tangerino, professor da área de direito penal da FGV Direito SP. "Manifestações públicas de associações de magistrados se posicionam há muito tempo como atores do combate ao crime, o que cria um problema sistêmico: se eles estão combatendo, quem está julgando?"
"Quando se coloca o Judiciário como um poder ativo no enfrentamento da questão de segurança pública, ele deixa de ser neutro", afirma Tangerino.
O risco é que o sistema de freios e contrapesos, em que Montesquieu (1689-1755) descreveu o poder controlando o próprio poder, com uma clara divisão na competência de cada um deles, perca um de seus prumos. "Quem desempata um conflito, quando todos os atos são políticos?", ele perguntou.
No país onde se está montando uma grande força-tarefa para marcar a gestão do próximo governo, a questão não é trivial.
Correio Braziliense: Bolsonaro quer aumentar soldo de militares
“As declarações de Bolsonaro vão na contramão dos estudos realizados pela equipe econômica, que trabalha para salvar a lei do teto de gastos”
Por Luiz Carlos Azedo, do Correio Braziliense/Coluna Nas Entrelinhas
Durante a solenidade de formatura de cadetes da Academia Militar das Agulhas Negras (Aman), em Resende (RJ), ontem, o presidente eleito, Jair Bolsonaro (PSL), anunciou que considera a possibilidade de não estabelecer um teto de gastos para as Forças Armadas em seu governo e aumentar os salários dos militares. “Nosso contingente é pequeno, mas sabemos das dificuldades que a nação atravessa. O que nós devemos é dar um salário compatível para com eles, botar em votação a medida provisória 2215; não foi votada ainda, isso é uma excrescência, é um descaso para com as Forças Armadas”, disse. Além do soldo, os militares recebem adicionais por habilitação, moradia em regiões inóspitas e desgastes físicos e gratificações por tempo de permanência extra na ativa, além de representação para comandos.
“O que devemos é dar um salário compatível para com eles (militares). A MP 2215 não foi votada ainda, isso é uma excrescência, é um descaso para com as Forças Armadas”,
(Jair Bolsonaro, presidente eleito)
A MP prevê a reestruturação da remuneração dos militares das Forças Armadas. A PEC 2215/2001 acabou com a promoção automática dos militares que passam para a reserva, o auxílio-moradia e o adicional de inatividade dos militares. As maiores remunerações dos oficiais da ativa são de almirante de esquadra, general de exército e tenente-brigadeiro do ar, que, a partir do dia primeiro de janeiro, passarão a receber R$ 14.031. Hoje, o soldo é de R$ 13.294. Guardas ou aspirantes a oficial em início de carreira hoje recebem R$ 6.625 e têm aumento previsto na tabela para R$ 6.993. “Essa questão tem sido conversada com o (economista e futuro ministro da Fazenda) Paulo Guedes. Nós temos um orçamento diminuto, mas precisamos entender que aportes para as Forças Armadas são investimento e não despesa”, disse Bolsonaro.
Durante a solenidade, 427 cadetes receberam a graduação de bacharel em ciências militares e a espada de oficial do Exército, depois de quatro anos de estudos. Bolsonaro estudou na Aman entre 1974 e 1977, sendo companheiro de turma do futuro comandante do Exército, general Edson Leal Pujol. Também participou da mesma equipe de pentatlo militar do futuro ministro da Secretaria de Governo, general Santos Cruz. Cercou-se de militares no governo, entre os quais o almirante de esquadra Bento Costa Lima Leite de Albuquerque Júnior, recém-anunciado ministro de Minas e Energia; e os generais Augusto Heleno (GSI) e Fernando Azevedo e Silva (Defesa), além do tenente-coronel da Aeronáutica Marcos Pontes (Ciência e Tecnologia), cujo soldo é ainda menor que o dos demais: de R$ 10.652,00 passará a R$ 11.250.
As declarações de Bolsonaro vão na contramão dos estudos realizados pela equipe econômica, que trabalha com a hipótese de aprovar uma Emenda Constitucional para desvincular as despesas obrigatórias das receitas da União e, assim, salvar a lei do teto de gastos, cuja revogação teria péssima repercussão no mercado financeiro. Outra medida em estudos é o desatrelamento de aposentadorias e pensões do aumento do salário-mínimo. Essas propostas, porém, enfrentarão resistência no Congresso.
Com tantos militares mandando no governo, a pressão para melhorar os salários e aumentar os investimentos nos programas de modernização das Forças Armadas também se intensificou. Os principais projetos em andamento são: submarino nuclear (Prosub), programa nuclear (reator atômico) e sistema de monitoramento de Amazônia Azul (SisGAAz), da Marinha; Sistema Integrado de Monitoramento de Fronteiras (Sisfron), nova família de blindados Guarani e o supercomputador do Sistema de Defesa Cibernética, do Exército; e o avião cargueiro argueiro KC-390, aviões de caças Gripen NG e mísseis ar-ar de 5ª geração (A-Darter).
Meio Ambiente
Questionado sobre o nome do novo ministro do Meio Ambiente, Bolsonaro não abriu o jogo, disse que todos os nomes em análise são bons, mas ainda não fez a escolha. Criticou a atuação do Ibama: “Não haverá mais aquela briga do Ministério da Agricultura e do Meio Ambiente. Eu quero defender, sou defensor do meio ambiente, mas não dessa forma xiita como acontece, não”. Entretanto, admitiu que foi multado por crime ambiental em 2012, no valor de R$ 10 mil: “Vou pagar essa multa? Vou. Mas eu sou uma prova viva do descaso, da parcialidade e do péssimo trabalho prestado por alguns fiscais do Ibama e ICMBio. Isso vai acabar”, afirmou.
Bolsonaro também falou sobre a nova política indigenista que pretende adotar: “Eu quero o bem-estar do índio, eu quero integrar o índio à sociedade. O nosso projeto para o índio é fazê-lo igual a nós. Eles têm as mesmas necessidades de nós. Agora, não podemos admitir que, via Funai, o índio não possa ter o tratamento adequado. O índio quer médico, quer dentista, quer televisão, quer internet. Ele é igualzinho a nós”, concluiu.
Ascânio Seleme: Preparando-se para o melhor
Não vai ser tarefa trivial fazer oposição ao futuro governo Jair Bolsonaro, diz o ex-prefeito de São Paulo e candidato derrotado a presidente Fernando Haddad. A chance de o novo governo ir bem é grande, segundo ele, o que tornará ainda mais desafiador o papel dos partidos de esquerda, como o PT. Fernando Haddad passou os últimos dias dando palestras e conversando com pessoas em Nova York. Numa dessas conversas, o ex-candidato disse que a economia mundial emite sinais de que vai melhorar, o que pode impactar positivamente o Brasil e seu governo a partir do ano que vem.
Outro aspecto importante do governo de Bolsonaro serão as privatizações, já anunciadas pelo futuro ministro da Economia, Paulo Guedes, e pelo próprio presidente eleito. “Eles vão vender ativos, estatais, e vão fazer dinheiro, muito dinheiro”, disse Haddad. Se este dinheiro for bem empregado, o governo certamente apresentará resultados, o que lhe dará inclusive melhores condições de governar com sucesso. “Não podemos dar de barato que o governo Bolsonaro vai fracassar”, disse. Isso significa, em outras palavras, que a oposição terá de encontrar meios de fazer sua mensagem
preponderar, o que não será fácil.
Fernando Haddad insistiu no assunto numa palestra na Columbia University. Ele disse que a oposição não pode torcer para o governo dar errado e com isso ganhar o poder. A melhor coisa do mundo, segundo o ex-candidato, é ganhar de quem está indo bem. “A gente tem que trabalhar com a hipótese de eles darem certo. E de a gente dar mais certo do que eles”, disse na palestra “Brazil Talk”. Haddad tem toda razão. Além dos sinais de melhora da economia global, a perspectiva de um novo ciclo do petróleo injetar energia no setor produtivo brasileiro é muito grande, e lentamente já vem ocorrendo.
Mais importante que isso, contudo, foi o gesto de boa oposição que ele deu ao dizer que não se deve torcer contra o governo que será instalado em janeiro. Fazer política, na sua visão, é um exercício em que se tenta provar ser capaz de governar de maneira mais eficiente e produtiva que o adversário. Isso não significa que Haddad não tema retrocessos políticos durante o governo Bolsonaro. Ele os teme, como disse em Nova York e inúmeras vezes no Brasil, antes e depois da eleição de Bolsonaro. Mas a questão mais relevante agora será o que fazer ao longo dos próximos quatro anos para retomar o poder em 2022.
O exemplo dos Estados Unidos, onde Donald Trump era dado como presidente de um único mandato, é sempre lembrado quando se trata de Bolsonaro. Primeiro, porque o brasileiro tenta se parecer com o líder americano, depois, porque sua campanha foi parecida com a do republicano e, finalmente, em razão da taxa de chance de sucesso de seu governo. Ninguém hoje pode afirmar que Trump não se reelegerá. Ao contrário, suas chances são enormes. E, no Brasil, um cenário como esse tem tudo para ser construído, de acordo com a visão de Haddad.
Vinicius Torres Freire: A nova roupa do governo militar
Oficiais ocupam um terço do ministério e querem coordenar ações de governo
O general Hamilton Mourão é chamado de “primeiro-ministro” por um de seus camaradas. O colega de generalato e bolsonarismo faz a piada, ri e logo diz ao jornalista: “Não vai escrever uma coisa dessas, hein?”.
No entanto, minutos depois, esse general também da reserva explica que o vice-presidente eleito é capacitado para a supervisão “estratégica” de planos e metas de governo. Que Mourão deveria ter mesmo tal função no governo de Jair Bolsonaro. Que não se encaixa no papel de conselheiro do presidente, pois muito voluntarioso, mas por isso mesmo seria um excelente executivo-chefe.
Um CEO? Não, apenas um coordenador-geral, responde o general. O governo seria ainda mais militar.
Ainda que alguns tenham faz tempo caído na vida civil, capitães, um tenente-coronel, um almirante e generais devem ficar com um terço dos ministérios. Além do mais, militares de Bolsonaro acham que é preciso ainda diminuir os “poderes de governar” do Tribunal de Contas da União e de agências reguladoras.
O vice-presidente eleito praticamente chegou a anunciar que seria uma espécie de chefe de gabinete, um “centro de governo”, entre outros papéis que se atribuiu, em palavras e na prática.
Mourão conversa com empresários. Faz teleconferência com financistas estrangeiros. Faz inspeção na Petrobras. Desde o começo da campanha, divulgava e apoiava uma versão genérica, mas completa, do programa de Paulo Guedes para a economia. Fez a propaganda da privatização entre os militares mais desconfiados. Conversa com gente do governo de Michel Temer sobre comunicação e publicidade oficiais.
Como se não bastasse, Mourão dá entrevistas aparando extravagâncias de política externa do governo de transição, os disparates jecas dos aiatolás do ministério e as jeremiadas de Bolsonaro sobre invasões estrangeiras, a chinesa em particular.
A conversa sobre a gerência-geral de Mourão arrefeceu faz uns 15 dias, diz parte do entorno bolsonarista, porque estava criando atrito demais e precoce. Antes, seria preciso completar o ministério e operar a lipoaspiração delicada dos poderes da Casa Civil, que será chefiada por Onyx Lorenzoni.
A cirurgia foi feita. O general Santos Cruz ocupou a Secretaria de Governo, com tarefas de negociação política ainda não muito claras, mas que limitam ainda mais a área de serviço de Lorenzoni.
O general deve ser uma espécie de auditor de barganhas com o Congresso (emendas, por exemplo) e fazer parte do trabalho de “relações institucionais” (governadores, prefeitos, organizações da sociedade civil). Ainda levou o Programa de Parceria de Investimentos (PPI), a supervisão de negócios com a iniciativa privada, que estava na Secretaria-Geral da Presidência, de Gustavo Bebianno.
Santos Cruz é outro vigia avançado no Planalto, pois. Os militares, de resto, ficaram com todos os cargos de comando na infraestrutura. Perderam, a princípio, apenas as obras de recursos hídricos, que devem ficar no gordo e rico Ministério do Desenvolvimento Regional.
Se Mourão vier a ser um premiê-executivo informal, os militares poderiam em tese conquistar até uma cabeça de praia no continente de Guedes, no überministério da Economia. Mas não querem bulir com Guedes ou com Sergio Moro, futuro ministro da Justiça.
Um general diz que se trata de “áreas muito bem resolvidas”. São também áreas de risco, aquelas de que depende imediata e imensamente o sucesso popular de Bolsonaro.